Este documento discute a atuação da Administração Tributária sob a égide do Direito Privado e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, e a utilização da tutela penal na cobrança do crédito tributário. Aborda a legitimidade da sobreposição do interesse público sobre o particular e a ausência de isonomia quando uma entidade federativa figura no polo ativo de uma obrigação. Analisa a natureza jurídica das obrigações civil e tributária e as sanções aplicáveis ao inadimplemento tributário. Discute o
ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
1. 0
FACULDADE MINAS GERAIS
PATRÍCIA HELEN DIAS DE PAULA
ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO
ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Belo Horizonte
2013
2. 1
Patrícia Helen Dias de Paula
ENTRE O DIREITO PENAL E O DIREITO
ADMINISTRATIVO SANCIONADOR
Monografia elaborada pela bacharelanda
Patrícia Helen Dias de Paula, sob a orientação
do Prof. Gustavo Henrique de Almeida,
apresentada à Faculdade Minas Gerais –
FAMIG, como requisito para obtenção de
diploma de conclusão do curso de Bacharel em
Direito, média semestral da disciplina
Monografia.
Belo Horizonte
2013
3. 2
Meus agradecimentos a todos os Professores do curso de Direito pela
bagagem didática, pela troca de ideias e demais conhecimentos
transmitidos, sem os quais seria impossível alcançar êxito nas
pesquisas realizadas e, sobretudo, por viabilizarem a transformação
intelectual e o crescimento pessoal de cada um de nós, graduandos.
Certamente, uma conquista para toda a vida!
4. 3
“A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original.”
- Albert Einstein
5. 4
RESUMO
Pela presente monografia analisa-se alguns aspectos da obrigação tributária enquanto dívida e,
também, aborda-se os subsídios legais que permitem à Administração Tributária atuar de
forma legítima na cobrança da dívida fiscal, ainda que vilipendiando princípios fundamentais
inafastáveis no Estado Democrático de Direito. No tocante aos crimes de natureza tributária, é
discutido o tratamento dispensado às condutas definidas como ilícitos, bem como a antinomia
existente no ordenamento pátrio quanto à ilegalidade e à inconstitucionalidade da prisão por
dívida. Para tanto, é lançada uma visão panorâmica – doutrinária e jurisprudencial – acerca da
natureza jurídica da obrigação e do princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular, e uma visão aprofundada sobre a questão da banalização do direito penal como
meio de coerção, o que relativiza o seu caráter fragmentário, de ultima ratio e, num ângulo
específico, viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, além de violar a própria
Constituição da República.
Palavras Chave: Dívida tributária – Crimes tributários – Prisão por dívida – Direito Penal –
Ultima ratio.
6. 5
ABSTRACT
On this monograph are analyzed some aspects about duty to pay taxes and tax debts. There is
a discussion about the law allowing tax debt collection, even violating the fundamental
guarantees of the Democratic State of Law. Besides, is proposed a debate on tax crimes, on
nature of the offense, as well as the contradiction in relation to illegality and
unconstitutionality of the rules about those subjects. As soon, is introduced a panoramic view
– analyzing the doctrine and decisions of courts of justice – considering the legal nature of
those obligations and the principle of the supremacy of the public interest over private
interest, even a thorough insight on the issue of trivialization of criminal law as a means of
coercion, what relativizes its fragmentary character, including violation against the American
Convention on Human Rights.
Keywords: Debt tax - Tax Crimes - Imprisonment for Debt - Criminal Law - Ultima ratio.
7. 6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................07
1. O ESTADO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO .............................................08
2. NATUREZA JURÍDICA DAS OBRIGAÇÕES E A OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ...14
3. A EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A (INCONSTITUCIONAL)
LEI DE EXECUÇÃO FISCAL .............................................................................................19
4. TUTELA PENAL TRIBUTÁRIA E O PACTO DE SAN JOSE DA COSTA RICA ....23
4.1. As normas jurídico-penais tributárias e a questão da ilegitimidade da proteção do
bem jurídico abstrato ...................................................................................................31
5. A ADOÇÃO DE MEIOS ALTERNATIVOS NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO
ÂMBITO TRIBUTÁRIO ......................................................................................................34
CONCLUSÃO ........................................................................................................................37
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................40
8. 7
INTRODUÇÃO
Discutir a atuação da Administração Tributária, realizada sob a égide do Direito
Privado e do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, e a utilização da
tutela penal na cobrança do crédito tributário somam o ponto de partida central deste trabalho.
Tendo como paradigma a Constituição Federal, pretende-se lançar uma visão panorâmica sob
uma perspectiva diferente no tocante à atuação da Administração Tributária, correlacionada
aos princípios constitucionais, especialmente o do devido processo legal constitucional no
âmbito fiscal.
Nesse diapasão, será abordada no primeiro capítulo a questão da legitimidade da
sobreposição do princípio do interesse público sobre o interesse particular, bem como a
questão da (ausência de) isonomia quando alguma entidade federativa figura no polo ativo de
uma obrigação, especificamente a obrigação tributária.
Tomando essas considerações como ponto de partida, serão analisadas no segundo
capítulo a natureza jurídica das obrigações civil e tributária, e as sanções aplicáveis quando do
inadimplemento tributário.
Conseguintemente, será trazida à baila, no capítulo terceiro, uma abordagem
concernente ao processo de execução fiscal, que se difere do processo de execução no âmbito
cível, tendo como chancela peculiaridades questionáveis.
Discutir-se-á no capítulo quarto a questão do ilícito, seja o ilícito administrativo,
tributário ou penal, a legalidade e a constitucionalidade dos institutos sancionatórios, bem
como a possibilidade de incidência do Pacto de San Jose da Costa Rica no tocante à dívida
tributária como tal, a partir de uma análise jurisprudencial.
Por fim, no quinto e último capítulo serão expostas possíveis alternativas, senão
propostas, sugeridas por estudiosos da matéria, na busca de um real devido processo legal na
seara fiscal, no qual seja adotado o meio mais justo e menos gravoso para o contribuinte
inadimplente com o Fisco.
Nesse cenário, faz-se mister discutir a regularidade, a legalidade e a
constitucionalidade de todo esse processo, sobretudo administrativo.
9. 8
1. O ESTADO CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEO
O Estado Constitucional contemporâneo exsurgiu com um novo propósito. O
interesse público como elemento central de atuação, a função social em ampla perspectiva e a
submissão aos princípios indisponíveis e vinculantes por todos os poderes do Estado
caracterizou verdadeira transformação de valores, ainda que, inicialmente, de maneira
abstrata.
Nos dizeres de BANDEIRA DE MELLO (2001, p. 59):
[...] o interesse público deve ser conceituado como o interesse resultante do
conjunto dos interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando
considerados em sua qualidade de membros da Sociedade e pelo simples fato
de o serem.
Nesse sentido, é perceptível que além de destinatário das normas, o indivíduo
passa a ser considerado efetivamente membro do organismo estatal.
Contudo, com o surgimento de uma ordem jurídica, a partir da instauração do
soberano Estado Constitucional, a preocupação acerca do controle do exercício do poder
estatal, que funciona ora vinculada, ora discricionariamente, não decresceu.
Compulsando toda forma de regulação da conduta humana existente e aplicável
no Brasil, perceptível é que, independentemente da existência de disposições legais, sempre
existirá a sujeição a um poder [político] paralelo e subversivo, além de temerário, no
momento da busca pela retidão quando da aplicação compulsória do Direito, seja na
precedência ou na superveniência de sua violação. A ocorrência dessa sujeição desvirtua a
essência de um Estado que reserva à justiça um valor singular, supremo, valor este estampado
no preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Nesse sentido, DALLARI (2000, p. 128) expõe o seguinte:
A respeito do relacionamento do Estado com o direito muito já se disse no
estudo dos problemas da soberania e do poder. Como se tem procurado
evidenciar, inclusive com o objetivo de assegurar o respeito aos valores
fundamentais da pessoa humana, o Estado deve procurar o máximo de
juridicidade. Assim é que se acentua o caráter de ordem jurídica, na qual
estão sintetizados os elementos componentes do Estado. Além disso, ganham
as ideias de personalidade jurídica do Estado e da existência, nele, de um
poder jurídico, tudo isso procurando reduzir a margem de arbítrio e
discricionariedade e assegurar a existência de limites jurídicos à ação do
Estado. Mas, não obstante à aspiração ao máximo possível de juridicidade,
há o reconhecimento de que não se pode pretender reduzir o Estado a uma
10. 9
ordem normativa, existindo no direito exclusivamente para fins jurídicos.
[grifos acrescidos ao original]
Leciona MEIRELLES (2010, p. 38) que:
[...] o Direito é dividido, inicialmente, em dois grandes ramos: Direito
Público e Direito Privado, consoante a sua destinação; [...] o Direito Privado
tutela predominantemente os interesses individuais, de modo a assegurar a
coexistência das pessoas em sociedade e a fruição de seus bens, quer nas
relações de indivíduo a indivíduo, quer nas relações com o Estado.
Assim, o Direito Público tutela as questões de interesse público e nele se revela o
Direito Administrativo, que na lição do autor “sintetiza-se no conjunto harmônico de
princípios jurídicos que regem os órgãos, os agentes e as atividades públicas tendentes a
realizar concreta, direta e indiretamente os fins desejados pelo Estado” (2010, p. 40).
