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01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA




                                                         Hugo França se considera um escultor de móveis. A definição se encaixa perfeita-
                                                       mente no perfil deste “designer-artista” gaúcho que cria móveis a partir de mínimas
                                                       intervenções na forma original da madeira, sempre originária de árvores mortas.
                                                         Entre suas matérias-primas preferidas está a madeira do pequizeiro, árvore que fi-
                                                       gura entre as mais longevas do mundo, com características de resistência que a tor-
                                                       nam quase totalmente blindada às intempéries e queimadas. O designer descobriu
                                                       o pequi nas matas da região de Trancoso, no sul da Bahia, onde morou por 15 anos e
                                                       iniciou sua carreira. Desde então, conhecedores das florestas locais passaram a aju-
                                                       dá-lo na coleta de raízes, troncos e galhos, transformados depois em móveis, utensí-
                                                       lios e esculturas de beleza peculiar, cujas formas e texturas valorizam a referência
                                                       original da própria árvore.
                                                         Os primeiros cortes são realizados no local onde a árvore é encontrada, estratégia
                                                       que evita o transporte de material muito pesado. Depois, França faz o desenho da
                                                       peça, que recebe o acabamento final. Pesadas e fortes, elas são esculpidas direta-
                                                       mente em troncos semiqueimados, árvores mortas, canoas abandonadas ou raízes
                                                       gigantes que se tornam objetos exclusivos, nunca repetidos.
                                                         A beleza das peças criadas por Hugo França exerce uma espécie de magnetismo
                                                       nas pessoas, como afirmou, certa vez, a crítica de design Adélia Borges: “Elas induzem
                                                       o olhar, o toque, a proximidade do corpo”. Ainda na visão da crítica, o trabalho do artis-
                                                       ta vincula-se a uma linhagem cultural brasileira iniciada pelo arquiteto e designer
                                                       baiano José Zanine Caldas (1919-2001) e pelo artista plástico polonês, naturalizado
                                                       brasileiro, Frans Krajcberg. Um local interessante para conhecer o trabalho de França
                                                       é o Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. Considerado o “templo” da arte
                                                       contemporânea, lá estão mais de 40 peças de sua autoria, entre exemplares do início



     Uma reverência à
                                                       da carreira, obras de tamanho monumental e projetos produzidos especialmente
                                                       para o museu. O artista também mantém o Atelier Hugo França, em São Paulo, e é
                                                       representado em Nova York pela R 20th Century Gallery.




     NATUREZA
                                                         Suas esculturas já ganharam o mundo e revelam o poder de transformação da
                                                       madeira. Uma reverência sagrada à natureza.




     Com sua obra reconhecida dentro e fora do país,
     o designer Hugo França transforma resíduos de
     madeira em verdadeiras obras de arte

     TEXTO Alessandra Simões RETRATOS Toni Pires
01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA




    DOCOL MAGAZINE – Você costuma dizer que faz “esculturas           vivia isolado em Trancoso, que, na época, era uma aldeia dis-
    mobiliárias”. De onde vem esse termo?                             tante de tudo. Comecei a fazer tudo usando apenas a intuição.
    HUGO FRANÇA – Esse termo foi criado por Ethel Leon [jornalis-     Minha cabeça estava vazia, não tinha muitas pretensões. Mi-
    ta especializada, autora do livro Design: Quem Fez, Quem Faz],    nha maior influência foi o olhar para a natureza.
    que escreveu um texto sobre o meu trabalho no final dos anos
    90. Eu me apropriei por achar que definia muito bem o que eu      DM – O que motivou sua ida a Trancoso?
    faço: interferir o mínimo possível nas formas criadas pela na-    HUGO FRANÇA – Eu tinha um projeto pessoal de morar à beira
    tureza, deixando essa estética orgânica e escultural compor o     do mar. Queria outro tipo de vida. Me formei em Engenharia




                                                                                                                                        foto DIVULGAÇÃO
    desenho de cada peça.                                             de Produção e estava completamente insatisfeito com minha
                                                                      profissão. Trabalhava em uma grande empresa de computação
    DM – Há uma linhagem de grandes nomes da cultura brasilei-        em São Paulo. Larguei tudo e fui para lá.
