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1
DIREITO & MÚSICA: aproximações para uma “razão sensível”
José Ricardo Alvarez Vianna1
“A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música”.
Mário Moacyr Porto
Resumo:
O artigo objetiva examinar possíveis conexões entre Direito e Música e de que maneira estas podem
contribuir para o aprimoramento da interpretação/aplicação do Direito. Destaca que, tanto no Direito,
como na Música, a interpretação exerce relevante peso no produto final da obra. Afirma que a Música,
como expressão artística que é, revela aspectos profundos da natureza humana que a razão não pe-
netra. Dessa forma, como o ser humano não é só razão, o Direito, para não se afastar da realidade,
não deve se orientar apenas em premissas racionais. Ao contrário, o operador jurídico, na solução de
casos, deve também agir com sensibilidade e perspicácia, captando e apreendendo os sentimentos e
emoções que estão presentes – porém ocultas – nas relações jurídicas intersubjetivas. Com esta
postura, acredita-se, ampliam-se os caminhos de convergência entre Direito e Justiça; ou, por outras
palavras, emergem outras possibilidades para se chegar a um Direito Justo.
Palavras-chave: Direito – Música – Interpretação – Razão – Emoção – Justiça.
Abstract:
The article aims to examine possible connections between Law and Music and how it can contribute
to the improvement of the interpretation/application of Law. It emphasizes that, both in the Law and in
the Music, the interpretation has significant importance in the final product of the work. States that
the Music, as artistic expression, reveals deep aspects of human nature where the reason can
not penetrate. Thus, as the human beings are not only governed by reason, the Law should not be
labored just on rational, otherwise the law could deviate from reality. Instead, the legal operator must
also act with sensibility and insight to solve the conflicts. He should capture the feelings and emotions
that are present – but hidden – in the relationships among people. With this approach, the paths of
convergence between Law and Justice could be enlarged; or, in other words, new possibilities could
arise to get a fair trial.
Keywords: Law – Music – Interpretation – Reason – Emotion – Justice.
2
1. INTRODUÇÃO
Este artigo se propõe a analisar possíveis conexões entre Direito e
Música. Embora, a princípio, sejam áreas incompatíveis e inconciliáveis entre si, um
olhar mais atento revela que esta circunstância não impede que se identifiquem
zonas de influência e de aprendizado recíprocos. Nesta sede, porém, concentrar-se-
á em alguns pontos em comum entre Direito e Música para, na sequência, avaliar de
que forma a Música pode contribuir para uma melhor aplicação/interpretação do
Direito.
Tem-se por objetivo geral destacar que a Música, enquanto expressão
artística (Estética), transita por caminhos que as premissas racionais do Direito, em
tese, não ingressam, mas que também interferem e moldam, de forma relevante, as
relações jurídicas, uma vez que estas têm como protagonistas seres humanos, os
quais não são apenas dotados de razão.
Tem-se por objetivo específico ressaltar que os operadores e estudiosos
do Direito, a exemplo do que ocorre na Música, também podem laborar a partir do
sensível, das emoções e dos sentimentos que compõe e integram o ser humano, e
não apenas ficarem circunscritos aos postulados lógico-formais que, ordinariamente,
orientam o raciocínio jurídico.
Esta abertura de horizontes, todavia, suscita questionamentos, os quais,
de igual modo, almeja-se responder, tais como: as conexões entre Direito e Música
guardam pertinência entre o Justo e o Belo? A aproximação entre Direito e Música
1
Juiz de Direito no Paraná, mestre e doutorando em Direito, membro fundador do Instituto de Latino-
Americano de Argumentação Jurídica (ILAAG) e professor da Escola da Magistratura.
3
pode contribuir para a concretização de um Direito Justo? Ao ampliar o leque de
interpretação/aplicação do Direito para o “sensível”, não há riscos de uma
subjetividade demasiada, comprometendo a segurança jurídica?