Justamente com o intuito de direcionar e contornar a atuação estatal, estabeleceu a
constituição os princípios norteadores da Administração Pública, que impõem ao agente
público a observância aos deveres de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência, dentre outros, quando da execução de qualquer ato administrativo. Principalmente
porque a mencionada divisão entre o Direito Público e o Privado funciona tão somente como
uma sistematização com vistas a facilitar a compreensão dos institutos, pois,
incontestavelmente, um instituto está atrelado ao outro, considerada a necessária coexistência
de normas, conjugadas entre si. Assim, a preponderância de umas sobre outras dependerá de
fatores diversos, como aponta MEIRELLES (2010, p. 42):
Com o Direito Tributário e com o Financeiro são sensíveis as relações do
Direito Administrativo, dado que as atividades vinculadas à imposição e
arrecadação de tributos, à realização da receita e efetivação das despesas
públicas, são eminentemente administrativas. Com o Direito Penal a
intimidade do Direito Administrativo persiste sob muitos aspectos, a
despeito de atuarem em campos bem diferentes. Certo é que o ilícito
administrativo não se confunde com o ilícito penal, assentado cada qual em
fundamentos e normas diversas. Mas não é menos verdade que a própria Lei
Penal, em muitos, tais como nos crimes contra a Administração Pública (CP,
arts. 312 a327), subordina a definição do delito à conceituação de atos e
fatos administrativos. Noutros casos, chega, mesmo, a relegar à
Administração prerrogativas do Direito Penal, como ocorre na
caraterização de infrações dependentes das chamadas normas penais em
branco. [grifos acrescidos ao original]
Nesse sentido, Gregório Assagra de Almeida expõe o seguinte:
11. 10
[...] a summa divisio clássica Direito Público e Direito Privado fundamenta-
se em uma visão equivocada em torno de Direito, pois pressupõe
incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois pressupõe uma
situação de desigualdade entre o Poder Público e os particulares. De um
lado, estaria o Poder Público, revestido de imperium e de outro, os
particulares, que ocupariam uma posição inferior e subordinada. Essa divisão
é própria de um Estado de espírito autoritário, incompatível com as
conquistas e as transformações implantadas no Brasil com a Magna Carta
Constitucional de 1988.
[...]
Normas dos denominados “Direito Público” e “Direito Privado” estão na
Constituição. A inserção do Direito Constitucional no Direito Público, nos
termos da summa divisio clássica, contamina o Direito Constitucional,
resultado da raiz ideológica de espírito autoritário que, por séculos, tem
gerado desequilíbrio entre as relações jurídicas.
[...]
Há quem afirme ser a summa divisio Direito Público e Direito Privado uma
mera classificação para fins didáticos. Este tipo de abordagem em relação ao
tema é conseqüência de um paradigma com fundamentação, no mínimo,
ingênua. Por detrás dessa dicotomia clássica se oculta uma visão distorcida
do próprio Direito e do papel do Estado em um sistema jurídico democrático.
(2008, p. 6-7).
Ainda, o autor alerta sobre a atuação autoritária do Estado e o controverso
princípio da supremacia do interesse púbico sobre o particular:
Muitos privilégios do Poder Público resultam de uma visão autoritária e
distorcida do Estado e do seu papel na sociedade. A própria atuação
descomprometida de determinados administradores, que banalizam muitos
direitos fundamentais, individuais e coletivos, tem amparo em um direito
público elaborado com base em parâmetros inconciliáveis com o paradigma
do Estado Democrático de Direito. Supremacia do interesse público sobre o
particular, insindicabilidade do mérito dos denominados “atos
administrativos discricionários”, presunção de legitimidade dos atos
administrativos, entre outras diretrizes que regem a atuação do Poder
Público, precisam ser revisitados à luz da nova summa divisio
constitucionalizada. (ALMEIDA, 2008, p.362)
A partir das considerações feitas sobre a indispensabilidade do respeito aos
valores fundamentais constitucionais e da exigibilidade de juridicidade, extrai-se a concepção
basilar do princípio do devido processo legal e de sua importância, seja no âmbito
administrativo ou judicial.
Nesse ponto, desafortunadamente, muitos dos instrumentos legitimados que
subsidiam a busca pelo Estado do adimplemento da obrigação tributária desconsideram a
principal face do sujeito ativo, doravante contribuinte: a sua dignidade. Utilizar o Estado da
tutela penal, que deveria sempre ser submetida ao princípio da intervenção mínima, como
12. 11
meio coercitivo para arrecadação da receita derivada, ou seja, os tributos, pode revelar
verdadeiro vilipêndio às garantias constitucionais que outrora instituiu com o novo modelo de
Estado.
Ensina DALLARI (2000, p. 128-131) que:
[...] a eficácia dos meios é considerada, mas juntamente com a
preocupação de legitimidade e legalidade; [...] a principal característica do
poder político é a eficácia e, por isso, aqueles que o detêm procuram obter,
de qualquer forma, a aceitação de seus comandos, recorrendo mesmo à
violência, se preciso for, para obtenção da obediência. Daí a pretensão de
criar limites jurídicos ou de fazer com que o próprio povo exerça o poder
político, para redução dos riscos. [...] o Estado e o povo estão
permanentemente implicados num processo de decisões políticas. Estas,
quando possível, devem ser enquadradas num sistema jurídico,
suficientemente eficaz para conservação de uma ordem orientada para
determinados fins, mas necessariamente flexível, para permitir o
aparecimento e a integração de novos meios e para assegurar a
reformulação da concepção dos objetivos fundamentais, quando isto for
exigido pela alteração substancial das condições de vida social. [grifos
acrescidos ao original]
Alerta HABERMAS (apud MOREIRA, 2001, p. 343) que:
[...] não se pode supor que a fé na legalidade de um procedimento
legitime-se por si mesma, pois a correção processual das etapas de
formulação do Direito apontam para a base de validade do Direito, [...] a
questão para Habermas é saber como, a partir de uma concepção positivista,
legitima-se uma dominação legal. Partindo do pressuposto de que toda
dominação legal tem de colocar o problema da legitimidade dessa
dominação, a pergunta levantada é: Como se legitima uma dominação legal,
uma vez que a dominação legal baseia-se em puro arbítrio, ou seja,
baseia-se na decisão não justificada de quaisquer das pretensões de validade?
[grifos acrescidos ao original]
OLIVEIRA e CAMPOS (1995, p. 18-19), sobre a moralidade administrativa,
lecionam que:
Na verdade, em todos os casos, os atos fogem à ideia do serviço público,
pois este tem como finalidade maior o bem comum e o bem comum exige a
moralidade dos meios, ou a adequação da finalidade particular à
finalidade maior. [...] a moralidade administrativa é espécie do gênero
moral. Ramo da árvore, segue as características que esta apresenta,
impondo, à administração, na preceituação romana, os deveres de
honestidade, de não lesividade de seus atos e de reconhecer a cada um o
que lhe é devido [...]. Dentro desses deveres, a honestidade no trato da
administração fiscal com o contribuinte se impõe [...]. [grifos acrescidos ao
original]
13. 12
Conforme exposto, a noção de Estado enquanto entidade personalizada e,
concomitantemente, representante do corpo social, não deve ser esquecida.
A partir daí, passa-se a questionar o contencioso administrativo e a penhora
administrativa previstos na Lei de Execução Fiscal, a criação de título executivo do tributo
inadimplido pela simples inscrição em Dívida Ativa, além da sonegação de tributos que,
enquanto dívida, passam neste molde a ser tratada como ilícito penal, ao passo que nas
relações privadas, a sonegação de patrimônio para o não pagamento de dívidas é definido
como fraude contra credor.
O exercício do Dever-poder da Administração Pública que, por meio de atos
unilaterais, revestidos de imperatividade, exigibilidade, legalidade, presunção de veracidade
(ainda que relativa) e auto-executoriedade em muitos casos resulta em abuso de poder. Ainda
que possa ser judicialmente corrigida, preventiva ou repressivamente, a indevida utilização de
quaisquer destas prerrogativas, pode trazer graves prejuízos, muitas vezes irreparáveis.
Nessa toada, OLIVEIRA e CAMPOS (1995, p. 18), defendem que:
[...] tributação deve ser justa e que a injustiça da tributação historicamente
apresenta-se como sintoma de tirania ou corrupção, levando inclusive à
revolta, como atestam a Magna Carta [...] e a inconfidência mineira (que
teve como estopim a derrama).
Nítido é que não é tarefa fácil tratar do tema da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado, tendo em vista sua complexidade. Isso porque a questão que
permeia os meios aplicados pelo Estado na realização dos seus interesses, ditos públicos,
revelam uma outra face, como esclarece BOBBIO (1909, p. 25):
Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas
jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e
quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são
direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo
mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados. [grifos acrescidos ao
original]
Verifica-se, conforme o pensamento do autor, que "a liberdade e a igualdade dos
homens não são um dado de fato, mas um ideal a perseguir; não são uma existência, mas um
valor; não são um ser, mas um dever ser" (BOBBIO, 1909, p. 29).
Visando esclarecer aspectos relevantes do tema proposto para discussão, serão
apresentadas no capítulo seguinte, numa análise panorâmica, a natureza jurídica da obrigação
14. 13
tributária e as peculiaridades em relação à obrigação civil, sua compulsoriedade, bem como
alguns dos efeitos jurídicos quando do seu inadimplemento.
15. 14
2. NATUREZA JURÍDICA DAS OBRIGAÇÕES E A OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
Originariamente, as relações jurídicas surgidas entre os sujeitos de uma
determinada obrigação decorrem do objeto de um contrato, baseado num acordo de vontades,
estabelecendo vínculo jurídico entre as partes. Geralmente, tal objeto se traduz num fato
jurídico, criando, modificando ou extinguindo direitos e deveres, sedimentando a obrigação
civil.
