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Arquiteto e Artista Plástico
Júlio Quaresma
Nascido em Angola, onde viveu uma
“infância cinematográfica”, Júlio Quaresma
veio para Portugal ainda jovem deparando-se
com estigmas mas também com
agradáveis surpresas.
No caminho traçado para Medicina, o destino
trocou-lhe as voltas e acabou por ingressar
em Arquitectura, curso esse que lhe abriu
horizontes ao mundo artístico. Da Catedral
de Muxima, enquanto arquitecto, até às
suas peças, enquanto artista plástico, Júlio
Quaresma inspira-se diariamente em homens
comuns que marcam a diferença através de um
acto e acredita que não há outro modo de viver
a vida sem ser intensamente.
sua infância foi passada em Angola e mais tar-
de veio para Portugal. Como foi essa infância?
E a mudança para Portugal?
Angola é a terra dos horizontes sem fim, a terra onde se
respira liberdade e isso refletia-se na forma como vivíamos,
como experienciávamos tudo. Nessa altura corri Angola de
norte a sul; as férias de verão eram passadas em Luanda,
ou Benguela e as férias grandes na Chibia ou a fazer acam-
pamentos de caça, foi uma infância muito rica e sobretudo
muito livre. A partida de Angola, em vésperas da indepen-
dência, foi recheada de episódios improváveis, aqueles que
na realidade ficam na memória, desde a saída em comboio
do Lubango ao Namibe, até à ida para Luanda numa corveta
de guerra, com a viagem feita integralmente no convés ou a
partida para Lisboa com saída de um quartel, resultado de
uma descolonização feita anarquicamente, para não dizer
incompetentemente e sem qualquer visão de futuro. Isto,
independentemente de eu achar, já nessa altura e adoles-
cente que a independência era o devir obrigatório. Mas,
na realidade a minha vivência nesse período não podia ser
mais cinematográfica. A Portugal chegamos com o estigma
dos retornados, o que no meu caso, como em muitos outros
casos era incorreto, pois nunca cá tinha vindo, nem de fé-
rias. A adaptação no entanto foi fácil, pois deparei-me com
uma imensidade de interesses, sobretudo culturais e com a
proximidade da Europa, tão rica em história e tão variada.
Como surgiu essa paixão pelas artes, o desejo de ser ar-
tista? Acha que foi o destino ou um trajeto programado?
Penso que perseguimos sempre os nossos fantasmas. Nin-
guém na minha família estava ligado às artes e por isso o cir-
cuitomaisprovávelseriaeuteridopararamedicina.Embora
já nessa altura me tivessem feito uma exposição individual,
com pompa e circunstância no museu do Huambo, chegado
a Lisboa e terminado o liceu, inscrevi-me em medicina mas
como tinha de esperar um ano, pensei em frequentar outra
coisa e as únicas opções no momento, eram arquitetura e
psicologia, optei pelo primeiro. O fato de ser uma escola em
1994 - Lisboa
Por Ana dos Santos
A
90
Deco Entrevista
ebulição, de ter encontrado um grupo de colegas interessa-
dos em várias disciplinas, a proximidade do conservatório,
onde comecei no cinema e acabei na representação plástica
do espetáculo. Esse mundo de atores, bailarinos, etc…que
me atraiu a uma segunda licenciatura, a qual fiz em simul-
tâneo com a arquitetura, levou a que começasse a achar os
outros universos académicos demasiado cinzentos. Assim
fui ficando pelo mundo das artes. A riqueza e variedade de
experiências tinham muito mais a ver comigo, fiz teatro, ci-
nema, era viciado em espetáculos desde a ópera ao bailado,
mas sobretudo convivi com gente de exceção.
Quais são as suas referências em termos profissionais?
