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Águas passadas
A história de cinco mulheres que enfrentaram
as enchentes de 2008 em Santa Catarina
Adriane Schultz
Helena Lopes
Paula Rebello
2
Foto da capa
Maristela Pereira
Fotos
Ana Regina Reibnitz
Helena Lopes
Maristela Pereira
Nelson Robledo
Paula Rebello
Revisão
Aline Silva de Araújo
Orientação
Denise Paieiro
Lenize Villaça
Impressão
Tesouro Laser
Ano
2010
Dedicamos este livro às vítimas
da tragédia de 2008 em Santa Catarina,
que com união, fé e muita vontade de viver
superaram as marcas deixadas e recomeçaram
suas vidas!
4
Agradecemos às nossas famílias pelo apoio e amor
incondicional; à professora Denise, pela inteligência e
orientação, e por acreditar em nós; à professora Lenize, pela
força, paciência e dedicação; e, principalmente, a todos os
personagens desta história, que, com o coração aberto, nos
convidaram a entrar em suas casas e nos permitiram
conhecer e contar um pouco de suas vidas neste livro.
6
7
Sumário
Apresentação..............................................................9
A maior tragédia de Santa Catarina...................................13
Lembranças de 2008....................................................17
Chuvas, enchentes, desmoronamentos...............................33
Cenário de guerra........................................................61
Recomeço...............................................................111
Novos tempos...........................................................141
Os rostos desta história................................................159
Mergulho na realidade.................................................167
— Por que as jandaias e os periquitos estão
gritando como os meninos
do Grupo na hora de vadiar?
— É a cabeça de enchente que veio ontem de tarde.
E o rio deu pra falar grosso
e bancar Zé-pabulagem:
— “Não duvide que eu levo
a sua almofada de fazer renda, minha velha”!
E o rio cresceu. Entrou na camarinha
e lá se foi com a almofada da velha!
— “Deus te favoreça, meu filho,
você, ainda outro dia, era tão manso,
lavava até os pratos da minha cozinha!”
E rodou com o canoeiro
e virou a canoa mano.
E entrou nos fundos das casas
e saiu nas portas da rua.
Subiu no olho da ingazeira,
tirou ingá e comeu.
Pulou das pedras em baixo,
espumando como um doido.
Fez até medo às piabas que correram
para os barreiros.
Só os meninos estão satisfeitos.
— “Deus permita que o rio encha”
— “Deus permita que o rio encha mais!”
Quando o rio entrar na rua
as salas de visita serão banheiros.
Eles deitarão barquinhos de cima das janelas
e a professora fechará a escola!
— “Deus permita que o rio encha”
— “Deus permita que o rio encha mais...”
Poema Enchente, de Jorge de Lima
Apresentação
10
Primeiras expectativas
	 Do sonho de três aspirantes a jornalistas — apai-
xonadas pela escrita e pelas pessoas, e com muita von-
tade de levar ao mundo alguma contribuição — nasceu
este livro.
	 Sem precisar de muito esforço, encontramos o
tema perfeito para o nosso trabalho de conclusão de
curso. Contar a história e a forma como as vítimas das
enchentes de 2008 em Santa Catarina reconstruíram
suas vidas atendia perfeitamente ao nosso desejo de
narrar fortes trajetórias de vida e humanizar persona-
gens com histórias aparentemente comuns.
	 Passamos dez dias em Santa Catarina - do dia
16 a 25 de julho de 2010 - entre as duas cidades que
escolhemos para buscar os nossos personagens: Itajaí
e Ilhota. Não foi difícil encontrar boas histórias. A cada
esquina descobríamos alguém que havia sido afetado e
que estava disposto a narrar tudo o que sua memória
pôde guardar.
	 A fama de “hospitaleiro” do estado, se depender
de nós, continuará a se espalhar. O povo catarinense é
muito receptivo e nos acolheu de braços e portas aber-
tas. Sem exceções, todos os nossos entrevistados fize-
ram questão de nos receber em suas casas, oferecer
tudo o que pudesse nos deixar mais confortáveis e ain-
da nos convidar a voltar mais vezes.
	 Entre todos que conhecemos, cinco mulheres em
especial nos chamaram a atenção. Não estava previsto,
mas acabamos nos deixando conquistar pela simpatia,
alegria, força e determinação das mulheres catarinen-
ses.
	 Coincidentemente as cinco mulheres que co-
11
nhecemos eram mães e foram capazes de aguentar o
sofrimento e o desespero de ver a água e a terra levando
todos os seus pertences e lembranças e ainda ter forças
para cuidar de suas famílias.
	 Apesar deste livro ser fruto de um trabalho
jornalístico, procuramos contar histórias de forma li-
terária. Todas as narrativas e diálogos foram recriados
a partir da memória de cada personagem e de seus fa-
miliares.
	 Nem todas superaram as marcas deixadas pela
tragédia de 2008, mas demonstraram coragem para re-
construir o que foi perdido e retomar o seu cotidiano.
12
A maior tragédia de
Santa Catarina
14
	 Há dias boa parte das cidades de Santa Catarina
não via a luz do sol. Chuvas incessantes tomaram conta
do estado no final de 2008. No dia 22 de novembro tudo
transbordou. A água começou a cobrir as ruas de Itajaí
e aos poucos invadiu as casas e os estabelecimentos da
cidade. Enquanto isso, a poucos quilômetros dali, as
chuvas encharcavam os morros de Ilhota.
	 Ao todo foram 63 municípios em situação de
emergência e 14 em estado de calamidade pública. Se-
gundo a Defesa Civil de Santa Catarina, mais de dois
milhões de pessoas foram afetadas de alguma forma
pelas enchentes e mais de 78 mil ficaram desabrigadas
ou desalojadas. Foram 135 vítimas fatais, sendo que
130 foram causadas por soterramento.
	 As cidades que escolhemos para contar histórias
de suas vítimas, Itajaí e Ilhota, foram as mais preju-
dicadas do estado. Itajaí foi o local com a maior área
alagada, 90% de seu território ficou debaixo d’água
por mais de três dias e duas pessoas perderam suas
vidas.A cidade estava se expandindo e crescendo eco-
nomicamente por meio da sua maior fonte de renda, o
porto. Mas após as enchentes, foi fechado e permanece
assim até hoje.
	 Já o município de Ilhota foi afetado principal-
mente pelos desmoronamentos de terra. A pequena
cidade, com apenas 12 mil habitantes, depende da
produção de bananas e de biquínis e lingeries. Pratica-
mente todos os moradores viviam, e ainda vivem, sem
telefone ou acesso à internet.
	 A cidade abriga o conjunto de morros chama-
do de Complexo do Baú, que inclui seis bairros: o Baú
Baixo, o Baú Central, o Braço do Baú, o Alto Braço, o
Alto Baú e o Baú Seco. Essas regiões concentraram o
15
maior número de vítimas fatais de todo o estado. Foram
47 mortes. Muitas regiões ficaram inabitáveis e con-
tinuam sendo áreas de risco, com possibilidade de um
novo desabamento a qualquer momento.
	 Um ano após as enchentes de 2008, em 22 de
novembro de 2009, a Defesa Civil anunciou que 24 mil
pessoas ainda não haviam conseguido retornar para
suas casas, 14,4 mil pessoas estavam desalojadas —
hospedadas em casas de parentes e amigos — e outras
9,6 mil desabrigadas, dependentes de abrigos públicos.
	 Santa Catarina é o terceiro maior pólo turístico
do Brasil e o segundo estado com maior IDH (Índice de
Desenvolvimento Humano). Em seus 95,4 mil quilômet-
ros quadrados, abriga pouco mais de seis milhões de
habitantes, famosos em todo o país por sua hospitali-
dade e simpatia. Esse estado tão querido pelos brasilei-
ros sofreu em 2008 o que o governo local considera a
maior tragédia de sua história.
	 Muitas pessoas prefeririam deixar tudo isso no
passado e não falar mais no assunto. Mas, nós conhe-
cemos duas mulheres de Itajaí e três de Ilhota que não
têm problemas em relembrar as enchentes. Sofreram,
mas se recuperaram. A partir de agora contaremos
suas histórias, esperando que elas nos levem a refletir
sobre as nossas próprias vidas!
16
Lembranças
de 2008
18
Rio Itajaí-Açu
Rio Itajaí Mirim
Foto: Google Maps
Mapa de Itajaí e Ilhota
Foto: Google Maps
19
Foto: Nelson Robledo
Itajaí coberta pela água no dia 24 de novembro de 2008
20
Foto: Maristela Pereira
Casas no Morro do Baú, em Ilhota, encobertas pela lama
21
Uma esquina do bairro de São Vicente, em Itajaí
Foto: Nelson Robledo
Foto: Ana Regina Reibnitz
Casas totalmente alagadas no Promorar, em Itajaí
22
Foto: Maristela Pereira
Foto: Maristela Pereira
Casas destruídas pelas chuvas e
desmoronamentos de terra em Ilhota
23
Foto: Ana Regina Reibnitz
Foto: Nelson Robledo
Ruas alagadas e moradores enfrentando as
enchentes no centro de Itajaí
24
Foto: Maristela Pereira
Foto: Nelson Robledo
Moradores usam barco para resgatar
parentes e amigos desabrigados
Casa destruída com a força das chuvas em Ilhota
Foto: Maristela Pereira
Bombeiros procuram sobreviventes
nos escombros de uma casa em Ilhota
26
Foto: Maristela Pereira
Bombeiros resgatam o corpo de uma vítima dos
deslizamentos de terra no Morro do Baú, em Ilhota
27
Foto: Nelson Robledo
A bagunça dentro das casas depois que
a água baixou em Itajaí
Foto:Nelson Robledo
Depois das enchentes, móveis e roupas levados pelas águas
foram parar nas calçadas
28
Casa destruída pela chuva na beira do rio em Itajaí
Foto:Nelson Robledo
Foto:Nelson Robledo
Quando a água começa a baixar, moradores tentam
atravessar as avenidas alagadas em Itajaí
Foto:Nelson Robledo
Menina tenta arrumar a sujeira e a
bagunça deixadas pelas enchentes...
Foto:Nelson Robledo
...depois de um tempo, ela se cansa e senta em um pequeno banco.
Ao seu redor a lama tomou conta de tudo.
Foto:Nelson Robledo
Moradores fazem fila para receber doações
32
Foto:Nelson Robledo
Voluntários organizam roupas doadas
em abrigo de Itajaí
Capítulo 1
Chuvas, enchentes,
desmoronamentos
34
	 Era madrugada de sábado para domingo, e,
como já vinha acontecendo há dois meses, chovia em
Itajaí.
	 Uma televisão estava ligada em uma das regiões
mais pobres da pequena cidade, o Promorar. Nadir Fer-
nandes, no entanto, não assistia à programação.
	 A mulher de 41 anos, com feição e jeitinho de
moleca, dormia com o efeito dos remédios que tomava
para minimizar as dores da cirurgia que fizera havia
um mês, por conta de um acidente de moto que a dei-
xou em uma cadeira de rodas.
	 Seu marido, Luís João Fernandes, ainda estava
acordado na sala e ouviu os gritos que vinham da rua.
Ansioso e preocupado, ele saiu de casa para ajudar os
vizinhos desesperados.
	 A casa de Nadir e Luís era simples, porém es-
paçosa e aconchegante. Na sala os sofás e a mesinha
de centro estavam decorados com uma colorida manta
e uma delicada toalha. O banheiro, muito bem cuidado,
com uma suave toalha de rosto, saboneteira, tapetinho,
e pequenos quadrinhos na parede. Tudo estava sempre
muito limpo e arrumado.
	 Às seis da manhã daquele domingo a casa já não
estava assim tão organizada. A ansiedade de Luís se
espalhava e seus braços e pernas esbarravam em tudo.
	 Lá fora a água subia na calçada.
	 Nadir acordou assustada com os chacoalhões do
marido.
	 — Acorda, Nadir, vai encher tudo, já está en-
chendo. Vamos sair!
	 Sonolenta e sem levar a sério, Nadir levantou-
se lentamente e subiu em sua cadeira de rodas, com a
ajuda do marido. Passou a mão nos cabelos castanho-
35
escuros e brilhantes, jogando uma mecha para trás.
	 — Eu não saio de casa sem tomar o meu café.
	 Não era sério, ela apenas tentava divertir o mari-
do, que estava apreensivo como poucas vezes ela o ti-
nha visto.
	 — Nadir, já está todo mundo empacotando as
coisas e saindo de casa, vai encher!
	 Com esforço, ela moveu sua cadeira até a janela
e viu que o quintal da sua casa estava seco. Mas olhou
para o marido e não quis mais discutir com aqueles
olhos inquietos.
	 — Então vamos, Luís, pega as crianças.
	 Eles têm dois filhos, Luís Gustavo e Natali, na
época com 10 e 14 anos. Os dois já estavam acorda-
dos antes da mãe. Eles acompanharam o empenho do
pai em ajudar os vizinhos que moravam em casas mais
baixas, e depois a tentativa dele de salvar o máximo
que podia dentro de casa.
	 Luís não parava. Colocou a televisão no alto da
estante, os tapetes e o computador em cima do armário,
ergueu as mesas, as cômodas, as cadeiras, a geladeira,
o fogão. Naquele momento não pensou nas roupas, nos
livros, nas fotografias ou nos documentos.
	 A água passou a subir com mais rapidez. Nadir
começou a levar a sério a situação. Ficou preocupa-
da. Confirmou com o marido se ele havia colocado seu
computador em um lugar mais alto. Depois, lembrou-
se de algo ainda mais importante.
	 — Luís, meu carro, pelo amor de Deus, vai mo-
lhar tudo!
	 O carro recém-adquirido era o sonho de vinte
anos de trabalho de Nadir. Por ser deficiente, precisa-
va de um carro especial. Aquele, um Peugeot, modelo
36
2009, havia lhe custado sessenta e quatro mil reais.
	 Mesmo franzino, Luís conseguiu erguer o carro,
que estava parcialmente coberto pela água, a ponto de
colocá-lo sobre botijões de gás. Foi a última coisa que
fez antes de partir.
	 Com a ajuda do vizinho, Luís levantou a cadeira
de sua mulher, que segurava seu notebook nos braços,
e a levou até a casa de dois andares da vizinha. Du-
rante todo o caminho, Nadir foi gritando de dor.
	 A vizinha estava em uma festa de casamento em
Curitiba e deixou um casal cuidando de sua casa. Nadir
e sua família, ao verem que a água já estava na altura
das canelas, não pensaram duas vezes e a invadiram.
Todos pareciam pensar a mesma coisa:
	 — Meu Deus do céu, de onde veio toda essa
água?
	 Entraram correndo, Nadir carregada por Luís e
por um vizinho e os filhos logo atrás. Subiram as esca-
das com cautela e acomodaram-se no segundo andar
da casa.
	 Luís colocou suavemente sua esposa sentada na
cama. Curiosa, queria ver o que acontecia lá fora. Ao
sair de casa estava com tanta dor que não conseguiu
sequer olhar para os lados.
	 Ela fez um esforço com o pescoço e espiou pela
varanda.
	 A visão que teve foi aterradora, a pior de sua
vida. Não dava para saber o que era casa, o que era rua,
o que eram aquelas coisas que boiavam.
	 O choque veio quando ela olhou para o seu carro
e viu que a água já tinha alcançado os botijões e quase
não dava para vê-los. Logo pensou que ainda teria que
pagar por ele até 2014.
37
	 Aquele céu que amanhecia cinzento era o sinal
de que o dia de Nadir e de sua família estava apenas
começando.
	 Conforme o sol ia nascendo discretamente, vi-
zinhos se juntavam a eles. A região estava sem luz. Na-
dir desligou seu celular para poupar bateria.
	 Quando a fome bateu as mulheres foram prepa-
rar algo para comer. Enquanto isso, Nadir e mais duas
vizinhas foram para a varanda. Ficaram olhando o rio
que passava onde antes eram suas casas. Elas viram a
vida de todas as famílias vizinhas embaixo d’água.
	 Ali, naquela varanda, elas surtaram por algu-
mas horas. Gargalhavam e choravam ao mesmo tempo.
Olhavam para suas casas quase totalmente submersas
e não sabiam explicar o sentimento, reagiam colocando
tudo para fora, o riso e as lágrimas.
	 Da varanda, Nadir avistou o freezer de uma vi-
zinha boiando do lado de fora da cozinha. Gritou para
uma mulher que estava na janela ao lado da casa onde
o freezer escapava, e pediu para que ela o amarrasse no
poste, quando chegasse até lá.
	 A mulher topou. Nadir jogou um lençol e quando
o freezer saiu da casa, a mulher o segurou junto ao
poste, dando um nó com o lençol.
	 O dia seguiu lentamente para as mulheres que
estavam na varanda. Elas continuaram ali e encon-
traram seus passatempos. Tentavam decifrar os obje-
tos que passavam boiando pela rua e acompanhavam
os muros das casas para ver se a água estava baixando.
	 Elas se preocuparam quando começou a es-
curecer e a água ainda não havia dado sinal de que
estava para diminuir.
	 Nadir ficou ainda mais apreensiva ao saber que
38
a comida estava acabando. Pensou no dia seguinte. O
que seus filhos iriam comer?
	 Um barco do corpo de bombeiros entrou na rua.
Já era noite e eles passavam para resgatar aqueles que
precisassem de abrigo. Nadir, sem pensar muito, pediu
para que levassem seus filhos.
	 Os bombeiros pararam o barco bem em frente
à varanda onde eles estavam. Os filhos pularam para
dentro do pequeno barco motorizado. Luís pegou Nadir
no colo e tentou colocá-la também, mas foi impossível.
Ela sentia muita dor com qualquer movimento que fiz-
esse com as pernas e não conseguia dobrar o joelho
para passar pela varanda e entrar no barco. Ela desis-
tiu.
	 — Vão vocês, meus filhos, eu fico aqui com seu
pai.
	 Não sabia ao certo o que estava fazendo, só pen-
sava que não queria ver seus filhos passando fome.
Eles eram prioridade, precisavam estar em segurança.
	 Nadir perguntou aos bombeiros para onde eles
seriam levados e anotou mentalmente o local.
	 A noite foi difícil para Nadir. Ficar longe dos seus
filhos em uma hora como aquela a deixava angustiada.
	 Não conteve a preocupação e telefonou para o
abrigo onde eles estavam. Restando pouca bateria no
celular, tentou falar rápido, mas se apavorou quando
do outro lado da linha não os encontrou.
	 — Seus filhos não estão mais aqui. Eles tiveram
que ser levados para outro lugar, porque aqui começou
a encher também. Mas não sei para onde eles foram,
cada um foi para um lugar diferente. Fica difícil a gente
saber.
	 Para Nadir, esse foi o momento mais assustador.
39
Depois de esgotar suas ideias para achar seus filhos,
apelou para a televisão.
	 Um programa de televisão ficou vinte e quatro
horas no ar durante as enchentes dando informações
sobre o que deveria ser feito, sobre a situação dos bair-
ros e das pessoas que estavam desabrigadas e sem co-
municação com os familiares.
	 Nadir ligou e o apresentador anunciou que uma
deficiente estava ilhada na Rua das Acácias e procura-
va por seus filhos. Para seu alívio, descobriram onde
eles estavam.
	 A irmã de Nadir, que assistia ao programa,
apressou-se em socorrê-la. Um vizinho ofereceu ajuda
para resgatá-la. Ele tinha um barco a motor, mas es-
tava sem combustível. A irmã de Nadir tirou a gasolina
que estava em sua moto e colocou no barco.
	 Enquanto isso, ainda na varanda, Nadir estava
angustiada, sentia-se impotente presa naquela casa.
Até que ouviu um barulho distante que parecia ser de
um motor. Espichou-se na cadeira de rodas tentando
ver de onde vinha o som. Avistou o barco com sua irmã,
seus filhos — que haviam sido resgatados em um abri-
go — e um homem desconhecido dentro.
	 — Graças a Deus, meus filhos!
****
	 Assim como em Itajaí, chovia há muitos dias no
Alto Baú, região localizada na cidade de Ilhota. Mas
foi na noite de sábado que Elodir Braatz achou que o
mundo iria definitivamente acabar. Em casa, ela, seu
marido Valdecir Braatz, e sua neta Ana Clara observa-
vam pela janela a chuva que não cessava desde sexta-
40
feira.
	 Morena de olhos castanhos e cabelo ralo, Elodir
gosta de olhar nos olhos quando fala. Não tem medo
de expressar o que pensa, conversa até demais. Sem-
pre foi muito ativa, trabalhava na fazenda, cuidava da
casa e dos filhos. Nunca aprendeu a ler e escrever, mas
aprendeu a se comunicar bem com as pessoas. Viúva,
conquistou o atual marido com seu jeito desinibido.
Mulher de pavio curto, nunca foi de levar desaforo para
casa. Nervosa por natureza, é do tipo que quando quer
alguma coisa, não desiste.
	 Fazia poucos meses que Elodir havia saído do
hospital. Ficou internada por duas semanas, após ser
picada por uma cobra. Seu pé estava inchado e do-
lorido. Mal podia andar ou manter-se em pé por muito
tempo. Aos 44 anos, estava muito magra e sentia-se
fraca. Devido a esses problemas, não pôde mais traba-
lhar, o que a deixava extremamente incomodada.
	 Do alto do morro, pedras gigantescas escorrega-
vam. Destruíam tudo o que havia pela frente. Grande
quantidade de terra desmoronava. Junto à terra, caíam
plantações de outras fazendas, animais mortos, pe-
daços de madeira, objetos pessoais. Tudo em grande
volume e em alta velocidade. Assustada, Elodir tomava
seus calmantes, enquanto observava junto ao marido a
destruição que a chuva causava.
	 A casa ficava em uma das melhores ruas do
bairro, quase no alto do morro e junto com grandes e
bonitas construções de famílias tradicionais da região.
Poucas horas antes da forte chuva daquele dia, a casa
de Elodir, quando vista de longe, era uma das que mais
se destacavam.
	 Naquele momento, eles queriam sair dali, bus-
41
car um lugar seguro, mas era impossível. Era noite,
não havia luz e a água que descia, misturada com as
pedras que caíam do alto do morro, fazia com que tudo
lá fora fosse perigoso demais.
	 Ao tentar observar a casa da vizinha pela janela,
Elodir viu que ela não estava mais ali. Sobraram apenas
destroços da casa que havia sido levada pelas águas. À
direita, também não se via qualquer construção. Ao o-
lhar mais para o alto do morro, Elodir se impressionava
com o tamanho das ondas de água e terra que se for-
mavam. O barulho era constante e assustador. Ao lado
do marido, ela olhava pela janela como se não acredi-
tasse no que estava acontecendo.
	 — Deus, ajude! Que essa terra não venha na
nossa casa!
	 O desespero tomava conta dela. A sensação de
não poder fazer nada a deixava ainda mais aflita e
incomodada. Ela rezava. O marido rezava. Ambos se
abraçavam e aquele abraço dava-lhes a sensação de
que estavam protegidos um pelo outro mesmo que por
alguns poucos segundos.
	 A casa em que moravam era bem simples, porém
confortável. Moravam ali havia sete anos, trabalhando
como chacreiros para uma família rica. O trabalho era
árduo. O casal passava o dia cuidando da terra e plan-
tando eucaliptos. Valdecir desenvolveu um problema
na coluna devido ao esforço diário. Elodir mantinha as
mãos enfaixadas, de tão raladas e doloridas que fica-
vam.
	 As ondas de água que desabavam dos morros
eram maiores que a casa de Elodir. Desciam com força,
vorazes, derrubando tudo o que viesse pela frente.
	 Enquanto Elodir permanecia parada e abismada
42
com tudo que estava acontecendo, Valdecir estava nos
fundos da casa tentando recolher os móveis do chão
e colocá-los em prateleiras, mesmo sem saber se esse
trabalho iria adiantar.
	 Valdecir foi até a janela, a fim de ver como es-
tava a situação lá fora. Surpreendeu-se com a imagem
de duas mãos abertas, quase transparentes, mas que
pareciam fortes e poderosas. Ele, que nunca foi ligado
à religião, teve certeza de que aquela imagem era uma
mensagem de Deus.
	 — Elodir, Elodir! Você não imagina o que eu aca-
bei de ver!
	 — O que foi?
	 — Apareceu a imagem de uma mão na janela. É
isso que está defendendo a nossa casa, Elodir!
	 Ana Clara, a neta do casal e xodó dos avós, es-
tava dormindo. A pequena menina de cabelos louros
tinha apenas cinco anos e não poderia compreender o
que acontecia lá fora.
	 A família passou a madrugada ali, em frente à
janela, sem saber o que fazer ou para onde ir. Quando
amanheceu, a chuva ainda continuava, mas a tormen-
ta havia passado. As imensas ondas de água deram lu-
gar a poças de lama escorregadias. A sujeira estava por
todos os lados. Aos poucos, o volume de água começou
a baixar.
	 Elodir e Valdecir não acreditavam que haviam
sobrevivido a todo aquele desastre. Olhavam um para
o outro com os olhos lacrimejados. Nunca tinham visto
nada parecido com aquilo. A lama havia tomado conta
dos arredores da casa. Não conseguiam sair pela porta
ou pelas janelas.
	 Passaram as três noites seguintes sem dormir,
43
apreensivos, com medo e angustiados. As doses de cal-
mante para Elodir aumentavam. A chuva continuava,
mas os barulhos haviam cessado. Na segunda-feira de
manhã, a água já havia baixado, mas ainda não o sufi-
ciente para que saíssem sozinhos de casa. Esperavam
um resgate. Rezavam para que alguém viesse buscá-
los.