    ra que trabalham nesse território estético, como o designer Jo-
                                                                                                                                                      A maior característica das peças de França é a interferência mínima na madeira
    sé Zanine Caldas e o artista plástico Frans Krajcberg. Aliás, o   DM – Você já tinha alguma intenção de trabalhar com madei-
    Krajcberg tem uma casa construída em cima de um pequizeiro        ra, de fazer design?
    secular, com projeto de Zanine, no litoral sul da Bahia. Você     HUGO FRANÇA – Não tinha nada definido, mas sempre gostei
    acha que há algo em comum entre o trabalho deles e o seu?         de madeira, desde criança. Quando cheguei à Bahia, fiquei fas-
    HUGO FRANÇA – Eu costumo me situar entre os dois. Zanine          cinado com a cultura local, muito voltada para o trabalho da
    se tornou um exemplo importantíssimo da consciência ecoló-        carpintaria. Naquela época, Trancoso era isolada: não tinha
    gica aplicada ao design. Já o Frans é um ícone inquestionável.    mercado, material de construção, nada... A população fazia tu-
    Seu trabalho denuncia a destruição da natureza pelo homem         do com barro e madeira. Chegamos a comprar vidro automo-
    e tem uma simbologia fortíssima. Infelizmente, acho que ele       tivo em ferro-velho para fazer janela de casa.
    nunca foi ouvido como deveria. Ele deveria ser considerado um
    mestre para as próximas gerações.                                 DM – As canoas dos índios pataxós da região, feitas com tron-
                                                                      cos inteiriços, estão entre suas primeiras referências formais?
    DM – Os críticos vêm comparando seu trabalho ao do francês        HUGO FRANÇA – A canoa foi meu ponto de partida, um gran-
    Alexandre Noll (1890-1970) e ao do americano George Nakashi-      de trabalho de pesquisa. Sua forma foi a primeira coisa que me
    ma, ícones do design, cujas obras em madeira evocam uma lin-      chamou a atenção, e foi assim que descobri o pequi, a madei-
    guagem escultural. Há alguma influência deles em sua criação?     ra preferida dos pataxós para fazer a canoa. É minha lembran-
    HUGO FRANÇA – Acho que nada muito direto. Quando come-            ça mais marcante dos primeiros anos em Trancoso, onde eu
    cei a trabalhar com madeira, eu não tinha muitas referências,     mesmo as utilizava para pescar.
                                                                                                                                        NO ALTO, A CHAISE LONGUE TUWALOLE, FEITA COM MADEIRA DE PEQUI: MATERIAL PREFERIDO DO ARTISTA. ACIMA, EXEMPLARES DE MÓVEIS E ESCULTURAS CRIADOS POR ELE
01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA




                                                                                                                                                   DM – Por que você escolheu a madeira do pequizeiro para          do desmatamento. Agora, estou utilizando o fim disso tudo e
                                                                                                                                                   trabalhar em grande parte de seus projetos?                      quase não há mais madeira nenhuma para reaproveitar.
                                                                                                                                                   HUGO FRANÇA – Porque percebi que ela tinha característi-
                                                                                                                                                   cas muito diferentes das outras espécies, e que havia muito      DM – Isso pode mudar o rumo de seu trabalho?
                                                                                                                                                   resíduo dela espalhado pela região da Bahia. Como o pequi        HUGO FRANÇA – Estou fazendo pesquisas em outras regiões
                                                                                                                                                   não pega fogo, acabava sendo a única madeira que sobrava         do Norte para continuar a trabalhar com resíduos. Também es-
                                                                                                                                                   depois das queimadas. Ele pode viver até 1.200 anos, o que é     tou com projetos de mexer cada vez mais com resíduos urba-
                                                                                                                                                   uma raridade na natureza, isso para mim é uma coisa sagra-       nos para fazer mobiliário público. As árvores derrubadas nas
                                                                                                                                                   da. Mas poucas pessoas reconhecem e reverenciam isso.            cidades são picotadas e jogadas fora. Já fiz coisas bem interes-
                                                                                                                                                                                                                    santes, como o gigantesco banco da árvore pau-ferro, caída no
                                                                                                                                                   DM – A formação em engenharia o influenciou em seu tra-          Parque Burle Marx, em São Paulo. Há muitas espécies urbanas,
                                                                                                                                                   balho como designer?                                             basta saber explorar direito suas características.