Na realidade não tenho grandes referências em termos de
nomes e de personalidades, a não ser em termos de filoso-
fia vivencial e política. Sempre me fascinaram as pessoas,
mas sobretudo cada uma das suas concretizações, por isso
sou muito eclético. Tanto gosto de Mozart ou Wagner como
de Prince ou Edith Piaf, de Frank Lloyd Wrigth, Corbusier,
Nouvelle ou de Zaha Hadid, de Picasso ou de Rubens, de Ro-
din ou Richard Serra. Surpreende-me cada obra em si e não
todo o trabalho, o que quer dizer que as minhas referências
são afinal obras isoladas de autores
diversos. Em termos referenciais
capto a essência de cada objeto e
os conceitos e linguagens plásticas
que estão na génese do seu proces-
so concetual e não me filio em ca-
talogações estéticas. Vivemos num
mundo catalogado e se sempre fui
contra a padronização e o modelo
“1984” de Orwell. Sou partidário da
diferença, pois só ela pode enriquecer a sociedade do pon-
to de vista intelectual e como dizia Confúcio “Só a sabedo-
ria é tolerante”.
Que influências culturais - de Angola em particular, de
África e universal em geral - existem no seu trabalho?
Cada obra é uma obra e cada vez mais o processo conce-
tual se estrutura a partir de um conjunto de premissas e
condicionantes variáveis. Angola está-me no sangue, faz
parte do meu crescimento e da memória dos meus afetos,
por isso existe sempre um vínculo indelével mesmo quando
por vezes não é percetível desde logo. Depois, como cida-
dão do mundo e fortemente empenhado em causas sociais
e numa perspetiva de melhoria da qualidade de vida, viven-
cial e ambiental, ou seja, na melhoria das condições de cada
indivíduo, mas também no meio envolvente, não me posso
demarcar, até do ponto de vista político do que se passa em
África mas também no mundo: das suas assimetrias, da in-
justiça, da arbitrariedade do poder e das suas oligarquias,
e portanto, da prática de uma denúncia à enorme distância
que separa o discurso político da realidade.
Em que amigos, personalidades
e família se inspira e o inspiram?
Cada vez que alguém vence uma difi-
culdade emociono-me. A superação,
seja em que sentido for transforma
as pessoas em heróis e esses são
a minha maior fonte de inspiração.
Pessoa, que na sua pobreza, ainda
conseguem espaço para apoiar ou-
tros. Gente que num ato de loucura, valentia, persistência
ou abnegação, nos demonstram que vale a pena acreditar
no homem e esses são os meus heróis, afinal, pessoas do
quotidiano, seres anónimos que por algum motivo ultrapas-
saram as suas limitações e condicionantes.
Vive entre Angola e Portugal. Quais são os laços de sangue,
amor e ódio que unem estes dois países e os unem a si?
Angola é o país que amo, onde nasci e construí a minha
personalidade e em Portugal foi onde me moldei profissio-
nalmente por isso, ambos têm grande importância no meu
todo. Para o bem e para o mal, a memória é importante e as
Sou partidário da
diferença, pois só ela pode
enriquecer a sociedade do
ponto de vista intelectual
e como dizia Confúcio “Só
a sabedoria é tolerante”
2004 - Mare Nostrum
91
Entrevista Deco
condições que balizam Portugal e Angola, não conseguem
de todo suprir alguns estigmas da sua anterior relação de
colonizador e colonizado, mas na realidade, não podem ser
mais parecidos. O funcionamento institucional em muitos
aspetos é similar e isso é sem dúvida o resultado de resquí-
cios de uma vivência comum. Penso que ainda é muito cedo
para que esses laços se diluam ou apaguem.
Marcas do tempo… Um ponto alto e um ponto baixo da vida?
“O tempo esse grande escultor”, o título de uma obra de
Marguerite Yourcenar pode traduzir a nossa efemeridade
e a velocidade a que tudo nos muda e nos completa. Eu vivo
intensamente cada momento, o que
quer dizer que não vejo as vicissitu-
des como um problema, mas apenas
como contingências temporais, logo,
cada um desses momentos contri-
buiu para o meu crescimento e cada
um deles incutiu uma determinada
linha nessa escultura que afinal sou
eu e que contribuiu para me moldar.