	 O céu permanecia nublado. A intensidade da
chuva havia diminuído bastante em comparação ao dia
anterior. A maior parte das casas próximas à de Elodir
estava destruída. O cenário era devastador.
	 Em meio à grande quantidade de água, havia
muita sujeira espalhada por todos os lados. Galhos de
árvore, objetos pessoais como roupas, cadernos, foto-
grafias, pedaços de móveis e de eletrodomésticos en-
contravam-se misturados ao lixo das ruas. A água era
suja e preta. O mau cheiro era intenso.
	 Poucas casas haviam ficado ali. Nenhuma delas
estava intacta. De alguma forma, todas tinham sido afe-
tadas pelas águas. Aquele forte barulho de tempestade
tinha dado lugar a um som mais baixo, de chuva fina.
	 A expressão traumática no rosto dos moradores
da região era um misto de tristeza pelas perdas e alívio
por terem sobrevivido.
	 Ao longe, alguns passavam pelas ruas em bus-
ca de objetos que haviam perdido, outros procuravam
parentes ou amigos e gritavam pelos seus nomes. Al-
guns bombeiros circulavam pelo local, resgatando pes-
soas de suas casas e levando-as para um local mais
seguro.
	 Elodir mal podia esperar para sair logo daquela
casa, pois temia que desabasse a qualquer momento.
Somente se sentiria tranquila quando estivesse longe
44
dali.
	 Alguns vizinhos se aproximaram.
	 — Elodir! Ô, Elô, você está aí? Ai, minha Nossa
Senhora!
	 — Estou aqui, Cibele. Meu marido e minha neta
também. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair daqui.
Essa água não dá pé para mim não.
	 — Vou buscar ajuda, mulher! Fica calma que eu
já venho.
	 Elodir também estava extremamente preocupa-
da com suas três filhas. Uma delas morava ainda mais
para cima do morro, em uma área de risco maior.
	 O pé de Elodir continuava inchado. Os remédi-
os mal davam conta da dor que sentia. Mas ela tinha
outras preocupações bem maiores, que ocupavam sua
mente naquele momento. Só pensava em se ver longe
dali.
	 Era alto o barulho dos helicópteros que so-
brevoavam a área. Eles estavam à procura de feridos
ou de pessoas que precisassem de resgate. Alguns viz-
inhos gritavam para que os helicópteros viessem bus-
car Elodir, seu marido e a neta, mas não havia espaço
para que pousassem.
	 A preocupação aumentava. Até parecia que o
tempo havia congelado naquela manhã de segunda-
feira. O relógio não andava.
	 — Valdecir, pelo amor de Deus. Será que nin-
guém vem nos tirar daqui?
	 — Calma, Elodir. A água baixou, olha lá fora.
Daqui a pouco vem alguém.
	 — Não aguento mais, Valdecir.
	 Ana Clara, neta do casal, procurava acalmar
Elodir. Por ser muito pequena, não sabia o que falar
45
para fazer a avó sorrir. Por isso, permanecia o tempo
todo ao lado dela, fazendo-lhe carinho no rosto e a
abraçando. Era só Elodir deixar escapar alguma lágri-
ma, que Ana enxugava-lhe prontamente.
	 Algumas horas depois, duas moradoras da
região, entre elas a Cibele, que havia passado na casa
de Elodir anteriormente, voltaram, desta vez, trazendo
algumas cordas para que pudessem atravessar a lama.
	 Cibele jogou com força a corda para a entrada da
porta da sala. Elodir segurou-a e, lentamente, foi an-
dando até o local onde as mulheres a esperavam. Não
estava sendo nada fácil para ela.
	 Cada passo que dava, cada centímetro de loco-
moção, lhe causavam uma dor insuportável. Aos pou-
cos, foi se deslocando com mais rapidez, auxiliada pelo
marido, que vinha logo atrás, segurando a neta no colo.
	 Quando já estava a alguns metros longe de casa,
Elodir ficou aliviada. Mal conseguia acreditar que havia
escapado da morte. Os vizinhos a carregaram até um
pasto, onde a deitaram no chão para que não fizesse
esforço com os pés.
	 Logo depois, todos se juntaram para limpar a
mata, tirar os excessos de lixo e de vegetação, para que
o helicóptero pudesse pousar.
	 Elodir estava incapacitada para andar. As dores
eram intensas, os remédios haviam ficado em casa. Al-
gum tempo depois, o helicóptero avistou o chamado e
pousou na região.
****
	 Salete Garcia não acreditava no que estava ac-
ontecendo em Itajaí. Apaixonada por limpeza, havia
46
passado dez dias arrumando sua casa para aprovei-
tar o resto de suas férias. Queria viajar. Ir para algum
lugar próximo de sua cidade, para não ter que ficar
muito tempo longe da neta de apenas um ano. Queria
descansar da intensa rotina que tinha, trabalhando no
expediente noturno da farmácia do Hospital Marieta, o
único da região.
	 Enquanto a enchente invadia sua casa, seus
planos iam se desfazendo. Incrédula, berrou ao seu
marido:
	 — Temos que levantar os móveis!
	 Todos os noticiários informavam aos moradores
que a cidade estava alagada, mas Salete jamais imagi-
naria que chegaria à sua casa. O bairro em que reside,
São Vicente, é localizado em uma área alta da região.
Sua casa é a mais alta da rua. Já morava no bairro
havia trinta anos e conhecia bem os arredores e os viz-
inhos. Foi uma das primeiras a chegar a São Vicente.
	 Aos 52 anos, já havia passado por outras duas
enchentes, nos anos de 1983 e 1984, e a água nun-
ca tinha chegado dentro de sua casa. Mesmo assim,
naquela época, como os filhos eram pequenos, foi para
o bairro mais alto da cidade ficar com sua mãe, para
não expô-los ao risco.
	 Lembrando-se das inundações passadas, jul-
gou que sua casa não alagaria e por isso, ao contrário
dos vizinhos, Salete manteve-se firme em casa ao lado
do marido Juci Garcia, suas duas filhas, Gisele e Ana
Paula, e o genro.
	 Sérgio, o filho caçula, morava e trabalhava na
Itália. Salete vivia com saudade dele, mas mantinha
contato pela internet. Sempre foi apegada à família.
Gostava de ter todo mundo por perto. Estava sempre
47
preocupada em dar o melhor aos seus filhos.
	 Na sexta-feira à noite, Sérgio ligou. Tinha falado
com a namorada, que também morava em Itajaí, e es-
tava apreensivo.
	 — Mãe, a Camila está chorando. Ela está falan-
do que está tudo alagado aí em Itajaí.
	 — Não se preocupe, filho. Aqui em casa está tudo
normal. Não vai encher aqui, não. Pode ficar tranquilo.
	 Chovia há mais de dois meses. Quando Salete
percebeu que a cidade estava enchendo, começou a
monitorar a elevação da água na rua. A todo o momen-
to ia até a janela azul da frente da casa conferir o nível
da água, comparando-a com a grade do portão. Através
da mesma janela, conseguia ver que a água estava en-
trando no jardim, mas como a casa tinha dois degraus
antes de chegar à porta de entrada, acreditava que não
teria que sair de lá.
	 No sábado, sua irmã Elizabete, que morava no
mesmo bairro, mas em um ponto ainda mais alto, ha-
via lhe oferecido a garagem para estacionar o carro,
mas Salete recusou. Agora o automóvel estava submer-
so.
	 Era madrugada de domingo quando a água
começou a invadir a parte de trás da casa. A luz elétri-
ca da cidade havia sido cortada e a penumbra pairava
sobre Itajaí. Juci já havia ajudado os vizinhos a levan-
tarem seus móveis e a saírem do bairro, mas em sua
casa continuava tudo no lugar.
	 A casa de madeira era pequena, mas bem arru-
mada. Os detalhes da decoração foram escolhidos por
Salete, que adorava manter tudo organizado. As pare-
des haviam sido pintadas recentemente.
	 Começaram a levantar os objetos que estavam
48
mais perto do chão. As cadeiras ficaram em cima da
mesa, as televisões em cima do guarda-roupa. Os dois
colchonetes novos ficaram em cima da estante, os ve-
lhos, eles não perderam tempo tentando salvar. Os
objetos que ficavam na parte de trás da casa já não
tinham como recuperar. O carpete, recém-adquirido,
estava ensopado.
	 Tudo o que Salete pensava era em sair de casa
com sua família imediatamente sem ter que entrar na
água turva da enchente. Tinha medo do que poderia
encontrar no meio de tanta água e sujeira.
	 Sem saber como e nem para onde iriam, Salete
fez questão de comer alguma coisa antes de sair de
casa. O botijão de gás já estava boiando, mas deu tem-
po de preparar um café.
	 — Vamos todos tomar um café antes de sair. Não
sabemos quanto tempo ficaremos sem comer.
	 As linhas telefônicas não funcionavam mais e o
celular de Salete estava quase sem bateria. Sabia que,
se ligasse para a Defesa Civil, a bateria acabaria an-
tes de qualquer contato, por isso decidiu ligar para sua
irmã e pedir socorro. Esperaram todos acordados em
casa, rezando para que alguém viesse buscá-los.
	 Às seis e meia da manhã de segunda-feira, o bar-
co de um voluntário parou em frente à casinha de ma-
deira número 287. Salete estava cansada de esperar. A
cada hora que passava, a água invadia um cômodo de
sua casa.
	 Pegou alguns pertences e, morrendo de medo,
entrou no barco. Salete sabia nadar, mas a correnteza
estava forte e ela temia que o barco virasse.
	 — Vamos para a casa da minha irmã. Fica na
rua Estéfano Vanolli, a três quarteirões daqui.
49
	 Foi com as filhas à casa de sua irmã Elizabete.
Tinha sorte de ter para onde ir e por isso não precisaria
ficar nas igrejas e escolas que já estavam lotadas com
os milhares de desabrigados e desalojados de Itajaí e
das regiões vizinhas.
	 Salete estava triste por ter que sair de casa, mas
dava graças a Deus que a de sua irmã não tinha en-
chido, afinal 90% da cidade de Itajaí estava submersa,
segundo a Defesa Civil do estado. Pelo menos, estaria
perto de parentes e conhecidos.
	 O marido não quis acompanhá-las. Ficou toman-
do conta da casa, já que muitos estavam se aprovei-
tando da situação para invadir e roubar os poucos per-
tences que sobraram nas casas vazias. Ele dormiria em
cima da mesa, sozinho e molhado, mas assim poderia
proteger os pertences da família.
	 Durante o caminho que percorreu até a casa de
Elizabete, Salete pôde ver como estava a cidade. A ima-
gem do estado de Santa Catarina submerso passava e
reprisava todos os dias nos noticiários, mas ainda não
havia visto de perto. Itajaí estava coberta por um mar
marrom que se espalhava sem barreiras. A água en-
volveu tudo o que ficou à sua frente. As casas estavam
sujas e cobertas até o telhado.
	 O barco ia passando por onde antes era rua,
desviando dos objetos sem dono que boiavam. A sujeira
estava espalhada e o cheiro era muito forte.
	 Depois de alguns minutos em silêncio, chega-
ram à casa de Elizabete. A rua estava inundada, mas a
casa, que ficava no fundo do terreno, estava salva.
****
	 Em uma casa grande e bem cuidada, a família
50
Marthendal, tradicional na região do Alto Baú em Ilho-
ta, seguia sua rotina normalmente no mês de novem-
bro, mesmo com a chuva que não dava trégua havia
mais de um mês.
	 Eles moravam em uma rua mais afastada do
pequeno centro do bairro e sua casa era rodeada por
árvores e plantações.
	 Terezinha Marthendal, uma mulher de cabe-
los e olhos marrons bem escuros, seu marido, Gilnei
Hentcheen, e suas duas filhas pequenas, Tamires e
Tifany, viam pela televisão em um domingo à noite os
estragos que as enchentes estavam causando em Itajaí.
	 Eles, no entanto, não precisavam se preocupar,
afinal, moravam no alto do Morro do Baú, conheciam
bem a terra e lá era firme.
	 Naquela madrugada chovia forte, mas eles dor-
miram tranquilos.
	 No meio da noite, um barulho. Terezinha acor-
dou desnorteada.
	 — Que foi isso? Acorda, Gilnei.
	 O marido acordou assustado e viu a mulher le-
vantando apressadamente da cama. Terezinha correu
até a janela e quando olhou lá fora se arrependeu de
ter aberto a cortina. A visão era confusa. Não dava para
entender o que acontecia, mas ela se desesperou.
	 — Gilnei, vem ver isso aqui! O que está acon-
tecendo?
	 O marido correu até o seu lado e nesse momento
eles sentiram as pedras rolando morro abaixo. Estava
escuro e só o que dava para ver era o fogo.
	 — Explodiu alguma coisa, Terezinha.
	 Eles viram muitas chamas. Chamas imensas.
Mais tarde descobririam que, por conta dos deslizamen-
51
tos de terra, algumas pedras atingiram um gasoduto da
região, causando a explosão que provocou ainda mais
desmoronamentos.
	 O desespero se instalou quando eles começaram
a ouvir os gritos dos vizinhos. Sem pensar, os dois cor-
reram para o quarto das filhas e as buscaram.
	 Terezinha quis sair de casa, mas seu marido a
impediu.
	 — Não dá para sair agora, não dá para enxergar
nada lá fora. É mais seguro se ficarmos aqui até ama-
nhecer e depois procurarmos abrigo.
	 Foi a noite mais longa de suas vidas. Eles nunca
imaginaram que uma madrugada pudesse ter tantas
horas. Ninguém voltou a dormir.
	 Ficaram juntos sentindo a terra tremer, vendo
rachaduras formarem-se nas paredes e ouvindo novas
explosões acompanhadas de clarões que entravam pe-
las janelas.
	 Ninguém falava, mas todos pensavam nas mes-
mas coisas. Quando acabariam aquelas explosões? Al-
guma pedra atingiria a casa deles? O morro desmo-
ronaria? Eles sobreviveriam?
	 O céu começou a dar sinais de que o sol estava
para nascer. Eles aproveitaram e foram se ocupar pre-
parando tudo para saírem de casa. Sabiam que teriam
que fugir pela mata, por isso colocaram nas mochilas o
básico para sobreviverem durante a fuga, como alimen-
tos, água, agasalhos, facões, fósforos.
	 Finalmente amanheceu. Eles abriram a porta e
não acreditaram. O que antes eram os belos morros
que formavam a paisagem de cartão postal, agora eram
apenas terra e lama. Tudo deslizou. Casas tinham sido
soterradas. A deles parecia que estava prestes a cair. O
52
chão em que pisavam não era mais firme. A sensação
era de que desmoronariam a qualquer momento junto
com o morro.
	 Ao contrário da noite agitada, tudo estava calmo.
Não viram seus vizinhos e não ouviam mais gritos. Se
fechassem os olhos poderiam acreditar que nada havia
acontecido.
	 Passado o choque de ver aquela destruição,
saíram sem rumo certo. Terezinha sentia como se es-
tivesse em um campo de batalha, sem ter sido instruí-
da sobre como se defender.
	 Com 37 anos, Terezinha tinha duas filhas, de 5
e 14 anos. Dez dias antes de se ver naquela situação,
tinha feito uma cirurgia de laqueadura. Um grave pro-
blema de coluna fazia com que toda a gravidez dela
fosse de risco. Por isso, decidiu que não iria mais en-
gravidar.
	 Mesmo com as dores, acompanhou o marido.
Saíram com as mochilas nas costas, seguindo o camin-
ho que acreditavam que daria em um local seguro. En-
traram na mata, atravessaram poças, passaram por
trechos de muita lama e desviaram de destroços.
	 Terezinha, por conta das dores, foi engatinhan-
do por quase todo o caminho. Seu marido não podia
carregá-la, pois levava as mochilas.
	 A cada barreira que tinham que ultrapassar, a
cada trecho de lama que afundava, a cada subida mais
íngreme, um objeto das mochilas ficava pelo caminho.
	 Depois de andar pelo que pareciam ter sido ho-
ras, encontraram companhia. Sem querer, entraram
nas terras de outras pessoas e se depararam com os
donos da casa. A família planejava sair de casa também
e ao vê-los decidiu acompanhá-los.
53
	 Todos seguiram caminhando em silêncio e sem
destino. Pouco tempo depois, chegaram a um local da
mata que parecia seguro e firme. Terezinha mal podia
andar, então decidiram ficar por ali.
	 Montaram uma barraca. Terezinha e as crianças
descansaram. O resto do grupo começou a pensar no
resgate. A mata era fechada, então começaram a abrir
espaço para que pudessem ser vistos. Quebraram ga-
lhos, cortaram plantas, derrubaram pequenos troncos.
	 Quando todos decidiram descansar um pouco,
eles conversaram. Os colegas que encontraram pelo
caminho contaram o que sabiam. Um deles tinha ou-
vido algumas histórias.
	 — Muitas pessoas saíram de casa ontem à noite.
Ainda estavam acontecendo muitas explosões e, con-
forme uma barreira estourava, eles tinham que pular
para outro lugar. Virou um campo minado.
	 Mas ninguém falou sobre o medo que sentiam,
as incertezas sobre o que aconteceria com eles e os
pensamentos negativos que teimavam em aparecer.
	 Anoiteceu. Todos dormiram na madrugada de
segunda para terça-feira, não porque estivessem mais
calmos, mas porque o cansaço físico foi mais forte que
a preocupação.
	 A noite foi tranquila.
	 Aos poucos eles foram despertando, conforme
o dia ia nascendo. Um dos colegas que estavam com
a família Marthendal se lembrou de algo que poderia
ajudá-los.
	 — Eu desliguei meu celular ontem, estava com
um ponto de bateria. Acho que se ligá-lo agora podem-
os conseguir telefonar.
	 Todos ficaram esperançosos. Terezinha, com
54
seu jeito sério e suas feições cansadas, não daquele
dia em especial, mas de toda uma vida, tentou pensar
racionalmente.
	 — Mas vamos ligar para quem?
	 Ninguém respondeu.
	 — Olha, meu sogro conhece essa região toda do
Baú como a palma da mão dele. Nós podemos tentar
explicar onde estamos e ele manda alguém para nos
buscar.
	 Todos concordaram e o marido de Terezinha
pegou o celular e ligou para seu pai em Navegantes.
	 — Pai, precisamos de ajuda. Alguém tem que
vir nos buscar hoje, minha mulher e minha filha estão
muito mal, precisam sair daqui.
	 Terezinha sentia muita dor. Sua filha mais nova
estava roxa de frio. As duas sentiam muita fome e esta-
vam completamente molhadas.
	 Para chamar a atenção do exército, queimaram
alguns pneus que encontraram em uma estrada perto
dali.
	 Pouco tempo depois, às onze horas da manhã
de terça-feira, o helicóptero chegou. Terezinha pensou:
estamos salvos!
****
	 A casinha verde, rodeada por plantações de ba-
nana e bem em frente a um grande morro no bairro do
Braço do Baú, em Ilhota, abrigava um casal e sua filha.
Tatiana Reichert e Rosmael Reichert estavam com a fil-
ha Maria Isabel, de apenas dez meses, recém-adotada
após seis anos de espera na fila de adoção.
	 Por fora, a construção era bem bonita, as pare-
55
des pareciam ter sido pintadas recentemente, e as flo-
res e plantas decoravam o pequeno quintal. Por dentro,
a casa era espaçosa, porém dava a impressão de estar
inacabada. Quase não havia móveis e as paredes não
tinham cor, nem decoração.
	 Tatiana era uma mulher bonita de 36 anos,
com olhos jovens e castanhos, cabelos louros, sempre
presos suavemente com um elástico. Não parecia preo-
cupada com a aparência. Ficava mais bonita com os
cabelos soltos, mas os prendia para facilitar o trabalho.
	 Ela e o marido trabalhavam com bananicultura.
Todos os dias cuidavam da plantação, debaixo de sol
ou chuva. Tatiana, com a pele clara de quem não cos-
tuma tomar sol, já estava há alguns meses sem tra-
balhar com o marido para poder tomar conta da filha
pequena.
	 Como já era de costume, em época de chuva
naquela região, a água formava enxurradas ao redor
da casa de Tatiana e sua família. A rotina daqueles dias
continuou igual, mesmo com a chuva forte que caía há
três dias.
	 No domingo, Tatiana, ao abrir a porta da frente,
sentiu algo gelado nos pés. A água tinha chegado até o
seu quintal. Isso nunca havia acontecido.
	 Cerca de um quilômetro dali, o pai de Tatiana se
desesperava com o sumiço da esposa.
	 A madrugada de domingo para segunda-feira foi
conturbada e confusa para José Altino Richartz, sua
mulher Augusta Richartz e sua filha Giane Richartz, de
27 anos.
	 Desde sexta-feira, a família estava em casa por
conta das fortes chuvas que alagaram diversas ruas da
região. No domingo estavam todos em casa ouvindo a
56
tempestade lá fora. Escutaram barulhos estranhos que
não sabiam de onde vinham.
	 A energia elétrica acabou. Ficaram no escuro.
Sem muitas opções, às dez horas todos foram dormir.
Agitado, José levantou à meia-noite e foi até a janela.
Percebeu que a água havia baixado bastante. Ficou
mais tranquilo e voltou a se deitar.
	 Poucos instantes depois, ouviu um estouro mui-
to alto. Antes de conseguir pensar em alguma coisa ele
viu sua casa se desfazendo. Uma grande árvore que fi-
cava no alto do morro, de repente veio em direção à sua
casa. A figueira bateu no telhado e quebrou tudo o que
estava embaixo.
	 Augusta gritou. No mesmo momento José, que
olhava para cima, viu uma forte luz. Ficou intrigado
pensando quem poderia ter acendido.
	 — Quem está aí?
	 — Sou eu.
	 — Mas eu quem?
	 — Sou eu, pai, a Giane, estou trancada, me tira
daqui!
	 Logo entendeu que a luz deveria vir do celular
da filha, que dormia com ele sempre ao seu lado. Pas-
sando por cima dos escombros, José chegou até ela.
Viu que havia muitos tijolos em volta dela. Gritou para
os vizinhos, pedindo socorro.
	 Enquanto esperava, sentia a chuva que não ces-
sava caindo no seu pijama. Em cima dele e de sua filha
havia uma telha que ajudava a protegê-los da chuva,
mas ainda assim ficaram muito molhados.
	 O vizinho voltou trazendo outros homens para
ajudar. Pegaram uma motosserra para tentar cortar as
madeiras que rodeavam Giane, mas o barulho e o medo
57
de machucá-la fizeram-nos parar.
	 O dia demorou muito para amanhecer. Giane
estava muito lúcida a todo o momento. Sentia muita
sede. O pai dava-lhe a blusa do pijama para que ela
chupasse a água da chuva.
	 Ninguém sabia onde estava Augusta, ela não re-
spondia aos chamados. José sentia que a esposa es-
tava morta, viu onde a árvore caiu e teve certeza que
tinha sido bem em cima de onde ela estava.
	 O sol começou a aparecer.
	 Naquela manhã de segunda-feira, Tatiana es-
tava em casa com seu marido, brincando com a filha
Maria Isabel. Ela recebeu a notícia de que um conjunto
de sete casas, que ficava bem próximo, havia sido atin-
gido pelas chuvas e uma delas foi totalmente destruída
pelos desabamentos de terra.
	 A paisagem comum que via ao abrir a cortina de
casa já não era mais igual. A água subiu muito mais do
que o normal, deixando parte das casas em um mar-
rom da mesma cor da terra. Os morros, que desabavam
por não suportarem a quantidade de água dos últimos
meses, estavam encobrindo o que antes poderia formar
uma bela fotografia.
	 De repente, Tatiana ouviu uns gritos distantes
e foi até a janela. Viu um amigo vindo correndo em di-
reção a sua casa. Correu para abrir a porta da frente.
	 — Tatiana, eu vim de lá da casa dos seus pais e
aconteceu uma coisa terrível. Sua mãe, ela... Ninguém
sabe dela, ela sumiu. A casa dos seus pais desabou.
Seu pai está bem, está com a sua irmã. Mas sua irmã,
ela também não está bem. Ela está soterrada, mas está
viva esperando resgate. É melhor você ir para lá.
	 À medida que o amigo contava ofegante o que
58
havia acontecido, Tatiana ia perdendo a consciência do
que estava a sua volta. Era como se tudo tivesse parado
e só ouvisse ao longe a voz do homem dizendo que sua
mãe estava, provavelmente, morta e sua irmã, soter-
rada.
	 Ficou sem reação, quis fazer algo, mas simples-
mente não conseguia. Ficou assim por alguns segundos
até que agradeceu ao amigo e disse que estava indo.
	 Chamou o marido, pegou sua filha no colo e saiu
em disparada. Deixou Maria Isabel com sua cunhada
que morava bem próximo e foi com o marido em direção
à casa de seus pais.
	 No caminho, uma barreira a deteve. O rio que
separava seu bairro de onde seus pais moravam trans-
bordou e ficou impossível atravessar por ali. Ela e seu
marido pensaram em como passar, pediram ajuda aos
vizinhos, mas não conseguiram.
	 Tatiana desistiu pelo cansaço. Não acreditava
que estava tão perto, podia até ver o que restou da casa
de seus pais, mas não conseguia alcançá-los. Queria
estar com a irmã e com o pai, ajudá-los, mas não pôde.
	 Voltou para a casa da cunhada com uma sen-
sação de impotência, raiva e angústia.
	 Na manhã seguinte, terça-feira, Tatiana acordou
depois de uma noite mal dormida e recebeu a notícia de
que sua irmã havia falecido.