                                                                                                                                                   HUGO FRANÇA – Me ajudou muito em termos logísticos,
                                                                                                                                                   pois o trabalho é complexo – preciso de motosserra, cami-        DM – Mesmo assim, você continua produzindo na Bahia? Tem
                                                                                                                                                   nhões, guindastes. Mas chegou também a prejudicar meu            uma equipe que te ajuda?
                                                                                                                                                   lado criativo. No início, foi um grande exercício. Custou bas-   HUGO FRANÇA – Tenho duas oficinas: uma em Louveira, no inte-
                                                                                                                                                   tante me desvincular da racionalidade. Por outro lado, a en-     rior de São Paulo, e outra em Trancoso. Desta oficina na Bahia é
                                                                                                                                                   genharia também me influenciou a ter esse lado mais utili-       que vem todo o resíduo florestal que usamos. Lá são feitas 90%
                                                                                                                                                   tário. Acredito que eu não seria assim se não tivesse sido       das peças. Em cada uma das oficinas tenho uma equipe.
                                                                                                                                                   engenheiro [risos].
                                                                                                                                                                                                                    DM – Você chegou a pensar em trabalhar diretamente com a
                                                                                                                                                   DM – Como estava a questão do desmatamento quando                questão do reflorestamento e tentar ajudar a reverter o qua-
                                                                                                                                                   você chegou ao sul da Bahia?                                     dro desolador do desmatamento no Brasil?
                                                                                                                                                   HUGO FRANÇA – Naquela região, nos anos 80, os madeireiros        HUGO FRANÇA – É quase impossível resolver algo tão comple-
                                                                                                                                                   estavam a pleno vapor. Vi que alguma coisa estava errada.        xo com uma iniciativa pontual. Reflorestar requer investimen-
                                                                                                                                                   Destruíram praticamente tudo. Hoje, a região está protegida,     tos muito altos e uma tecnologia sofisticadíssima. Não adian-
                                                                                                                                                   não se pode derrubar nada. Como acabaram com tudo por lá,        ta plantar árvore só por plantar. É preciso considerar o contex-
                                                                                                                                                   agora eles passaram a explorar a Amazônia. O pequi quase         to da floresta, um ecossistema complexo, com árvores que só
                                                                                                                                                   não existe mais, é cada vez mais difícil encontrar peças de      chegam à idade adulta aos 200 anos. Seriam necessárias ini-
                                                                                                                                                   grande porte. Eu cheguei a aproveitar muitas árvores inteiras    ciativas públicas e privadas de grande porte. Infelizmente, des-
                                                                                                                                                   que morriam em pé. Elas não aguentavam as consequências          conheço que isso venha sendo feito em algum lugar.
HUGO FRANÇA COM A MESA MAKIDA E A CHAISE LONGUE JUÍNA EM SEU ATELIÊ, NA CAPITAL PAULISTA: PROJETOS CRIATIVOS E QUE VALORIZAM AS FORMAS ORGÂNICAS
01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA




    DM – As pessoas ainda têm uma ideia muito superficial do           DM – E como seu trabalho começou a aparecer no mercado
    que é sustentabilidade...                                          internacional?
    HUGO FRANÇA – Exatamente. Há muitos termos que ainda não           HUGO FRANÇA – O mais interessante é que meu trabalho foi
    são bem compreendidos e mal aplicados. Até mesmo a palavra         reconhecido primeiramente fora do Brasil. Em meados dos
    reflorestamento está desgastada. O que a indústria de celulose     anos 90, participei do concurso “Brasil Faz Design”. Em função
    faz, como replantar madeira de pínus e eucalipto, não tem nada     disso, minhas obras foram para Milão e outras cidades da Eu-
    a ver com reflorestamento.                                         ropa. Isso me deu uma grande visibilidade lá fora. Logo depois,
                                                                       os Estados Unidos também passaram a se interessar pelo meu
    DM – Há inclusive o termo “deserto verde” para definir as          trabalho. Aí comecei a aparecer no Brasil. Mas esse início me
    áreas ocupadas por essa indústria...                               deixou meio frustrado. As pessoas apenas se interessavam pe-
    HUGO FRANÇA – É isso mesmo. Nem passarinho gosta desses            la estética do trabalho, de maneira muito superficial. Só de-
    lugares... Espero que um dia o reflorestamento se torne uma        pois passaram a valorizar o conceito de sustentabilidade, que
    verdade. Por isso, gosto de salientar a importância do pequi co-   é o mais importante para mim.