O texto, porém, não tem pretensão exaustiva, tampouco se assenta
juízos definitivos. Busca-se tão-somente empreender novas possibilidades de
laborar com o Direito e, assim, aproximá-lo da Justiça. Se fomentar a reflexão no
leitor, independentemente de sua adesão às ideias aqui expostas, já se terá atingido
seu desiderato.
2. APORTES APROXIMATIVOS
Há um ditado no meio jurídico, de autoria incerta, que diz: “quem só sabe
Direito, não sabe nem Direito”. É neste contexto que, de alguns anos para cá, o
Direito tem sido estudado não só sob uma perspectiva jurídica isolada, mas também
a partir de possíveis interconexões com outras áreas. Assim, traçam-se paralelos
entre Direito e Literatura
2
, Direito e Cinema
3
, Direito e Psicanálise
4
, Direito e
Matemática5
, Direito e Física6
, Direito e Neurociência7
e, inclusive, Direito e Música.
Esta postura aberta de estudar o Direito amplia o espectro do
investigador, ressaltando-lhes elementos humanísticos, superando a mera técnica
jurídica, o que contribui para uma visão do Direito mais percuciente e sensível,
apromixando-o da Justiça. Isto faz lembrar Miguel Reale que, em referência ao
orador Romano, alertou: “nas lições de Cícero...devemos conhecer perfeitamente o
homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direto”8
.
2
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
3
LACERDA, Gabriel. O Direito no Cinema. São Paulo: FGV, 2007.
4
CAFFÉ, Mara. Psicanálise e Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
5
CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Regina Elaine Santos. Direito e matemática: uma abor-
dagem interdisciplinar. Site Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2849, 20 abr. 2011. Acesso: 20 dez.
2011.
6
TELLES JR, Goffredo da Silva. Direito Quântico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007.
7
FERNANDEZ, Atahualpa e FERNANDEZ, Marly. Neuroética, Direito e Neurociência – Conduta Hu-
mana, Liberdade e Racionalidade Jurídica. Curitiba: Juruá, 2007.
8
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 61.
4
É exatamente este o motor desses estudos transdisciplinares. Busca-se
conhecer o ser humano em sua amplitude e complexidade; suas paixões, dramas,
ilusões e sentimentos. Não se deixa esquecer que o ser humano é “luz”, mas, ao
mesmo tempo, “sombra”; “médico” e “monstro”, como bem apreendido pelo escritor
escocês Robert Louis Stevenson9
; que a esperança, como consta da lendária Caixa
de Pandora, é indissociável componente humano. Em suma, que o ser humano é
formado por desejos, sonhos, medos, traumas, ideais; que, em sua efêmera
passagem nisto convencionamente chamando mundo, convive com a angústia da
morte e com as incertezas da vida, a qual pode ser bela ou dramática, conforme as
experiências, valores ou significados que cada qual atribua aos episódios com que
se deparar. São estes, dentre vários outros componentes, que acompanharão o ser
humano e, por conseguinte, influenciarão o convívio social, razão pela qual não
podem ser desconsiderados pelo Direito e por seus operadores, pesquisadores,
estudiosos.
Nesta conformidade, conhecendo melhor o ser humano, crê-se que o
Direito pode ser melhor interpretado e aplicado, pois, uma vez mais próximo da
realidade da vida, maiores as oportunidades de se alcançar o aspirado “bom senso”,
tão apregoado onde quer que o Direito seja reclamado, mas de tão difícil consenso.
Realidade, vida, Direito e ser humano devem ser vistos sob um mesmo panorama,
até porque, como advertiu George Ripert: “quando o Direito ignora a realidade, a
realidade se vinga, ignorando o Direito”
10
.