Mesmo aquilo que em determinada
altura nos parece uma injustiça ou um desastre deve ser
entendido como apenas mais um teste na nossa formação.
Foi o responsável pela construção da catedral da Muxima.
Considera a catedral uma obra de Estado ou de Deus?
A obra de Deus é da responsabilidade dos homens. São os
homens as suas mãos. A Catedral nascerá num espaço de
grande energia e transcendência e que se manifesta des-
de o séc. XVI. A sua construção apenas responde ao anseio
de milhares de peregrinos que ali acorrem para encontrar
respostas e apoio espiritual. O projeto, enquanto obra de
Estado, nasce sob a vontade do Presidente de Angola Eng.
Eduardo dos Santos e é um projeto muito mais abrangente
e que implica toda a construção de uma moderna cidade
sustentável, programada para responder não só às neces-
sidades espirituais e aos peregrinos, mas sobretudo para
qualificar social e profissionalmente toda uma população
residente, melhorando substantivamente a sua qualidade
de vida e as suas expetativas.
Tem tido uma vida recheada de pro-
jetos que perpetuarão o seu nome.
Quais os desejos e anseios para
o tempo que lhe resta nesta vida?
Viver cada dia o mais intensamen-
te possível, aproveitando o fato de
estar vivo para poder experienciar
o maior número de novas situações.
A rotina é para mim um profundo
aborrecimento e a única coisa de
que tenho pena, é que mesmo que vivesse mais cem anos
não ter tempo para aprender tudo o que ainda tenho para
aprender, em todas as áreas; visitar todos os locais que ain-
da não visitei e com todas essas diferentes culturas; ajudar
todos os que ainda precisam de mim, embora todos os dias
faça um esforço para mudar o que me rodeia, em face dos
meus princípios de livre-pensador.
Viver cada dia o mais
intensamente possível,
aproveitando o fato de estar
vivo para poder experien-
ciar o maior número
de novas situações.
2009 - Apresentação da Basílica da Muxima, vom o Papa e José Eduardodos Santos
92
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Arquiteto e Artista Plástico Júlio Quaresma

  • 1. Arquiteto e Artista Plástico Júlio Quaresma Nascido em Angola, onde viveu uma “infância cinematográfica”, Júlio Quaresma veio para Portugal ainda jovem deparando-se com estigmas mas também com agradáveis surpresas. No caminho traçado para Medicina, o destino trocou-lhe as voltas e acabou por ingressar em Arquitectura, curso esse que lhe abriu horizontes ao mundo artístico. Da Catedral de Muxima, enquanto arquitecto, até às suas peças, enquanto artista plástico, Júlio Quaresma inspira-se diariamente em homens comuns que marcam a diferença através de um acto e acredita que não há outro modo de viver a vida sem ser intensamente. sua infância foi passada em Angola e mais tar- de veio para Portugal. Como foi essa infância? E a mudança para Portugal? Angola é a terra dos horizontes sem fim, a terra onde se respira liberdade e isso refletia-se na forma como vivíamos, como experienciávamos tudo. Nessa altura corri Angola de norte a sul; as férias de verão eram passadas em Luanda, ou Benguela e as férias grandes na Chibia ou a fazer acam- pamentos de caça, foi uma infância muito rica e sobretudo muito livre. A partida de Angola, em vésperas da indepen- dência, foi recheada de episódios improváveis, aqueles que na realidade ficam na memória, desde a saída em comboio do Lubango ao Namibe, até à ida para Luanda numa corveta de guerra, com a viagem feita integralmente no convés ou a partida para Lisboa com saída de um quartel, resultado de uma descolonização feita anarquicamente, para não dizer incompetentemente e sem qualquer visão de futuro. Isto, independentemente de eu achar, já nessa altura e adoles- cente que a independência era o devir obrigatório. Mas, na realidade a minha vivência nesse período não podia ser mais cinematográfica. A Portugal