    mo símbolo de nossa natureza. É algo tão raro, uma relíquia, e
    o homem está acabando com tudo. Ela é uma das mais de              DM – Você tem preferência por determinadas peças?
                                                                                                                                           “As peças das quais mais gosto são aquelas que menos sofreram minha interferência”
    3.000 espécies de árvore presentes nas florestas tropicais.        HUGO FRANÇA – Acabei vendendo muita coisa de que gostava.
                                                                       Levei cada bronca da minha mulher por causa disso... [risos].
    DM – Que outras madeiras estão presentes em seu trabalho?          Mas as peças das quais mais gosto são aquelas que menos so-
    Quais as características que você mais aprecia em cada uma?        freram minha interferência. São aquelas que têm a forma mais
    HUGO FRANÇA – Baraúna, pau-d’arco, jaqueira, aderno e tata-        próxima de seu estado original, as mais orgânicas. Essas são a
    juba, entre outras. Cor, textura, dureza, peso e resistência são   maior expressão daquilo em que mais acredito: a força da pró-
    características básicas dessas madeiras que, combinadas, re-       pria natureza.
    sultam na melhor opção para cada finalidade – aliada à esté-
    tica que cada olhar busca.                                         DM – Quais são seus próximos projetos?
                                                                       HUGO FRANÇA – Quero viabilizar uma escola de formação de
    DM – Recentemente, uma mesa de centro de sua autoria foi           designers com base na reutilização da madeira e de outros ma-
    arrematada na Sotheby’s por 67.000 libras (cerca de 180 mil        teriais. Acho que isso pode ajudar a clarear essas questões das
    reais). Você ficou surpreso?                                       quais falei, que ainda estão muito mal elaboradas nessa área.
    HUGO FRANÇA – Fiquei muito surpreso, sim. Acredito que o           Acho que será uma forma de contribuir para a construção de
    conceito do trabalho, associado ao resultado estético, são fato-   um pensamento coletivo mais justo e consciente em relação à
    res bastante importantes para esse sucesso internacional.          preservação do meio ambiente. d
                                                                                                                                         BANCOS COMO O KURROON (NO ALTO DA PÁGINA) EVIDENCIAM O CARÁTER ECOLÓGICO DO TRABALHO DO DESIGNER. ACIMA, OBJETOS CRIADOS A PARTIR DE RESÍDUOS DE ÁRVORES

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Uma reverência à natureza

  • 1. 01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA Hugo França se considera um escultor de móveis. A definição se encaixa perfeita- mente no perfil deste “designer-artista” gaúcho que cria móveis a partir de mínimas intervenções na forma original da madeira, sempre originária de árvores mortas. Entre suas matérias-primas preferidas está a madeira do pequizeiro, árvore que fi- gura entre as mais longevas do mundo, com características de resistência que a tor- nam quase totalmente blindada às intempéries e queimadas. O designer descobriu o pequi nas matas da região de Trancoso, no sul da Bahia, onde morou por 15 anos e iniciou sua carreira. Desde então, conhecedores das florestas locais passaram a aju- dá-lo na coleta de raízes, troncos e galhos, transformados depois em móveis, utensí- lios e esculturas de beleza peculiar, cujas formas e texturas valorizam a referência original da própria árvore. Os primeiros cortes são realizados no local onde a árvore é encontrada, estratégia que evita o transporte de material muito pesado. Depois, França faz o desenho da peça, que recebe o acabamento final. Pesadas