Conforme o atual Código Civil, VENOSA (2010, p. 2) conceitua obrigação da
seguinte forma:
A obrigação [...] consiste numa relação jurídica. A todo instante em nossa
vida, por mais simples que seja a atividade do indivíduo, compramos ou
vendemos, alugamos ou emprestamos, doamos ou recebemos doação. Existe,
portanto, um estímulo, gerado por um valor, para que seja por nós
contraída uma obrigação. Há um impulso que faz com que nos
comprometamos a fazer algo em prol de alguém, recebendo, na maioria das
vezes, algo em troca. [grifos acrescidos ao original]
Ainda, acrescenta que “mais sinteticamente, podemos conceituar obrigação como
uma relação jurídica transitória de cunho pecuniário, unindo duas (ou mais) pessoas, devendo
uma (o devedor) realizar uma prestação à outra (o credor)” (2010, p. 5).
Nesses termos, verifica-se como elemento da obrigação originadora da relação
jurídica a existência de um estímulo que vem gerar o compromisso de uma parte para com a
outra no adimplemento da obrigação, revelando o seu caráter transitório.
Contudo, em razão da soberania exercida pelo Estado, a relação jurídica
estabelecida entre este, por meio da atribuição de funções aos entes federativos, enquanto
pessoas jurídicas de Direito Público interno (art. 41, Código Civil), e o contribuinte enquanto
pessoa física, no seio da obrigação tributária, recebe outra conotação, qual seja, relação
jurídico-tributária. Isso porque, nesta espécie de relação, especificamente, incide a hierarquia
de um sobre o outro, revelando uma relação de subordinação do polo passivo ao polo ativo.
Diferentemente do que ocorre nas relações jurídicas estabelecidas sobre o prisma
do Direito Privado, nas quais a igualdade no exercício de direitos e deveres são um imperativo
legal, as relações jurídico-tributárias a negam, em razão do objeto das obrigações que dão
origem à relação, sobre o qual, via de regra, recaem o direito do sujeito ativo, e o dever do
sujeito passivo, não havendo o que falar sobre estímulo para geração de um compromisso,
mas sim em fatos geradores da obrigação objeto das relações jurídico-tributárias.
16. 15
Essa peculiaridade reservada ao sujeito ativo, pessoa jurídica de Direito Público,
na constituição e exigibilidade da obrigação tributária, revela o poder de império do qual se
reveste o Estado com a generalista justificativa da finalidade primordial de promover e
resguardar a realização da supremacia do interesse público, por meio da incessante busca pela
arrecadação de receitas, tendo em vista o caráter instrumental do tributo.
Sobre a obrigação tributária o mesmo autor aduz que (2010, p. 5):
“[...] o indivíduo, inserido no ordenamento do Estado, tem obrigações para
com ele. O Estado, para a consecução de seus fins, impõe que determinados
fatos originem obrigação de solver tributos, possibilitando meios financeiros
à Administração. A obrigação tributária decorre do poder impositivo do
Estado, embora subjacentemente sempre haja uma atividade inicial do
contribuinte, direta ou indireta, que a impulsiona.” [grifos acrescidos ao
original]
No tocante ao tributo, objeto da obrigação tributária, traz-se a lume o conceito
infraconstitucional do termo, estampado no artigo 3° da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de
1966, o Código Tributário Nacional, que estabelece que “tributo é toda prestação pecuniária
compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato
ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.
No entanto, não raros os momentos, as relações jurídicas relativas às obrigações
tributárias são alvo de discussões que questionam e criticam algumas especifidades no tocante
à sua compulsoriedade.
O gênero tributo subdivide-se em espécies tributárias, com contornos próprios.
Conforme registra o Código Tributário Nacional, os tributos subdividem-se em impostos,
taxas, contribuições de melhoria (tributos de competência comum entre as entidades
federativas), contribuições especiais, e empréstimos compulsórios (tributos de competência
exclusiva da União).
Com previsão legal (art. 81, CTN) e constitucional (art. 145, inciso III, CRFB/88),
a contribuição de melhoria é uma espécie de tributo “instituída cuja obrigação decorre da
valorização de imóveis decorrente de obra pública”.
Em relação à taxa, esta é uma espécie de tributo cobrado “em razão do exercício
do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e
divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição” (art. 145, inciso II, CRFB/88;
art. 77, CTN).
No tocante às contribuições especiais, espécie de tributo de competência
exclusiva da União, estas consistem na cobrança de contribuições sociais (destinadas ao
17. 16
custeio da seguridade social), de contribuições com o fim de intervir no domínio econômico
(revela a função extrafiscal do tributo) e de contribuições de interesse das categorias
profissionais ou econômicas, como instrumento de viabilização da atuação destas nas
respectivas áreas.
De competência da União, o empréstimo compulsório, previsto no artigo 148 da
CRFB/88 (e no art. 15, do CTN) é uma espécie de tributo que pode ser instituído para “fazer
frente a situações excepcionais constitucionalmente previstas”, tais como despesas
extraordinárias em razão de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência ou, ainda,
diante da necessidade urgente e relevante de investimento público com o fim de atender a
interesse nacional.
Já o imposto, ao contrário das espécies citadas, é um tributo que, apesar da
previsão, não possui uma definição constitucional, mas, apenas, infraconstitucional. No seu
art. 16, o Código Tributário Nacional conceitua imposto como sendo um “(...) tributo cuja
obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal
específica, relativa ao contribuinte” (art. 16). Ou seja, é a única espécie tributária não-
vinculada a uma prestação estatal, tendo por base tão-somente, um “fato gerador” que
“justifique” e obrigue ao pagamento do tributo.
Oriundo do Brasil Colônia, o imposto consistia numa forma de obtenção de lucro
pela Coroa Portuguesa, que por longos anos explorou as riquezas brasileiras, por meio do
quinto, que consistia na arrecadação de 1/5, ou seja, 20% de todo o ouro que era extraído,
naquela época, no Brasil. Havia, ainda, a derrama, um outro imposto cobrado para fazer frente
aos débitos que os mineradores acumulavam junto à Coroa Portuguesa pelo atraso ou não
pagamento do quinto (CALDEIRA, 2010).
Conforme relatos históricos (CALDEIRA, 2010):
[...] já na metade do séc. XVIII, com a dificuldade enfrentada pela capitania
das Minas Gerais para pagar os tributos (devido à decadência da produção de
minérios), o governo português reagiu violentamente, obrigando parte da
população a entregar seus bens como pagamento das dívidas [...].
Previsivelmente, a medida gerou grande revolta, culminando, em 1789, na
Inconfidência Mineira, movimento este que visou à independência mineira em relação à
dominação portuguesa.
Perceptível é que, diferentemente da obrigação civil, definida em si como uma
“projeção da autonomia privada no Direito” (VENOSA, 2010, p. 8), a obrigação tributária
18. 17
tem origem diversa. Expõe HARADA (2001, p. 353) que “[...] a obrigação tributária tem suas
peculiaridades que lhe asseguram a autonomia. Tem como causa, invariavelmente, a lei e não
a convergência de vontades, essencial na obrigação de natureza civil. A obrigação tributária é
sempre ex lege.”
Nesse sentido, o jurista complementa (2001, p. 352):
“[...] pode-se definir a obrigação tributária como uma relação jurídica que
decorre da lei descritiva do fato pela qual o sujeito ativo (União, Estados, DF
ou Município) impõe ao sujeito passivo (contribuinte ou responsável
tributário) uma prestação consistente em pagamento de tributo ou penalidade
pecuniária (art. 113, § 1°, do CTN), ou prática ou abstenção de ato no
interesse da arrecadação ou da fiscalização tributária (art. 113, § 2°, do
CTN).” [grifos acrescidos ao original]
Nas lições de AMARO (2010, p. 271-272):
[...] a obrigação, no direito tributário, não possui conceituação diferente
da que lhe é conferida no direito obrigacional comum. Ela se
particulariza, no campo dos tributos, pelo seu objeto, que será sempre
uma prestação de natureza tributária, portanto um dar, fazer ou não fazer de
conteúdo pertinente a tributo. O objeto da obrigação tributária pode ser: dar
uma soma pecuniária ao sujeito ativo, fazer algo (por exemplo, emitir nota
fiscal, apresentar declaração de rendimentos) ou não fazer (por exemplo, não
embaraçar a fiscalização). É pelo objeto que a obrigação tributária revela sua
natureza tributária. [...] O nascimento da obrigação tributária independe
de manifestação de vontade do sujeito passivo dirigida à sua criação. [...]
o vínculo obrigacional tributário abstrai a vontade e até o conhecimento
do obrigado: ainda que o devedor ignore ter nascido a obrigação tributária,
esta o vincula e o submete ao cumprimento da prestação que corresponda
ao seu objeto. [grifos acrescidos ao original]
Numa primeira análise, abstrai-se que, ao passo que a unilateralidade na
obrigação tributária subsidia-se na supremacia do interesse público sobre o privado, a
liberdade de contratar na obrigação civil respalda-se na autonomia da vontade das partes e
limita-se pela função social do contrato.
No entanto, como meio de justificar a dissonância quanto à natureza, ao objeto, e
ao modo singular de exigibilidade da obrigação tributária em relação à obrigação civil,
considerou-se o pagamento de tributos como um dever fundamental do contribuinte, como
principal suporte financeiro do Estado quando da arrecadação de recursos estabelecendo-se aí,
sua compulsoriedade.