Como diz o milenar brocado: “ex factum oriutur jus” (o Direito advém dos
fatos), de maneira que se o Direito visa regular as relações humanas de maneira
harmoniosa – vocábulo que já remete à ideia de música –, deve, antes, conhecer
essa realidade e, em especial, esse ser humano; a natureza humana, a condição
humana, haja vista que, em última análise, é este o destinatário final do Direito. É
este “conhecer” que a aproximação entre Direito e Música aspira e, acredita-se,
contribui. Isto porque, a música, longe de ser mera combinação de sons, ritmos,
melodias, tem acompanhado a humanidade desde seus primeiros passos,
9
STEVENSON, Robert Louis. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Bibliobazzar, LlC, 2008.
10
Citação de memória pelo autor.
5
expressando sentimentos, emoções, instintos, enfim revelando o outro lado da
nossa espécie, que não se esgota na razão, na vontade ou em nosso consciente.
Ao contrário, resulta da combinação dessas emoções e da razão.
Comprova o que aqui se quer dizer ao olhar para nossa História e encon-
trar traços musicais desde as civilizações Pré-Históricas, assim como nas Antigas
Civilizações, como Mesopotâmia, Egito e Grécia só para citar algumas. Não é por
acaso, portanto, que a música, de maneira direta ou indireta, está e esteve presente
em sociedade desde em liturgias religiosas, a celebrações militares e patrióticas, ou
como forma de expressar sentimentos como liberdade, amor, paixão, tristeza, indig-
nação. Daí a grande variedade de gêneros musicais, que vão da música erudita ao
hip hop; do country ao jazz; da música típica dos pigmeus Baka do Gabão ao serta-
nejo de raiz ou MPB brasileiros.
Música e ser humano caminham lado a lado. Aquela é manifestação, ex-
pressão, sublimação, catarse deste. Revela-o. Daí por que se afigura essencial pa-
ra o Direito na busca de melhor conhecer e mais se aproximar deste mesmo ser
humano, que, mais próximo da realidade, poderá melhor reger o comportamento
humano e suas múltiplas interações sociais.
No Brasil, já existem estudos, embora pioneiros, sobre uma possível
aproximação entre Direito e Música. Sobre o tema se destaca a obra de Mônica
Sette Lopes, professora de Direito e juíza do trabalho em Minas Gerais, com o
sugestivo título “Uma Metáfora: Música e Direito”
11
.
Na mesma linha, mediante simples pesquisa na internet, podem ser
encontrados outros ensaios com esse viés, como “Direito e música é tema rico e
pouco explorado”, de Vladimir Passos de Freitas12
, e “Direito e Música”, de Diogo
Ferreira de Freitas 13
.
Seguramente, esses trabalhos permitem a identificação de pontos de
convergência e influência mútua entre Direito e Música; ou, se preferir, de que forma
11
LOPES, Mônica Sette. Uma Metáfora: Música e Direito. São Paulo: LTr, 2006.
12
FREITAS, Vladimir Passos de. Direito e música é tema rico e pouco explorado. Jornal Estado do
Parná, Curitiba, 17 ja. 2011. Caderno Direito & Justiça.
13
FERREIRA, Diogo Ribeiro. Direito e Música. Disponível <http://www. www.hojeemdia.com.br>. A-
cesso em: 20 dez. 2011.
6
a Música pode auxiliar na compreensão, interpretação e aplicação do Direito. A
contribuição, aliás, é mais evidente quando se percebe que a Música, não
raramente, expõe ao estudioso do Direito os “pontos cegos” que os limites da razão
lhe impedem o acesso. Por outras palavras, a música revela o que as obras
jurídicas, ordinariamente, não revelam, embora, por vezes, versem sobre o mesmo
assunto.
3. A INTERPRETAÇÃO NA MÚSICA E NO DIREITO
Direito e Música podem ser analisados sob diversos aspectos. Um destes
diz respeito à interpretação. Mas de que forma? Quais os pontos em comum e/ou de
divergência entre a interpretação no Direito e a interpretação na Música?