e fortes, elas são esculpidas direta- mente em troncos semiqueimados, árvores mortas, canoas abandonadas ou raízes gigantes que se tornam objetos exclusivos, nunca repetidos. A beleza das peças criadas por Hugo França exerce uma espécie de magnetismo nas pessoas, como afirmou, certa vez, a crítica de design Adélia Borges: “Elas induzem o olhar, o toque, a proximidade do corpo”. Ainda na visão da crítica, o trabalho do artis- ta vincula-se a uma linhagem cultural brasileira iniciada pelo arquiteto e designer baiano José Zanine Caldas (1919-2001) e pelo artista plástico polonês, naturalizado brasileiro, Frans Krajcberg. Um local interessante para conhecer o trabalho de França é o Instituto Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais. Considerado o “templo” da arte contemporânea, lá estão mais de 40 peças de sua autoria, entre exemplares do início Uma reverência à da carreira, obras de tamanho monumental e projetos produzidos especialmente para o museu. O artista também mantém o Atelier Hugo França, em São Paulo, e é representado em Nova York pela R 20th Century Gallery. NATUREZA Suas esculturas já ganharam o mundo e revelam o poder de transformação da madeira. Uma reverência sagrada à natureza. Com sua obra reconhecida dentro e fora do país, o designer Hugo França transforma resíduos de madeira em verdadeiras obras de arte TEXTO Alessandra Simões RETRATOS Toni Pires
  • 2. 01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA DOCOL MAGAZINE – Você costuma dizer que faz “esculturas vivia isolado em Trancoso, que, na época, era uma aldeia dis- mobiliárias”. De onde vem esse termo? tante de tudo. Comecei a fazer tudo usando apenas a intuição. HUGO FRANÇA – Esse termo foi criado por Ethel Leon [jornalis- Minha cabeça estava vazia, não tinha muitas pretensões. Mi- ta especializada, autora do livro Design: Quem Fez, Quem Faz], nha maior influência foi o olhar para a natureza. que escreveu um texto sobre o meu trabalho no final dos anos 90. Eu me apropriei por achar que definia muito bem o que eu DM – O que motivou sua ida a Trancoso? faço: interferir o mínimo possível nas formas criadas pela na- HUGO FRANÇA – Eu tinha um projeto pessoal de morar à beira tureza, deixando essa estética orgânica e escultural compor o do mar. Queria outro tipo de vida. Me formei em Engenharia foto DIVULGAÇÃO desenho de cada peça. de Produção e estava completamente insatisfeito com minha profissão. Trabalhava em uma grande empresa de computação DM – Há uma linhagem de grandes nomes da cultura brasilei- em São Paulo. Larguei tudo e fui para lá. ra que trabalham nesse território estético, como o designer Jo- A maior característica das peças de França é a interferência mínima na madeira sé Zanine Caldas e o artista plástico Frans Krajcberg. Aliás, o DM – Você já tinha alguma intenção de trabalhar com madei- Krajcberg tem uma casa construída em cima de um pequizeiro ra, de fazer design? secular, com projeto de Zanine, no litoral sul da Bahia. Você HUGO FRANÇA – Não tinha nada definido, mas sempre gostei acha que há algo em comum entre o trabalho deles e o seu? de madeira, desde criança. Quando cheguei à Bahia, fiquei fas- HUGO FRANÇA – Eu costumo me situar entre os dois. Zanine cinado com a cultura local, muito voltada para o trabalho da se tornou um exemplo importantíssimo da consciência ecoló- carpintaria. Naquela época, Trancoso era isolada: não tinha gica aplicada ao design. Já o Frans é um ícone inquestionável. mercado, material de construção, nada... A população fazia tu- Seu trabalho denuncia a destruição da natureza pelo homem do com barro e madeira. Chegamos a comprar vidro automo- e tem uma simbologia fortíssima. Infelizmente, acho que ele tivo em ferro-velho para fazer janela de casa. nunca foi ouvido como deveria. Ele deveria ser considerado um mestre para as próximas gerações. DM – As canoas dos índios pataxós da região, feitas com tron- cos inteiriços, estão entre suas primeiras referências formais? DM – Os críticos vêm comparando seu trabalho ao do francês HUGO FRANÇA – A canoa foi meu ponto de partida, um gran- Alexandre Noll (1890-1970) e ao do americano George Nakashi- de trabalho de pesquisa. Sua forma foi a primeira coisa que me ma, ícones do design, cujas obras em madeira evocam uma lin- chamou a atenção, e foi assim que descobri o pequi, a madei- guagem escultural. Há alguma influência deles em sua criação? ra preferida dos pataxós para fazer a canoa. É minha lembran- HUGO FRANÇA – Acho que nada muito direto. Quando come- ça mais marcante dos primeiros anos em Trancoso, onde eu cei a trabalhar com madeira, eu não tinha muitas referências, mesmo as utilizava para pescar. NO ALTO, A CHAISE LONGUE TUWALOLE, FEITA COM MADEIRA DE PEQUI: MATERIAL PREFERIDO DO ARTISTA. ACIMA, EXEMPLARES DE MÓVEIS E ESCULTURAS CRIADOS POR ELE
  • 3. 01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA DM – Por que você escolheu a madeira do pequizeiro para do desmatamento. Agora, estou utilizando o fim disso tudo e trabalhar em grande parte de seus projetos? quase não há mais madeira nenhuma para reaproveitar. HUGO FRANÇA – Porque percebi que ela tinha característi- cas muito diferentes das outras espécies, e que havia muito DM – Isso pode mudar o rumo de seu trabalho? resíduo dela espalhado pela região da Bahia. Como o pequi HUGO FRANÇA – Estou fazendo pesquisas em outras regiões não pega fogo, acabava sendo a única madeira que sobrava do Norte para continuar a trabalhar com resíduos. Também es- depois das queimadas. Ele pode viver até 1.200 anos, o que é tou com projetos de mexer cada vez mais com resíduos urba- uma raridade na natureza, isso para mim é uma coisa sagra- nos para fazer mobiliário público. As árvores derrubadas nas da. Mas poucas pessoas reconhecem e reverenciam isso. cidades são picotadas e jogadas fora. Já fiz coisas bem interes- santes, como o gigantesco banco da árvore pau-ferro, caída no DM – A formação em engenharia o influenciou em seu tra- Parque Burle Marx, em São Paulo. Há muitas espécies urbanas, balho como designer? basta saber explorar direito suas características. HUGO FRANÇA – Me ajudou muito em termos logísticos, pois o trabalho é complexo – preciso de motosserra, cami- DM – Mesmo assim, você continua produzindo na Bahia? Tem nhões, guindastes. Mas chegou também a prejudicar meu uma equipe que te ajuda? lado criativo. No início, foi um grande exercício. Custou bas- HUGO FRANÇA – Tenho duas oficinas: uma em Louveira, no inte- tante me desvincular da racionalidade. Por outro lado, a en- rior de São Paulo, e outra em Trancoso. Desta oficina na Bahia é genharia também me influenciou a ter esse lado mais utili- que vem todo o resíduo florestal que usamos. Lá são feitas 90% tário. Acredito que eu não seria assim se não tivesse sido das peças. Em cada uma das oficinas tenho uma equipe. engenheiro [risos]. DM – Você chegou a pensar em trabalhar diretamente com a DM – Como estava a questão do desmatamento quando questão do reflorestamento e tentar ajudar a reverter o qua- você chegou ao sul da Bahia? dro desolador do desmatamento no Brasil? HUGO FRANÇA – Naquela região, nos anos 80, os madeireiros HUGO FRANÇA – É quase impossível resolver algo tão comple- estavam a pleno vapor. Vi que alguma coisa estava errada. xo com uma iniciativa pontual. Reflorestar requer investimen- Destruíram praticamente tudo. Hoje, a região está protegida, tos muito altos e uma tecnologia sofisticadíssima. Não adian- não se pode derrubar nada. Como acabaram com tudo por lá, ta plantar árvore só por plantar. É preciso considerar o contex- agora eles passaram a explorar a Amazônia. O pequi quase to da floresta, um ecossistema complexo, com árvores que só não existe mais, é cada vez mais difícil encontrar peças de chegam à idade adulta aos 200 anos. Seriam necessárias ini- grande porte. Eu cheguei a aproveitar muitas árvores inteiras ciativas públicas e privadas de grande porte. Infelizmente, des- que morriam em pé. Elas não aguentavam as consequências conheço que isso venha sendo feito em algum lugar. HUGO FRANÇA COM A MESA MAKIDA E A CHAISE LONGUE JUÍNA EM SEU ATELIÊ, NA CAPITAL PAULISTA: PROJETOS CRIATIVOS E QUE VALORIZAM AS FORMAS ORGÂNICAS