Da análise das espécies tributárias, é evidente que o imposto não possui raízes
nada constitucionais e, por esse motivo, continua sendo objeto de discussão, sobretudo em
19. 18
virtude da origem espúria, ilegítima, na época do Brasil Colônia.
Mesmo submetida aos ditames constitucionais e, especialmente, às limitações ao
poder de tributar, a atual forma de instituição e exigência dos impostos, sejam eles incidentes
sobre a renda e o lucro, sobre a propriedade ou produção, divide opiniões.
Isso se torna nítido quando ocorre o inadimplemento da obrigação tributária,
quando as consequências jurídicas às quais o contribuinte pode ser submetido transparece
uma face nada constitucional. O tributo enquanto dívida passa a ser considerado um ilícito.
Administrativo, tributário e, também, penal, cogitando inclusive a privação da liberdade do
sujeito passivo da relação jurídico-tributário.
Nessa perspectiva, passo a analisar no próximo capítulo a exigibilidade e as
formas de extinção do crédito tributário para depois trazer à baila, numa visão doutrinária e
jurisprudencial, o tributo, especificamente o imposto, enquanto dívida insuscetível de sanção
penal como objeto de atividade administrativa.
20. 19
3. A EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO E A (INCONSTITUCIONAL)
LEI DE EXECUÇÃO FISCAL
Conforme define o Código Tributário Nacional “o crédito tributário decorre da
obrigação principal e tem a mesma natureza desta”, ou seja, é a obrigação tributária
pecuniária enquanto crédito da Fazenda Pública (art. 139).
Contudo, diferentemente da obrigação tributária, que surge com a ocorrência do
fato gerador, o crédito tributário constitui-se somente a partir de um procedimento
administrativo, o lançamento.
Nas lições de MACHADO (2009, p. 172) o crédito tributário recebe o seguinte
conceito:
[...] vínculo jurídico, de natureza obrigacional, por força do qual o Estado
(sujeito ativo) pode exigir do particular, o contribuinte ou responsável
(sujeito passivo), o pagamento do tributo ou da penalidade pecuniária (objeto
da relação obrigacional).
De competência privativa da autoridade administrativa específica, o lançamento
consiste num “[...] procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato
gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do
tributo devido, identificar o sujeito passivo e, sendo caso, propor a aplicação da penalidade
cabível”, redação esta do art. 142 do CTN.
O lançamento do crédito tributário pode ocorrer de três maneiras: de ofício, por
declaração, ou por homologação. Na primeira modalidade, o lançamento é realizado por
iniciativa da autoridade administrativa, independentemente da manifestação do sujeito
passivo. Já na segunda modalidade, o lançamento é baseado em colheita de informação
relativa à matéria de fato, sendo previamente exigida do contribuinte. No que concerne ao
lançamento por homologação, esta modalidade de lançamento consiste na apuração pelo
próprio contribuinte do valor do tributo devido, consequente homologação pela autoridade
administrativa e correspondente recolhimento pecuniário (MACHADO, 2009, p. 177).
Quando inadimplida, a obrigação tributária submetida ao lançamento converte-se
em crédito tributário, passando a ter caráter de dívida ativa e, em razão de peculiaridades
asseguradas em lei, pode submeter o sujeito passivo à cobrança judicial numa perspectiva
estranha aos preceitos constitucionais que norteiam o devido processo legal.
21. 20
Em primeira análise, cumpre salientar que a Constituição assegura a garantia
fundamental ao devido processo legal (art. 5º, inciso LIV), pelo qual “ninguém será privado
da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
Contudo, no bojo do processo de cobrança da dívida tributária a incidência desse
direito, desafortunadamente, não é plena, em razão do tão discutido princípio da supremacia
do interesse público sobre o privado.
Isso porque, para a cobrança da dívida ativa, o crédito tributário inadimplido, não
existe processo judicial de conhecimento, mas tão-somente o processo de execução. A lei n°
6.830/80 dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa, o tão temido processo de execução
fiscal, que sob a justificativa da supremacia do interesse público sobre o interesse privado,
permite certas peculiaridades nos procedimentos da execução fiscal, diferenciando-se, e
muito, dos procedimentos na ação de execução prevista na Lei n° 5.869/1973, o Código de
Processo Civil, que é aplicado subsidiariamente à matéria fiscal.
Contrariando dispositivos constitucionais, tais como aqueles que garantem a
isonomia, a ampla defesa, bem como o contraditório, o processo de execução fiscal,
estruturado de forma especialmente simplificada vilipendia a ordem Constitucional.
Possuindo presunção de certeza e liquidez (art. 3°, da Lei n° 6.830/1980, a Lei de
Execução Fiscal), a Certidão de Dívida Ativa por si só já constitui um título executivo
extrajudicial (art. 585, inciso VII, Código de Processo Civil). Integra a petição inicial da
execução, que exige apenas a indicação do juízo, o pedido, e o requerimento de citação do
contribuinte, doravante devedor (art. 6°).
Diferentemente do que ocorre no processo de execução regulado pelo CPC, no
qual o executado deve ser citado pessoalmente (art. 652, § 4°), pois a inobservância da
exigência legal acarreta a nulidade da execução (art. 618, inciso II), no processo de execução
fiscal o então devedor é citado simplesmente por correio postal (art. 8°, I/LEF).
Da citação, que é considerada no ato do recebimento da carta pelo devedor, é
lançado o prazo de 5 (cinco) dias para que a dívida fiscal seja paga, incluídos aí juros e multa
de mora, sob o risco de penhora (art. 8°, caput, LEF ).
Como se vê, a possibilidade de apresentar algum tipo de defesa é limitada, seja em
relação à matéria de fato ou de direito: para a oposição de embargos, no prazo de 30 (trinta)
dias, o executado deve necessariamente garantir a execução, sob pena de inadmissão (art. 16,
§ 1°, LEF).
Contudo, por via da exceção, o executado pode interromper o procedimento
executório.
22. 21
É que, existindo matéria de ordem pública a ser arguida, alegação de pagamento,
ilegitimidade da parte, nulidade do título executivo, dentre outras possíveis, a exceção de pré-
executividade, um meio de defesa incidental sem nítida previsão legal, mas embasada na
Constituição Federal, pode revelar um instrumento eficaz de interrupção, suspensão ou até
mesmo extinção do processo de execução fiscal.
Por outro lado, inexistindo alegação de exceção, o executado pode de imediato
sofrer a penhora de seus bens, exceto aqueles bens considerados absolutamente
impenhoráveis, nos termos da Lei n° 8.009/1990.
Ainda, nos termos do artigo 185-A da Lei de Execução Fiscal, não sendo
encontrados bens suscetíveis de penhora, “[...] o juiz determinará a indisponibilidade de seus
bens e direitos, comunicando a decisão, preferencialmente por meio eletrônico, aos órgãos e
entidades que promovem registros de transferência de bens [...]”.
Indo além das incongruências preteritamente apontadas, é importante também
observar a questão dos prazos prescricionais reservados à Fazenda Pública e ao contribuinte
inadimplente, doravante executado.
Decorrido o prazo prescricional quando do arquivamento dos autos do processo
de execução fiscal, não pode o juiz decretá-la de ofício, sem antes ouvir a Fazenda Pública
(art. 40, § 4º, LEF), podendo só assim decretar eventual prescrição intercorrente.
Na hipótese de realização de pagamento indevido de tributo, o contribuinte deve
observar o prazo prescricional de 5 (cinco) anos, para exigir a restituição dos valores (art. 168,
I, da Lei n° 5.172/1966, o Código tributário Nacional), contados da extinção do crédito
tributário, que pode ocorrer em razão de pagamento; compensação; transação; remissão;
prescrição e decadência, etc., nos termos do art. 156 do referido diploma legal.
No entanto, é assegurado a Fazenda Pública um prazo dilatado para constituir e
outro para exigir o crédito tributário:
Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito
tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o
lançamento poderia ter sido efetuado;
II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver
anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado.
Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se
definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em
que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação,
ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao
lançamento.
23. 22
Art. 174. A ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em
cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva.
[grifos acrescidos ao original]
Ou seja, a Fazenda Pública dispõe de dois prazos prescricionais. Cinco anos para
a constituição do crédito tributário, ou seja, o lançamento; e mais cinco anos para a respectiva
cobrança judicial, totalizando 10 (dez) anos para a prescrição total da dívida.
Uma outra questão merece ser apreciada no tocante ao processo de execução
fiscal: a caracterização da fraude à execução.
No Direito Processual Civil, a fraude à execução caracteriza-se pela alienação ou
oneração de bens ao tempo em que pender demanda judicial atinente a direito real ou que
possa reduzir o devedor à insolvência [art. 593/CPC].
Na lei especial de execução fiscal, inexiste a obrigatoriedade, para configurar a
fraude à execução, de pendência de demanda judicial, ainda que seja a própria ação
executória. A regular inscrição do crédito tributário como dívida ativa torna-se o marco
inicial, nos termos do art. 185, da Lei de Execução Fiscal, para caracterização da fraude:
Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas,
ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública,
por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.(Redação dada
pela LCP nº 118, de 2005)
Além de contrariar o disposto no Código de Processo Civil, essa peculiaridade afronta
também a Súmula 375 do Superior Tribunal de Justiça, que entende ser necessário para o
reconhecimento da fraude à execução o registro da penhora do bem alienado ou a prova de
má-fé do terceiro adquirente.
