1. 01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA
Hugo França se considera um escultor de móveis. A definição se encaixa perfeita-
mente no perfil deste “designer-artista” gaúcho que cria móveis a partir de mínimas
intervenções na forma original da madeira, sempre originária de árvores mortas.
Entre suas matérias-primas preferidas está a madeira do pequizeiro, árvore que fi-
gura entre as mais longevas do mundo, com características de resistência que a tor-
nam quase totalmente blindada às intempéries e queimadas. O designer descobriu
o pequi nas matas da região de Trancoso, no sul da Bahia, onde morou por 15 anos e
iniciou sua carreira. Desde então, conhecedores das florestas locais passaram a aju-
dá-lo na coleta de raízes, troncos e galhos, transformados depois em móveis, utensí-
lios e esculturas de beleza peculiar, cujas formas e texturas valorizam a referência
original da própria árvore.
Os primeiros cortes são realizados no local onde a árvore é encontrada, estratégia
que evita o transporte de material muito pesado. Depois, França faz o desenho da
peça, que recebe o acabamento final. Pesadas e fortes, elas são esculpidas direta-
mente em troncos semiqueimados, árvores mortas, canoas abandonadas ou raízes
gigantes que se tornam objetos exclusivos, nunca repetidos.
A beleza das peças criadas por Hugo França exerce uma espécie de magnetismo
nas pessoas, como afirmou, certa vez, a crítica de design Adélia Borges: “Elas induzem
o olhar, o toque, a proximidade do corpo”. Ainda na visão da crítica, o trabalho do artis-
ta vincula-se a uma linhagem cultural brasileira iniciada pelo arquiteto e designer
baiano José Zanine Caldas (1919-2001) e pelo artista plástico polonês, naturalizado
brasileiro, Frans Krajcberg. Um local interessante para conhecer o trabalho de França
é o Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. Considerado o “templo” da arte
contemporânea, lá estão mais de 40 peças de sua autoria, entre exemplares do início
Uma reverência à
da carreira, obras de tamanho monumental e projetos produzidos especialmente
para o museu. O artista também mantém o Atelier Hugo França, em São Paulo, e é
representado em Nova York pela R 20th Century Gallery.
NATUREZA
Suas esculturas já ganharam o mundo e revelam o poder de transformação da
madeira. Uma reverência sagrada à natureza.
Com sua obra reconhecida dentro e fora do país,
o designer Hugo França transforma resíduos de
madeira em verdadeiras obras de arte
TEXTO Alessandra Simões RETRATOS Toni Pires
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DOCOL MAGAZINE – Você costuma dizer que faz “esculturas vivia isolado em Trancoso, que, na época, era uma aldeia dis-
mobiliárias”. De onde vem esse termo? tante de tudo. Comecei a fazer tudo usando apenas a intuição.
HUGO FRANÇA – Esse termo foi criado por Ethel Leon [jornalis- Minha cabeça estava vazia, não tinha muitas pretensões. Mi-
ta especializada, autora do livro Design: Quem Fez, Quem Faz], nha maior influência foi o olhar para a natureza.
que escreveu um texto sobre o meu trabalho no final dos anos
90. Eu me apropriei por achar que definia muito bem o que eu DM – O que motivou sua ida a Trancoso?
faço: interferir o mínimo possível nas formas criadas pela na- HUGO FRANÇA – Eu tinha um projeto pessoal de morar à beira
tureza, deixando essa estética orgânica e escultural compor o do mar. Queria outro tipo de vida. Me formei em Engenharia
foto DIVULGAÇÃO
desenho de cada peça. de Produção e estava completamente insatisfeito com minha
profissão. Trabalhava em uma grande empresa de computação
DM – Há uma linhagem de grandes nomes da cultura brasilei- em São Paulo. Larguei tudo e fui para lá.
ra que trabalham nesse território estético, como o designer Jo-
A maior característica das peças de França é a interferência mínima na madeira
sé Zanine Caldas e o artista plástico Frans Krajcberg. Aliás, o DM – Você já tinha alguma intenção de trabalhar com madei-
Krajcberg tem uma casa construída em cima de um pequizeiro ra, de fazer design?