chegamos com o estigma dos retornados, o que no meu caso, como em muitos outros casos era incorreto, pois nunca cá tinha vindo, nem de fé- rias. A adaptação no entanto foi fácil, pois deparei-me com uma imensidade de interesses, sobretudo culturais e com a proximidade da Europa, tão rica em história e tão variada. Como surgiu essa paixão pelas artes, o desejo de ser ar- tista? Acha que foi o destino ou um trajeto programado? Penso que perseguimos sempre os nossos fantasmas. Nin- guém na minha família estava ligado às artes e por isso o cir- cuitomaisprovávelseriaeuteridopararamedicina.Embora já nessa altura me tivessem feito uma exposição individual, com pompa e circunstância no museu do Huambo, chegado a Lisboa e terminado o liceu, inscrevi-me em medicina mas como tinha de esperar um ano, pensei em frequentar outra coisa e as únicas opções no momento, eram arquitetura e psicologia, optei pelo primeiro. O fato de ser uma escola em 1994 - Lisboa Por Ana dos Santos A 90 Deco Entrevista
  • 2. ebulição, de ter encontrado um grupo de colegas interessa- dos em várias disciplinas, a proximidade do conservatório, onde comecei no cinema e acabei na representação plástica do espetáculo. Esse mundo de atores, bailarinos, etc…que me atraiu a uma segunda licenciatura, a qual fiz em simul- tâneo com a arquitetura, levou a que começasse a achar os outros universos académicos demasiado cinzentos. Assim fui ficando pelo mundo das artes. A riqueza e variedade de experiências tinham muito mais a ver comigo, fiz teatro, ci- nema, era viciado em espetáculos desde a ópera ao bailado, mas sobretudo convivi com gente de exceção. Quais são as suas referências em termos profissionais? Na realidade não tenho grandes referências em termos de nomes e de personalidades, a não ser em termos de filoso- fia vivencial e política. Sempre me fascinaram as pessoas, mas sobretudo cada uma das suas concretizações, por isso sou muito eclético. Tanto gosto de Mozart ou Wagner como de Prince ou Edith Piaf, de Frank Lloyd Wrigth, Corbusier, Nouvelle ou de Zaha Hadid, de Picasso ou de Rubens, de Ro- din ou Richard Serra. Surpreende-me cada obra em si e não todo o trabalho, o que quer dizer que as minhas referências são afinal obras isoladas de autores diversos. Em termos referenciais capto a essência de cada objeto e os conceitos e linguagens plásticas que estão na génese do seu proces- so concetual e não me filio em ca- talogações estéticas. Vivemos num mundo catalogado e se sempre fui contra a padronização e o modelo “1984” de Orwell. Sou partidário da diferença, pois só ela pode enriquecer a sociedade do pon- to de vista intelectual e como dizia Confúcio “Só a sabedo- ria é tolerante”. Que influências culturais - de Angola em particular, de África e universal em geral - existem no seu trabalho? Cada obra é uma obra e cada vez mais o processo conce- tual se estrutura a partir de um conjunto de premissas e condicionantes variáveis. Angola está-me no sangue, faz parte do meu crescimento e da memória dos meus afetos, por isso existe sempre um vínculo indelével mesmo quando por vezes não é percetível desde logo. Depois, como cida- dão do mundo e fortemente empenhado em causas sociais e numa perspetiva de melhoria da qualidade de vida, viven- cial e ambiental, ou seja, na melhoria das condições de cada indivíduo, mas também no meio envolvente, não me posso demarcar, até do ponto de vista político do que se passa em África mas também no mundo: das suas assimetrias, da in- justiça, da arbitrariedade do poder e das suas oligarquias, e portanto, da prática de uma denúncia à enorme distância que separa o discurso político da realidade. Em que amigos, personalidades e família se inspira e o inspiram? Cada vez que alguém vence uma difi- culdade emociono-me. A superação, seja em que sentido for transforma as pessoas