Nesse cenário, a antinomia evidencia-se, visto que a regular inscrição da dívida ativa
precede a instauração da execução fiscal, que permite a penhora somente quando da
inadimplência judicial da dívida fiscal.
Não bastassem as divergências normativas apontadas, no capítulo a seguir discutir-se-
á a questão da tutela penal na criminalização de condutas como instrumento de coerção na
seara tributária e a ofensa gerada na perspectiva do Estado Constitucional.
24. 23
4. TUTELA PENAL TRIBUTÁRIA E O PACTO DE SAN JOSE DA COSTA RICA
Assentado no princípio da fragmentariedade, o Direito Penal deve subsistir como
ultima ratio na proteção de determinados bens jurídicos que, noutras formas de regulação, não
recebem proteção efetiva, senão eficaz. Nesse contexto, tipificar certas condutas como ilícito
penal somente seria admissível nos casos em que seja o único instrumento de garantia da
ordem social e jurídica.
Não raras as vezes, o ato ilícito é confundido, equivocadamente, com crime;
erroneamente uma conduta culposa ou dolosa pode ser tida como delito.
Preliminarmente, faz-se mister trazer uma breve exposição acerca do que
realmente significa licitude e ilicitude, para que seja possível a compreensão dos pontos que
serão abordados neste capítulo.
Colaciona-se, a seguir, o conceito que o jurista Hugo de Brito Machado atribui ao
vocábulo (2010, p. 487):
[...] prevalece entre os juristas a idéia de que no universo jurídico os
comportamentos podem ser qualificados como lícitos e ilícitos. Os primeiros
são aqueles que estão de acordo, e os últimos aqueles contrários à ordem
jurídica, ao direito objetivo. [...] faz-se um distinção entre a licitude e a
legalidade. O campo da licitude é mais amplo. Abrange todas as situações ,
todos os comportamentos, estejam ou não previstos em lei. Lícito ou ilícito
dizem respeito à ordem jurídica, ao direito objetivo em geral. O campo
da legalidade diz respeito apenas ao que está prescrito nas leis. [grifos
acrescidos ao original]
A Lei n° 10.406/2002, o Código Civil Brasileiro, define ato ilícito nos seguintes
termos (art. 186): “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência,
violar direito, e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.
Dessa forma, tem-se que ilícito não é sinônimo de crime, haja vista a existência de
ilícito civil, ilícito administrativo, ilícito penal e, até mesmo, ilícito tributário. Assim, a
natureza jurídica da sanção é que definirá a natureza do ilícito.
Isto posto, passa-se a buscar a definição ou ao menos o conceito do que vem a ser,
genericamente, o crime.
Da análise da Lei n° 2.848/1940, o Código Penal Brasileiro, não é possível obter a
definição de crime: o texto legal não traz definição do termo. Na realidade, é a própria
doutrina que construiu um conceito para o vocábulo, que nos dizeres da lei se restringe à
descrição de uma conduta antijurídica punível prevista no Codex, visando à proteção de um
25. 24
bem juridicamente protegido, que pela presunção lógica estaria exposto a uma vulnerabilidade
maior, ao ponto de ser ali relacionada pelo legislador.
Nos ensinamentos de CAPEZ (2010, p. 134), “[...] o crime pode ser conceituado
sob os aspectos material e formal ou analítico”, podendo uma ação ou omissão ser
considerada crime independente da ocorrência de resultado.
Assim, no conceito analítico de crime há elementos que devem conjugar-se a fim
de configurar um delito: conduta (dolosa ou culposa); resultado (no caso de crimes materiais –
dependem de um resultado); nexo causal (no caso de crimes materiais) e tipicidade (CAPEZ,
2010, p. 136).
Nesse contexto, é possível abstrair que, em síntese, o crime na verdade se traduz
numa conduta antijurídica e típica, violadora de bem juridicamente protegido, suscetível de
sanção. Contudo, vale frisar que se deve entender por bens jurídicos os valores fundamentais
insculpidos na Constituição e, também, que não é todo e qualquer bem jurídico que deve ser
penalmente tutelado.
Apesar da essência do Direito Penal residir na proteção dos bens jurídicos
fundamentais ao indivíduo e à sociedade como um todo, é necessária a prevalência e a
preservação de sua fragmentariedade, devendo ser buscado tão-somente como a ultima ratio,
ou seja, o último recurso na busca de conformação do comportamento humano.
A partir destas considerações, questiona-se a utilização da tutela penal na seara
tributária.
Isso porque, em primeira análise, foi esclarecido que originariamente trata-se o
tributo de uma obrigação tributária, que se converte em crédito tributário da Fazenda Pública,
que inadimplido e regularmente inscrito na repartição competente, resulta na Dívida Ativa,
sujeita a procedimento específico para execução fiscal, que como visto, revela uma faceta
nada constitucional.
Ainda, quando do inadimplemento da obrigação tributária, não importa nesse
aspecto o motivo que deu causa ao não pagamento. Consoante disposição da Lei n°
8.137/1990, tanto condutas dolosas como condutas culposas são definidas enquanto ilícitos
penais, tributários.
Sobre a matéria, MACHADO (2009, p. 499) expõe que:
Em face do Direito vigente, a supremacia constitucional praticamente
impede a aplicação de sanções penais aos infratores das leis tributárias.
Travam-se, todavia, insuperáveis controvérsias, nas quais os que defendem a
aplicação das sanções penais invocam sempre o interesse público, argumento
26. 25
sabidamente perigoso, porque agride o princípio da segurança jurídica
(definir). E a palavra final, do Supremo Tribunal Federal, é imprevisível.
Ainda, acrescenta que (2009, p. 499):
[...] a melhor solução será a revogação das leis que definem como ilícito
penal as infrações às leis tributárias. Tais infrações, como todas as demais
que não demonstrem periculosidade física, devem ser definidas como
ilícito administrativo fiscal, ensejando sanções patrimoniais, que podem ser
exacerbadas em função da gravidade dos cometimentos. [grifos acrescidos
ao original]
Destarte, em segunda análise, discute-se a questão da (necessidade e
proporcionalidade) da criminalização de condutas na seara tributária, bem como questões
outras relativas às sanções permitidas pela lei: a patrimonial e, inclusive, a pessoal.
Entendem GOMES e BIANCHINI (2009) que:
O Direito penal econômico [...] constitui um dos mais novos ramos do
direito repressivo [...]. Inúmeras são as leis penais recentemente editadas de
conteúdo econômico. [...] A opção entre considerar determinada conduta
como sendo um crime ou de remetê-la para o âmbito de um ilícito
administrativo pertence ao legislador. Tal escolha, entretanto, deve estar
fundada em criteriosa análise, já que a remessa para o Direito penal deve,
sempre, ser feita de forma muito parcimoniosa, em face dos princípios da
subsidiariedade e da fragmentariedade.
Nesse diapasão, o crime de sonegação fiscal, previsto na Lei n° 8.137/1990,
consiste na prática de condutas que se amoldam ao tipificado no referido diploma legal, bem
como noutras normas que tratam da mesma matéria, puníveis com penas privativas de
liberdade (detenção e reclusão), bem como pena pecuniária (multa):
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir
tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes
condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades
fazendárias;
II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou
omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido
pela lei fiscal;
III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou
qualquer outro documento relativo à operação tributável;
IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que
saiba ou deva saber falso ou inexato;
V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou
documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de
27. 26
serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a
legislação.
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no
prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da
maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao
atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou
fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de
pagamento de tributo;
II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de
contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo
de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário,
qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou
de contribuição como incentivo fiscal;
IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído,
incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de
desenvolvimento;
V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que
permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação
contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Há ainda disposição legal que trata do depositário infiel de valor pertencente à
Fazenda Pública, Lei nº 8.866/1994:
Art. 4º. Na petição inicial, instruída com a cópia autenticada, pela
repartição, da prova literal do depósito de que trata o art. 2º, o representante
judicial da Fazenda Nacional ou, conforme o caso, o representante judicial
dos Estados, Distrito Federal ou do INSS requererá ao juízo a citação do
depositário para, em dez dias:
I - recolher ou depositar a importância correspondente ao valor do
imposto, taxa ou contribuição descontado ou recebido de terceiro, com os
respectivos acréscimos legais;
II - contestar a ação.
§ 1º. Do pedido constará, ainda, a cominação da pena de prisão.
§ 2º. Não recolhida nem depositada a importância, nos termos deste
artigo, o juiz, nos quinze dias seguintes à citação, decretará a prisão do
depositário infiel, por não superior a noventa dias.
Numa perspectiva diferenciada, talvez seja possível perceber que algumas
condutas tipificadas como se sonegação fossem, assemelham-se ao que se vê no Direito
Privado conhecido por fraude contra credor.
Isso porque, o dever de pagar tributo quando não cumprido resulta no crédito
tributário que somente será exigível após o procedimento administrativo de lançamento.
Assim, enquanto uma obrigação, todo tipo de ‘estratégia’ empregada para retardar ou
28. 27
inviabilizar o pagamento do crédito fiscal se assemelharia ao instituto da fraude contra
credor, previsto nos arts. 158 a 165 do Código Civil Brasileiro, não fosse o princípio da
supremacia do interesse público sobre o privado, que tem o condão de, em nome do “bem
comum”, vilipendiar umas das mais essenciais garantias constitucionais, como a dignidade da
pessoa humana (art. 1°, III) e o devido processo legal (art. 5°, LIV).