secular, com projeto de Zanine, no litoral sul da Bahia. Você HUGO FRANÇA – Não tinha nada definido, mas sempre gostei
acha que há algo em comum entre o trabalho deles e o seu? de madeira, desde criança. Quando cheguei à Bahia, fiquei fas-
HUGO FRANÇA – Eu costumo me situar entre os dois. Zanine cinado com a cultura local, muito voltada para o trabalho da
se tornou um exemplo importantíssimo da consciência ecoló- carpintaria. Naquela época, Trancoso era isolada: não tinha
gica aplicada ao design. Já o Frans é um ícone inquestionável. mercado, material de construção, nada... A população fazia tu-
Seu trabalho denuncia a destruição da natureza pelo homem do com barro e madeira. Chegamos a comprar vidro automo-
e tem uma simbologia fortíssima. Infelizmente, acho que ele tivo em ferro-velho para fazer janela de casa.
nunca foi ouvido como deveria. Ele deveria ser considerado um
mestre para as próximas gerações. DM – As canoas dos índios pataxós da região, feitas com tron-
cos inteiriços, estão entre suas primeiras referências formais?
DM – Os críticos vêm comparando seu trabalho ao do francês HUGO FRANÇA – A canoa foi meu ponto de partida, um gran-
Alexandre Noll (1890-1970) e ao do americano George Nakashi- de trabalho de pesquisa. Sua forma foi a primeira coisa que me
ma, ícones do design, cujas obras em madeira evocam uma lin- chamou a atenção, e foi assim que descobri o pequi, a madei-
guagem escultural. Há alguma influência deles em sua criação? ra preferida dos pataxós para fazer a canoa. É minha lembran-
HUGO FRANÇA – Acho que nada muito direto. Quando come- ça mais marcante dos primeiros anos em Trancoso, onde eu
cei a trabalhar com madeira, eu não tinha muitas referências, mesmo as utilizava para pescar.
NO ALTO, A CHAISE LONGUE TUWALOLE, FEITA COM MADEIRA DE PEQUI: MATERIAL PREFERIDO DO ARTISTA. ACIMA, EXEMPLARES DE MÓVEIS E ESCULTURAS CRIADOS POR ELE
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DM – Por que você escolheu a madeira do pequizeiro para do desmatamento. Agora, estou utilizando o fim disso tudo e
trabalhar em grande parte de seus projetos? quase não há mais madeira nenhuma para reaproveitar.
HUGO FRANÇA – Porque percebi que ela tinha característi-
cas muito diferentes das outras espécies, e que havia muito DM – Isso pode mudar o rumo de seu trabalho?
resíduo dela espalhado pela região da Bahia. Como o pequi HUGO FRANÇA – Estou fazendo pesquisas em outras regiões
não pega fogo, acabava sendo a única madeira que sobrava do Norte para continuar a trabalhar com resíduos. Também es-
depois das queimadas. Ele pode viver até 1.200 anos, o que é tou com projetos de mexer cada vez mais com resíduos urba-
uma raridade na natureza, isso para mim é uma coisa sagra- nos para fazer mobiliário público. As árvores derrubadas nas
da. Mas poucas pessoas reconhecem e reverenciam isso. cidades são picotadas e jogadas fora. Já fiz coisas bem interes-
santes, como o gigantesco banco da árvore pau-ferro, caída no
DM – A formação em engenharia o influenciou em seu tra- Parque Burle Marx, em São Paulo. Há muitas espécies urbanas,
balho como designer? basta saber explorar direito suas características.
HUGO FRANÇA – Me ajudou muito em termos logísticos,
pois o trabalho é complexo – preciso de motosserra, cami- DM – Mesmo assim, você continua produzindo na Bahia? Tem
nhões, guindastes. Mas chegou também a prejudicar meu uma equipe que te ajuda?
lado criativo. No início, foi um grande exercício. Custou bas- HUGO FRANÇA – Tenho duas oficinas: uma em Louveira, no inte-
tante me desvincular da racionalidade. Por outro lado, a en- rior de São Paulo, e outra em Trancoso. Desta oficina na Bahia é
genharia também me influenciou a ter esse lado mais utili- que vem todo o resíduo florestal que usamos. Lá são feitas 90%
tário. Acredito que eu não seria assim se não tivesse sido das peças. Em cada uma das oficinas tenho uma equipe.
engenheiro [risos].
DM – Você chegou a pensar em trabalhar diretamente com a
DM – Como estava a questão do desmatamento quando questão do reflorestamento e tentar ajudar a reverter o qua-
você chegou ao sul da Bahia? dro desolador do desmatamento no Brasil?