	 Arrumou-se o mais rápido que pôde, deixou a
filha com a cunhada, e foi para a Igreja Nossa Senhora
da Glória, para o sepultamento de sua irmã. Sua mãe
continuava desaparecida.
	 Giane chegou amarrada em uma escada, com
um cobertor em volta e carregada por um trator. Depois
de dez horas soterrada conseguiram tirá-la dos escom-
59
bros e a levaram para a casa de vizinhos. Ainda pas-
saram mais quatro horas esperando o socorro, que não
chegou a tempo.
	 Ela estava muito machucada, suas pernas ha-
viam sido esmagadas, estavam roxas, sua bexiga foi es-
premida pela tábua que a prendeu nos escombros e ela
havia levado uma forte pancada na testa, que sangrava
muito.
	 Às dez horas daquela manhã, fizeram o sepulta-
mento.
	 Cansada física e psicologicamente, Tatiana que-
ria voltar logo para casa e encontrar sua filha. A sur-
presa foi quando chegou em um ponto do caminho que
estava barrado pelo exército.
	 — Essa área está bloqueada, senhora. Ninguém
mais pode subir.
	 — Mas minha filha está lá em cima. A Maria Isa-
bel está lá.
	 Tatiana ficou desesperada, queria estar perto
de sua filha. Seu marido, depois de muitas tentativas,
conseguiu furar o bloqueio e subiu para resgatar a filha
e os seus parentes que estavam na casa.
	 Eles voltaram para a Igreja onde havia sido o
sepultamento de Giane e lá ficaram sabendo que o cor-
po de Augusta, mãe de Tatiana, tinha sido encontrado.
	 O exército não deixou que a família fizesse o
reconhecimento do corpo. Eles acreditaram que seria
chocante demais vê-la no estado em que estava. As
irmãs reconheceram a mãe pela coberta na qual estava
enrolada.
	 Tatiana, acompanhada por Rosmael, Maria Isa-
bel, seu pai José Altino e sua irmã com o marido e os
três filhos, foi para a casa de parentes de sua mãe, no
60
bairro do Baú Central.
	 Naquele momento, só queriam um lugar familiar
para chorarem juntos. Não teriam suportado ir para
um abrigo com pessoas desconhecidas. Precisavam de
espaço, depois de tantos dramas e notícias ruins.
	 Queriam, pelo menos, o direito de sofrer em paz
pelas perdas daquela tragédia. Queriam poder explodir,
extravasar, gritar de dor por todas as mortes.
Capítulo 2
Cenário de guerra
62
	 Depois do alívio de ver seus filhos bem, Nadir
ficou feliz por estar sendo resgatada. O barco veio até a
varanda onde ela estava. Lembrando da outra tentativa
de resgate ela se desanimou, mas o marido insistiu.
	 — Eu vou tirar essa grade daqui e fica mais fácil
para você passar, Nadir.
	 O marido, que tinha uma força enorme guarda-
da dentro de seu corpo franzino, conseguiu arrancar a
grade de madeira da varanda e com a ajuda do homem
que estava no barco, tirou Nadir deitada dali. Ela en-
trou no barco, mas Luís, depois de lhe passar a cadeira
de rodas, continuou na varanda.
	 — Luís, você não vem, não?
	 — Não, Nadir. Vão vocês. Eu vou ficar aqui para
cuidar da nossa casa, é capaz de alguém ainda tentar
nos roubar.
	 Nadir consentiu. Não se preocupava muito com o
marido, sabia que ele, melhor do que ninguém daquela
rua, podia se cuidar sozinho. Para brincar com o mari-
do, Nadir gostava de compará-lo a MacGyver, da famo-
sa série norte-americana, MacGyver: Profissão Perigo.
Para ela, Luís era forte e corajoso como o personagem.
	 Luís ficou não só para cuidar de sua casa, mas
também para vigiar os pertences de seus vizinhos. Na
sua rua todos o conheciam. Diziam que Luís era o tipo
de homem que se você dissesse que não conseguia
andar e precisava ir até Brusque, uma cidade próxima,
ele te levaria nas costas até lá com a maior boa von-
tade.
	 Nadir despediu-se do marido e seguiu no barco
até a casa de sua irmã. No começo, estava tão feliz por
estar com seus filhos que não reparou muito na destru-
ição à sua volta. Só percebeu que tudo havia se trans-
63
formado em um grande rio.
	 Conforme o pequeno barco a motor ia se deslo-
cando, ela não conseguia reconhecer o que era rua, o
que era casa, o que era terreno particular. Ficava ima-
ginando o que teria ficado por baixo de toda aquela
água.
	 A sensação de impotência e o desespero de es-
tar ilhada, que sentia presa naquela varanda, foram
ficando para trás. Até a tristeza de saber que tudo o
que conquistou havia sido tomado pela água também
estava sendo esquecida. Ver as casas de seus amigos
e vizinhos alagadas até o telhado deixou-a perturbada
enquanto observava os estragos das enchentes. Mas
agora não pensava mais nisso.
	 Aos poucos a casa da irmã foi se aproximando. O
barco estava cada vez mais próximo ao chão, até chegar
à entrada da casa, onde não havia mais água. Atracou
na praia que se formara ali e todos desceram. O vizinho
ajudou Nadir a sentar-se em sua cadeira de rodas e a
empurrou até a porta de casa.
	 Ela e sua irmã agradeceram ao vizinho e en-
traram. Nadir estava exausta e ainda sentia muitas
dores nas pernas depois de tantos movimentos. Mas
logo quis saber o que os filhos tinham passado nessas
vinte e quatro horas que ficaram sem se falar.
	 — O que aconteceu com vocês, meus filhos?
Vocês conseguiram comer?
	 — A gente teve que ir de abrigo em abrigo. Fomos
para um primeiro e logo começou a encher lá também,
então tivemos que sair. Depois o outro também alagou.
	 — E lá tinham várias crianças, mas elas briga-
vam muito. Era uma bagunça.
	 — É, e eu tive que ficar falando para o Gustavo
64
se comportar.
	 Nadir ficou feliz por saber que nada de ruim ha-
via acontecido com seus filhos. Mas à medida em que
eles iam contando as histórias, ela foi percebendo que
sentiram medo, por mais que não conseguissem admi-
tir.
	 Não gostava de imaginar seus filhos chorando
sozinhos, sentia culpa por não ter estado lá para ajudá-
los. Mas ficou feliz por saber que os dois, que viviam
brigando, se uniram na hora em que foi preciso.
	 Eles quiseram tomar um banho, desde sábado
não viam um chuveiro e estavam sujos e molhados da
enchente de domingo. Nadir e seus filhos saíram de
casa só com a roupa do corpo. Ela teve que pedir até as
roupas íntimas para a irmã.
	 Seu filho, Gustavo, que não gostava muito de
tomar banho, teve que ser convencido por ela a ir para
o chuveiro. Ele também só tinha a roupa do corpo. Na-
dir pediu para uma vizinha, que tinha um filho quase
da mesma idade, uma muda de roupa emprestada.
	 No dia seguinte, terça-feira, parentes e vizinhos
foram chegando aos poucos para se abrigar na casa.
Mais de vinte pessoas ficaram lá. Depois de algum tem-
po, tudo virou uma grande brincadeira.
	 A calmaria lá fora e a casa limpa e seca deixa-
vam a impressão de que nada havia acontecido. Não
parecia verdade. Por alguns instantes, esqueceram a
tragédia e tudo que tinham vivido há algumas horas
parecia ter sido apenas um pesadelo.
	 Nadir só continuou consciente da tragédia
porque se lembrava que seu marido ainda estava lá na
casa alagada. Não aguentou e telefonou para o celular,
que ele prometeu que deixaria ligado.
65
	 — Oi, Luís, está tudo bem aí?
	 — Sim, tudo certo, e vocês chegaram bem?
	 — Chegamos. Já está cheio de gente aqui. Es-
cuta, você comeu direito?
	 — Comi, Nadir.
	 — Comeu nada que eu te conheço, você é teimo-
so.
	 Comida era o que não faltava na casa da irmã de
Nadir. Ela tinha feito compras poucos dias antes e al-
guns amigos que chegavam traziam o que conseguiram
salvar de suas casas.
	 As mulheres passavam o dia na cozinha pre-
parando as refeições e fofocando. Entre as risadas, fa-
lavam de assuntos sérios. Contavam o que sofreram
quando a água começou a subir e comentavam as
histórias que tinham ouvido sobre vizinhos e desco-
nhecidos, mas ninguém sabia se eram mesmo verdade.
	 — Eu ouvi falar que em um mercadinho perto
de casa teve um rapaz que tentou entrar e roubar os
produtos e o caixa. Mas o dono estava lá e ele tinha
uma arma. Disseram que ele matou o ladrão sem dó, e
depois o pendurou em um poste lá perto.
	 Enquanto conversavam, Nadir se lembrou do
irmão. Quis saber se ele estava bem e descobriu que
sim. Ela tentou controlar seus pensamentos, mas eles
insistiram em divagar e voltar para a sua infância.
	 Ela lembrou-se de sua mãe e das marcas que
ela deixou em cada um dos nove filhos. Aos onze me-
ses de idade, Nadir teve poliomielite, também chamada
de paralisia infantil. Foi repentino. Estava brincando
em um instante e no outro sua irmã percebeu que ela
parou e permaneceu assim. Seu corpo ficou mole, não
tinha mais força para se movimentar.
66
	 Na época, ter uma doença que deixasse alguma
deficiência física era como ser um monstro. Os pais es-
condiam crianças assim. Nadir ficou várias semanas no
hospital e, nesse tempo, seu pai foi até lá por três vezes
para pedir que os médicos desligassem seus aparelhos.
	 — Não vamos desligar. Sua filha não vai poder
andar, mas as faculdades mentais dela serão completa-
mente preservadas.
	 Nadir sobreviveu e teve uma infância contur-
bada. Enfrentou o preconceito de muita gente, mas o
pior foi o de sua própria mãe, que não a aceitava. Ela
era muito violenta de todas as formas. Sempre a fez
acreditar que não poderia trabalhar, estudar, ter um
namorado ou ter filhos. Também batia muito nela e nos
seus irmãos.
	 Ela lembrava que sua mãe nunca dizia “vou te
bater”, mas sim “vou te matar”. Os irmãos corriam dela
para não apanhar, mas Nadir não conseguia. A mãe
descontava a raiva nela, mas ela a enfrentava. Não fi-
cava quieta quando a mãe era injusta e isso só fazia
com que apanhasse muito mais.
	 Os vizinhos tentavam ajudar. Eles escondiam
Nadir e seus irmãos atrás da casa. Foi de lá que veio o
medo que Nadir tem de sapos. O lugar era repleto deles.
E as crianças tinham que ficar quietas ali, até as onze
horas da noite, quando o pai chegava do trabalho. As-
sim entravam em casa com ele e apanhavam menos.
	 Os pensamentos de Nadir voavam. Ela quis ficar
sozinha. Saiu do meio de toda aquela gente que estava
na sala e na cozinha e foi para um quarto vazio.
****
67
	 Elodir, Valdecir e a neta Ana, com a ajuda dos
vizinhos, conseguiram finalmente chegar ao helicópte-
ro.
	 Elodir subiu primeiro, apoiada nos bombeiros,
pois mal conseguia andar. Seu pé continuava muito in-
chado. Naquele momento ela desejou que o cortassem
para que aquela dor passasse logo.
	 As hélices do helicóptero começaram a girar.
Aos poucos a casa de Elodir ia se distanciando. Do alto
eles puderam ver o tamanho da destruição. Era uma
mistura de marrom com preto. Não puderam reconhe-
cer as casas de seus vizinhos, estavam em meio aos
destroços.
	 Espantada, Elodir percebeu que sua casa era a
única construção que ainda estava de pé naquela pai-
sagem. Não acreditava como que todas as ondas de
água e pedras que rolaram pelo morro não haviam atin-
gido sua casa. Diferente de seu marido, sempre acredi-
tou em Deus e teve certeza, naquele momento, que um
anjo havia protegido sua casa.
	 Junto com o alívio de estar indo para um lugar
seguro após três dias angustiantes, sentia a tristeza de
abandonar seu lar. Não sabia se um dia voltaria para
lá, se recuperaria suas recordações, se retomaria seu
trabalho.
	 Elodir olhava fixamente para a casa onde mo-
rou por sete anos da sua vida. Quantas histórias viveu
ali. Dias incansáveis de trabalho na roça ao lado do
marido, com o sol queimando-lhes o rosto, os ombros
cansados, as mãos machucadas, o cuidado com os fi-
lhos, o dia a dia na fazenda.
	 Era impossível esquecer cada momento do que
havia vivido naquele lugar, mesmo os ruins. Ela já es-
68
tava acostumada ao trabalho árduo, não reclamava de
quase nada, mas, com certeza, iria sentir falta daquele
pedaço de terra.
	 De longe, observou pela última vez a sua casa.
	 O helicóptero seguiu até o campo seguro mais
próximo dali. Pousou em Ilhota, onde bombeiros já
esperavam pelos sobreviventes. Gentilmente eles en-
caminharam Elodir, Valdecir e Ana até o abrigo mais
perto, um colégio da cidade.
	 Ao chegarem, Elodir se assustou com a quanti-
dade de pessoas espalhadas por todos os lados, entre
elas muitas crianças. Valdecir conseguiu com dificul-
dade arranjar um pequeno espaço para que ficassem
abrigados.
	 Logo eles perceberam que os dias ali não seriam
fáceis. Eram muitas pessoas e havia muitos bate-bo-
cas. Elodir, nervosa como sempre, ficava incomodada
com aquela situação. Não aguentava ver brigas e ainda
ter que controlar suas dores no pé e o medo do que a-
conteceria com sua família dali para frente.
	 As discussões acabavam sendo o assunto dos
desabrigados. Umas eram por um espaço, outras, por
um prato de comida, outras, por ciúmes. A polícia
aparecia a toda hora para separar e dar um jeito nos
mais briguentos.
	 Havia filas para ganhar peças de roupa, con-
seguir comida, tomar banho. Todos eram obrigados a
trabalhar se quisessem permanecer no lugar. As mu-
lheres se revezavam na cozinha, no momento de fazer
o almoço e o jantar. Pais corriam desesperados atrás
dos filhos, sem saber onde estavam. Bebês choravam.
Havia centenas de vozes misturadas aos gritos de cri-
anças que brincavam correndo por todos os lados.
69
	 Elodir, por conta das dores no pé inchado, não
trabalhava com as outras mulheres no abrigo. Ela pas-
sava o dia observando a movimentação e acabou desco-
brindo coisas que preferiria não saber.
	 No abrigo havia algumas assistentes sociais que
eram voluntárias e ajudavam a separar e a distribuir as
doações. Elodir, do seu colchão, via que essas mulheres
estavam roubando as melhores roupas e levando-as
para suas casas. Distribuíam as peças velhas e rasga-
das aos desabrigados.
	 Com o tempo, foram chegando também col-
chões, guarda-roupas e outros móveis. Elodir não che-
gava nem a vê-los de perto. Os voluntários registravam
o recebimento das doações e em seguida já as tiravam
do abrigo e ninguém sabia para onde as levavam.
	 Logo nos primeiros dias Elodir não aguentou
ficar no meio daquela bagunça, das brigas e das in-
justiças a que assistia. Pediu ao marido que tentasse
encontrar um lugar isolado, onde ficassem apenas os
dois e a neta Ana. Valdecir explicou aos funcionários do
colégio que sua mulher sentia muitas dores e precisava
de mais privacidade e conseguiu uma sala de aula para
eles ficarem.
	 Na sala, Elodir não tinha muito o que fazer. Dei-
tada ou sentada, como passava praticamente todos os
dias, observava seu marido andar de um lado para o
outro, ajudar nas atividades do abrigo e ainda sair para
procurar informações sobre a situação de sua casa no
Alto Baú.
	 Valdecir apareceu por acaso na vida de Elodir.
Ela era casada com outro homem, que faleceu quando
suas filhas ainda eram pequenas. Pouco antes, hav-
ia feito uma laqueadura após descobrir que tinha um
70
problema no ovário. Estava grávida de gêmeos, mas
perdeu os bebês.
	 Na época morava em um rancho em Gaspar e
plantava fumo. Foram os dias mais difíceis de sua vida.
Passou fome com suas filhas. Faltava tudo em sua
casa. Um dia uma mulher apareceu em sua porta.
	 — Elodir, você não acha que tinha que dar suas
filhas, não? Você não tem condições de cuidar delas.
Posso arranjar gente que vai dar vida boa para elas.
	 — E eu sou cadela agora? Não vou largar minhas
filhas.
	 Assim se repetiram algumas visitas. Elodir de-
cidiu ir a Camboriú procurar um emprego para mel-
horar a vida de suas filhas. Deixou-as com sua mãe e
foi trabalhar em um restaurante na cidade.
	 Com o emprego, aos poucos foi conseguindo
juntar dinheiro. Lá trocava cartas com alguns homens,
através da rádio local, em busca de um novo marido.
Não sabe o porquê, mas escolheu a carta de Valdecir, a
única que não acompanhava uma fotografia do preten-
dente.
	 Valdecir saiu de sua cidade e foi até Camboriú
visitá-la. Elodir, quando o viu pela primeira vez, levou
um susto. “Não quero esse velho nem pintado de ouro”,
pensou. Mas Valdecir, doze anos mais velho, gostou de
Elodir e insistiu. Ia todos os dias vê-la. Levava cigarro e
eles fumavam juntos.
	 Elodir foi sendo conquistada. Sentia-se bem ao
lado dele. Valdecir cuidava dela, compreendia as suas
loucuras, ansiedade extrema e os calmantes que pre-
cisava tomar.
	 Valdecir é um homem franzino com as mãos
calejadas e enrugadas do tempo. Cabelos mais louros
71
que brancos até abaixo das orelhas. Usa sempre um
boné que deixa para fora apenas uns poucos fios. Os o-
lhos azuis claros são jovens e contrastam com as rugas
ao redor.
	 Juntos foram morar em Brusque, cuidando da
casa de um homem rico da região. Pouco tempo depois
já se mudaram para Ilhota, no Alto Baú, onde foram
ser chacreiros do mesmo homem. Foi nessa casa que
Elodir foi picada pela cobra e logo em seguida enfren-
tou os deslizamentos de terra.
	 A experiência da tragédia causada pelas chuvas
foi única. Mas a cobra já era uma velha conhecida sua.
A casa onde morava no Alto Baú era rodeada por es-
ses animais. À noite podiam ouvir os ataques. Em uma
noite, uma delas matou dois cachorros ao mesmo tem-
po.
	 Seu marido estava sempre atento aos movimen-
tos das cobras. Elodir estava dormindo e acordou com
o grito de seu marido.
	 — Uma cobra, mulher!
	 Não deu tempo. Ela picou sua mão.
	 Depois disso, Elodir dizia a todos que conseguia
sentir a presença de uma cobra de longe.
	 — Quando a pessoa é picada uma vez, já sente
quando tem uma por perto. Me dá tremedeira, tontura
e cuspo uma coisa verde no chão. Acho que é por isso
que sou assim brava.
	 Alguns dias depois, no abrigo, o tédio e a angús-
tia de Elodir tiveram um descanso. Ao acordar viu suas
três filhas, os dois genros e os netos. Sentiu um alívio
no peito e só então percebeu o quanto ele estava aper-
tado naqueles dias.
	 Elodir, com sua ansiedade habitual, tentou não
72
pensar muito nas filhas, porque se pensasse, imagi-
naria que não estariam bem. Acreditou que a falta de
notícias delas era um bom sinal. Se algo ruim tivesse
acontecido, já saberia.
	 Suas filhas eram do casamento anterior. Com
Valdecir não teve filhos. A filha mais velha morava em
uma casa ainda mais alta que a de Elodir.
	 Quando finalmente conseguiu falar com a filha,
ficou ainda mais apreensiva.
	 — Perdemos tudo lá em casa, mãe. Não dá nem
para ver o que restou, ficou tudo embaixo da lama.
	 Elodir sentiu o desespero da filha. Pensou que o
mesmo poderia ter acontecido com sua casa. Não sabia
se um dia voltaria a morar lá.
	 As filhas contaram que estavam loucas atrás da
mãe. Os vizinhos disseram que Elodir, Valdecir e Ana
haviam morrido.
	 — Mãe, fomos até sua casa e lá disseram que
estavam todos mortos. Ficamos desesperadas. Até nos
informaram onde estava seu corpo. Não tivemos cora-
gem de ver, mas o Rogério foi até lá e voltou aliviado,
dizendo que não era você.
	 Rogério era genro de Elodir. Para ela, era como
se fosse o filho que nunca teve. Os dois se davam muito
bem e eram bem próximos.
	 Depois deste susto, as filhas saíram atrás da
mãe em todos os abrigos da cidade. Chegaram a ir até
Blumenau. O último lugar que procuraram foi ali. To-
dos estavam tão felizes por terem se encontrado em se-
gurança, que por alguns momentos até se esqueceram
de toda a tragédia.
	 — Agora vamos ficar todos juntos.
73
****
	 Salete e suas filhas saíram do barco e entraram
na casa de madeira pintada de azul. Estavam felizes
de estarem finalmente em um lugar seguro. Depois da
noite molhada que passaram, o que mais queriam era
trocar de roupa.
	 Na pressa, ao sair de casa, Salete esqueceu-se
de pegar roupas. Teria que usar algumas de sua irmã.
Era muito vaidosa, gostava de se arrumar, de pintar os
olhos verdes com lápis preto para realçá-los, mas na
situação em que se encontrava, roupas emprestadas já
eram o suficiente.
	 A casa de Elizabete era grande e espaçosa, e
mesmo assim estava lotada. Nos cômodos havia poucos
móveis e por isso deu para abrigar por volta de trinta
parentes que não tinham para onde ir.
	 Na sala, dois sofás ficavam encostados nas
paredes. Em uma mesinha de centro segurava alguns
enfeites simples, enquanto no outro canto havia uma
estante com vários porta-retratos e uma televisão que
não pôde ser ligada, já que a cidade estava sem eletrici-
dade. A cortina laranja sobre a janela próxima à porta
dava cor ao cômodo. Os espaços vazios do chão foram
cobertos com colchões e lençóis que serviram de camas
provisórias. Para andar era preciso driblar os amontoa-
dos de roupas de cama que estavam espalhados pela
casa.
	 Elizabete, com 56 anos, trabalhava em uma loja
de aluguel de roupas de noiva, no centro de Itajaí. No
tempo livre, gostava de ficar em casa com Martins, seu
marido. As filhas casadas já não moravam mais com
os pais, mas nem por isso a casa era silenciosa e tran-
74
quila.
	 Elizabete estava acostumada com o movimento.
Gostava de chamar os parentes para passar tempora-
das em sua casa. Por isso, havia diversas camas e col-
chões, que foram úteis para abrigar os parentes du-
rante a enchente. O casal sabia que a cidade inteira
estava alagada, e que poucos tiveram suas casas pou-
padas pelas águas torrenciais.
	 A dispensa estava cheia de comida. Preparando-
se para as festas de final de ano e para a visita das fi-
lhas, que moravam em outras cidades, Elizabete havia
feito compras suficientes para dois meses. A família ja-
mais comprara além do necessário, mas por sorte, esse
mês foi diferente.
	 Com a cidade alagada e praticamente sem trans-
porte, muitos moradores de Itajaí tiveram que sair a pé
no meio do caos à procura de comida, mas o que Eliza-
bete havia guardado em casa conseguiria alimentar
os trinta moradores temporários por pelo menos uma
semana.
	 Segundo a Defesa Civil de Santa Catarina, mais
de 23 rodovias tiveram que ser interditadas, o que tor-
nou impossível transitar pela cidade. O turismo, as in-
dústrias, a agropecuária, as pequenas e microempre-
sas, o comércio, os abastecimentos de água, luz e gás
também foram prejudicados. Mais de 40 mil casas fi-
caram sem energia elétrica.
	 Outro privilégio dos moradores da casa de Eli-
zabete, aliás, era a água. Martins já havia vivenciado
outras enchentes e por isso estava prevenido. Quando
percebeu que já estava chovendo há bastante tempo,
fechou a caixa d’água e passou a usar a água da rua.
Em seguida, pediu à Elizabete que enchesse todos os
75
recipientes para que mantivessem um estoque.
	 — Vamos encher tudo que der de água. Em mo-
mentos como esse, não podemos ficar sem água.
	 Todos os baldes, vasilhas, tanques estavam chei-
os e, por isso, não estavam preocupados com a falta de
água. Mesmo assim, não queriam arriscar. Não sabiam
quanto tempo demoraria para desalagar Itajaí. Banho
não era necessário. Poderiam passar alguns dias den-
tro de casa sem tomar banho.
	 Salete foi à cozinha ajudar sua irmã a preparar
a comida.
	 — Nossa, que susto nós passamos. Logo eu, que
sempre critiquei esse pessoal que se recusa a sair de
casa quando tem algum desastre assim. Mas eu tinha
certeza que não teria tanta água.
	 — É verdade. Acho que ninguém esperava por
isso. Já faz tanto tempo que não tem uma chuva forte.
	 Era segunda-feira, dia 24 de novembro. Em con-
dições normais, Itajaí estaria a todo vapor, com seus
aproximadamente 170 mil habitantes voltando do final
de semana para trabalhar. Mas a cidade estava deserta.
Nas ruas só se viam alguns poucos barcos da Defesa
Civil resgatando moradores ilhados e os dos bombei-
ros distribuindo alimentos e donativos, procurando
pessoas que estavam doentes e que precisavam ir com
urgência ao hospital.