  • 4. 01 ENTREVISTA HUGO FRANÇA DM – As pessoas ainda têm uma ideia muito superficial do DM – E como seu trabalho começou a aparecer no mercado que é sustentabilidade... internacional? HUGO FRANÇA – Exatamente. Há muitos termos que ainda não HUGO FRANÇA – O mais interessante é que meu trabalho foi são bem compreendidos e mal aplicados. Até mesmo a palavra reconhecido primeiramente fora do Brasil. Em meados dos reflorestamento está desgastada. O que a indústria de celulose anos 90, participei do concurso “Brasil Faz Design”. Em função faz, como replantar madeira de pínus e eucalipto, não tem nada disso, minhas obras foram para Milão e outras cidades da Eu- a ver com reflorestamento. ropa. Isso me deu uma grande visibilidade lá fora. Logo depois, os Estados Unidos também passaram a se interessar pelo meu DM – Há inclusive o termo “deserto verde” para definir as trabalho. Aí comecei a aparecer no Brasil. Mas esse início me áreas ocupadas por essa indústria... deixou meio frustrado. As pessoas apenas se interessavam pe- HUGO FRANÇA – É isso mesmo. Nem passarinho gosta desses la estética do trabalho, de maneira muito superficial. Só de- lugares... Espero que um dia o reflorestamento se torne uma pois passaram a valorizar o conceito de sustentabilidade, que verdade. Por isso, gosto de salientar a importância do pequi co- é o mais importante para mim. mo símbolo de nossa natureza. É algo tão raro, uma relíquia, e o homem está acabando com tudo. Ela é uma das mais de DM – Você tem preferência por determinadas peças? “As peças das quais mais gosto são aquelas que menos sofreram minha interferência” 3.000 espécies de árvore presentes nas florestas tropicais. HUGO FRANÇA – Acabei vendendo muita coisa de que gostava. Levei cada bronca da minha mulher por causa disso... [risos]. DM – Que outras madeiras estão presentes em seu trabalho? Mas as peças das quais mais gosto são aquelas que menos so- Quais as características que você mais aprecia em cada uma? freram minha interferência. São aquelas que têm a forma mais HUGO FRANÇA – Baraúna, pau-d’arco, jaqueira, aderno e tata- próxima de seu estado original, as mais orgânicas. Essas são a juba, entre outras. Cor, textura, dureza, peso e resistência são maior expressão daquilo em que mais acredito: a força da pró- características básicas dessas madeiras que, combinadas, re- pria natureza. sultam na melhor opção para cada finalidade – aliada à esté- tica que cada olhar busca. DM – Quais são seus próximos projetos? HUGO FRANÇA – Quero viabilizar uma escola de formação de DM – Recentemente, uma mesa de centro de sua autoria foi designers com base na reutilização da madeira e de outros ma- arrematada na Sotheby’s por 67.000 libras (cerca de 180 mil teriais. Acho que isso pode ajudar a clarear essas questões das reais). Você ficou surpreso? quais falei, que ainda estão muito mal elaboradas nessa área. HUGO FRANÇA – Fiquei muito surpreso, sim. Acredito que o Acho que será uma forma de contribuir para a construção de conceito do trabalho, associado ao resultado estético, são fato- um pensamento coletivo mais justo e consciente em relação à res bastante importantes para esse sucesso internacional. preservação do meio ambiente. d BANCOS COMO O KURROON (NO ALTO DA PÁGINA) EVIDENCIAM O CARÁTER ECOLÓGICO DO TRABALHO DO DESIGNER. ACIMA, OBJETOS CRIADOS A PARTIR DE RESÍDUOS DE ÁRVORES