Para responder a estas indagações, observa-se, por primeiro, que, tanto
a Música, como o Direito, em linhas gerais, têm um referencial de partida. No
Direito, pode-se apontar a lei como uma de suas principais fontes, sobretudo nos
países de tradição Romano-Germânica (“Civil Law”). Dito de outro modo, como um
de seus principais referenciais de partida. De modo equivalente ocorre com a
Música, que, por sua vez, toma por base a partitura.
Esta conexão entre tais áreas fica mais evidente quando se constata que,
por mais objetiva e universal que seja a linguagem musical (signos), não raramente
transpondo limites de tempo e de espaço, a interpretação de cada artista será,
consciente ou não, uma leitura e, por conseguinte, uma obra personalíssima,
peculiar e individual. Este detalhe não passou despercebido por Eros Grau que, em
seu Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, anotou:
A interpretação musical e teatral importa compreensão + reprodução (a
obra, objeto da interpretação, para que possa ser compreendida, tendo em
vista a contemplação estética, reclama um intérprete; o primeiro intérprete
compreende e reproduz e o segundo intérprete compreende mediante a –
através da – compreensão/reprodução do primeiro intérprete) (ainda que
7
nessa segunda compreensão se manifeste, também, a construção de uma
nova forma de expressão).14
Para elucidar seu pensamento, Eros Grau, na mesma obra – destaque-
se: jurídica –, sustenta que há duas formas de expressão artística; a das artes
“alográficas” e a das artes “autográficas”. E explica:
“nas artes alográficas (música e teatro), a obra apenas se completa com o
concurso de dois personagens: autor e intérprete; nas artes autográficas
(pintura e romance), o autor contribui sozinho para a realização da obra.”
15
A posição de Eros Grau fica mais palpável quando se verifica que
intérpretes de uma mesma música, valendo-se de idênticos critérios objetivos
(partitura, letra etc.), jamais (re)produzirão uma obra de maneira igual. A nona
sinfonia de Beethoven não será a mesma se executada pela Orquestra Filarmônica
de Berlim, de Londres ou de Viena. É pelo mesmo motivo que a música Yesterday,
dos The Beatles, uma das mais regravadas da História da Música, e nos mais
variados estilos, de Frank Sinatra a Roupa Nova; de Elvis Presley, Plácido Domingo
a Ray Charles, passando por The King Sisters, não foi expressa da mesma forma.
Cada interpretação trouxe o traço pessoal de seu intérprete; seu marco individual;
suas características específicas, seu talento e belezas peculiares.
De modo similar o Direito. Por mais objetiva que seja a linguagem jurídica
contida na lei, ela sempre será objeto de significação por parte do intérprete do
Direito. Segundo estudos mais recentes da hermenêutica, da filosofia da linguagem
e da semiótica jurídicas, interpretar os signos linguísticos longe está de estabelecer
o “exato alcance e real significado” da expressão veiculada no texto normativo. Mas,
sim, em atribuir sentido a este; impor significação aos vocábulos (signos) contidos
na lei. Para realizar este processo de significação, o intérprete toma o texto legal
como base, mas seu efetivo significado somente se aperfeiçoará após situá-lo no
contexto fático em que será aplicado para dirimir o conflito ali existente. Por
14
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo:
Malheiros. 2002. p. 68.
15
GRAU, Eros Roberto. Ibidem, p. 68.
8
exemplo: o vocábulo “idoso” contido no art. 77, § 5º, da CF16
, previsto como critério
de desempate em hipótese afeta a eleições presidenciais, não necessariamente terá
como pressuposto a idade de 60 (sessenta) anos, apesar da redação taxativa do art.
1º, da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso)
17
. Isto só confirma que, por vezes, uma
mesma palavra, pode receber significações diversas, o que enaltece, assim como
na música, o papel do intérprete.