	 Salete deveria estar trabalhando no hospital
quando a cidade alagou, mas estava de férias. Os mé-
dicos, enfermeiros e atendentes da farmácia, que es-
tavam no hospital na madrugada de domingo para
segunda-feira, ficaram presos. Não conseguiam sair
por causa da água, mas mesmo se conseguissem, não
poderiam. Os funcionários dos outros turnos também
76
estavam ilhados e o hospital não poderia ficar aban-
donado. Quem estava lá dentro teria que trabalhar do-
brado. O hospital era um dos poucos estabelecimentos
que continuava funcionando.
	 Apesar de triste por não poder ajudar, Salete
sentia-se aliviada. Não conseguiria se imaginar traba-
lhando horas ininterruptas longe da família.
	 Em meio ao caos, as crianças brincavam no es-
curo. As duas sobrinhas de Elizabete, uma de 7 e outra
de 11 anos, divertiam-se alheias aos acontecimentos.
Tiravam fotos das ruas alagadas e brincavam de pes-
caria na frente da casa, sempre acompanhadas de Be-
linha, a cadelinha filhote que também estava aproveit-
ando a enchente. Enquanto isso, os mais velhos, sem
terem o que fazer, comiam o dia inteiro. Os únicos pas-
satempos que tinham era conversar e cozinhar.
	 Pão era o que mais gostavam de fazer. Além de
ser fácil de preparar, o pão fresquinho feito em casa era
uma delícia. Enquanto assava, os vizinhos sentiam o
cheiro da massa e faziam fila na porta da casa de Eliza-
bete. Sempre solidária, não pensou duas vezes antes
de dividir o alimento. Até que se lembrou que não sabia
quanto tempo ficaria ilhada em casa.
	 — É melhor guardar o que temos para comer. Os
vizinhos podem se virar sem o nosso pão.
	 Depois de cozinhar e comer, Salete sentou na
frente da casa para ver a correnteza passar. Sem muito
o que fazer, contar objetos flutuantes era diversão.
	 O barulho ensurdecedor dos helicópteros era
sempre ouvido. Perto dali, havia uma igreja que estava
sendo usada como abrigo. Era para lá que Salete e suas
filhas iriam, se não tivessem Elizabete para ampará-
las. O padre havia aberto o salão da igreja para os que
77
estavam sem lugar para ficar. Com muitas pessoas
adoecendo, os helicópteros estavam sempre pousando
no campo ao lado para resgatar os que precisavam de
ajuda urgente.
	 A igreja também estava servindo de ponto de
entrega de donativos. Da janela da casa, Salete via a
fila de pessoas buscando ajuda crescendo. Quando a
doação era de colchões, a fila duplicava e logo se viam
dezenas de pessoas andando na ruas, carregando-os
sobre suas cabeças.
	 De acordo com dados da prefeitura de Itajaí, o
número de cestas básicas distribuídas até 6 de dezem-
bro foi de 1.149, o equivalente a 29.150 quilos.
	 No meio da tarde, os abrigados na casa de Eliza-
bete perceberam que frutas e legumes estavam boian-
do. Sem comunicação, foram para a frente da casa ver
se alguém da rua sabia o que estava acontecendo.
	 A porta de um depósito de alimentos que ficava
próximo não aguentou a pressão da água e estourou,
espalhando pelas ruas as milhares de frutas e legumes
que lá estavam. Ficaram todos olhando os alimentos
passarem ,até que alguém teve uma ideia.
	 — Vamos contar repolho!
	 E assim as famílias passaram a tarde, sentadas
na frente da casa, rindo, conversando, e contando os
repolhos que passavam boiando pela rua.
****
	 Rodeado de árvores e mato, o helicóptero não
conseguia descer para resgatar a família de Terezi-
nha. A terra do morro misturada com a água da chuva
transformou-se em lama, dificultando o trabalho dos
78
homens do exército. Mesmo com a ajuda a alguns met-
ros de distância, a família Marthendal estava ilhada.
	 Terezinha e os outros iam se tranqulizando. Com
dores no corpo, fome e frio, ela já não sabia qual seria
seu destino.
	 Aos poucos, o helicóptero ia achando espaço
para pousar. O resgate foi feito em duas etapas. Primei-
ro socorreram as pessoas que estavam mais debilitadas
e as crianças. A família Marthendal foi resgatada nessa
leva. Mais tarde, os homens do exército voltaram para
pegar quem ficou para trás.
	 Já dentro do helicóptero, Terezinha conseguiu
se acalmar. Até aquele momento, ela não sabia se sairia
daquele pesadelo com vida. Se não fossem resgatados
logo poderiam morrer. A chuva não parava de cair, as
barreiras não estavam mais firmes e a qualquer mo-
mento podiam desabar em cima deles. Agora estava
tudo bem. Estava viva. Estavam todos salvos.
	 Um jornalista que cobria as enchentes para uma
reportagem especial de televisão estava dentro do heli-
cóptero do exército acompanhando os resgates. Queria
entrevistar Terezinha, mas ela deu pouca importância.
Não conseguia pensar em nada além do que havia pas-
sado nos últimos dias.
	 — Eu perdi tudo. A minha casa não caiu, mas a
estrutura está abalada. Não consegui trazer nada. Mi-
nhas sobrinhas ainda estão lá embaixo.
	 Da janela do helicóptero, Terezinha pôde final-
mente ver o mar de destruição que a chuva havia cri-
ado. O Morro do Baú estava repleto de lama. A paisa-
gem verde que antes era predominante estava coberta
pelo alaranjado da lama misturado com o cinza do céu
nublado. As ruas tinham se transformado em rios fu-
79
riosos e a correnteza levava tudo que atravessava seu
caminho. As casas que ainda restavam de pé estavam
abandonadas. Pessoas acenavam para o helicóptero
suplicando ajuda.
	 Em alguns pontos era possível ver onde a terra
havia deslizado e, logo no pé do morro, os escombros
das casas destruídas. Madeira, ferro, papel, roupas e
até carros estavam entulhados em montes que pare-
ciam lixo e, debaixo daqueles destroços, Terezinha sa-
bia que havia corpos de conhecidos. Muitas pessoas
estavam dormindo quando aconteceu a explosão, e por
isso, acabaram sendo engolidas por suas próprias ca-
sas. Os que sobreviveram estavam presos, barrados pe-
las águas.
	 Inconformada com o que presenciava, Terezinha
não parava de chorar. Tentava ser forte para não as-
sustar as filhas, mas não conseguiu conter as lágrimas.
O co-piloto do helicóptero conversou com a família.
	 — Vocês tiveram muita sorte. Esse foi o resgate
mais difícil que já fiz na vida. Vocês estavam em uma
das áreas de maior risco na região.
	 — Aqui era perigoso? Achamos que estávamos
seguros. Não tinha como saber para onde ir. Quando
ouvimos a explosão, corremos para longe dela. Para
mim, ali não era perigoso, achei que a terra estava
firme.
	 Por causa da condição de saúde de Terezinha, o
helicóptero teve que deixá-los em um abrigo de Ilhota.
Ela precisava de cuidados médicos com urgência. Não
teriam tempo de levá-los para a casa do sogro de Tere-
zinha em Navegantes. O abrigo era o último lugar em
que queria estar, principalmente depois do que viveu
nos últmos três dias no morro. Queria ir para a casa
80
de algum conhecido para tomar banho e descansar em
paz. As roupas molhadas e a fome os incomodavam.
	 A família ficaria abrigada na APAE (Associação
dos Pais e Amigos dos Excepcionais). O helicóptero de-
sceu em um campo de futebol ao lado da escola que
estava sendo usada como área de pouso. Com cuida-
do, os homens do exército retiraram Terezinha do heli-
cóptero. Carregada pelos voluntários e por seu marido,
foi levada para dentro do prédio e logo achou um lugar
para se deitar.
	 Foram bem atendidos pela funcionária do gov-
erno que estava cuidando do abrigo. Ela mostrou onde
seria o lugar que ficariam e em seguida mostrou as in-
stalações do colégio. A cozinha poderia ser usada para
preparar os alimentos doados. O banheiro teria que
ser compartilhado entre todos os abrigados, mas era
grande e limpo.
	 O médico que iria examiná-la já estava espe-
rando. Terezinha estava preocupada com os pontos da
cirurgia. Havia feito muito esforço para sobreviver.
	 — Está tudo certo com você, Terezinha. Reco-
mendo que fique deitada, repousando. Você passou por
uma barra pesada com pouco tempo de cirurgia. Des-
canse para que a recuperação seja mais rápida.
	 O abrigo ainda estava vazio, pois a família havia
sido a primeira a chegar. Terezinha ficou aliviada com
o silêncio. Sentia muitas dores e não estava com dis-
posição de lidar com pessoas desconhecidas.
	 O resto do dia passou devagar. Terezinha ficou
deitada em um colchão doado, enquanto Gilnei os aco-
modava no salão. Ele preparou o canto que a família
ficaria, já que em breve outros dividiriam o mesmo es-
paço. Arrumou as camas e pegou peças de roupas doa-
81
das.
	 À noite Gilnei preparou a comida da família na
cozinha da escola. Sem outros desabrigados, tinha a
liberdade de preparar o que quisesse para eles com-
erem.
****
	 Tatiana tinha os olhos atordoados, perdidos,
sem direção. Não conseguia encontrar respostas para
as suas perguntas. Sentada, olhava para a parede com
uma das mãos segurando o rosto. Mantinha-se séria,
seus lábios estavam sem cor, seus cabelos bagunçados
e seu rosto intensamente pálido.
	 Seu pai, José Altino, estava extremamente de-
bilitado por perder Augusta, sua esposa, e Giane, sua
filha, ao mesmo tempo. Assim como Tatiana, José ti-
nha uma expressão de choque. Quase não falava, nem
comia. Às vezes, chorava, mas disfarçava. Quando seus
olhos começavam a lacrimejar, abaixava o rosto e seca-
va as lágrimas com um pequeno lenço azul desbotado
que guardava no bolso.
	 A irmã de Tatiana e filha de José, que havia
morrido no desastre após ficar esperando socorro por
14 horas, era gêmea de Gizeli. Giane, loura de olhos
claros, estava sempre muito arrumada e perfumada.
Era uma garota vaidosa e dizia aos pais que não queria
casar para poder morar com eles para sempre. Muito
delicada, tinha a voz aguda e doce. Usava tiaras na ca-
beça e adorava inovar o penteado com acessórios de
cabelo.
	 Apegada a fotografias, expunha diversos por-
ta-retratos em prateleiras e cômodas no seu quarto.
Foram esses móveis que a deixaram presa da cintura
82
para baixo no dia do desastre.
	 As recordações dos acontecimentos dos dias an-
teriores não saíam da cabeça de seu José. A todo mo-
mento, se lembrava do desespero da filha soterrada. As
últimas imagens de seu rosto e as últimas palavras da
filha repetiam-se em sua mente ininterruptamente.
	 — Pai, a mãe morreu, não é?
	 — Morreu, filha.
	 — Eu vou ficar para cuidar de você.
	 Giane procurava se manter calma na medida
do possível e conversava o tempo todo com o pai, mas
quando a dor vinha, ela gritava e se desesperava.
	 — Pai, me mata, me mata.
	 — Calma, filha.
	 — Pai, me perdoa se eu fiz alguma coisa de erra-
do, me perdoa, me perdoa. Me corta daqui para baixo,
pai, me corta as pernas. Vivendo assim, daqui para
cima, está bom!
	 — Pelo amor de Deus, filha, fica calma!
	 — Pai, agora é tarde. Não aguento mais!
	 Enquanto se lembrava da cena, José permanecia
inconsolável. Tatiana procurava apoiar o pai ao mesmo
tempo em que desejava obter mais respostas e detalhes
sobre o acontecido.
	 Não sabia mais o que fazer para tranquilizá-lo.
Nem mesmo ela tinha forças. Ela o abraçava o tempo
todo e lhe fazia carinho no rosto. Vivia o tempo todo de
mãos dadas com ele.
	 O que fazia Tatiana permanecer de cabeça er-
guida era saber que sua mãe não sofreu e que sua irmã
tinha estado lúcida do começo ao fim e que, em nen-
hum momento, desistiu de viver. Lutou até não aguen-
tar mais.
83
	 Quando os bombeiros encontraram a mãe soter-
rada, o corpo dela estava mais embaixo de onde estava
Giane, já que a parede caiu por cima dela. A cabeça
estava muito machucada, pois o pé da cama havia
quebrado em cima de seu rosto. Quando os bombei-
ros encontraram o corpo, ela estava deitada de lado na
posição em que dormia.
	 No dia da tragédia, a outra filha de José Altino,
Karina, estava em Gaspar, uma cidade próxima. Quan-
do ligou para a mãe, no sábado de manhã, Augusta
estava na casa de Tatiana fazendo pastéis. Ela lhe disse
que a chuva estava muito forte.
	 No sábado à tarde, Karina já não conseguiu
mais falar com os pais. Nunca passou pela cabeça dela
que uma tragédia como aquela pudesse acontecer. Foi
quando o padrasto do seu namorado apareceu em sua
casa.
	 — Karina, Karina, vim lá do Baú. Preciso te con-
tar o que aconteceu.
	 — O que aconteceu? Minha mãe está bem? Meu
pai, minhas irmãs?
	 — O que eu venho te contar é notícia muito ruim.
Você está preparada para escutar?
	 Karina apenas fez sinal de sim com a cabeça.
Seus olhos lacrimejaram, sua feição era desesperadora.
	 — Tua mãe e tua irmã Giane morreram. Soter-
radas.
	 — Não é possível, não é possível.
	 Karina começou a chorar compulsivamente.
Tremia dos pés à cabeça. Não conseguia acreditar, aq-
uilo não era possível.
	 De lá, foi com o namorado procurar parentes em
abrigos, já que por telefone a comunicação era total-
84
mente inviável. Foi ao abrigo Santa Terezinha, em Gas-
par, e até Blumenau.
	 Só na terça-feira pela manhã que seu patrão,
Ricardo Szanzerla, conseguiu entrar em contato com
Nelson Richartz, um dos parentes que moravam lá no
Braço do Baú. Por telefone, lhe confirmou as mortes
e informou-a sobre o paradeiro de seu pai e de suas
irmãs.
	 Na terça-feira à tarde, Karina chegou à casa da
tia, onde toda a família se encontrava. Logo que viu o
pai, correu para abraçá-lo.
	 — Pai!
	 — Karina, graças a Deus você está aqui, escapou
da morte, minha filha!
	 — Eu queria ter chegado antes pai, para estar
do seu lado, mas estava tudo bloqueado, não dava para
passar! Desculpa, pai!
	 O silêncio predominava. Quase ninguém falava,
mal se olhavam nos olhos. Tatiana estava inquieta,
passava o dia assistindo à televisão para se informar
dos estragos e mortes no estado.
	 Seus tios e primos moravam a cinquenta metros
acima da casa do seu pai. As barreiras cobriram com-
pletamente as casas, de forma que não dava para saber
que um dia elas existiram naquele lugar.
	 Além da mãe e da irmã, doze pessoas da família
Reichert haviam morrido.
****
	 Sem conseguir controlar seus pensamentos, Na-
dir pensou na noite anterior em como havia sido res-
gatada da varanda da casa de seu vizinho. “Alguém
85
poderia ter se machucado por minha causa”, pensou.
Imaginava que se precisassem sair correndo não pode-
riam, pois alguém teria que ajudá-la.
	 Ela sabia que esses pensamentos eram fruto das
palavras de sua mãe que ficaram marcadas, mas não
eram verdade. Relembrou de quantas vezes teve que
provar a sua mãe e a si mesma que era capaz de ser
independente e normal.
	 Todos lhe diziam que ela nunca sairia da cama.
Com três anos já engatinhava pela casa e pela rua. Por
seis anos, viu o mundo de quatro. Ia até a casa de suas
amiguinhas sem medo. Quase foi atropelada diversas
vezes, mas não se assustava. Era capaz de fazer até o
inexplicável, como subir nas árvores.
	 Depois de uma cirurgia aos seis anos, e com um
incentivo um pouco traumático de sua mãe, ela con-
seguiu andar de muletas. Sua mãe, depois de uma ida
ao centro da cidade, onde viu uma mulher andando de
muletas, comprou um par em madeira e obrigou Nadir
a andar. E ela andou. Não suportava ouvir que não po-
dia fazer algo por causa de sua doença.
	 Com as muletas viveu experiências incríveis.
Era roqueira, frequentava festas de rock dark e dan-
çava como todos os outros jovens ali. Fez amigos ver-
dadeiros e se apaixonou algumas vezes.
	 Um dia, aos 17 anos, chegou em casa e disse
para sua mãe:
	 — Mãe, você não vai acreditar, tem um colega
de uma amiga minha querendo ficar comigo. Acredita?
Olha só, querendo ficar comigo. Eu sou muito nova.
	 — Minha filha, ninguém nunca vai te amar. Todo
homem que chegar perto de ti vai ser só para te comer.
	 Mas ela não acreditou nisso. Aos dezoito anos,
86
deu o primeiro beijo, roubado pelo menino. Logo co-
nheceu seu marido, que se apaixonou por ela assim
que a viu.
	 Em certa época da adolescência, Nadir começou
a pensar no seu futuro. Sabia que não poderia ser em-
pregada doméstica ou balconista, por exemplo. Então
concluiu que precisava estudar.
	 — Você não vai nem conseguir subir no ônibus,
menina.
	 Era o que dizia sua mãe. Mas Nadir conseguiu.
Na primeira vez, levou um tombo feio ao tentar passar
pela catraca. Depois descobriu que poderia entrar por
trás, sem passar por lá.
	 De ônibus, foi até o segundo melhor colégio de
Itajaí e falou com o diretor.
	 — Olha, eu quero muito estudar. Eu não tenho
nada, mas quero estudar.
	 — Se você quer estudar, então vai ter lápis, ca-
derno, borracha e livro.
	 — Mas eu também não tenho dinheiro para o
ônibus, meu pai é aposentado por invalidez.
	 — Tudo bem, vou falar com o Sérgio, dono da
coletiva de ônibus e ver o que eu consigo.
	 Sérgio deixou que Nadir pegasse o ônibus todos
os dias, sem pagar nada. Ela levou a sério os anos de
estudo no Ensino Médio. Aprendia de raiva. Tinha que
mostrar que podia ser alguém na vida.
	 No dia de sua formatura tinha feito cachinhos
nos cabelos e estava com um vestido lindo. Sua mãe
não apareceu. Ninguém da sua família comemorou.
Mas ainda assim ela foi para uma festa com uma amiga
e dançou a noite inteira.
	 Veio o vestibular. Nadir sabia que precisava es-
87
tudar muito para conseguir passar. Pediu ajuda a uma
professora que sempre a incentivou e ela lhe deu um
livro de História e Geografia de presente.
	 Nadir estudou, fez a prova, e alguns dias depois
ouviu no rádio: “Nadir Fernandes, aprovada”.
	 A felicidade não cabia dentro dela. Sentiu orgu-
lho de si mesma. Seu irmão comemorou com ela e fez
questão de dar o trote. Jogou farinha e lama na cabeça
da irmã. Os dois riram e se abraçaram.
	 Mas logo caiu a ficha. Nadir pensou: “e agora,
como eu vou pagar a faculdade?” Pediu ajuda para sua
mãe e dessa vez ela a atendeu.
	 — Mãe, eu quero estudar, fazer faculdade.
	 — E o que você quer que eu faça?
	 — Eu quero arranjar um emprego.
	 As duas foram até a câmara de vereadores de
Itajaí e falaram com o responsável na época.
	 — Eu tiro o pó, consigo ficar sentada no chão,
eu limpo. Não sei quanto o senhor vai me dar, mas está
aqui o que eu preciso para fazer a matrícula da minha
faculdade. O senhor vai me dar emprego?
	 — Não, emprego para te dar infelizmente eu não
tenho. Mas você pode vir aqui todo o mês com a sua
mensalidade, que a câmara de vereadores vai pagar.
	 Nadir fez faculdade de História. Formou-se son-
hando em ser professora. Em 1989, pouco antes de
concluir a graduação, perguntaram na sala de aula se
alguém gostaria de dar aula em uma escola em Ilhota.
Sem pensar, levantou sua mão.
	 Depois de pegar cinco conduções até a esco-
la, chegou e conseguiu o emprego. Começou no dia
seguinte. Nunca tinha dado aulas, estava ansiosa, mas
sentia-se preparada. Mentalizou tanto esse momento
88
que quando entrou na sala de aula parecia que tinha
feito isso a vida toda.
	 A diretora da escola confessou:
	 — Nadir, quando você chegou aqui quase que eu
não te dei o emprego. Em uma semana cinco profes-
sores tentaram essa vaga e todos desistiram no primei-
ro dia. Ainda bem que eu não te recusei.
	 A relação com seus alunos foi amor à primeira
vista. Nadir adorava entrar na sala, dar bom dia aos
seus alunos, ensinar História, conversar com eles. Sen-
tia-se em casa. E sabia que tinha se tornado alguém na
vida.
	 Ela conquistou tudo o que desejou. Estudou,
tornou-se professora, casou-se. Ainda faltava ter filhos
para sentir-se completa, mas os médicos sempre dis-
seram que ela não poderia engravidar.
	 Em outubro de 1993, Nadir foi ao médico e
descobriu que estava com um cisto no ovário. Voltou
em dezembro para saber se o cisto havia sumido.
	 — Opa, está batendo um coração aqui.
	 — Mas doutor, e cisto tem coração é?
	 — Não, querida, você não entendeu. Você está
grávida.
	 — Não, não posso doutor. Os médicos falaram
que eu não posso engravidar.
	 — Quem disse que não? Escuta aqui o coração
do seu filho batendo.
	 Nadir nunca sentiu tanta alegria. Queria contar
para alguém que estava grávida, aquilo gritava dentro
dela. Mas estava sozinha. No caminho para casa avis-
tou bem ao longe uma amiga. Não pensou duas vezes e
gritou:
	 — Sueli, estou grávida!
89
	 Grávida e de muletas, Nadir continuou pegan-
do ônibus todos os dias para chegar ao trabalho e dar
suas aulas. Em junho, nasceu uma menina, Natali.
	 Nadir sofreu enquanto sua filha era pequena.
Não conseguia ser uma mãe como as outras. Às vezes
acreditava que não deveria ter tido uma filha, que não
era capaz de cuidar dela.
	 O marido trabalhava fora e ela ficava em casa
com Natali. Mas não podia andar com as muletas e se-
gurá-la ao mesmo tempo. Quando precisava levá-la até
o banheiro ou até a cozinha, ela segurava a filha em um
braço e com o outro ia se arrastando no chão.
	 Sua filha cresceu saudável e logo veio outra
gravidez. Dessa vez, Nadir não queria. Em dezembro de
1996, foi ao médico e ele lhe disse surpreso:
	 — Pode preparar o enxoval, você está grávida de
novo!
	 As lembranças da dificuldade que teve para
cuidar de sua filha vieram à tona. Ela esqueceu os mo-
mentos bons. Pensava que não poderia andar de mãos
dadas com o seu filho. Não poderia nunca levá-lo para
passear.
	 Mas Gustavo nasceu e Nadir superou os seus
receios. Cuidou de seu filho com o mesmo amor com
que cuidou de Natali. No entanto, alguns meses depois
fez uma laqueadura. Como em vários momentos de sua
vida, ela conseguiu pedindo ajuda.
	 — Doutor, minha muleta não aguenta mais
gravidez.
	 — Pode deixar, Nadir, vou fazer a sua laquea-
dura.
	 Enquanto Nadir viajava mentalmente no tem-
po, Luís estava na varanda. Era noite e não havia luz.
90
Ele tinha uma lanterna, mas não a acendeu para não
chamar atenção. Estava cansado e com sono, mas não
podia adormecer, pois precisava proteger sua casa e as
de seus vizinhos.
	 Ele ficou o tempo todo com uma arma, presa pelo
cinto em sua calça. Não queria usá-la, mas precisava
de algo para se defender. As ruas estavam perigosas.
Diziam que era terra de ninguém. Mesmo com todas
as perdas e os sofrimentos, alguns se aproveitavam da
situação e tentavam roubar o pouco que havia sobrado
das casas.
	 No meio da noite, Luís ouviu um barulho. Acen-
deu a lanterna e avistou um barquinho.
	 — Quem é que vem aí?
	 Ninguém respondeu. Luís percebeu que os dois
homens que estavam no barco tentaram se esconder.
Ele sacou a arma da cintura e atirou para cima. Queria
assustá-los. Deu certo. Viu o barco dando a volta e indo
embora.
	 Na casa de sua irmã, Nadir nem sonhava que
isso pudesse estar acontecendo com seu marido. Se
soubesse, teria ficado apavorada.
	 Os dias foram passando. A rotina continuou a
mesma. Cozinhavam, fofocavam, davam risada e chora-
vam angustiadas com a tragédia que não acabava.
	 A água foi diminuindo. Por telefone e pelos vizi-
nhos ficavam sabendo os locais que já estavam secos
ou não. Foram cerca de cinco dias para que tudo se-
casse.
	 Luís, que continuava na Rua das Acácias, viu a
água baixar. Mas não quis chamar a mulher. Quando
entrou em sua casa, no sábado, e viu o estrago da en-
chente, logo pensou que Nadir não poderia ver aquela
91
imagem.
	 A mulher forte e alegre de sempre tinha se deix-
ado abalar. Os dias longe de casa e a angústia de não
saber como ela estava, o que teria se salvado, o que
teria que ser jogado fora conseguiram abater o bom-
humor de Nadir.