HUGO FRANÇA – Naquela região, nos anos 80, os madeireiros HUGO FRANÇA – É quase impossível resolver algo tão comple-
estavam a pleno vapor. Vi que alguma coisa estava errada. xo com uma iniciativa pontual. Reflorestar requer investimen-
Destruíram praticamente tudo. Hoje, a região está protegida, tos muito altos e uma tecnologia sofisticadíssima. Não adian-
não se pode derrubar nada. Como acabaram com tudo por lá, ta plantar árvore só por plantar. É preciso considerar o contex-
agora eles passaram a explorar a Amazônia. O pequi quase to da floresta, um ecossistema complexo, com árvores que só
não existe mais, é cada vez mais difícil encontrar peças de chegam à idade adulta aos 200 anos. Seriam necessárias ini-
grande porte. Eu cheguei a aproveitar muitas árvores inteiras ciativas públicas e privadas de grande porte. Infelizmente, des-
que morriam em pé. Elas não aguentavam as consequências conheço que isso venha sendo feito em algum lugar.
HUGO FRANÇA COM A MESA MAKIDA E A CHAISE LONGUE JUÍNA EM SEU ATELIÊ, NA CAPITAL PAULISTA: PROJETOS CRIATIVOS E QUE VALORIZAM AS FORMAS ORGÂNICAS
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DM – As pessoas ainda têm uma ideia muito superficial do DM – E como seu trabalho começou a aparecer no mercado
que é sustentabilidade... internacional?
HUGO FRANÇA – Exatamente. Há muitos termos que ainda não HUGO FRANÇA – O mais interessante é que meu trabalho foi
são bem compreendidos e mal aplicados. Até mesmo a palavra reconhecido primeiramente fora do Brasil. Em meados dos
reflorestamento está desgastada. O que a indústria de celulose anos 90, participei do concurso “Brasil Faz Design”. Em função
faz, como replantar madeira de pínus e eucalipto, não tem nada disso, minhas obras foram para Milão e outras cidades da Eu-
a ver com reflorestamento. ropa. Isso me deu uma grande visibilidade lá fora. Logo depois,
os Estados Unidos também passaram a se interessar pelo meu
DM – Há inclusive o termo “deserto verde” para definir as trabalho. Aí comecei a aparecer no Brasil. Mas esse início me
áreas ocupadas por essa indústria... deixou meio frustrado. As pessoas apenas se interessavam pe-
HUGO FRANÇA – É isso mesmo. Nem passarinho gosta desses la estética do trabalho, de maneira muito superficial. Só de-
lugares... Espero que um dia o reflorestamento se torne uma pois passaram a valorizar o conceito de sustentabilidade, que
verdade. Por isso, gosto de salientar a importância do pequi co- é o mais importante para mim.
mo símbolo de nossa natureza. É algo tão raro, uma relíquia, e
o homem está acabando com tudo. Ela é uma das mais de DM – Você tem preferência por determinadas peças?
“As peças das quais mais gosto são aquelas que menos sofreram minha interferência”
3.000 espécies de árvore presentes nas florestas tropicais. HUGO FRANÇA – Acabei vendendo muita coisa de que gostava.
Levei cada bronca da minha mulher por causa disso... [risos].
DM – Que outras madeiras estão presentes em seu trabalho? Mas as peças das quais mais gosto são aquelas que menos so-
Quais as características que você mais aprecia em cada uma? freram minha interferência. São aquelas que têm a forma mais
HUGO FRANÇA – Baraúna, pau-d’arco, jaqueira, aderno e tata- próxima de seu estado original, as mais orgânicas. Essas são a
juba, entre outras. Cor, textura, dureza, peso e resistência são maior expressão daquilo em que mais acredito: a força da pró-
características básicas dessas madeiras que, combinadas, re- pria natureza.
sultam na melhor opção para cada finalidade – aliada à esté-
tica que cada olhar busca. DM – Quais são seus próximos projetos?
HUGO FRANÇA – Quero viabilizar uma escola de formação de
DM – Recentemente, uma mesa de centro de sua autoria foi designers com base na reutilização da madeira e de outros ma-
arrematada na Sotheby’s por 67.000 libras (cerca de 180 mil teriais. Acho que isso pode ajudar a clarear essas questões das
reais). Você ficou surpreso? quais falei, que ainda estão muito mal elaboradas nessa área.
HUGO FRANÇA – Fiquei muito surpreso, sim. Acredito que o Acho que será uma forma de contribuir para a construção de
conceito do trabalho, associado ao resultado estético, são fato- um pensamento coletivo mais justo e consciente em relação à
res bastante importantes para esse sucesso internacional. preservação do meio ambiente. d
BANCOS COMO O KURROON (NO ALTO DA PÁGINA) EVIDENCIAM O CARÁTER ECOLÓGICO DO TRABALHO DO DESIGNER. ACIMA, OBJETOS CRIADOS A PARTIR DE RESÍDUOS DE ÁRVORES