Sobre o instituto, (GAIO JÚNIOR, 2013) expõe o seguinte:
Em se tratando de alienação ou oneração de bens ao tempo em que corria
demanda em face do devedor-alienante, esta capaz de reduzi-lo a
insolvência, da mesma forma, haverá presunção absoluta quando o
adquirente saiba da existência da ação, ou por já constar no cartório registral
do bem algum registro dando conta de sua existência, ou porque o credor por
outros meios provou que do ajuizamento da ação o adquirente tinha ciência.
Cabe aqui pontuar que, muito embora tendo semelhanças, fraudes contra
credores e de execução, são institutos com conteúdos que não se confundem.
É a fraude contra credores instituto relacionado ao direito material,
recebendo tratamento pelo C.Civil (arts. 158 a 165) como defeito do negócio
jurídico. Já a fraude de execução é instituto, eminentemente, de trato
processual, configurando-se em ato atentatório à dignidade da justiça (art.
600, I). São institutos semelhantes na medida em que em ambos o devedor
aliena bens, tomando-se insolvente. Diferem-se, no entanto, pois que, na
fraude contra credores, a dívida já existe, porém ainda não há ação
judicial em andamento ou, ainda que haja, não ocorreu a citação válida do
devedor-réu ao passo que, na fraude de execução, o credor – autor litiga,
judicialmente, em face do devedor – réu, estando este, inclusive, já citado.
Ambas prejudicam diretamente os interesses do credor, todavia a fraude de
execução, exclusivamente, fere também a dignidade da justiça. [grifos
acrescidos ao original]
Destarte, a fraude contra credor não é tipificado enquanto crime, ao contrário do
que ocorre no tocante à fraude à execução (art. 179, Código Penal Brasileiro), que tem marco
diferenciado no âmbito fiscal, não sendo necessária a existência da ação de execução fiscal,
mas tão-somente o lançamento do crédito tributário.
É perceptível que inserir algumas hipóteses de inadimplemento tributário, como é
o caso da apropriação indébita previdenciária, e a criminalização de condutas humanas que
visam afastar o pagamento de tributo buscam de forma diferenciada tão-somente a otimização
do recolhimento dessa espécie de receita.
Além de revelar afronta aos preceitos do Estado Democrático de Direito, as
peculiaridades reservadas à Fazenda Pública nos procedimentos administrativos e judiciais
para cobrança do crédito tributário violam também a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica, Promulgado no Brasil em 1992, pelo Decreto
n° 678 – que tem força normativa equivalente às emendas constitucionais, nos termos do § 3°,
29. 28
do inciso LXXVIII, do art. 5° da Constituição da República – que no tocante à prisão por
dívida dispõe o seguinte:
Artigo 7º - Direito à liberdade pessoal
1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais.
2. Ninguém pode ser privado de sua liberdade física, salvo pelas causas e nas
condições previamente fixadas pelas Constituições políticas dos Estados-
partes ou pelas leis de acordo com elas promulgadas.
3. Ninguém pode ser submetido a detenção ou encarceramento arbitrários.
[...]
7. Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os
mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de
inadimplemento de obrigação alimentar.
Ainda, a previsão na Carta Constitucional:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LXVII - não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel;
A questão é tão controversa, que a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado
de Minas Gerais considerava, em meados de 2002, a prisão de devedor tributário
inconstitucional:
TJMG. Direito Constitucional, Tributário e Processual Civil. Ação de
Depósito. Prisão Civil por dívidas. Lei Federal nº 8.866/94.
Inconstitucionalidade. Afigura-se inconstitucional a Lei Federal nº
8.866/94, por violar princípios e garantias fundamentais, ao coagir o
devedor tributário ao pagamento do tributo, sob pena de prisão,
criando, assim, uma ficção jurídica, abolida por nosso Texto Maior. Em
reexame necessário, confirmar a r. sentença, nos exatos termos em que foi
proferida, por seus próprios e jurídicos fundamentos, prejudicado o recurso
voluntário. [TJMG. Apelação Cível 2364875-35.2000.8.13.0000 (1).
Comarca de Belo Horizonte - Apelante(s): 1º) JD 4 Exec. Fisc. Estado Minas
Gerais, 2º) Fazenda Pública Estado Minas Gerais - Apelado(s): Foker Distr.
Combustíveis Ltda., nova denominação Aspen Distribuidora Combustíveis.
Relator(a): Des.(a) Célio César Paduani. Data de Julgamento: 11/04/2002.
Data da publicação da súmula: 15/05/2002 – grifos acrescidos ao original]
Contudo, a jurisprudência do colendo Supremo Tribunal Federal já decidiu de
forma diferente:
30. 29
STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DECISÃO: Vistos. Giorgio do
Amaral Souza e Luciano do Amaral Souza interpõem recurso extraordinário,
com fundamento na alínea “a” do permissivo constitucional, contra acórdão
proferido pela Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado
de Santa Catarina, assim ementado: “RECURSO EM SENTIDO ESTRITO -
CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA - INCONFORMISMO
CONTRA A DECISÃO QUE REJEITOU A DENÚNCIA POR
CONSIDERAR INCONSTITUCIONAL O ART. 2º, II, DA LEI N. 8.137/90
- VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE INEXISTENTE - PRESENÇA
DE JUSTA CAUSA, NA ESPÉCIE, PARA APURAR O SUPOSTO
DELITO DE SONEGAÇÃO FISCAL - PRECEDENTES - RECURSO
PROVIDO. Consoante entendimento consolidado nesta Corte de Justiça, o
art. 2º, II, da Lei n. 8.137/90, não é inconstitucional, pois, em ações penais
que apuram o cometimento de crimes contra a ordem tributária (sonegação
fiscal), não está em discussão dívida de natureza civil, mas, sim, a
penalização de conduta prevista em lei como contrária aos interesses do
estado, sobretudo em se tratando de ICMS, cujo tributo já foi pago pelo
contribuinte de fato no momento da aquisição do serviço ou mercadoria, e,
por razões desconhecidas, não foi repassado ao Fisco pelo contribuinte de
direito (comerciante)” (fl. 115). Nas razões do extraordinário, os recorrentes
alegam, em síntese, ofensa aos artigos 5º, incisos LV e LXVII da
Constituição Federal, pois “não é constitucionalmente aceitável que o fato de
simples e unicamente não recolher tributo devido e declarado ao fisco seja
considerado crime, devido ao fato de trata-se de mero inadimplemento
tributário” (fl. 145).
[...]
(STF. RECURSO EXTRAORDINÁRIO 630495 / SC - SANTA
CATARINA. Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 30/09/2010.
Publicação 06/10/2010) [grifos acrescidos ao original]
Questiona-se, nesse cenário, o problema da ausência de razoabilidade no
tratamento dos problemas advindos do inadimplemento tributário, a criminalização de
condutas como instrumento de coerção, bem como a inferiorização do indivíduo enquanto
sujeito de direitos e garantias constitucionais.
Extrai-se dali que, os interesses do Estado devem prevalecer, inclusive, sobre o
interesse (enquanto direito) individual relativo à dignidade humana.
Ives Gandra da Silva Martins critica com rigor esse raciocínio, especialmente no
tocante ao poder de cautela do Judiciário em decretar prisão preventiva na pendência de ação
penal tributária, por entender que tal medida fere os princípios previstos nos incisos LIV, LV e
LVII do art. 5° da Constituição, expondo que:
[...] o Poder Judiciário não pode exercer seu poder de cautela nos crimes
tributários, em face da natureza jurídica desta relação. Apenas se justifica o
poder de cautela em relação aos criminosos de alta periculosidade, fora das
expressas exceções constitucionais. No crime tributário não, em face de ser a
tributação uma norma de rejeição social. O Estado cobra mais do que deve
para prestar serviços públicos [...]. Ora, o contribuinte é apenas um produtor
31. 30
de tributos. Trabalha para sustentar-se e sustentar o Estado, assim como os
detentores do poder. Sempre que é tentado a não pagar impostos – e isto
sempre ocorre quando a carga tributária devedora ultrapassa os limites do
razoável – tem o Estado o mecanismo de repressão suficiente.
[...]
Ao Estado, todavia, interessa muito mais que o contribuinte continue a
produzir tributos do eu permanecer enjaulado. De certa forma, os detentores
do poder têm sempre a vocação de senhores feudais, tratando os
contribuintes como singelos escravos da gleba, sobre os quais têm direito de
vida e de morte. Basta dizer que o Estado não paga os cidadãos – os
governantes e suas empresas são os maiores devedores da Previdência Social
e da Economia, embora nunca deixem de pagar seus próprios vencimentos –
não se autopune.
[...]
Quando o contribuinte deixa de contribuir, o atraso do contribuinte pode ser
apenado com a prisão, visto que a mentalidade feudalística dos governantes
ainda não foi afastada. O princípio da moralidade pública, que proíbe o
“calote” oficial, é apenas uma reminiscência léxica na Constituição, para
nunca ser aplicado [...]. É de se lembrar que a União é uma notória produtora
de leis tributárias inconstitucionais [...]. (2002, p. 31-32)
Conclui, nesse sentido, que:
[...] outorgar o poder de cautela de prender alguém antes de encerrado o
processo judicial em decisão transitada em julgado é admitir que o
contribuinte deva pagar, mesmo o indevido, para evitar a prisão, nada
obstante a clareza dos incs, LIV, LV e LVII do art. 5° da Constituição
Federal. Se ninguém pode perder a liberdade e os bens, se todos têm o
direito à ampla defesa, se ninguém pode ser considerado culpado sem
trânsito em julgado de decisão condenatória, se o crime tributário não oferta
periculosidade à sociedade, na medida em que o Estado apenas pune por não
ter o contribuinte destinado uma parte do que ganhou com seu trabalho para
o Estado, que colhe em seara alheia, não há porque pretender ofertar um
poder de cautela, à semelhança daquele aplicado aos criminosos (assassinos,
sequestradores, traficantes, etc.), cuja alta periculosidade não justifica sejam
mantidos em liberdade nas hipótese legais. (MARTINS, 2002, p. 33)
Compartilha-se, nessa perspectiva, o pensamento de HARADA (2009, p. 499):
Em face do Direito vigente, a supremacia constitucional praticamente
impede a aplicação de sanções penais aos infratores das leis tributárias.