	 Ela sentia falta de sua cama, de seu sofá, de
sua cozinha. Lembrava-se de como tinha sido difícil
comprar e decorar a casa. Fazia pouco tempo que es-
tava tudo pronto. Os guarda-roupas das crianças eram
novos. Cada detalhe, como as toalhinhas e os pequenos
enfeites, tinha sido pensado com muito carinho. Nadir
gostava de tudo organizado e bonito, podia ser simples,
mas fazia questão de um lar alegre.
	 Ela lembrou-se de quando comprou aquela casa.
Não tinha nada. Era só um quartinho e uma cozinha.
As paredes e o chão sem acabamento. E estava tudo
sujo. Mas Nadir estava tão feliz por ter finalmente o
seu canto, que não se importou em limpar sozinha a
casa toda. Grávida de sua primeira filha, ela sentava
no chão, colocava um pano embaixo da barriga, para
que não encostasse no piso frio, e esfregava cuidadosa-
mente pedacinho por pedacinho.
	 As enchentes destruíram tudo. Luís e as sobri-
nhas de Nadir limparam a casa. Tiraram o grosso da
lama, lavaram os móveis, as cortinas, jogaram fora o
que não dava para salvar. Nadir estava abalada, mas
quis dar palpite. Pediu para que o marido não jogasse
fora os eletrodomésticos e os móveis, como os outros
vizinhos estavam fazendo. Ele obedeceu.
	 Depois de três dias, Luís avisou:
	 — Nadir, a casa está pronta. Vocês já podem vir
para cá.
92
****
	
	 Os dias ficaram menos angustiantes para Elodir.
Com a família reunida não faltava assunto para as con-
versas. Mas o abrigo ficou animado mesmo quando ela
conheceu Luciana Ramos, uma mulher decidida que
chamava atenção por onde passava.
	 Lu, como gostava de ser chamada, falava alto e
ria muito, mesmo em meio a toda a destruição. Tinha
cabelos louros desbotados e marcas no rosto que deixa-
vam dúvidas sobre sua origem. Ora pareciam marcas
do tempo e de tudo o que sofreu na vida, ora pareciam
ter sido deixadas pelas risadas incansáveis e pelas pia-
das que a faziam forçar seus músculos do rosto na hora
da dramatização das histórias.
	 Mãe de três filhos pequenos, dois meninos e
uma menina, Luciana também havia sofrido com as
enchentes.
	 Estava com os filhos e o marido em sua casa,
no bairro Vila Nova, em Ilhota. A chuva, que já dura-
va dias, começou a aumentar. As ruas ficaram cheias,
mas Luciana pensou que fosse apenas uma enxurrada
comum e não levantou os móveis, nem saiu de casa.
	 No meio da noite ela acordou. A água estava na
altura da cama, quase chegando a molhá-la. Levantou
assustada, chamou o marido e pegou seus filhos. To-
dos gritaram para os vizinhos, pedindo ajuda.
	 Um barco do corpo de bombeiros chegou e os ti-
rou da casa pela janela. Não deu tempo de salvar nada.
	 A família foi levada para um abrigo. Havia uma
multidão de desabrigados, todos em busca de um
cantinho onde pudessem tentar dormir naquela noite.
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Livro reportagem - Águas passadas

  • 1. Águas passadas A história de cinco mulheres que enfrentaram as enchentes de 2008 em Santa Catarina Adriane Schultz Helena Lopes Paula Rebello
  • 2. 2 Foto da capa Maristela Pereira Fotos Ana Regina Reibnitz Helena Lopes Maristela Pereira Nelson Robledo Paula Rebello Revisão Aline Silva de Araújo Orientação Denise Paieiro Lenize Villaça Impressão Tesouro Laser Ano 2010
  • 3. Dedicamos este livro às vítimas da tragédia de 2008 em Santa Catarina, que com união, fé e muita vontade de viver superaram as marcas deixadas e recomeçaram suas vidas!
  • 4. 4
  • 5. Agradecemos às nossas famílias pelo apoio e amor incondicional; à professora Denise, pela inteligência e orientação, e por acreditar em nós; à professora Lenize, pela força, paciência e dedicação; e, principalmente, a todos os personagens desta história, que, com o coração aberto, nos convidaram a entrar em suas casas e nos permitiram conhecer e contar um pouco de suas vidas neste livro.
  • 6. 6
  • 7. 7 Sumário Apresentação..............................................................9 A maior tragédia de Santa Catarina...................................13 Lembranças de 2008....................................................17 Chuvas, enchentes, desmoronamentos...............................33 Cenário de guerra........................................................61 Recomeço...............................................................111 Novos tempos...........................................................141 Os rostos desta história................................................159 Mergulho na realidade.................................................167
  • 8. — Por que as jandaias e os periquitos estão gritando como os meninos do Grupo na hora de vadiar? — É a cabeça de enchente que veio ontem de tarde. E o rio deu pra falar grosso e bancar Zé-pabulagem: — “Não duvide que eu levo a sua almofada de fazer renda, minha velha”! E o rio cresceu. Entrou na camarinha e lá se foi com a almofada da velha! — “Deus te favoreça, meu filho, você, ainda outro dia, era tão manso, lavava até os pratos da minha cozinha!” E rodou com o canoeiro e virou a canoa mano. E entrou nos fundos das casas e saiu nas portas da rua. Subiu no olho da ingazeira, tirou ingá e comeu. Pulou das pedras em baixo, espumando como um doido. Fez até medo às piabas que correram para os barreiros. Só os meninos estão satisfeitos. — “Deus permita que o rio encha” — “Deus permita que o rio encha mais!” Quando o rio entrar na rua as salas de visita serão banheiros. Eles deitarão barquinhos de cima das janelas e a professora fechará a escola! — “Deus permita que o rio encha” — “Deus permita que o rio encha mais...” Poema Enchente, de Jorge de Lima
  • 10. 10 Primeiras expectativas Do sonho de três aspirantes a jornalistas — apai- xonadas pela escrita e pelas pessoas, e com muita von- tade de levar ao mundo alguma contribuição — nasceu este livro. Sem precisar de muito esforço, encontramos o tema perfeito para o nosso trabalho de conclusão de curso. Contar a história e a forma como as vítimas das enchentes de 2008 em Santa Catarina reconstruíram suas vidas atendia perfeitamente ao nosso desejo de narrar fortes trajetórias de vida e humanizar persona- gens com histórias aparentemente comuns. Passamos dez dias em Santa Catarina - do dia 16 a 25 de julho de 2010 - entre as duas cidades que escolhemos para buscar os nossos personagens: Itajaí e Ilhota. Não foi difícil encontrar boas histórias. A cada esquina descobríamos alguém que havia sido afetado e que estava disposto a narrar tudo o que sua memória pôde guardar. A fama de “hospitaleiro” do estado, se depender de nós, continuará a se espalhar. O povo catarinense é muito receptivo e nos acolheu de braços e portas aber- tas. Sem exceções, todos os nossos entrevistados fize- ram questão de nos receber em suas casas, oferecer tudo o que pudesse nos deixar mais confortáveis e ain- da nos convidar a voltar mais vezes. Entre todos que conhecemos, cinco mulheres em especial nos chamaram a atenção. Não estava previsto, mas acabamos nos deixando conquistar pela simpatia, alegria, força e determinação das mulheres catarinen- ses. Coincidentemente as cinco mulheres que co-
  • 11. 11 nhecemos eram mães e foram capazes de aguentar o sofrimento e o desespero de ver a água e a terra levando todos os seus pertences e lembranças e ainda ter forças para cuidar de suas famílias. Apesar deste livro ser fruto de um trabalho jornalístico, procuramos contar histórias de forma li- terária. Todas as narrativas e diálogos foram recriados a partir da memória de cada personagem e de seus fa- miliares. Nem todas superaram as marcas deixadas pela tragédia de 2008, mas demonstraram coragem para re- construir o que foi perdido e retomar o seu cotidiano.
  • 12. 12
  • 13. A maior tragédia de Santa Catarina
  • 14. 14 Há dias boa parte das cidades de Santa Catarina não via a luz do sol. Chuvas incessantes tomaram conta do estado no final de 2008. No dia 22 de novembro tudo transbordou. A água começou a cobrir as ruas de Itajaí e aos poucos invadiu as casas e os estabelecimentos da cidade. Enquanto isso, a poucos quilômetros dali, as chuvas encharcavam os morros de Ilhota. Ao todo foram 63 municípios em situação de emergência e 14 em estado de calamidade pública. Se- gundo a Defesa Civil de Santa Catarina, mais de dois milhões de pessoas foram afetadas de alguma forma pelas enchentes e mais de 78 mil ficaram desabrigadas ou desalojadas. Foram 135 vítimas fatais, sendo que 130 foram causadas por soterramento. As cidades que escolhemos para contar histórias de suas vítimas, Itajaí e Ilhota, foram as mais preju- dicadas do estado. Itajaí foi o local com a maior área alagada, 90% de seu território ficou debaixo d’água por mais de três dias e duas pessoas perderam suas vidas.A cidade estava se expandindo e crescendo eco- nomicamente por meio da sua maior fonte de renda, o porto. Mas após as enchentes, foi fechado e permanece assim até hoje. Já o município de Ilhota foi afetado principal- mente pelos desmoronamentos de terra. A pequena cidade, com apenas 12 mil habitantes, depende da produção de bananas e de biquínis e lingeries. Pratica- mente todos os moradores viviam, e ainda vivem, sem telefone ou acesso à internet. A cidade abriga o conjunto de morros chama- do de Complexo do Baú, que inclui seis bairros: o Baú Baixo, o Baú Central, o Braço do Baú, o Alto Braço, o Alto Baú e o Baú Seco. Essas regiões concentraram o
  • 15. 15 maior número de vítimas fatais de todo o estado. Foram 47 mortes. Muitas regiões ficaram inabitáveis e con- tinuam sendo áreas de risco, com possibilidade de um novo desabamento a qualquer momento. Um ano após as enchentes de 2008, em 22 de novembro de 2009, a Defesa Civil anunciou que 24 mil pessoas ainda não haviam conseguido retornar para suas casas, 14,4 mil pessoas estavam desalojadas — hospedadas em casas de parentes e amigos — e outras 9,6 mil desabrigadas, dependentes de abrigos públicos. Santa Catarina é o terceiro maior pólo turístico do Brasil e o segundo estado com maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Em seus 95,4 mil quilômet- ros quadrados, abriga pouco mais de seis milhões de habitantes, famosos em todo o país por sua hospitali- dade e simpatia. Esse estado tão querido pelos brasilei- ros sofreu em 2008 o que o governo local considera a maior tragédia de sua história. Muitas pessoas prefeririam deixar tudo isso no passado e não falar mais no assunto. Mas, nós conhe- cemos duas mulheres de Itajaí e três de Ilhota que não têm problemas em relembrar as enchentes. Sofreram, mas se recuperaram. A partir de agora contaremos suas histórias, esperando que elas nos levem a refletir sobre as nossas próprias vidas!
  • 16. 16
  • 18. 18 Rio Itajaí-Açu Rio Itajaí Mirim Foto: Google Maps Mapa de Itajaí e Ilhota Foto: Google Maps
  • 19. 19 Foto: Nelson Robledo Itajaí coberta pela água no dia 24 de novembro de 2008
  • 20. 20 Foto: Maristela Pereira Casas no Morro do Baú, em Ilhota, encobertas pela lama
  • 21. 21 Uma esquina do bairro de São Vicente, em Itajaí Foto: Nelson Robledo Foto: Ana Regina Reibnitz Casas totalmente alagadas no Promorar, em Itajaí
  • 22. 22 Foto: Maristela Pereira Foto: Maristela Pereira Casas destruídas pelas chuvas e desmoronamentos de terra em Ilhota
  • 23. 23 Foto: Ana Regina Reibnitz Foto: Nelson Robledo Ruas alagadas e moradores enfrentando as enchentes no centro de Itajaí
  • 24. 24 Foto: Maristela Pereira Foto: Nelson Robledo Moradores usam barco para resgatar parentes e amigos desabrigados Casa destruída com a força das chuvas em Ilhota
  • 25. Foto: Maristela Pereira Bombeiros procuram sobreviventes nos escombros de uma casa em Ilhota
  • 26. 26 Foto: Maristela Pereira Bombeiros resgatam o corpo de uma vítima dos deslizamentos de terra no Morro do Baú, em Ilhota
  • 27. 27 Foto: Nelson Robledo A bagunça dentro das casas depois que a água baixou em Itajaí Foto:Nelson Robledo Depois das enchentes, móveis e roupas levados pelas águas foram parar nas calçadas
  • 28. 28 Casa destruída pela chuva na beira do rio em Itajaí Foto:Nelson Robledo Foto:Nelson Robledo Quando a água começa a baixar, moradores tentam atravessar as avenidas alagadas em Itajaí
  • 29. Foto:Nelson Robledo Menina tenta arrumar a sujeira e a bagunça deixadas pelas enchentes...
  • 30. Foto:Nelson Robledo ...depois de um tempo, ela se cansa e senta em um pequeno banco. Ao seu redor a lama tomou conta de tudo.
  • 31. Foto:Nelson Robledo Moradores fazem fila para receber doações
  • 32. 32 Foto:Nelson Robledo Voluntários organizam roupas doadas em abrigo de Itajaí
  • 34. 34 Era madrugada de sábado para domingo, e, como já vinha acontecendo há dois meses, chovia em Itajaí. Uma televisão estava ligada em uma das regiões mais pobres da pequena cidade, o Promorar. Nadir Fer- nandes, no entanto, não assistia à programação. A mulher de 41 anos, com feição e jeitinho de moleca, dormia com o efeito dos remédios que tomava para minimizar as dores da cirurgia que fizera havia um mês, por conta de um acidente de moto que a dei- xou em uma cadeira de rodas. Seu marido, Luís João Fernandes, ainda estava acordado na sala e ouviu os gritos que vinham da rua. Ansioso e preocupado, ele saiu de casa para ajudar os vizinhos desesperados. A casa de Nadir e Luís era simples, porém es- paçosa e aconchegante. Na sala os sofás e a mesinha de centro estavam decorados com uma colorida manta e uma delicada toalha. O banheiro, muito bem cuidado, com uma suave toalha de rosto, saboneteira, tapetinho, e pequenos quadrinhos na parede. Tudo estava sempre muito limpo e arrumado. Às seis da manhã daquele domingo a casa já não estava assim tão organizada. A ansiedade de Luís se espalhava e seus braços e pernas esbarravam em tudo. Lá fora a água subia na calçada. Nadir acordou assustada com os chacoalhões do marido. — Acorda, Nadir, vai encher tudo, já está en- chendo. Vamos sair! Sonolenta e sem levar a sério, Nadir levantou- se lentamente e subiu em sua cadeira de rodas, com a ajuda do marido. Passou a mão nos cabelos castanho-
  • 35. 35 escuros e brilhantes, jogando uma mecha para trás. — Eu não saio de casa sem tomar o meu café. Não era sério, ela apenas tentava divertir o mari- do, que estava apreensivo como poucas vezes ela o ti- nha visto. — Nadir, já está todo mundo empacotando as coisas e saindo de casa, vai encher! Com esforço, ela moveu sua cadeira até a janela e viu que o quintal da sua casa estava seco. Mas olhou para o marido e não quis mais discutir com aqueles olhos inquietos. — Então vamos, Luís, pega as crianças. Eles têm dois filhos, Luís Gustavo e Natali, na época com 10 e 14 anos. Os dois já estavam acorda- dos antes da mãe. Eles acompanharam o empenho do pai em ajudar os vizinhos que moravam em casas mais baixas, e depois a tentativa dele de salvar o máximo que podia dentro de casa. Luís não parava. Colocou a televisão no alto da estante, os tapetes e o computador em cima do armário, ergueu as mesas, as cômodas, as cadeiras, a geladeira, o fogão. Naquele momento não pensou nas roupas, nos livros, nas fotografias ou nos documentos. A água passou a subir com mais rapidez. Nadir começou a levar a sério a situação. Ficou preocupa- da. Confirmou com o marido se ele havia colocado seu computador em um lugar mais alto. Depois, lembrou- se de algo ainda mais importante. — Luís, meu carro, pelo amor de Deus, vai mo- lhar tudo! O carro recém-adquirido era o sonho de vinte anos de trabalho de Nadir. Por ser deficiente, precisa- va de um carro especial. Aquele, um Peugeot, modelo
  • 36. 36 2009, havia lhe custado sessenta e quatro mil reais. Mesmo franzino, Luís conseguiu erguer o carro, que estava parcialmente coberto pela água, a ponto de colocá-lo sobre botijões de gás. Foi a última coisa que fez antes de partir. Com a ajuda do vizinho, Luís levantou a cadeira de sua mulher, que segurava seu notebook nos braços, e a levou até a casa de dois andares da vizinha. Du- rante todo o caminho, Nadir foi gritando de dor. A vizinha estava em uma festa de casamento em Curitiba e deixou um casal cuidando de sua casa. Nadir e sua família, ao verem que a água já estava na altura das canelas, não pensaram duas vezes e a invadiram. Todos pareciam pensar a mesma coisa: — Meu Deus do céu, de onde veio toda essa água? Entraram correndo, Nadir carregada por Luís e por um vizinho e os filhos logo atrás. Subiram as esca- das com cautela e acomodaram-se no segundo andar da casa. Luís colocou suavemente sua esposa sentada na cama. Curiosa, queria ver o que acontecia lá fora. Ao sair de casa estava com tanta dor que não conseguiu sequer olhar para os lados. Ela fez um esforço com o pescoço e espiou pela varanda. A visão que teve foi aterradora, a pior de sua vida. Não dava para saber o que era casa, o que era rua, o que eram aquelas coisas que boiavam. O choque veio quando ela olhou para o seu carro e viu que a água já tinha alcançado os botijões e quase não dava para vê-los. Logo pensou que ainda teria que pagar por ele até 2014.
  • 37. 37 Aquele céu que amanhecia cinzento era o sinal de que o dia de Nadir e de sua família estava apenas começando. Conforme o sol ia nascendo discretamente, vi- zinhos se juntavam a eles. A região estava sem luz. Na- dir desligou seu celular para poupar bateria. Quando a fome bateu as mulheres foram prepa- rar algo para comer. Enquanto isso, Nadir e mais duas vizinhas foram para a varanda. Ficaram olhando o rio que passava onde antes eram suas casas. Elas viram a vida de todas as famílias vizinhas embaixo d’água. Ali, naquela varanda, elas surtaram por algu- mas horas. Gargalhavam e choravam ao mesmo tempo. Olhavam para suas casas quase totalmente submersas e não sabiam explicar o sentimento, reagiam colocando tudo para fora, o riso e as lágrimas. Da varanda, Nadir avistou o freezer de uma vi- zinha boiando do lado de fora da cozinha. Gritou para uma mulher que estava na janela ao lado da casa onde o freezer escapava, e pediu para que ela o amarrasse no poste, quando chegasse até lá. A mulher topou. Nadir jogou um lençol e quando o freezer saiu da casa, a mulher o segurou junto ao poste, dando um nó com o lençol. O dia seguiu lentamente para as mulheres que estavam na varanda. Elas continuaram ali e encon- traram seus passatempos. Tentavam decifrar os obje- tos que passavam boiando pela rua e acompanhavam os muros das casas para ver se a água estava baixando. Elas se preocuparam quando começou a es- curecer e a água ainda não havia dado sinal de que estava para diminuir. Nadir ficou ainda mais apreensiva ao saber que
  • 38. 38 a comida estava acabando. Pensou no dia seguinte. O que seus filhos iriam comer? Um barco do corpo de bombeiros entrou na rua. Já era noite e eles passavam para resgatar aqueles que precisassem de abrigo. Nadir, sem pensar muito, pediu para que levassem seus filhos. Os bombeiros pararam o barco bem em frente à varanda onde eles estavam. Os filhos pularam para dentro do pequeno barco motorizado. Luís pegou Nadir no colo e tentou colocá-la também, mas foi impossível. Ela sentia muita dor com qualquer movimento que fiz- esse com as pernas e não conseguia dobrar o joelho para passar pela varanda e entrar no barco. Ela desis- tiu. — Vão vocês, meus filhos, eu fico aqui com seu pai. Não sabia ao certo o que estava fazendo, só pen- sava que não queria ver seus filhos passando fome. Eles eram prioridade, precisavam estar em segurança. Nadir perguntou aos bombeiros para onde eles seriam levados e anotou mentalmente o local. A noite foi difícil para Nadir. Ficar longe dos seus filhos em uma hora como aquela a deixava angustiada. Não conteve a preocupação e telefonou para o abrigo onde eles estavam. Restando pouca bateria no celular, tentou falar rápido, mas se apavorou quando do outro lado da linha não os encontrou. — Seus filhos não estão mais aqui. Eles tiveram que ser levados para outro lugar, porque aqui começou a encher também. Mas não sei para onde eles foram, cada um foi para um lugar diferente. Fica difícil a gente saber. Para Nadir, esse foi o momento mais assustador.