em heróis e esses são a minha maior fonte de inspiração. Pessoa, que na sua pobreza, ainda conseguem espaço para apoiar ou- tros. Gente que num ato de loucura, valentia, persistência ou abnegação, nos demonstram que vale a pena acreditar no homem e esses são os meus heróis, afinal, pessoas do quotidiano, seres anónimos que por algum motivo ultrapas- saram as suas limitações e condicionantes. Vive entre Angola e Portugal. Quais são os laços de sangue, amor e ódio que unem estes dois países e os unem a si? Angola é o país que amo, onde nasci e construí a minha personalidade e em Portugal foi onde me moldei profissio- nalmente por isso, ambos têm grande importância no meu todo. Para o bem e para o mal, a memória é importante e as Sou partidário da diferença, pois só ela pode enriquecer a sociedade do ponto de vista intelectual e como dizia Confúcio “Só a sabedoria é tolerante” 2004 - Mare Nostrum 91 Entrevista Deco
  • 3. condições que balizam Portugal e Angola, não conseguem de todo suprir alguns estigmas da sua anterior relação de colonizador e colonizado, mas na realidade, não podem ser mais parecidos. O funcionamento institucional em muitos aspetos é similar e isso é sem dúvida o resultado de resquí- cios de uma vivência comum. Penso que ainda é muito cedo para que esses laços se diluam ou apaguem. Marcas do tempo… Um ponto alto e um ponto baixo da vida? “O tempo esse grande escultor”, o título de uma obra de Marguerite Yourcenar pode traduzir a nossa efemeridade e a velocidade a que tudo nos muda e nos completa. Eu vivo intensamente cada momento, o que quer dizer que não vejo as vicissitu- des como um problema, mas apenas como contingências temporais, logo, cada um desses momentos contri- buiu para o meu crescimento e cada um deles incutiu uma determinada linha nessa escultura que afinal sou eu e que contribuiu para me moldar. Mesmo aquilo que em determinada altura nos parece uma injustiça ou um desastre deve ser entendido como apenas mais um teste na nossa formação. Foi o responsável pela construção da catedral da Muxima. Considera a catedral uma obra de Estado ou de Deus? A obra de Deus é da responsabilidade dos homens. São os homens as suas mãos. A Catedral nascerá num espaço de grande energia e transcendência e que se manifesta des- de o séc. XVI. A sua construção apenas responde ao anseio de milhares de peregrinos que ali acorrem para encontrar respostas e apoio espiritual. O projeto, enquanto obra de Estado, nasce sob a vontade do Presidente de Angola Eng. Eduardo dos Santos e é um projeto muito mais abrangente e que implica toda a construção de uma moderna cidade sustentável, programada para responder não só às neces- sidades espirituais e aos peregrinos, mas sobretudo para qualificar social e profissionalmente toda uma população residente, melhorando substantivamente a sua qualidade de vida e as suas expetativas. Tem tido uma vida recheada de pro- jetos que perpetuarão o seu nome. Quais os desejos e anseios para o tempo que lhe resta nesta vida? Viver cada dia o mais intensamen- te possível, aproveitando o fato de estar vivo para poder experienciar o maior número de novas situações. A rotina é para mim um profundo aborrecimento e a única coisa de que tenho pena, é que mesmo que vivesse mais cem anos não ter tempo para aprender tudo o que ainda tenho para aprender, em todas as áreas; visitar todos os locais que ain- da não visitei e com todas essas diferentes culturas; ajudar todos os que ainda precisam de mim, embora todos os dias faça um esforço para mudar o que me rodeia, em face dos meus princípios de livre-pensador. Viver cada dia o mais intensamente possível, aproveitando o fato de estar vivo para poder experien- ciar o maior número de novas situações. 2009 - Apresentação da Basílica da Muxima, vom o Papa e José Eduardodos Santos 92 Deco Entrevista