Travam-se, todavia, insuperáveis controvérsias, nas quais os que defendem a
aplicação das sanções penais invocam sempre o interesse público, argumento
sabidamente perigoso, porque agride o princípio da segurança jurídica
(definir). E a palavra final, do Supremo Tribunal Federal, é imprevisível.
Pensamos que a melhor solução será a revogação das leis que definem
como ilícito penal as infrações às leis tributárias. Tais infrações, como
todas as demais que não demonstrem periculosidade física, devem ser
definidas como ilícito administrativo fiscal, ensejando sanções
patrimoniais, que podem ser exacerbadas em função da gravidade dos
cometimentos. A sanção deve ser, tanto quanto possível, da mesma
32. 31
natureza do cometimento do ilícito. Se este não atinge a pessoa, mas o
patrimônio, a sanção correspondente não deve ser pessoal, mas
patrimonial. [grifos acrescidos ao original]
Em última análise, o que deveria prevalecer seria justamente aquilo que foi
pontuado pelos autores: a correspondência da sanção. Se o dano ou lesão causado pelo ilícito
for de cunho patrimonial, na mesma esfera deveria incidir a pena.
Assim, a pena corporal deveria ser afastada, tendo em vista o desígnio único de
coerção por meio do temor da privação da liberdade, o que a Constituição e disposições outras
vedam.
4.1. As normas jurídico-penais tributárias e a questão da ilegitimidade da proteção ao
bem jurídico abstrato
Ultrapassada a discussão acerca da inconstitucional prisão do devedor tributário,
seja pelo inadimplemento voluntário ou pela prática das condutas definidas como delituosas
pela respectiva lei de regência da matéria, deve-se, indispensavelmente, abordar outro aspecto
da questão concernente às normas jurídico-penais tributárias: o bem jurídico penalmente
tutelado, sobretudo como bem jurídico abstrato.
Justamente por inexistir na descrição da espécie do tipo penal tributário a
indicação de qualquer resultado naturalístico, além da conduta a qual se pretende criminalizar,
a maior parte dos crimes tributários se caracteriza como um tipo penal de perigo abstrato, no
qual não há exigência de lesão ao bem jurídico protegido (arrecadação tributária), nem sua
sujeição a risco real e concreto, podendo ser considerados inconstitucionais por afrontarem o
principio da lesividade, em razão da ausência concreta de lesão ou perigo, bem como pela
violação de critérios de legitimidade em relação à ordem constitucional.
Nesse sentido, MARQUES (2008, p. 69) visualiza ofensa a diversos princípios:
Na realidade, a tese do perigo abstrato é insustentável, porque importa em
presunção absoluta de resultado. Diga-se mais: a tese do perigo abstrato é
insustentável, ainda que a conduta típica contenha o perigo como elemento
integrante de sua descrição, porque há violação ao princípio da causalidade e
a violação à própria culpabilidade. Por último, a tese do perigo abstrato é
insustentável, porque condutas de mera desobediência ou de mera infração
33. 32
são levadas a tipos-de-ilícito.
Claus Roxin ao tratar do tema esclarece que “[...] a descrição da finalidade da lei
não basta para fundamentar um bem jurídico que legitime um tipo” e que “[...] a emissão de
proibições penais não está à plena disposição do legislador [...]”.
Ou seja, a tutela penal não pode ser entendida nem utilizada por mera liberalidade.
Se assim o fosse, estaria estabelecido, na realidade, não um Estado Democrático de Direito,
mas um Estado arbitrário.
No tocante a subsidiariedade do direito penal, ROXIN expõe o seguinte:
Como a lei penal limita o indivíduo em sua liberdade de agir, não se pode
proibir mais do que seja necessário para que se alcance uma coexistência
livre e pacífica.
[...]
O direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz
jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo
ou de medidas preventivas extra-jurídicas.
[...]
Uma vez que a pena é a intervenção mais grave do estado na liberdade
individual, só pode ele cominá-la quando não dispuser de outros meios mais
suaves para alcançar a situação desejada.
Abstrai-se do pensamento do jurista que a finalidade do direito penal somente
pode se realizar quando servir à proteção subsidiária de bens jurídicos efetivamente
entendidos e definidos como tal.
Nesse sentido, o jurista propõe outa abordagem sobre a questão:
Existem, principalmente, três alternativas para a pena criminal. A
primeira consiste em pretensões de indenização de direito civil, que,
especialmente em violações de contrato, bastam para regular os prejuízos. A
segunda alternativa são medidas de direito público, que podem comumente
garantir mais segurança que o direito penal [...]. A terceira possibilidade de
descriminalização está em atribuir ações de lesividade social relativamente
reduzida a um direito de contravenções especial, que preveja sanções
pecuniárias ao invés da pena. Foi este o caminho seguido pelo direito penal
alemão nas últimas décadas. [grifos acrescidos ao original]
Nessa perspectiva, o jurista Wallton Pereira de Souza Paiva (2013) alerta que “o
que se deve ter em mente é que o caráter coletivo do bem jurídico não exclui a existência de
interesses individuais que com ele convergem”.
Ainda, com razão, entende pela inconstitucionalidade dos delitos de perigo
34. 33
abstrato:
Os delitos de perigo abstrato, pelo que aqui fora exposto, não respeitam o
princípio da legalidade, pois não obedecem ao postulado da taxatividade,
permitindo uma arbitrariedade para sua aferição. Essa arbitrariedade, por sua
vez, é perigosa, pois muitas vezes depende de elementos subjetivos que não
têm como ser provados, e se o fossem, estar-se-ia diante de um delito de
perigo concreto. Por fim, a lesividade, que é o princípio maior do direito
penal do bem jurídico, não chega a ser contemplada, criando-se punições
para potencialidades lesivas. Se a fundamentação desses tipos for a
segurança do bem, não será matéria de Direito Penal, passa a ser objeto de
outra esfera de ação estatal. [...] os ditos delitos de perigo abstrato são
inconstitucionais por definição, não havendo justificativa plausível dentro do
ordenamento jurídico nacional para a sua permanência. Se a Constituição
ordena que determinadas atividades sejam criminalizadas, ela prega a
proteção do Bem Jurídico Penal, não ordena a criação de normas penais que
ensejariam mais incertezas do que propriamente a segurança. Assim sendo,
em especial no que diz respeito aos bens jurídicos supraindividuais, outras
formas de criminalização devem ser buscadas, mas nunca relativizando
princípios constitucionais fundamentais como a legalidade e a lesividade.
Verifica-se, portanto, que a subsidiariedade do direito penal não é um princípio de
caráter indicativo, mas impositivo, que deveria sempre ser observado.
Coadunando os pensamentos examinados, apresentar-se-á no capítulo seguinte
algumas alternativas à tutela penal tributária, buscando-se, assim, o respeito às mais essenciais
garantias do Estado Constitucional.
35. 34
5. A ADOÇÃO DE MEIOS ALTERNATIVOS NA SOLUÇÃO DE CONFLITOS NO
ÂMBITO TRIBUTÁRIO
Paralelamente à ineficiência dos serviços do Estado, que os tributos
deveriam prover, contribui para o descrédito e refratariedade do contribuinte,
a malversação dos dinheiros públicos, via desvios, má utilização e, não
raramente, enriquecimentos ilícitos à custa do Estado. O País está a carecer
de uma análise cultural aprofundada a fim de que se possa detectar ações
capazes de resgatar valores tidos como desejáveis em uma Nação que a quer
moderna (NASCIMENTO,1998, p. 105).
É evidente que lançar uma visão ampla e sistemática sobre a questão do
inadimplemento tributário se torna cada vez mais necessário, levando-se em conta não apenas
fatores financeiros. Outros fatores também devem ser considerados.
Miguel Reale, sobre a Ciência do Direito, defende que “[...] não pode se propor
apenas o estudo abstrato das normas, sem suas correlações com o mundo da experiência social
e dos valores [...]” (2002, p. 612).
Aquele raciocínio de que a supremacia do direito público fundamenta medidas das
mais arbitrárias empregadas em desfavor do cidadão contribuinte não se justifica. O bem
jurídico arrecadação tributária não é suscetível de proteção penal, tendo em vista que o
inadimplemento tributário não fere direito fundamental, nem mesmo oferece periculosidade
social.
Nesse sentido, expõe Miguel Reale que:
Há uma tensão constante entre os valores do indivíduo e os valores da
sociedade, donde a necessidade permanente de composição entre esses
grupos de fatores, de maneira que venha a ser reconhecido o que toca ao
todo e o que cabe ao indivíduo em uma ordenação progressivamente capaz
de harmonizar as duas forças
[...]