  • 39. 39 Depois de esgotar suas ideias para achar seus filhos, apelou para a televisão. Um programa de televisão ficou vinte e quatro horas no ar durante as enchentes dando informações sobre o que deveria ser feito, sobre a situação dos bair- ros e das pessoas que estavam desabrigadas e sem co- municação com os familiares. Nadir ligou e o apresentador anunciou que uma deficiente estava ilhada na Rua das Acácias e procura- va por seus filhos. Para seu alívio, descobriram onde eles estavam. A irmã de Nadir, que assistia ao programa, apressou-se em socorrê-la. Um vizinho ofereceu ajuda para resgatá-la. Ele tinha um barco a motor, mas es- tava sem combustível. A irmã de Nadir tirou a gasolina que estava em sua moto e colocou no barco. Enquanto isso, ainda na varanda, Nadir estava angustiada, sentia-se impotente presa naquela casa. Até que ouviu um barulho distante que parecia ser de um motor. Espichou-se na cadeira de rodas tentando ver de onde vinha o som. Avistou o barco com sua irmã, seus filhos — que haviam sido resgatados em um abri- go — e um homem desconhecido dentro. — Graças a Deus, meus filhos! **** Assim como em Itajaí, chovia há muitos dias no Alto Baú, região localizada na cidade de Ilhota. Mas foi na noite de sábado que Elodir Braatz achou que o mundo iria definitivamente acabar. Em casa, ela, seu marido Valdecir Braatz, e sua neta Ana Clara observa- vam pela janela a chuva que não cessava desde sexta-
  • 40. 40 feira. Morena de olhos castanhos e cabelo ralo, Elodir gosta de olhar nos olhos quando fala. Não tem medo de expressar o que pensa, conversa até demais. Sem- pre foi muito ativa, trabalhava na fazenda, cuidava da casa e dos filhos. Nunca aprendeu a ler e escrever, mas aprendeu a se comunicar bem com as pessoas. Viúva, conquistou o atual marido com seu jeito desinibido. Mulher de pavio curto, nunca foi de levar desaforo para casa. Nervosa por natureza, é do tipo que quando quer alguma coisa, não desiste. Fazia poucos meses que Elodir havia saído do hospital. Ficou internada por duas semanas, após ser picada por uma cobra. Seu pé estava inchado e do- lorido. Mal podia andar ou manter-se em pé por muito tempo. Aos 44 anos, estava muito magra e sentia-se fraca. Devido a esses problemas, não pôde mais traba- lhar, o que a deixava extremamente incomodada. Do alto do morro, pedras gigantescas escorrega- vam. Destruíam tudo o que havia pela frente. Grande quantidade de terra desmoronava. Junto à terra, caíam plantações de outras fazendas, animais mortos, pe- daços de madeira, objetos pessoais. Tudo em grande volume e em alta velocidade. Assustada, Elodir tomava seus calmantes, enquanto observava junto ao marido a destruição que a chuva causava. A casa ficava em uma das melhores ruas do bairro, quase no alto do morro e junto com grandes e bonitas construções de famílias tradicionais da região. Poucas horas antes da forte chuva daquele dia, a casa de Elodir, quando vista de longe, era uma das que mais se destacavam. Naquele momento, eles queriam sair dali, bus-
  • 41. 41 car um lugar seguro, mas era impossível. Era noite, não havia luz e a água que descia, misturada com as pedras que caíam do alto do morro, fazia com que tudo lá fora fosse perigoso demais. Ao tentar observar a casa da vizinha pela janela, Elodir viu que ela não estava mais ali. Sobraram apenas destroços da casa que havia sido levada pelas águas. À direita, também não se via qualquer construção. Ao o- lhar mais para o alto do morro, Elodir se impressionava com o tamanho das ondas de água e terra que se for- mavam. O barulho era constante e assustador. Ao lado do marido, ela olhava pela janela como se não acredi- tasse no que estava acontecendo. — Deus, ajude! Que essa terra não venha na nossa casa! O desespero tomava conta dela. A sensação de não poder fazer nada a deixava ainda mais aflita e incomodada. Ela rezava. O marido rezava. Ambos se abraçavam e aquele abraço dava-lhes a sensação de que estavam protegidos um pelo outro mesmo que por alguns poucos segundos. A casa em que moravam era bem simples, porém confortável. Moravam ali havia sete anos, trabalhando como chacreiros para uma família rica. O trabalho era árduo. O casal passava o dia cuidando da terra e plan- tando eucaliptos. Valdecir desenvolveu um problema na coluna devido ao esforço diário. Elodir mantinha as mãos enfaixadas, de tão raladas e doloridas que fica- vam. As ondas de água que desabavam dos morros eram maiores que a casa de Elodir. Desciam com força, vorazes, derrubando tudo o que viesse pela frente. Enquanto Elodir permanecia parada e abismada
  • 42. 42 com tudo que estava acontecendo, Valdecir estava nos fundos da casa tentando recolher os móveis do chão e colocá-los em prateleiras, mesmo sem saber se esse trabalho iria adiantar. Valdecir foi até a janela, a fim de ver como es- tava a situação lá fora. Surpreendeu-se com a imagem de duas mãos abertas, quase transparentes, mas que pareciam fortes e poderosas. Ele, que nunca foi ligado à religião, teve certeza de que aquela imagem era uma mensagem de Deus. — Elodir, Elodir! Você não imagina o que eu aca- bei de ver! — O que foi? — Apareceu a imagem de uma mão na janela. É isso que está defendendo a nossa casa, Elodir! Ana Clara, a neta do casal e xodó dos avós, es- tava dormindo. A pequena menina de cabelos louros tinha apenas cinco anos e não poderia compreender o que acontecia lá fora. A família passou a madrugada ali, em frente à janela, sem saber o que fazer ou para onde ir. Quando amanheceu, a chuva ainda continuava, mas a tormen- ta havia passado. As imensas ondas de água deram lu- gar a poças de lama escorregadias. A sujeira estava por todos os lados. Aos poucos, o volume de água começou a baixar. Elodir e Valdecir não acreditavam que haviam sobrevivido a todo aquele desastre. Olhavam um para o outro com os olhos lacrimejados. Nunca tinham visto nada parecido com aquilo. A lama havia tomado conta dos arredores da casa. Não conseguiam sair pela porta ou pelas janelas. Passaram as três noites seguintes sem dormir,
  • 43. 43 apreensivos, com medo e angustiados. As doses de cal- mante para Elodir aumentavam. A chuva continuava, mas os barulhos haviam cessado. Na segunda-feira de manhã, a água já havia baixado, mas ainda não o sufi- ciente para que saíssem sozinhos de casa. Esperavam um resgate. Rezavam para que alguém viesse buscá- los. O céu permanecia nublado. A intensidade da chuva havia diminuído bastante em comparação ao dia anterior. A maior parte das casas próximas à de Elodir estava destruída. O cenário era devastador. Em meio à grande quantidade de água, havia muita sujeira espalhada por todos os lados. Galhos de árvore, objetos pessoais como roupas, cadernos, foto- grafias, pedaços de móveis e de eletrodomésticos en- contravam-se misturados ao lixo das ruas. A água era suja e preta. O mau cheiro era intenso. Poucas casas haviam ficado ali. Nenhuma delas estava intacta. De alguma forma, todas tinham sido afe- tadas pelas águas. Aquele forte barulho de tempestade tinha dado lugar a um som mais baixo, de chuva fina. A expressão traumática no rosto dos moradores da região era um misto de tristeza pelas perdas e alívio por terem sobrevivido. Ao longe, alguns passavam pelas ruas em bus- ca de objetos que haviam perdido, outros procuravam parentes ou amigos e gritavam pelos seus nomes. Al- guns bombeiros circulavam pelo local, resgatando pes- soas de suas casas e levando-as para um local mais seguro. Elodir mal podia esperar para sair logo daquela casa, pois temia que desabasse a qualquer momento. Somente se sentiria tranquila quando estivesse longe
  • 44. 44 dali. Alguns vizinhos se aproximaram. — Elodir! Ô, Elô, você está aí? Ai, minha Nossa Senhora! — Estou aqui, Cibele. Meu marido e minha neta também. Pelo amor de Deus, me ajuda a sair daqui. Essa água não dá pé para mim não. — Vou buscar ajuda, mulher! Fica calma que eu já venho. Elodir também estava extremamente preocupa- da com suas três filhas. Uma delas morava ainda mais para cima do morro, em uma área de risco maior. O pé de Elodir continuava inchado. Os remédi- os mal davam conta da dor que sentia. Mas ela tinha outras preocupações bem maiores, que ocupavam sua mente naquele momento. Só pensava em se ver longe dali. Era alto o barulho dos helicópteros que so- brevoavam a área. Eles estavam à procura de feridos ou de pessoas que precisassem de resgate. Alguns viz- inhos gritavam para que os helicópteros viessem bus- car Elodir, seu marido e a neta, mas não havia espaço para que pousassem. A preocupação aumentava. Até parecia que o tempo havia congelado naquela manhã de segunda- feira. O relógio não andava. — Valdecir, pelo amor de Deus. Será que nin- guém vem nos tirar daqui? — Calma, Elodir. A água baixou, olha lá fora. Daqui a pouco vem alguém. — Não aguento mais, Valdecir. Ana Clara, neta do casal, procurava acalmar Elodir. Por ser muito pequena, não sabia o que falar
  • 45. 45 para fazer a avó sorrir. Por isso, permanecia o tempo todo ao lado dela, fazendo-lhe carinho no rosto e a abraçando. Era só Elodir deixar escapar alguma lágri- ma, que Ana enxugava-lhe prontamente. Algumas horas depois, duas moradoras da região, entre elas a Cibele, que havia passado na casa de Elodir anteriormente, voltaram, desta vez, trazendo algumas cordas para que pudessem atravessar a lama. Cibele jogou com força a corda para a entrada da porta da sala. Elodir segurou-a e, lentamente, foi an- dando até o local onde as mulheres a esperavam. Não estava sendo nada fácil para ela. Cada passo que dava, cada centímetro de loco- moção, lhe causavam uma dor insuportável. Aos pou- cos, foi se deslocando com mais rapidez, auxiliada pelo marido, que vinha logo atrás, segurando a neta no colo. Quando já estava a alguns metros longe de casa, Elodir ficou aliviada. Mal conseguia acreditar que havia escapado da morte. Os vizinhos a carregaram até um pasto, onde a deitaram no chão para que não fizesse esforço com os pés. Logo depois, todos se juntaram para limpar a mata, tirar os excessos de lixo e de vegetação, para que o helicóptero pudesse pousar. Elodir estava incapacitada para andar. As dores eram intensas, os remédios haviam ficado em casa. Al- gum tempo depois, o helicóptero avistou o chamado e pousou na região. **** Salete Garcia não acreditava no que estava ac- ontecendo em Itajaí. Apaixonada por limpeza, havia
  • 46. 46 passado dez dias arrumando sua casa para aprovei- tar o resto de suas férias. Queria viajar. Ir para algum lugar próximo de sua cidade, para não ter que ficar muito tempo longe da neta de apenas um ano. Queria descansar da intensa rotina que tinha, trabalhando no expediente noturno da farmácia do Hospital Marieta, o único da região. Enquanto a enchente invadia sua casa, seus planos iam se desfazendo. Incrédula, berrou ao seu marido: — Temos que levantar os móveis! Todos os noticiários informavam aos moradores que a cidade estava alagada, mas Salete jamais imagi- naria que chegaria à sua casa. O bairro em que reside, São Vicente, é localizado em uma área alta da região. Sua casa é a mais alta da rua. Já morava no bairro havia trinta anos e conhecia bem os arredores e os viz- inhos. Foi uma das primeiras a chegar a São Vicente. Aos 52 anos, já havia passado por outras duas enchentes, nos anos de 1983 e 1984, e a água nun- ca tinha chegado dentro de sua casa. Mesmo assim, naquela época, como os filhos eram pequenos, foi para o bairro mais alto da cidade ficar com sua mãe, para não expô-los ao risco. Lembrando-se das inundações passadas, jul- gou que sua casa não alagaria e por isso, ao contrário dos vizinhos, Salete manteve-se firme em casa ao lado do marido Juci Garcia, suas duas filhas, Gisele e Ana Paula, e o genro. Sérgio, o filho caçula, morava e trabalhava na Itália. Salete vivia com saudade dele, mas mantinha contato pela internet. Sempre foi apegada à família. Gostava de ter todo mundo por perto. Estava sempre
  • 47. 47 preocupada em dar o melhor aos seus filhos. Na sexta-feira à noite, Sérgio ligou. Tinha falado com a namorada, que também morava em Itajaí, e es- tava apreensivo. — Mãe, a Camila está chorando. Ela está falan- do que está tudo alagado aí em Itajaí. — Não se preocupe, filho. Aqui em casa está tudo normal. Não vai encher aqui, não. Pode ficar tranquilo. Chovia há mais de dois meses. Quando Salete percebeu que a cidade estava enchendo, começou a monitorar a elevação da água na rua. A todo o momen- to ia até a janela azul da frente da casa conferir o nível da água, comparando-a com a grade do portão. Através da mesma janela, conseguia ver que a água estava en- trando no jardim, mas como a casa tinha dois degraus antes de chegar à porta de entrada, acreditava que não teria que sair de lá. No sábado, sua irmã Elizabete, que morava no mesmo bairro, mas em um ponto ainda mais alto, ha- via lhe oferecido a garagem para estacionar o carro, mas Salete recusou. Agora o automóvel estava submer- so. Era madrugada de domingo quando a água começou a invadir a parte de trás da casa. A luz elétri- ca da cidade havia sido cortada e a penumbra pairava sobre Itajaí. Juci já havia ajudado os vizinhos a levan- tarem seus móveis e a saírem do bairro, mas em sua casa continuava tudo no lugar. A casa de madeira era pequena, mas bem arru- mada. Os detalhes da decoração foram escolhidos por Salete, que adorava manter tudo organizado. As pare- des haviam sido pintadas recentemente. Começaram a levantar os objetos que estavam
  • 48. 48 mais perto do chão. As cadeiras ficaram em cima da mesa, as televisões em cima do guarda-roupa. Os dois colchonetes novos ficaram em cima da estante, os ve- lhos, eles não perderam tempo tentando salvar. Os objetos que ficavam na parte de trás da casa já não tinham como recuperar. O carpete, recém-adquirido, estava ensopado. Tudo o que Salete pensava era em sair de casa com sua família imediatamente sem ter que entrar na água turva da enchente. Tinha medo do que poderia encontrar no meio de tanta água e sujeira. Sem saber como e nem para onde iriam, Salete fez questão de comer alguma coisa antes de sair de casa. O botijão de gás já estava boiando, mas deu tem- po de preparar um café. — Vamos todos tomar um café antes de sair. Não sabemos quanto tempo ficaremos sem comer. As linhas telefônicas não funcionavam mais e o celular de Salete estava quase sem bateria. Sabia que, se ligasse para a Defesa Civil, a bateria acabaria an- tes de qualquer contato, por isso decidiu ligar para sua irmã e pedir socorro. Esperaram todos acordados em casa, rezando para que alguém viesse buscá-los. Às seis e meia da manhã de segunda-feira, o bar- co de um voluntário parou em frente à casinha de ma- deira número 287. Salete estava cansada de esperar. A cada hora que passava, a água invadia um cômodo de sua casa. Pegou alguns pertences e, morrendo de medo, entrou no barco. Salete sabia nadar, mas a correnteza estava forte e ela temia que o barco virasse. — Vamos para a casa da minha irmã. Fica na rua Estéfano Vanolli, a três quarteirões daqui.
  • 49. 49 Foi com as filhas à casa de sua irmã Elizabete. Tinha sorte de ter para onde ir e por isso não precisaria ficar nas igrejas e escolas que já estavam lotadas com os milhares de desabrigados e desalojados de Itajaí e das regiões vizinhas. Salete estava triste por ter que sair de casa, mas dava graças a Deus que a de sua irmã não tinha en- chido, afinal 90% da cidade de Itajaí estava submersa, segundo a Defesa Civil do estado. Pelo menos, estaria perto de parentes e conhecidos. O marido não quis acompanhá-las. Ficou toman- do conta da casa, já que muitos estavam se aprovei- tando da situação para invadir e roubar os poucos per- tences que sobraram nas casas vazias. Ele dormiria em cima da mesa, sozinho e molhado, mas assim poderia proteger os pertences da família. Durante o caminho que percorreu até a casa de Elizabete, Salete pôde ver como estava a cidade. A ima- gem do estado de Santa Catarina submerso passava e reprisava todos os dias nos noticiários, mas ainda não havia visto de perto. Itajaí estava coberta por um mar marrom que se espalhava sem barreiras. A água en- volveu tudo o que ficou à sua frente. As casas estavam sujas e cobertas até o telhado. O barco ia passando por onde antes era rua, desviando dos objetos sem dono que boiavam. A sujeira estava espalhada e o cheiro era muito forte. Depois de alguns minutos em silêncio, chega- ram à casa de Elizabete. A rua estava inundada, mas a casa, que ficava no fundo do terreno, estava salva. **** Em uma casa grande e bem cuidada, a família
  • 50. 50 Marthendal, tradicional na região do Alto Baú em Ilho- ta, seguia sua rotina normalmente no mês de novem- bro, mesmo com a chuva que não dava trégua havia mais de um mês. Eles moravam em uma rua mais afastada do pequeno centro do bairro e sua casa era rodeada por árvores e plantações. Terezinha Marthendal, uma mulher de cabe- los e olhos marrons bem escuros, seu marido, Gilnei Hentcheen, e suas duas filhas pequenas, Tamires e Tifany, viam pela televisão em um domingo à noite os estragos que as enchentes estavam causando em Itajaí. Eles, no entanto, não precisavam se preocupar, afinal, moravam no alto do Morro do Baú, conheciam bem a terra e lá era firme. Naquela madrugada chovia forte, mas eles dor- miram tranquilos. No meio da noite, um barulho. Terezinha acor- dou desnorteada. — Que foi isso? Acorda, Gilnei. O marido acordou assustado e viu a mulher le- vantando apressadamente da cama. Terezinha correu até a janela e quando olhou lá fora se arrependeu de ter aberto a cortina. A visão era confusa. Não dava para entender o que acontecia, mas ela se desesperou. — Gilnei, vem ver isso aqui! O que está acon- tecendo? O marido correu até o seu lado e nesse momento eles sentiram as pedras rolando morro abaixo. Estava escuro e só o que dava para ver era o fogo. — Explodiu alguma coisa, Terezinha. Eles viram muitas chamas. Chamas imensas. Mais tarde descobririam que, por conta dos deslizamen-
  • 51. 51 tos de terra, algumas pedras atingiram um gasoduto da região, causando a explosão que provocou ainda mais desmoronamentos. O desespero se instalou quando eles começaram a ouvir os gritos dos vizinhos. Sem pensar, os dois cor- reram para o quarto das filhas e as buscaram. Terezinha quis sair de casa, mas seu marido a impediu. — Não dá para sair agora, não dá para enxergar nada lá fora. É mais seguro se ficarmos aqui até ama- nhecer e depois procurarmos abrigo. Foi a noite mais longa de suas vidas. Eles nunca imaginaram que uma madrugada pudesse ter tantas horas. Ninguém voltou a dormir. Ficaram juntos sentindo a terra tremer, vendo rachaduras formarem-se nas paredes e ouvindo novas explosões acompanhadas de clarões que entravam pe- las janelas. Ninguém falava, mas todos pensavam nas mes- mas coisas. Quando acabariam aquelas explosões? Al- guma pedra atingiria a casa deles? O morro desmo- ronaria? Eles sobreviveriam? O céu começou a dar sinais de que o sol estava para nascer. Eles aproveitaram e foram se ocupar pre- parando tudo para saírem de casa. Sabiam que teriam que fugir pela mata, por isso colocaram nas mochilas o básico para sobreviverem durante a fuga, como alimen- tos, água, agasalhos, facões, fósforos. Finalmente amanheceu. Eles abriram a porta e não acreditaram. O que antes eram os belos morros que formavam a paisagem de cartão postal, agora eram apenas terra e lama. Tudo deslizou. Casas tinham sido soterradas. A deles parecia que estava prestes a cair. O
  • 52. 52 chão em que pisavam não era mais firme. A sensação era de que desmoronariam a qualquer momento junto com o morro. Ao contrário da noite agitada, tudo estava calmo. Não viram seus vizinhos e não ouviam mais gritos. Se fechassem os olhos poderiam acreditar que nada havia acontecido. Passado o choque de ver aquela destruição, saíram sem rumo certo. Terezinha sentia como se es- tivesse em um campo de batalha, sem ter sido instruí- da sobre como se defender. Com 37 anos, Terezinha tinha duas filhas, de 5 e 14 anos. Dez dias antes de se ver naquela situação, tinha feito uma cirurgia de laqueadura. Um grave pro- blema de coluna fazia com que toda a gravidez dela fosse de risco. Por isso, decidiu que não iria mais en- gravidar. Mesmo com as dores, acompanhou o marido. Saíram com as mochilas nas costas, seguindo o camin- ho que acreditavam que daria em um local seguro. En- traram na mata, atravessaram poças, passaram por trechos de muita lama e desviaram de destroços. Terezinha, por conta das dores, foi engatinhan- do por quase todo o caminho. Seu marido não podia carregá-la, pois levava as mochilas. A cada barreira que tinham que ultrapassar, a cada trecho de lama que afundava, a cada subida mais íngreme, um objeto das mochilas ficava pelo caminho. Depois de andar pelo que pareciam ter sido ho- ras, encontraram companhia. Sem querer, entraram nas terras de outras pessoas e se depararam com os donos da casa. A família planejava sair de casa também e ao vê-los decidiu acompanhá-los.
  • 53. 53 Todos seguiram caminhando em silêncio e sem destino. Pouco tempo depois, chegaram a um local da mata que parecia seguro e firme. Terezinha mal podia andar, então decidiram ficar por ali. Montaram uma barraca. Terezinha e as crianças descansaram. O resto do grupo começou a pensar no resgate. A mata era fechada, então começaram a abrir espaço para que pudessem ser vistos. Quebraram ga- lhos, cortaram plantas, derrubaram pequenos troncos. Quando todos decidiram descansar um pouco, eles conversaram. Os colegas que encontraram pelo caminho contaram o que sabiam. Um deles tinha ou- vido algumas histórias. — Muitas pessoas saíram de casa ontem à noite. Ainda estavam acontecendo muitas explosões e, con- forme uma barreira estourava, eles tinham que pular para outro lugar. Virou um campo minado. Mas ninguém falou sobre o medo que sentiam, as incertezas sobre o que aconteceria com eles e os pensamentos negativos que teimavam em aparecer. Anoiteceu. Todos dormiram na madrugada de segunda para terça-feira, não porque estivessem mais calmos, mas porque o cansaço físico foi mais forte que a preocupação. A noite foi tranquila. Aos poucos eles foram despertando, conforme o dia ia nascendo. Um dos colegas que estavam com a família Marthendal se lembrou de algo que poderia ajudá-los. — Eu desliguei meu celular ontem, estava com um ponto de bateria. Acho que se ligá-lo agora podem- os conseguir telefonar. Todos ficaram esperançosos. Terezinha, com
  • 54. 54 seu jeito sério e suas feições cansadas, não daquele dia em especial, mas de toda uma vida, tentou pensar racionalmente. — Mas vamos ligar para quem? Ninguém respondeu. — Olha, meu sogro conhece essa região toda do Baú como a palma da mão dele. Nós podemos tentar explicar onde estamos e ele manda alguém para nos buscar. Todos concordaram e o marido de Terezinha pegou o celular e ligou para seu pai em Navegantes. — Pai, precisamos de ajuda. Alguém tem que vir nos buscar hoje, minha mulher e minha filha estão muito mal, precisam sair daqui. Terezinha sentia muita dor. Sua filha mais nova estava roxa de frio. As duas sentiam muita fome e esta- vam completamente molhadas. Para chamar a atenção do exército, queimaram alguns pneus que encontraram em uma estrada perto dali. Pouco tempo depois, às onze horas da manhã de terça-feira, o helicóptero chegou. Terezinha pensou: estamos salvos! **** A casinha verde, rodeada por plantações de ba- nana e bem em frente a um grande morro no bairro do Braço do Baú, em Ilhota, abrigava um casal e sua filha. Tatiana Reichert e Rosmael Reichert estavam com a fil- ha Maria Isabel, de apenas dez meses, recém-adotada após seis anos de espera na fila de adoção. Por fora, a construção era bem bonita, as pare-
  • 55. 55 des pareciam ter sido pintadas recentemente, e as flo- res e plantas decoravam o pequeno quintal. Por dentro, a casa era espaçosa, porém dava a impressão de estar inacabada. Quase não havia móveis e as paredes não tinham cor, nem decoração. Tatiana era uma mulher bonita de 36 anos, com olhos jovens e castanhos, cabelos louros, sempre presos suavemente com um elástico. Não parecia preo- cupada com a aparência. Ficava mais bonita com os cabelos soltos, mas os prendia para facilitar o trabalho. Ela e o marido trabalhavam com bananicultura. Todos os dias cuidavam da plantação, debaixo de sol ou chuva. Tatiana, com a pele clara de quem não cos- tuma tomar sol, já estava há alguns meses sem tra- balhar com o marido para poder tomar conta da filha pequena. Como já era de costume, em época de chuva naquela região, a água formava enxurradas ao redor da casa de Tatiana e sua família. A rotina daqueles dias continuou igual, mesmo com a chuva forte que caía há três dias. No domingo, Tatiana, ao abrir a porta da frente, sentiu algo gelado nos pés. A água tinha chegado até o seu quintal. Isso nunca havia acontecido. Cerca de um quilômetro dali, o pai de Tatiana se desesperava com o sumiço da esposa. A madrugada de domingo para segunda-feira foi conturbada e confusa para José Altino Richartz, sua mulher Augusta Richartz e sua filha Giane Richartz, de 27 anos. Desde sexta-feira, a família estava em casa por conta das fortes chuvas que alagaram diversas ruas da região. No domingo estavam todos em casa ouvindo a
  • 56. 56 tempestade lá fora. Escutaram barulhos estranhos que não sabiam de onde vinham. A energia elétrica acabou. Ficaram no escuro. Sem muitas opções, às dez horas todos foram dormir. Agitado, José levantou à meia-noite e foi até a janela. Percebeu que a água havia baixado bastante. Ficou mais tranquilo e voltou a se deitar. Poucos instantes depois, ouviu um estouro mui- to alto. Antes de conseguir pensar em alguma coisa ele viu sua casa se desfazendo. Uma grande árvore que fi- cava no alto do morro, de repente veio em direção à sua casa. A figueira bateu no telhado e quebrou tudo o que estava embaixo. Augusta gritou. No mesmo momento José, que olhava para cima, viu uma forte luz. Ficou intrigado pensando quem poderia ter acendido. — Quem está aí? — Sou eu. — Mas eu quem? — Sou eu, pai, a Giane, estou trancada, me tira daqui! Logo entendeu que a luz deveria vir do celular da filha, que dormia com ele sempre ao seu lado. Pas- sando por cima dos escombros, José chegou até ela. Viu que havia muitos tijolos em volta dela. Gritou para os vizinhos, pedindo socorro. Enquanto esperava, sentia a chuva que não ces- sava caindo no seu pijama. Em cima dele e de sua filha havia uma telha que ajudava a protegê-los da chuva, mas ainda assim ficaram muito molhados. O vizinho voltou trazendo outros homens para ajudar. Pegaram uma motosserra para tentar cortar as madeiras que rodeavam Giane, mas o barulho e o medo
  • 57. 57 de machucá-la fizeram-nos parar. O dia demorou muito para amanhecer. Giane estava muito lúcida a todo o momento. Sentia muita sede. O pai dava-lhe a blusa do pijama para que ela chupasse a água da chuva. Ninguém sabia onde estava Augusta, ela não re- spondia aos chamados. José sentia que a esposa es- tava morta, viu onde a árvore caiu e teve certeza que tinha sido bem em cima de onde ela estava. O sol começou a aparecer. Naquela manhã de segunda-feira, Tatiana es- tava em casa com seu marido, brincando com a filha Maria Isabel. Ela recebeu a notícia de que um conjunto de sete casas, que ficava bem próximo, havia sido atin- gido pelas chuvas e uma delas foi totalmente destruída pelos desabamentos de terra. A paisagem comum que via ao abrir a cortina de casa já não era mais igual. A água subiu muito mais do que o normal, deixando parte das casas em um mar- rom da mesma cor da terra. Os morros, que desabavam por não suportarem a quantidade de água dos últimos meses, estavam encobrindo o que antes poderia formar uma bela fotografia. De repente, Tatiana ouviu uns gritos distantes e foi até a janela. Viu um amigo vindo correndo em di- reção a sua casa. Correu para abrir a porta da frente. — Tatiana, eu vim de lá da casa dos seus pais e aconteceu uma coisa terrível. Sua mãe, ela... Ninguém sabe dela, ela sumiu. A casa dos seus pais desabou. Seu pai está bem, está com a sua irmã. Mas sua irmã, ela também não está bem. Ela está soterrada, mas está viva esperando resgate. É melhor você ir para lá. À medida que o amigo contava ofegante o que
  • 58. 58 havia acontecido, Tatiana ia perdendo a consciência do que estava a sua volta. Era como se tudo tivesse parado e só ouvisse ao longe a voz do homem dizendo que sua mãe estava, provavelmente, morta e sua irmã, soter- rada. Ficou sem reação, quis fazer algo, mas simples- mente não conseguia. Ficou assim por alguns segundos até que agradeceu ao amigo e disse que estava indo. Chamou o marido, pegou sua filha no colo e saiu em disparada. Deixou Maria Isabel com sua cunhada que morava bem próximo e foi com o marido em direção à casa de seus pais. No caminho, uma barreira a deteve. O rio que separava seu bairro de onde seus pais moravam trans- bordou e ficou impossível atravessar por ali. Ela e seu marido pensaram em como passar, pediram ajuda aos vizinhos, mas não conseguiram. Tatiana desistiu pelo cansaço. Não acreditava que estava tão perto, podia até ver o que restou da casa de seus pais, mas não conseguia alcançá-los. Queria estar com a irmã e com o pai, ajudá-los, mas não pôde. Voltou para a casa da cunhada com uma sen- sação de impotência, raiva e angústia. Na manhã seguinte, terça-feira, Tatiana acordou depois de uma noite mal dormida e recebeu a notícia de que sua irmã havia falecido. Arrumou-se o mais rápido que pôde, deixou a filha com a cunhada, e foi para a Igreja Nossa Senhora da Glória, para o sepultamento de sua irmã. Sua mãe continuava desaparecida. Giane chegou amarrada em uma escada, com um cobertor em volta e carregada por um trator. Depois de dez horas soterrada conseguiram tirá-la dos escom-
  • 59. 59 bros e a levaram para a casa de vizinhos. Ainda pas- saram mais quatro horas esperando o socorro, que não chegou a tempo. Ela estava muito machucada, suas pernas ha- viam sido esmagadas, estavam roxas, sua bexiga foi es- premida pela tábua que a prendeu nos escombros e ela havia levado uma forte pancada na testa, que sangrava muito. Às dez horas daquela manhã, fizeram o sepulta- mento. Cansada física e psicologicamente, Tatiana que- ria voltar logo para casa e encontrar sua filha. A sur- presa foi quando chegou em um ponto do caminho que estava barrado pelo exército. — Essa área está bloqueada, senhora. Ninguém mais pode subir. — Mas minha filha está lá em cima. A Maria Isa- bel está lá. Tatiana ficou desesperada, queria estar perto de sua filha. Seu marido, depois de muitas tentativas, conseguiu furar o bloqueio e subiu para resgatar a filha e os seus parentes que estavam na casa. Eles voltaram para a Igreja onde havia sido o sepultamento de Giane e lá ficaram sabendo que o cor- po de Augusta, mãe de Tatiana, tinha sido encontrado. O exército não deixou que a família fizesse o reconhecimento do corpo. Eles acreditaram que seria chocante demais vê-la no estado em que estava. As irmãs reconheceram a mãe pela coberta na qual estava enrolada. Tatiana, acompanhada por Rosmael, Maria Isa- bel, seu pai José Altino e sua irmã com o marido e os três filhos, foi para a casa de parentes de sua mãe, no
  • 60. 60 bairro do Baú Central. Naquele momento, só queriam um lugar familiar para chorarem juntos. Não teriam suportado ir para um abrigo com pessoas desconhecidas. Precisavam de espaço, depois de tantos dramas e notícias ruins. Queriam, pelo menos, o direito de sofrer em paz pelas perdas daquela tragédia. Queriam poder explodir, extravasar, gritar de dor por todas as mortes.
  • 62. 62 Depois do alívio de ver seus filhos bem, Nadir ficou feliz por estar sendo resgatada. O barco veio até a varanda onde ela estava. Lembrando da outra tentativa de resgate ela se desanimou, mas o marido insistiu. — Eu vou tirar essa grade daqui e fica mais fácil para você passar, Nadir. O marido, que tinha uma força enorme guarda- da dentro de seu corpo franzino, conseguiu arrancar a grade de madeira da varanda e com a ajuda do homem que estava no barco, tirou Nadir deitada dali. Ela en- trou no barco, mas Luís, depois de lhe passar a cadeira de rodas, continuou na varanda. — Luís, você não vem, não? — Não, Nadir. Vão vocês. Eu vou ficar aqui para cuidar da nossa casa, é capaz de alguém ainda tentar nos roubar. Nadir consentiu. Não se preocupava muito com o marido, sabia que ele, melhor do que ninguém daquela rua, podia se cuidar sozinho. Para brincar com o mari- do, Nadir gostava de compará-lo a MacGyver, da famo- sa série norte-americana, MacGyver: Profissão Perigo. Para ela, Luís era forte e corajoso como o personagem. Luís ficou não só para cuidar de sua casa, mas também para vigiar os pertences de seus vizinhos. Na sua rua todos o conheciam. Diziam que Luís era o tipo de homem que se você dissesse que não conseguia andar e precisava ir até Brusque, uma cidade próxima, ele te levaria nas costas até lá com a maior boa von- tade. Nadir despediu-se do marido e seguiu no barco até a casa de sua irmã. No começo, estava tão feliz por estar com seus filhos que não reparou muito na destru- ição à sua volta. Só percebeu que tudo havia se trans-
  • 63. 63 formado em um grande rio. Conforme o pequeno barco a motor ia se deslo- cando, ela não conseguia reconhecer o que era rua, o que era casa, o que era terreno particular. Ficava ima- ginando o que teria ficado por baixo de toda aquela água. A sensação de impotência e o desespero de es- tar ilhada, que sentia presa naquela varanda, foram ficando para trás. Até a tristeza de saber que tudo o que conquistou havia sido tomado pela água também estava sendo esquecida. Ver as casas de seus amigos e vizinhos alagadas até o telhado deixou-a perturbada enquanto observava os estragos das enchentes. Mas agora não pensava mais nisso. Aos poucos a casa da irmã foi se aproximando. O barco estava cada vez mais próximo ao chão, até chegar à entrada da casa, onde não havia mais água. Atracou na praia que se formara ali e todos desceram. O vizinho ajudou Nadir a sentar-se em sua cadeira de rodas e a empurrou até a porta de casa. Ela e sua irmã agradeceram ao vizinho e en- traram. Nadir estava exausta e ainda sentia muitas dores nas pernas depois de tantos movimentos. Mas logo quis saber o que os filhos tinham passado nessas vinte e quatro horas que ficaram sem se falar. — O que aconteceu com vocês, meus filhos? Vocês conseguiram comer? — A gente teve que ir de abrigo em abrigo. Fomos para um primeiro e logo começou a encher lá também, então tivemos que sair. Depois o outro também alagou. — E lá tinham várias crianças, mas elas briga- vam muito. Era uma bagunça. — É, e eu tive que ficar falando para o Gustavo
  • 64. 64 se comportar. Nadir ficou feliz por saber que nada de ruim ha- via acontecido com seus filhos. Mas à medida em que eles iam contando as histórias, ela foi percebendo que sentiram medo, por mais que não conseguissem admi- tir. Não gostava de imaginar seus filhos chorando sozinhos, sentia culpa por não ter estado lá para ajudá- los. Mas ficou feliz por saber que os dois, que viviam brigando, se uniram na hora em que foi preciso. Eles quiseram tomar um banho, desde sábado não viam um chuveiro e estavam sujos e molhados da enchente de domingo. Nadir e seus filhos saíram de casa só com a roupa do corpo. Ela teve que pedir até as roupas íntimas para a irmã. Seu filho, Gustavo, que não gostava muito de tomar banho, teve que ser convencido por ela a ir para o chuveiro. Ele também só tinha a roupa do corpo. Na- dir pediu para uma vizinha, que tinha um filho quase da mesma idade, uma muda de roupa emprestada. No dia seguinte, terça-feira, parentes e vizinhos foram chegando aos poucos para se abrigar na casa. Mais de vinte pessoas ficaram lá. Depois de algum tem- po, tudo virou uma grande brincadeira. A calmaria lá fora e a casa limpa e seca deixa- vam a impressão de que nada havia acontecido. Não parecia verdade. Por alguns instantes, esqueceram a tragédia e tudo que tinham vivido há algumas horas parecia ter sido apenas um pesadelo. Nadir só continuou consciente da tragédia porque se lembrava que seu marido ainda estava lá na casa alagada. Não aguentou e telefonou para o celular, que ele prometeu que deixaria ligado.
  • 65. 65 — Oi, Luís, está tudo bem aí? — Sim, tudo certo, e vocês chegaram bem? — Chegamos. Já está cheio de gente aqui. Es- cuta, você comeu direito? — Comi, Nadir. — Comeu nada que eu te conheço, você é teimo- so. Comida era o que não faltava na casa da irmã de Nadir. Ela tinha feito compras poucos dias antes e al- guns amigos que chegavam traziam o que conseguiram salvar de suas casas. As mulheres passavam o dia na cozinha pre- parando as refeições e fofocando. Entre as risadas, fa- lavam de assuntos sérios. Contavam o que sofreram quando a água começou a subir e comentavam as histórias que tinham ouvido sobre vizinhos e desco- nhecidos, mas ninguém sabia se eram mesmo verdade. — Eu ouvi falar que em um mercadinho perto de casa teve um rapaz que tentou entrar e roubar os produtos e o caixa. Mas o dono estava lá e ele tinha uma arma. Disseram que ele matou o ladrão sem dó, e depois o pendurou em um poste lá perto. Enquanto conversavam, Nadir se lembrou do irmão. Quis saber se ele estava bem e descobriu que sim. Ela tentou controlar seus pensamentos, mas eles insistiram em divagar e voltar para a sua infância. Ela lembrou-se de sua mãe e das marcas que ela deixou em cada um dos nove filhos. Aos onze me- ses de idade, Nadir teve poliomielite, também chamada de paralisia infantil. Foi repentino. Estava brincando em um instante e no outro sua irmã percebeu que ela parou e permaneceu assim. Seu corpo ficou mole, não tinha mais força para se movimentar.
  • 66. 66 Na época, ter uma doença que deixasse alguma deficiência física era como ser um monstro. Os pais es- condiam crianças assim. Nadir ficou várias semanas no hospital e, nesse tempo, seu pai foi até lá por três vezes para pedir que os médicos desligassem seus aparelhos. — Não vamos desligar. Sua filha não vai poder andar, mas as faculdades mentais dela serão completa- mente preservadas. Nadir sobreviveu e teve uma infância contur- bada. Enfrentou o preconceito de muita gente, mas o pior foi o de sua própria mãe, que não a aceitava. Ela era muito violenta de todas as formas. Sempre a fez acreditar que não poderia trabalhar, estudar, ter um namorado ou ter filhos. Também batia muito nela e nos seus irmãos. Ela lembrava que sua mãe nunca dizia “vou te bater”, mas sim “vou te matar”. Os irmãos corriam dela para não apanhar, mas Nadir não conseguia. A mãe descontava a raiva nela, mas ela a enfrentava. Não fi- cava quieta quando a mãe era injusta e isso só fazia com que apanhasse muito mais. Os vizinhos tentavam ajudar. Eles escondiam Nadir e seus irmãos atrás da casa. Foi de lá que veio o medo que Nadir tem de sapos. O lugar era repleto deles. E as crianças tinham que ficar quietas ali, até as onze horas da noite, quando o pai chegava do trabalho. As- sim entravam em casa com ele e apanhavam menos. Os pensamentos de Nadir voavam. Ela quis ficar sozinha. Saiu do meio de toda aquela gente que estava na sala e na cozinha e foi para um quarto vazio. ****
  • 67. 67 Elodir, Valdecir e a neta Ana, com a ajuda dos vizinhos, conseguiram finalmente chegar ao helicópte- ro. Elodir subiu primeiro, apoiada nos bombeiros, pois mal conseguia andar. Seu pé continuava muito in- chado. Naquele momento ela desejou que o cortassem para que aquela dor passasse logo. As hélices do helicóptero começaram a girar. Aos poucos a casa de Elodir ia se distanciando. Do alto eles puderam ver o tamanho da destruição. Era uma mistura de marrom com preto. Não puderam reconhe- cer as casas de seus vizinhos, estavam em meio aos destroços. Espantada, Elodir percebeu que sua casa era a única construção que ainda estava de pé naquela pai- sagem. Não acreditava como que todas as ondas de água e pedras que rolaram pelo morro não haviam atin- gido sua casa. Diferente de seu marido, sempre acredi- tou em Deus e teve certeza, naquele momento, que um anjo havia protegido sua casa. Junto com o alívio de estar indo para um lugar seguro após três dias angustiantes, sentia a tristeza de abandonar seu lar. Não sabia se um dia voltaria para lá, se recuperaria suas recordações, se retomaria seu trabalho. Elodir olhava fixamente para a casa onde mo- rou por sete anos da sua vida. Quantas histórias viveu ali. Dias incansáveis de trabalho na roça ao lado do marido, com o sol queimando-lhes o rosto, os ombros cansados, as mãos machucadas, o cuidado com os fi- lhos, o dia a dia na fazenda. Era impossível esquecer cada momento do que havia vivido naquele lugar, mesmo os ruins. Ela já es-
  • 68. 68 tava acostumada ao trabalho árduo, não reclamava de quase nada, mas, com certeza, iria sentir falta daquele pedaço de terra. De longe, observou pela última vez a sua casa. O helicóptero seguiu até o campo seguro mais próximo dali. Pousou em Ilhota, onde bombeiros já esperavam pelos sobreviventes. Gentilmente eles en- caminharam Elodir, Valdecir e Ana até o abrigo mais perto, um colégio da cidade. Ao chegarem, Elodir se assustou com a quanti- dade de pessoas espalhadas por todos os lados, entre elas muitas crianças. Valdecir conseguiu com dificul- dade arranjar um pequeno espaço para que ficassem abrigados. Logo eles perceberam que os dias ali não seriam fáceis. Eram muitas pessoas e havia muitos bate-bo- cas. Elodir, nervosa como sempre, ficava incomodada com aquela situação. Não aguentava ver brigas e ainda ter que controlar suas dores no pé e o medo do que a- conteceria com sua família dali para frente. As discussões acabavam sendo o assunto dos desabrigados. Umas eram por um espaço, outras, por um prato de comida, outras, por ciúmes. A polícia aparecia a toda hora para separar e dar um jeito nos mais briguentos. Havia filas para ganhar peças de roupa, con- seguir comida, tomar banho. Todos eram obrigados a trabalhar se quisessem permanecer no lugar. As mu- lheres se revezavam na cozinha, no momento de fazer o almoço e o jantar. Pais corriam desesperados atrás dos filhos, sem saber onde estavam. Bebês choravam. Havia centenas de vozes misturadas aos gritos de cri- anças que brincavam correndo por todos os lados.
  • 69. 69 Elodir, por conta das dores no pé inchado, não trabalhava com as outras mulheres no abrigo. Ela pas- sava o dia observando a movimentação e acabou desco- brindo coisas que preferiria não saber. No abrigo havia algumas assistentes sociais que eram voluntárias e ajudavam a separar e a distribuir as doações. Elodir, do seu colchão, via que essas mulheres estavam roubando as melhores roupas e levando-as para suas casas. Distribuíam as peças velhas e rasga- das aos desabrigados. Com o tempo, foram chegando também col- chões, guarda-roupas e outros móveis. Elodir não che- gava nem a vê-los de perto. Os voluntários registravam o recebimento das doações e em seguida já as tiravam do abrigo e ninguém sabia para onde as levavam. Logo nos primeiros dias Elodir não aguentou ficar no meio daquela bagunça, das brigas e das in- justiças a que assistia. Pediu ao marido que tentasse encontrar um lugar isolado, onde ficassem apenas os dois e a neta Ana. Valdecir explicou aos funcionários do colégio que sua mulher sentia muitas dores e precisava de mais privacidade e conseguiu uma sala de aula para eles ficarem. Na sala, Elodir não tinha muito o que fazer. Dei- tada ou sentada, como passava praticamente todos os dias, observava seu marido andar de um lado para o outro, ajudar nas atividades do abrigo e ainda sair para procurar informações sobre a situação de sua casa no Alto Baú. Valdecir apareceu por acaso na vida de Elodir. Ela era casada com outro homem, que faleceu quando suas filhas ainda eram pequenas. Pouco antes, hav- ia feito uma laqueadura após descobrir que tinha um
  • 70. 70 problema no ovário. Estava grávida de gêmeos, mas perdeu os bebês. Na época morava em um rancho em Gaspar e plantava fumo. Foram os dias mais difíceis de sua vida. Passou fome com suas filhas. Faltava tudo em sua casa. Um dia uma mulher apareceu em sua porta. — Elodir, você não acha que tinha que dar suas filhas, não? Você não tem condições de cuidar delas. Posso arranjar gente que vai dar vida boa para elas. — E eu sou cadela agora? Não vou largar minhas filhas. Assim se repetiram algumas visitas. Elodir de- cidiu ir a Camboriú procurar um emprego para mel- horar a vida de suas filhas. Deixou-as com sua mãe e foi trabalhar em um restaurante na cidade. Com o emprego, aos poucos foi conseguindo juntar dinheiro. Lá trocava cartas com alguns homens, através da rádio local, em busca de um novo marido. Não sabe o porquê, mas escolheu a carta de Valdecir, a única que não acompanhava uma fotografia do preten- dente. Valdecir saiu de sua cidade e foi até Camboriú visitá-la. Elodir, quando o viu pela primeira vez, levou um susto. “Não quero esse velho nem pintado de ouro”, pensou. Mas Valdecir, doze anos mais velho, gostou de Elodir e insistiu. Ia todos os dias vê-la. Levava cigarro e eles fumavam juntos. Elodir foi sendo conquistada. Sentia-se bem ao lado dele. Valdecir cuidava dela, compreendia as suas loucuras, ansiedade extrema e os calmantes que pre- cisava tomar. Valdecir é um homem franzino com as mãos calejadas e enrugadas do tempo. Cabelos mais louros
  • 71. 71 que brancos até abaixo das orelhas. Usa sempre um boné que deixa para fora apenas uns poucos fios. Os o- lhos azuis claros são jovens e contrastam com as rugas ao redor. Juntos foram morar em Brusque, cuidando da casa de um homem rico da região. Pouco tempo depois já se mudaram para Ilhota, no Alto Baú, onde foram ser chacreiros do mesmo homem. Foi nessa casa que Elodir foi picada pela cobra e logo em seguida enfren- tou os deslizamentos de terra. A experiência da tragédia causada pelas chuvas foi única. Mas a cobra já era uma velha conhecida sua. A casa onde morava no Alto Baú era rodeada por es- ses animais. À noite podiam ouvir os ataques. Em uma noite, uma delas matou dois cachorros ao mesmo tem- po. Seu marido estava sempre atento aos movimen- tos das cobras. Elodir estava dormindo e acordou com o grito de seu marido. — Uma cobra, mulher! Não deu tempo. Ela picou sua mão. Depois disso, Elodir dizia a todos que conseguia sentir a presença de uma cobra de longe. — Quando a pessoa é picada uma vez, já sente quando tem uma por perto. Me dá tremedeira, tontura e cuspo uma coisa verde no chão. Acho que é por isso que sou assim brava. Alguns dias depois, no abrigo, o tédio e a angús- tia de Elodir tiveram um descanso. Ao acordar viu suas três filhas, os dois genros e os netos. Sentiu um alívio no peito e só então percebeu o quanto ele estava aper- tado naqueles dias. Elodir, com sua ansiedade habitual, tentou não
  • 72. 72 pensar muito nas filhas, porque se pensasse, imagi- naria que não estariam bem. Acreditou que a falta de notícias delas era um bom sinal. Se algo ruim tivesse acontecido, já saberia. Suas filhas eram do casamento anterior. Com Valdecir não teve filhos. A filha mais velha morava em uma casa ainda mais alta que a de Elodir. Quando finalmente conseguiu falar com a filha, ficou ainda mais apreensiva. — Perdemos tudo lá em casa, mãe. Não dá nem para ver o que restou, ficou tudo embaixo da lama. Elodir sentiu o desespero da filha. Pensou que o mesmo poderia ter acontecido com sua casa. Não sabia se um dia voltaria a morar lá. As filhas contaram que estavam loucas atrás da mãe. Os vizinhos disseram que Elodir, Valdecir e Ana haviam morrido. — Mãe, fomos até sua casa e lá disseram que estavam todos mortos. Ficamos desesperadas. Até nos informaram onde estava seu corpo. Não tivemos cora- gem de ver, mas o Rogério foi até lá e voltou aliviado, dizendo que não era você. Rogério era genro de Elodir. Para ela, era como se fosse o filho que nunca teve. Os dois se davam muito bem e eram bem próximos. Depois deste susto, as filhas saíram atrás da mãe em todos os abrigos da cidade. Chegaram a ir até Blumenau. O último lugar que procuraram foi ali. To- dos estavam tão felizes por terem se encontrado em se- gurança, que por alguns momentos até se esqueceram de toda a tragédia. — Agora vamos ficar todos juntos.