Se, ao contrário, predominar em uma sociedade a concepção coletivista, que
der ao todo absoluta primazia sobre as partes, a tendência na interpretação
das normas jurídicas será sempre no sentido da limitação da liberdade em
favor da igualdade. Não se põe, com efeito, o problema da composição entre
o indivíduo e a sociedade, sem que concomitantemente não surja o problema
das relações entre liberdade e igualdade. (2002, p. 278)
Outras medidas, menos gravosas, que não a tutela penal, são necessárias no
tratamento da questão das dívidas tributárias.
O Programa de Recuperação Fiscal (REFIS), instituído pela primeira vez no ano
36. 35
2000, possibilitou às pessoas jurídicas o parcelamento de débitos tributários (art. 1° da Lei n°.
9.964/2000).
Posteriormente, o REFIS foi estendido às pessoas físicas, possibilitando, na
hipótese do parcelamento, a extinção da punibilidade de crimes tributários. Sobre este
instituto, GOMES e TASSE (2011) lecionam que:
[...] a Lei 12.382/11 regulamentou a extinção da punibilidade dos crimes
tributários nas situações de parcelamento do débito tributário, não tendo
afetado o disposto no § 2º do art. 9º da Lei 10.684/2003, que prevê a
extinção da punibilidade em razão do pagamento (em qualquer tempo).
Pagamento direto, sem parcelamento, não é a mesma coisa que pagamento
antecedido de parcelamento do débito tributário. Há, assim, duas situações
distintas: pagamento direto (regido pela Lei 10.684/2003) e pagamento
mediante parcelamento (agora disciplinado na Lei 12.382/11). Ambos os
pagamentos extinguem a punibilidade nos crimes tributários. [grifos
acrescidos ao original]
A partir da análise das ponderações feitas, resta claro que a própria possibilidade
de extinção da punibilidade pelo pagamento ou parcelamento do débito tributário, sonegado
ou meramente inadimplido, revela seu caráter alheio à matéria penal.
Percebe-se, assim, que afastar a incidência da norma penal na seara do
inadimplemento tributário é uma necessidade que há muito se espera acontecer.
A tutela penal deve ser reservada, como exposto alhures, a questões específicas,
haja vista que não é qualquer bem jurídico que possui relevância tamanha que deva ser
submetido às iras do Direito Penal.
Nesse sentido, a busca de uma solução diferenciada para a questão do
inadimplemento tributário tem revelado uma faceta diferente dos agentes que atuam nessa
seara.
O parcelamento do crédito tributário, ainda que extinga a punibilidade do crime
tributário não é suficiente, principalmente porque muitas vezes revela um meio de pressionar
o devedor tributário a assumir uma nova obrigação que também não poderá cumprir, senão
um constrangimento ilegal, como forma de pagar pelo não encarceramento.
A Advocacia-Geral da União tem defendido a realização de conciliação na
cobrança de tributos. Segundo o advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams, que
defende a criação de uma lei que facilite a conciliação por parte dos advogados públicos,
informa que “a transação já está prevista no Código Tributário, e a discricionariedade do
advogado público está limitada a ela”.
37. 36
Ainda, critica o posicionamento de alguns tributaristas que se posicionam no
sentido de que os créditos tributários, bem como os juros e as multas, são patrimônio público
e o Estado não pode dispor deles, ressaltando que “(...) indisponibilidade do crédito não quer
dizer que o Estado não possa abrir mão do que lhe pertence. Questões que envolvem choques
entre interesses públicos mostram isso”.
Atendendo à busca pela pacificação social, nos termos da Resolução n° 125 do
Conselho Nacional de Justiça, a conciliação deve ser promovida em todos os âmbitos
possíveis, inclusive no que concerne às matérias de dívida fiscal, principalmente em relação
aos impostos devidos pela pessoa física, pois, não somente a redução de litígios e demandas
trazidas ao Poder Judiciário deve ser visada, mas também a redução dos litígios travados no
âmbito do Poder Executivo na seara judicial, que é o caso das dívidas fiscais-tributárias.
38. 37
CONCLUSÃO
Como delineado ao longo do trabalho, o pilar do Estado Democrático de Direito
encontra raízes nas garantias fundamentais constitucionais. Princípios tais como o devido
processo legal e antes de tudo, a isonomia e a dignidade da pessoa humana devem sempre ser
observados.
Contudo, quando se discute a relação de subordinação à qual o indivíduo se
sujeita ao integrar o Estado, restou claro que a isonomia, em verdade, inexiste.
Verificou-se no capítulo primeiro que, apesar de estar vivenciando-se
teoricamente um Estado Constitucional, desafortunadamente isso não garante na prática o
exercício nem o respeito de todas as garantias fundamentais, que de maneira sutil é violada
pelo próprio Estado. Não é a questão jurídica apenas que controla a vida social, econômica e
financeira dos indivíduos, mas, sobretudo, questões políticas nem sempre condizentes com o
real interesse público.
Por isso, a adequação da finalidade particular à finalidade maior deve ter por base
parâmetros como legitimidade e legalidade.
Com o surgimento do Estado Constitucional, a existência de limites jurídicos à
ação do Estado, condicionando sua submissão aos princípios fundamentais, deve buscar
reduzir a margem de arbítrio e discricionariedade conferida pela própria lei, tendo em vista
que subsiste a errônea concepção da plenitude do poder de império.
A questão da obrigação tributária passa aí a ser analisada sob um viés diferente,
pois, ainda que tenha por objeto a lei, e não autonomia da vontade das partes, quando
inadimplida passa a ter natureza de dívida.
Assim, preliminarmente, sobre a natureza jurídica das obrigações foi delineado no
segundo capítulo que o objeto da obrigação tributária é a lei em si, tendo em vista que a
obrigação tributária decorre tão-somente da lei, não da autonomia da vontade das partes,
como acontece no instituto do direito privado, distinguindo-a da obrigação civil o fato gerador
do tributo, e não um negócio jurídico qualquer.
Ou seja, verificou-se a ausência de qualquer estímulo, como ocorre nas relações
jurídicas privadas, baseadas na autonomia da vontade das partes, visto que na relação jurídico-
tributária, a unilateralidade e a compulsoriedade prevalecem.
A questão da adoção pela Administração Tributária de medidas peculiares na
cobrança do crédito tributário, tais como a penhora administrativa, a simples citação postal do
39. 38
executado, além da reserva de prazo prescricional dilatado reservado à Fazenda Pública para
lançar e constituir o crédito tributário foi analisada no terceiro capítulo, no qual se questionou
a contrariedade a alguns princípios constitucionais constantemente vilipendiados no curso do
processo de execução fiscal, tais como aqueles que garantem a isonomia, a ampla defesa, bem
como o contraditório.
Conseguintemente, foi abordado no capítulo quarto a questão do ilícito penal
tributário e a necessidade de observância ao Pacto de San Jose da Costa Rica no tocante à
dívida tributária, eis que, independentemente de sua natureza jurídica, é uma obrigação de
pagar, que ainda com a ocorrência da sonegação, entendida aqui como fraude contra ao credor
– o que não é acolhido como crime pelo direito penal – deveria sujeitar o contribuinte à
sanção patrimonial, jamais pessoal. Como restou claro, uma conduta ilícita não é sinônima de
uma conduta delituosa.
Nesse sentido, justamente, defende-se a tese de que a sonegação fiscal assemelha-
se ao instituto civil da fraude contra credor, que foi tratada pela lei tributária na sua origem
como crime, para que, por meio da coação à liberdade do contribuinte seja potencializada a
arrecadação da receita tributária.
Contudo, o bem jurídico arrecadação tributária não é suscetível de proteção
penal, tendo em vista que o inadimplemento tributário não fere direito fundamental, nem
mesmo oferece periculosidade social, tal como sugerem as normas penais tributárias.
Ora, se o próprio pagamento ou parcelamento do crédito tributário, ainda que
sonegado, afastam a punibilidade por sua extinção, revela-se com límpida nitidez que a única
finalidade da lei em elevar a arrecadação tributária a bem jurídico que deva ser penalmente
protegido é a intenção de lançar sobre o contribuinte inadimplente o receio da perda do seu
direito de ir e vir.
Busca-se, assim, uma análise acerca da necessidade e da proporcionalidade na
criminalização de condutas, especialmente na seara tributária, que devem ser constantemente
observadas.
Isso porque, apesar da essência do Direito Penal residir na proteção dos bens
jurídicos fundamentais ao indivíduo e à sociedade como um todo, é necessária a prevalência e
a preservação de sua fragmentariedade, devendo ser buscado tão-somente como a ultima
ratio, ou seja, o último recurso na busca de conformação do comportamento humano.
A discussão trazida, finalmente, não é a natureza da dívida em si, pois
independentemente disso, ainda que o credor seja o Estado, não pode o inadimplemento do
crédito tributário, ainda que intencional, ser penalizado com sanção corporal.
40. 39
Nesse diapasão, como discutido no último capítulo, a dívida tributária deve ser
abordada como tal, seja na seara administrativa, seja na seara judicial.
A utilização de institutos de matéria penal como forma de coerção ao pagamento
de tributos, sobretudo os impostos sobre a renda, o patrimônio e a produção, deve ser revista.
A época do Brasil Colônia já passou.
Portanto, deve prevalecer, daqui para frente, a garantia ao exercício dos direitos
constitucionais. Deve entrar em atividade o Estado protetor, garantidor. O Estado
Constitucional.
A tutela penal não pode ser entendida nem utilizada por mera liberalidade. E,
como se viu, a conciliação pode revelar uma alternativa eficaz à tutela penal tributária,
possibilitando, assim, o respeito às mais essenciais garantias balizadas pela Carta
Constitucional.
41. 40
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