  • 73. 73 **** Salete e suas filhas saíram do barco e entraram na casa de madeira pintada de azul. Estavam felizes de estarem finalmente em um lugar seguro. Depois da noite molhada que passaram, o que mais queriam era trocar de roupa. Na pressa, ao sair de casa, Salete esqueceu-se de pegar roupas. Teria que usar algumas de sua irmã. Era muito vaidosa, gostava de se arrumar, de pintar os olhos verdes com lápis preto para realçá-los, mas na situação em que se encontrava, roupas emprestadas já eram o suficiente. A casa de Elizabete era grande e espaçosa, e mesmo assim estava lotada. Nos cômodos havia poucos móveis e por isso deu para abrigar por volta de trinta parentes que não tinham para onde ir. Na sala, dois sofás ficavam encostados nas paredes. Em uma mesinha de centro segurava alguns enfeites simples, enquanto no outro canto havia uma estante com vários porta-retratos e uma televisão que não pôde ser ligada, já que a cidade estava sem eletrici- dade. A cortina laranja sobre a janela próxima à porta dava cor ao cômodo. Os espaços vazios do chão foram cobertos com colchões e lençóis que serviram de camas provisórias. Para andar era preciso driblar os amontoa- dos de roupas de cama que estavam espalhados pela casa. Elizabete, com 56 anos, trabalhava em uma loja de aluguel de roupas de noiva, no centro de Itajaí. No tempo livre, gostava de ficar em casa com Martins, seu marido. As filhas casadas já não moravam mais com os pais, mas nem por isso a casa era silenciosa e tran-
  • 74. 74 quila. Elizabete estava acostumada com o movimento. Gostava de chamar os parentes para passar tempora- das em sua casa. Por isso, havia diversas camas e col- chões, que foram úteis para abrigar os parentes du- rante a enchente. O casal sabia que a cidade inteira estava alagada, e que poucos tiveram suas casas pou- padas pelas águas torrenciais. A dispensa estava cheia de comida. Preparando- se para as festas de final de ano e para a visita das fi- lhas, que moravam em outras cidades, Elizabete havia feito compras suficientes para dois meses. A família ja- mais comprara além do necessário, mas por sorte, esse mês foi diferente. Com a cidade alagada e praticamente sem trans- porte, muitos moradores de Itajaí tiveram que sair a pé no meio do caos à procura de comida, mas o que Eliza- bete havia guardado em casa conseguiria alimentar os trinta moradores temporários por pelo menos uma semana. Segundo a Defesa Civil de Santa Catarina, mais de 23 rodovias tiveram que ser interditadas, o que tor- nou impossível transitar pela cidade. O turismo, as in- dústrias, a agropecuária, as pequenas e microempre- sas, o comércio, os abastecimentos de água, luz e gás também foram prejudicados. Mais de 40 mil casas fi- caram sem energia elétrica. Outro privilégio dos moradores da casa de Eli- zabete, aliás, era a água. Martins já havia vivenciado outras enchentes e por isso estava prevenido. Quando percebeu que já estava chovendo há bastante tempo, fechou a caixa d’água e passou a usar a água da rua. Em seguida, pediu à Elizabete que enchesse todos os
  • 75. 75 recipientes para que mantivessem um estoque. — Vamos encher tudo que der de água. Em mo- mentos como esse, não podemos ficar sem água. Todos os baldes, vasilhas, tanques estavam chei- os e, por isso, não estavam preocupados com a falta de água. Mesmo assim, não queriam arriscar. Não sabiam quanto tempo demoraria para desalagar Itajaí. Banho não era necessário. Poderiam passar alguns dias den- tro de casa sem tomar banho. Salete foi à cozinha ajudar sua irmã a preparar a comida. — Nossa, que susto nós passamos. Logo eu, que sempre critiquei esse pessoal que se recusa a sair de casa quando tem algum desastre assim. Mas eu tinha certeza que não teria tanta água. — É verdade. Acho que ninguém esperava por isso. Já faz tanto tempo que não tem uma chuva forte. Era segunda-feira, dia 24 de novembro. Em con- dições normais, Itajaí estaria a todo vapor, com seus aproximadamente 170 mil habitantes voltando do final de semana para trabalhar. Mas a cidade estava deserta. Nas ruas só se viam alguns poucos barcos da Defesa Civil resgatando moradores ilhados e os dos bombei- ros distribuindo alimentos e donativos, procurando pessoas que estavam doentes e que precisavam ir com urgência ao hospital. Salete deveria estar trabalhando no hospital quando a cidade alagou, mas estava de férias. Os mé- dicos, enfermeiros e atendentes da farmácia, que es- tavam no hospital na madrugada de domingo para segunda-feira, ficaram presos. Não conseguiam sair por causa da água, mas mesmo se conseguissem, não poderiam. Os funcionários dos outros turnos também
  • 76. 76 estavam ilhados e o hospital não poderia ficar aban- donado. Quem estava lá dentro teria que trabalhar do- brado. O hospital era um dos poucos estabelecimentos que continuava funcionando. Apesar de triste por não poder ajudar, Salete sentia-se aliviada. Não conseguiria se imaginar traba- lhando horas ininterruptas longe da família. Em meio ao caos, as crianças brincavam no es- curo. As duas sobrinhas de Elizabete, uma de 7 e outra de 11 anos, divertiam-se alheias aos acontecimentos. Tiravam fotos das ruas alagadas e brincavam de pes- caria na frente da casa, sempre acompanhadas de Be- linha, a cadelinha filhote que também estava aproveit- ando a enchente. Enquanto isso, os mais velhos, sem terem o que fazer, comiam o dia inteiro. Os únicos pas- satempos que tinham era conversar e cozinhar. Pão era o que mais gostavam de fazer. Além de ser fácil de preparar, o pão fresquinho feito em casa era uma delícia. Enquanto assava, os vizinhos sentiam o cheiro da massa e faziam fila na porta da casa de Eliza- bete. Sempre solidária, não pensou duas vezes antes de dividir o alimento. Até que se lembrou que não sabia quanto tempo ficaria ilhada em casa. — É melhor guardar o que temos para comer. Os vizinhos podem se virar sem o nosso pão. Depois de cozinhar e comer, Salete sentou na frente da casa para ver a correnteza passar. Sem muito o que fazer, contar objetos flutuantes era diversão. O barulho ensurdecedor dos helicópteros era sempre ouvido. Perto dali, havia uma igreja que estava sendo usada como abrigo. Era para lá que Salete e suas filhas iriam, se não tivessem Elizabete para ampará- las. O padre havia aberto o salão da igreja para os que
  • 77. 77 estavam sem lugar para ficar. Com muitas pessoas adoecendo, os helicópteros estavam sempre pousando no campo ao lado para resgatar os que precisavam de ajuda urgente. A igreja também estava servindo de ponto de entrega de donativos. Da janela da casa, Salete via a fila de pessoas buscando ajuda crescendo. Quando a doação era de colchões, a fila duplicava e logo se viam dezenas de pessoas andando na ruas, carregando-os sobre suas cabeças. De acordo com dados da prefeitura de Itajaí, o número de cestas básicas distribuídas até 6 de dezem- bro foi de 1.149, o equivalente a 29.150 quilos. No meio da tarde, os abrigados na casa de Eliza- bete perceberam que frutas e legumes estavam boian- do. Sem comunicação, foram para a frente da casa ver se alguém da rua sabia o que estava acontecendo. A porta de um depósito de alimentos que ficava próximo não aguentou a pressão da água e estourou, espalhando pelas ruas as milhares de frutas e legumes que lá estavam. Ficaram todos olhando os alimentos passarem ,até que alguém teve uma ideia. — Vamos contar repolho! E assim as famílias passaram a tarde, sentadas na frente da casa, rindo, conversando, e contando os repolhos que passavam boiando pela rua. **** Rodeado de árvores e mato, o helicóptero não conseguia descer para resgatar a família de Terezi- nha. A terra do morro misturada com a água da chuva transformou-se em lama, dificultando o trabalho dos
  • 78. 78 homens do exército. Mesmo com a ajuda a alguns met- ros de distância, a família Marthendal estava ilhada. Terezinha e os outros iam se tranqulizando. Com dores no corpo, fome e frio, ela já não sabia qual seria seu destino. Aos poucos, o helicóptero ia achando espaço para pousar. O resgate foi feito em duas etapas. Primei- ro socorreram as pessoas que estavam mais debilitadas e as crianças. A família Marthendal foi resgatada nessa leva. Mais tarde, os homens do exército voltaram para pegar quem ficou para trás. Já dentro do helicóptero, Terezinha conseguiu se acalmar. Até aquele momento, ela não sabia se sairia daquele pesadelo com vida. Se não fossem resgatados logo poderiam morrer. A chuva não parava de cair, as barreiras não estavam mais firmes e a qualquer mo- mento podiam desabar em cima deles. Agora estava tudo bem. Estava viva. Estavam todos salvos. Um jornalista que cobria as enchentes para uma reportagem especial de televisão estava dentro do heli- cóptero do exército acompanhando os resgates. Queria entrevistar Terezinha, mas ela deu pouca importância. Não conseguia pensar em nada além do que havia pas- sado nos últimos dias. — Eu perdi tudo. A minha casa não caiu, mas a estrutura está abalada. Não consegui trazer nada. Mi- nhas sobrinhas ainda estão lá embaixo. Da janela do helicóptero, Terezinha pôde final- mente ver o mar de destruição que a chuva havia cri- ado. O Morro do Baú estava repleto de lama. A paisa- gem verde que antes era predominante estava coberta pelo alaranjado da lama misturado com o cinza do céu nublado. As ruas tinham se transformado em rios fu-
  • 79. 79 riosos e a correnteza levava tudo que atravessava seu caminho. As casas que ainda restavam de pé estavam abandonadas. Pessoas acenavam para o helicóptero suplicando ajuda. Em alguns pontos era possível ver onde a terra havia deslizado e, logo no pé do morro, os escombros das casas destruídas. Madeira, ferro, papel, roupas e até carros estavam entulhados em montes que pare- ciam lixo e, debaixo daqueles destroços, Terezinha sa- bia que havia corpos de conhecidos. Muitas pessoas estavam dormindo quando aconteceu a explosão, e por isso, acabaram sendo engolidas por suas próprias ca- sas. Os que sobreviveram estavam presos, barrados pe- las águas. Inconformada com o que presenciava, Terezinha não parava de chorar. Tentava ser forte para não as- sustar as filhas, mas não conseguiu conter as lágrimas. O co-piloto do helicóptero conversou com a família. — Vocês tiveram muita sorte. Esse foi o resgate mais difícil que já fiz na vida. Vocês estavam em uma das áreas de maior risco na região. — Aqui era perigoso? Achamos que estávamos seguros. Não tinha como saber para onde ir. Quando ouvimos a explosão, corremos para longe dela. Para mim, ali não era perigoso, achei que a terra estava firme. Por causa da condição de saúde de Terezinha, o helicóptero teve que deixá-los em um abrigo de Ilhota. Ela precisava de cuidados médicos com urgência. Não teriam tempo de levá-los para a casa do sogro de Tere- zinha em Navegantes. O abrigo era o último lugar em que queria estar, principalmente depois do que viveu nos últmos três dias no morro. Queria ir para a casa
  • 80. 80 de algum conhecido para tomar banho e descansar em paz. As roupas molhadas e a fome os incomodavam. A família ficaria abrigada na APAE (Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais). O helicóptero de- sceu em um campo de futebol ao lado da escola que estava sendo usada como área de pouso. Com cuida- do, os homens do exército retiraram Terezinha do heli- cóptero. Carregada pelos voluntários e por seu marido, foi levada para dentro do prédio e logo achou um lugar para se deitar. Foram bem atendidos pela funcionária do gov- erno que estava cuidando do abrigo. Ela mostrou onde seria o lugar que ficariam e em seguida mostrou as in- stalações do colégio. A cozinha poderia ser usada para preparar os alimentos doados. O banheiro teria que ser compartilhado entre todos os abrigados, mas era grande e limpo. O médico que iria examiná-la já estava espe- rando. Terezinha estava preocupada com os pontos da cirurgia. Havia feito muito esforço para sobreviver. — Está tudo certo com você, Terezinha. Reco- mendo que fique deitada, repousando. Você passou por uma barra pesada com pouco tempo de cirurgia. Des- canse para que a recuperação seja mais rápida. O abrigo ainda estava vazio, pois a família havia sido a primeira a chegar. Terezinha ficou aliviada com o silêncio. Sentia muitas dores e não estava com dis- posição de lidar com pessoas desconhecidas. O resto do dia passou devagar. Terezinha ficou deitada em um colchão doado, enquanto Gilnei os aco- modava no salão. Ele preparou o canto que a família ficaria, já que em breve outros dividiriam o mesmo es- paço. Arrumou as camas e pegou peças de roupas doa-
  • 81. 81 das. À noite Gilnei preparou a comida da família na cozinha da escola. Sem outros desabrigados, tinha a liberdade de preparar o que quisesse para eles com- erem. **** Tatiana tinha os olhos atordoados, perdidos, sem direção. Não conseguia encontrar respostas para as suas perguntas. Sentada, olhava para a parede com uma das mãos segurando o rosto. Mantinha-se séria, seus lábios estavam sem cor, seus cabelos bagunçados e seu rosto intensamente pálido. Seu pai, José Altino, estava extremamente de- bilitado por perder Augusta, sua esposa, e Giane, sua filha, ao mesmo tempo. Assim como Tatiana, José ti- nha uma expressão de choque. Quase não falava, nem comia. Às vezes, chorava, mas disfarçava. Quando seus olhos começavam a lacrimejar, abaixava o rosto e seca- va as lágrimas com um pequeno lenço azul desbotado que guardava no bolso. A irmã de Tatiana e filha de José, que havia morrido no desastre após ficar esperando socorro por 14 horas, era gêmea de Gizeli. Giane, loura de olhos claros, estava sempre muito arrumada e perfumada. Era uma garota vaidosa e dizia aos pais que não queria casar para poder morar com eles para sempre. Muito delicada, tinha a voz aguda e doce. Usava tiaras na ca- beça e adorava inovar o penteado com acessórios de cabelo. Apegada a fotografias, expunha diversos por- ta-retratos em prateleiras e cômodas no seu quarto. Foram esses móveis que a deixaram presa da cintura
  • 82. 82 para baixo no dia do desastre. As recordações dos acontecimentos dos dias an- teriores não saíam da cabeça de seu José. A todo mo- mento, se lembrava do desespero da filha soterrada. As últimas imagens de seu rosto e as últimas palavras da filha repetiam-se em sua mente ininterruptamente. — Pai, a mãe morreu, não é? — Morreu, filha. — Eu vou ficar para cuidar de você. Giane procurava se manter calma na medida do possível e conversava o tempo todo com o pai, mas quando a dor vinha, ela gritava e se desesperava. — Pai, me mata, me mata. — Calma, filha. — Pai, me perdoa se eu fiz alguma coisa de erra- do, me perdoa, me perdoa. Me corta daqui para baixo, pai, me corta as pernas. Vivendo assim, daqui para cima, está bom! — Pelo amor de Deus, filha, fica calma! — Pai, agora é tarde. Não aguento mais! Enquanto se lembrava da cena, José permanecia inconsolável. Tatiana procurava apoiar o pai ao mesmo tempo em que desejava obter mais respostas e detalhes sobre o acontecido. Não sabia mais o que fazer para tranquilizá-lo. Nem mesmo ela tinha forças. Ela o abraçava o tempo todo e lhe fazia carinho no rosto. Vivia o tempo todo de mãos dadas com ele. O que fazia Tatiana permanecer de cabeça er- guida era saber que sua mãe não sofreu e que sua irmã tinha estado lúcida do começo ao fim e que, em nen- hum momento, desistiu de viver. Lutou até não aguen- tar mais.
  • 83. 83 Quando os bombeiros encontraram a mãe soter- rada, o corpo dela estava mais embaixo de onde estava Giane, já que a parede caiu por cima dela. A cabeça estava muito machucada, pois o pé da cama havia quebrado em cima de seu rosto. Quando os bombei- ros encontraram o corpo, ela estava deitada de lado na posição em que dormia. No dia da tragédia, a outra filha de José Altino, Karina, estava em Gaspar, uma cidade próxima. Quan- do ligou para a mãe, no sábado de manhã, Augusta estava na casa de Tatiana fazendo pastéis. Ela lhe disse que a chuva estava muito forte. No sábado à tarde, Karina já não conseguiu mais falar com os pais. Nunca passou pela cabeça dela que uma tragédia como aquela pudesse acontecer. Foi quando o padrasto do seu namorado apareceu em sua casa. — Karina, Karina, vim lá do Baú. Preciso te con- tar o que aconteceu. — O que aconteceu? Minha mãe está bem? Meu pai, minhas irmãs? — O que eu venho te contar é notícia muito ruim. Você está preparada para escutar? Karina apenas fez sinal de sim com a cabeça. Seus olhos lacrimejaram, sua feição era desesperadora. — Tua mãe e tua irmã Giane morreram. Soter- radas. — Não é possível, não é possível. Karina começou a chorar compulsivamente. Tremia dos pés à cabeça. Não conseguia acreditar, aq- uilo não era possível. De lá, foi com o namorado procurar parentes em abrigos, já que por telefone a comunicação era total-
  • 84. 84 mente inviável. Foi ao abrigo Santa Terezinha, em Gas- par, e até Blumenau. Só na terça-feira pela manhã que seu patrão, Ricardo Szanzerla, conseguiu entrar em contato com Nelson Richartz, um dos parentes que moravam lá no Braço do Baú. Por telefone, lhe confirmou as mortes e informou-a sobre o paradeiro de seu pai e de suas irmãs. Na terça-feira à tarde, Karina chegou à casa da tia, onde toda a família se encontrava. Logo que viu o pai, correu para abraçá-lo. — Pai! — Karina, graças a Deus você está aqui, escapou da morte, minha filha! — Eu queria ter chegado antes pai, para estar do seu lado, mas estava tudo bloqueado, não dava para passar! Desculpa, pai! O silêncio predominava. Quase ninguém falava, mal se olhavam nos olhos. Tatiana estava inquieta, passava o dia assistindo à televisão para se informar dos estragos e mortes no estado. Seus tios e primos moravam a cinquenta metros acima da casa do seu pai. As barreiras cobriram com- pletamente as casas, de forma que não dava para saber que um dia elas existiram naquele lugar. Além da mãe e da irmã, doze pessoas da família Reichert haviam morrido. **** Sem conseguir controlar seus pensamentos, Na- dir pensou na noite anterior em como havia sido res- gatada da varanda da casa de seu vizinho. “Alguém
  • 85. 85 poderia ter se machucado por minha causa”, pensou. Imaginava que se precisassem sair correndo não pode- riam, pois alguém teria que ajudá-la. Ela sabia que esses pensamentos eram fruto das palavras de sua mãe que ficaram marcadas, mas não eram verdade. Relembrou de quantas vezes teve que provar a sua mãe e a si mesma que era capaz de ser independente e normal. Todos lhe diziam que ela nunca sairia da cama. Com três anos já engatinhava pela casa e pela rua. Por seis anos, viu o mundo de quatro. Ia até a casa de suas amiguinhas sem medo. Quase foi atropelada diversas vezes, mas não se assustava. Era capaz de fazer até o inexplicável, como subir nas árvores. Depois de uma cirurgia aos seis anos, e com um incentivo um pouco traumático de sua mãe, ela con- seguiu andar de muletas. Sua mãe, depois de uma ida ao centro da cidade, onde viu uma mulher andando de muletas, comprou um par em madeira e obrigou Nadir a andar. E ela andou. Não suportava ouvir que não po- dia fazer algo por causa de sua doença. Com as muletas viveu experiências incríveis. Era roqueira, frequentava festas de rock dark e dan- çava como todos os outros jovens ali. Fez amigos ver- dadeiros e se apaixonou algumas vezes. Um dia, aos 17 anos, chegou em casa e disse para sua mãe: — Mãe, você não vai acreditar, tem um colega de uma amiga minha querendo ficar comigo. Acredita? Olha só, querendo ficar comigo. Eu sou muito nova. — Minha filha, ninguém nunca vai te amar. Todo homem que chegar perto de ti vai ser só para te comer. Mas ela não acreditou nisso. Aos dezoito anos,
  • 86. 86 deu o primeiro beijo, roubado pelo menino. Logo co- nheceu seu marido, que se apaixonou por ela assim que a viu. Em certa época da adolescência, Nadir começou a pensar no seu futuro. Sabia que não poderia ser em- pregada doméstica ou balconista, por exemplo. Então concluiu que precisava estudar. — Você não vai nem conseguir subir no ônibus, menina. Era o que dizia sua mãe. Mas Nadir conseguiu. Na primeira vez, levou um tombo feio ao tentar passar pela catraca. Depois descobriu que poderia entrar por trás, sem passar por lá. De ônibus, foi até o segundo melhor colégio de Itajaí e falou com o diretor. — Olha, eu quero muito estudar. Eu não tenho nada, mas quero estudar. — Se você quer estudar, então vai ter lápis, ca- derno, borracha e livro. — Mas eu também não tenho dinheiro para o ônibus, meu pai é aposentado por invalidez. — Tudo bem, vou falar com o Sérgio, dono da coletiva de ônibus e ver o que eu consigo. Sérgio deixou que Nadir pegasse o ônibus todos os dias, sem pagar nada. Ela levou a sério os anos de estudo no Ensino Médio. Aprendia de raiva. Tinha que mostrar que podia ser alguém na vida. No dia de sua formatura tinha feito cachinhos nos cabelos e estava com um vestido lindo. Sua mãe não apareceu. Ninguém da sua família comemorou. Mas ainda assim ela foi para uma festa com uma amiga e dançou a noite inteira. Veio o vestibular. Nadir sabia que precisava es-
  • 87. 87 tudar muito para conseguir passar. Pediu ajuda a uma professora que sempre a incentivou e ela lhe deu um livro de História e Geografia de presente. Nadir estudou, fez a prova, e alguns dias depois ouviu no rádio: “Nadir Fernandes, aprovada”. A felicidade não cabia dentro dela. Sentiu orgu- lho de si mesma. Seu irmão comemorou com ela e fez questão de dar o trote. Jogou farinha e lama na cabeça da irmã. Os dois riram e se abraçaram. Mas logo caiu a ficha. Nadir pensou: “e agora, como eu vou pagar a faculdade?” Pediu ajuda para sua mãe e dessa vez ela a atendeu. — Mãe, eu quero estudar, fazer faculdade. — E o que você quer que eu faça? — Eu quero arranjar um emprego. As duas foram até a câmara de vereadores de Itajaí e falaram com o responsável na época. — Eu tiro o pó, consigo ficar sentada no chão, eu limpo. Não sei quanto o senhor vai me dar, mas está aqui o que eu preciso para fazer a matrícula da minha faculdade. O senhor vai me dar emprego? — Não, emprego para te dar infelizmente eu não tenho. Mas você pode vir aqui todo o mês com a sua mensalidade, que a câmara de vereadores vai pagar. Nadir fez faculdade de História. Formou-se son- hando em ser professora. Em 1989, pouco antes de concluir a graduação, perguntaram na sala de aula se alguém gostaria de dar aula em uma escola em Ilhota. Sem pensar, levantou sua mão. Depois de pegar cinco conduções até a esco- la, chegou e conseguiu o emprego. Começou no dia seguinte. Nunca tinha dado aulas, estava ansiosa, mas sentia-se preparada. Mentalizou tanto esse momento
  • 88. 88 que quando entrou na sala de aula parecia que tinha feito isso a vida toda. A diretora da escola confessou: — Nadir, quando você chegou aqui quase que eu não te dei o emprego. Em uma semana cinco profes- sores tentaram essa vaga e todos desistiram no primei- ro dia. Ainda bem que eu não te recusei. A relação com seus alunos foi amor à primeira vista. Nadir adorava entrar na sala, dar bom dia aos seus alunos, ensinar História, conversar com eles. Sen- tia-se em casa. E sabia que tinha se tornado alguém na vida. Ela conquistou tudo o que desejou. Estudou, tornou-se professora, casou-se. Ainda faltava ter filhos para sentir-se completa, mas os médicos sempre dis- seram que ela não poderia engravidar. Em outubro de 1993, Nadir foi ao médico e descobriu que estava com um cisto no ovário. Voltou em dezembro para saber se o cisto havia sumido. — Opa, está batendo um coração aqui. — Mas doutor, e cisto tem coração é? — Não, querida, você não entendeu. Você está grávida. — Não, não posso doutor. Os médicos falaram que eu não posso engravidar. — Quem disse que não? Escuta aqui o coração do seu filho batendo. Nadir nunca sentiu tanta alegria. Queria contar para alguém que estava grávida, aquilo gritava dentro dela. Mas estava sozinha. No caminho para casa avis- tou bem ao longe uma amiga. Não pensou duas vezes e gritou: — Sueli, estou grávida!
  • 89. 89 Grávida e de muletas, Nadir continuou pegan- do ônibus todos os dias para chegar ao trabalho e dar suas aulas. Em junho, nasceu uma menina, Natali. Nadir sofreu enquanto sua filha era pequena. Não conseguia ser uma mãe como as outras. Às vezes acreditava que não deveria ter tido uma filha, que não era capaz de cuidar dela. O marido trabalhava fora e ela ficava em casa com Natali. Mas não podia andar com as muletas e se- gurá-la ao mesmo tempo. Quando precisava levá-la até o banheiro ou até a cozinha, ela segurava a filha em um braço e com o outro ia se arrastando no chão. Sua filha cresceu saudável e logo veio outra gravidez. Dessa vez, Nadir não queria. Em dezembro de 1996, foi ao médico e ele lhe disse surpreso: — Pode preparar o enxoval, você está grávida de novo! As lembranças da dificuldade que teve para cuidar de sua filha vieram à tona. Ela esqueceu os mo- mentos bons. Pensava que não poderia andar de mãos dadas com o seu filho. Não poderia nunca levá-lo para passear. Mas Gustavo nasceu e Nadir superou os seus receios. Cuidou de seu filho com o mesmo amor com que cuidou de Natali. No entanto, alguns meses depois fez uma laqueadura. Como em vários momentos de sua vida, ela conseguiu pedindo ajuda. — Doutor, minha muleta não aguenta mais gravidez. — Pode deixar, Nadir, vou fazer a sua laquea- dura. Enquanto Nadir viajava mentalmente no tem- po, Luís estava na varanda. Era noite e não havia luz.
  • 90. 90 Ele tinha uma lanterna, mas não a acendeu para não chamar atenção. Estava cansado e com sono, mas não podia adormecer, pois precisava proteger sua casa e as de seus vizinhos. Ele ficou o tempo todo com uma arma, presa pelo cinto em sua calça. Não queria usá-la, mas precisava de algo para se defender. As ruas estavam perigosas. Diziam que era terra de ninguém. Mesmo com todas as perdas e os sofrimentos, alguns se aproveitavam da situação e tentavam roubar o pouco que havia sobrado das casas. No meio da noite, Luís ouviu um barulho. Acen- deu a lanterna e avistou um barquinho. — Quem é que vem aí? Ninguém respondeu. Luís percebeu que os dois homens que estavam no barco tentaram se esconder. Ele sacou a arma da cintura e atirou para cima. Queria assustá-los. Deu certo. Viu o barco dando a volta e indo embora. Na casa de sua irmã, Nadir nem sonhava que isso pudesse estar acontecendo com seu marido. Se soubesse, teria ficado apavorada. Os dias foram passando. A rotina continuou a mesma. Cozinhavam, fofocavam, davam risada e chora- vam angustiadas com a tragédia que não acabava. A água foi diminuindo. Por telefone e pelos vizi- nhos ficavam sabendo os locais que já estavam secos ou não. Foram cerca de cinco dias para que tudo se- casse. Luís, que continuava na Rua das Acácias, viu a água baixar. Mas não quis chamar a mulher. Quando entrou em sua casa, no sábado, e viu o estrago da en- chente, logo pensou que Nadir não poderia ver aquela
  • 91. 91 imagem. A mulher forte e alegre de sempre tinha se deix- ado abalar. Os dias longe de casa e a angústia de não saber como ela estava, o que teria se salvado, o que teria que ser jogado fora conseguiram abater o bom- humor de Nadir. Ela sentia falta de sua cama, de seu sofá, de sua cozinha. Lembrava-se de como tinha sido difícil comprar e decorar a casa. Fazia pouco tempo que es- tava tudo pronto. Os guarda-roupas das crianças eram novos. Cada detalhe, como as toalhinhas e os pequenos enfeites, tinha sido pensado com muito carinho. Nadir gostava de tudo organizado e bonito, podia ser simples, mas fazia questão de um lar alegre. Ela lembrou-se de quando comprou aquela casa. Não tinha nada. Era só um quartinho e uma cozinha. As paredes e o chão sem acabamento. E estava tudo sujo. Mas Nadir estava tão feliz por ter finalmente o seu canto, que não se importou em limpar sozinha a casa toda. Grávida de sua primeira filha, ela sentava no chão, colocava um pano embaixo da barriga, para que não encostasse no piso frio, e esfregava cuidadosa- mente pedacinho por pedacinho. As enchentes destruíram tudo. Luís e as sobri- nhas de Nadir limparam a casa. Tiraram o grosso da lama, lavaram os móveis, as cortinas, jogaram fora o que não dava para salvar. Nadir estava abalada, mas quis dar palpite. Pediu para que o marido não jogasse fora os eletrodomésticos e os móveis, como os outros vizinhos estavam fazendo. Ele obedeceu. Depois de três dias, Luís avisou: — Nadir, a casa está pronta. Vocês já podem vir para cá.
  • 92. 92 **** Os dias ficaram menos angustiantes para Elodir. Com a família reunida não faltava assunto para as con- versas. Mas o abrigo ficou animado mesmo quando ela conheceu Luciana Ramos, uma mulher decidida que chamava atenção por onde passava. Lu, como gostava de ser chamada, falava alto e ria muito, mesmo em meio a toda a destruição. Tinha cabelos louros desbotados e marcas no rosto que deixa- vam dúvidas sobre sua origem. Ora pareciam marcas do tempo e de tudo o que sofreu na vida, ora pareciam ter sido deixadas pelas risadas incansáveis e pelas pia- das que a faziam forçar seus músculos do rosto na hora da dramatização das histórias. Mãe de três filhos pequenos, dois meninos e uma menina, Luciana também havia sofrido com as enchentes. Estava com os filhos e o marido em sua casa, no bairro Vila Nova, em Ilhota. A chuva, que já dura- va dias, começou a aumentar. As ruas ficaram cheias, mas Luciana pensou que fosse apenas uma enxurrada comum e não levantou os móveis, nem saiu de casa. No meio da noite ela acordou. A água estava na altura da cama, quase chegando a molhá-la. Levantou assustada, chamou o marido e pegou seus filhos. To- dos gritaram para os vizinhos, pedindo ajuda. Um barco do corpo de bombeiros chegou e os ti- rou da casa pela janela. Não deu tempo de salvar nada. A família foi levada para um abrigo. Havia uma multidão de desabrigados, todos em busca de um cantinho onde pudessem tentar dormir naquela noite.