Essa necessidade de significações de expressões normativas em sintonia
com a faticidade no processo interpretativo do Direito é, ainda, a base do fenômeno
que vem sendo denominado como mutação constitucional, proveniente do Direito
Alemão18
. Para quem adere a esta corrente (mutação constitucional), os vocábulos
contidos da Constituição de 1988 não devem ser lidos, apreendidos, interpretados e,
sobretudo, significados de acordo com a realidade político-social de 1988. Ao
contrário, devem o ser em conformidade com a realidade contemporânea, isto é,
conforme as circunstâncias e contingências da época em que é realizada a
interpretação; no caso, 2011.
Um exemplo pode ilustrar o que se pretende dizer. Em seu artigo 150,
inc. VI, alínea “d”, a Constituição Federal, está prevista a imunidade tributária para
livros. Mas o que é “livro”? É claro que o conceito de livro de 1988 irá diferir do
conceito de 2012, isto porque, naquela época, não se falava – sequer se cogitava –
em livros eletrônicos, CD-Rooms, sites, PDFs, tablets etc. Isto significa dizer que a
interpretação jurídica não é, nem deve ser um processo mecânico e automatizado,
muito menos deve se realizar mediante operações lógico-matemáticas, que aspiram,
contra a dinâmica da vida, significações unívocas ou pretensamente exatas. Ao
contrário, carece de intervenção humana, o que traz à tona o pensamento de Carlos
Maximiliano, ao expor a necessidade do intérprete/aplicador do Direito, como um
autêntico intermediário, um “mediador esclarecido” (...) “entre a letra morta dos
16
Art. 77 (…) § 5º - Se, na hipótese dos parágrafos anteriores, remanescer, em segundo lugar, mais
de um candidato com a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso.
17
Art. 1
o
– É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas
com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
18
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os conceitos fundamen-
tais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 123-139.
9
códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de
elegância moral e útil à sociedade”.19
É ainda Carlos Maximiliano, já agora traçando um paralelo entre
interpretação do Direito e interpretação Musicial, quem diz: “Comparável seria o
magistrado ao violinista de talento, que procura compreender bem a partirura, e
imprime à execução cunho pessoal, um brilho particular, decorrente da própria
virtuosidade”20
.
Em resumo, não há como interpretar a Música sem o ser humano. E a
leitura, a contribuição, a percepção deste é que dá vida à Música. Da mesma forma,
o Direito. Seus intérpretes, valendo-se de técnicas, assim como também ocorre na
Música, é que produzirão um Direito em sintonia com a realidade social respectiva,
desvelando e revelando os sentidos dos vocábulos normativos, porém atentos aos
sentimentos, emoções, dramas e angústias que se inserem e se escondem nas
relações intersubjetivas que meros textos legais ou partituras são incapazes de
captar e expressar.
4. ESTÉTICA E DIREITO
Outros palalelos podem ser traçados entre Direito e Música. A estética é
uma deles. A palavra estética advém do grego αισθητική ou aisthésis e quer dizer
“faculdade de sentir”, “compreensão dos sentidos”, “percepção totalizante”21
. Para
Maria Francisca Carneiro, sob o prisma filosófico, a estética pode ser entendida
como “teoria sobre a natureza da percepção sensível, designando-se também assim
o conhecimento da arte e do belo”.22
19
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992.
p. 59.
20
MAXIMILIANO, Carlos. Ibidem, p. 81.
21
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; e, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filo-
sofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 378.
22
CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e a Arte de Julgar. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008.
p. 13.
10
Como já consignado, a música toca em sentimentos. A música “fala” de
coisas da vida; de experiências de vida, de conflitos íntimos e interpessoais. Música
é estética, portanto. Logo, a música nos tem muito a dizer23
. Muitas vezes entre a
experiência de sentimentos e emoções há um abismo intransponível imposto pelos
limites da razão, mas que a arte – e só ela, despida que é dessas barreiras –
consegue transpor, permitindo o esclarecimento de abstratas e complexas emoções,
o que conduz, inclusive, ao autoconhecimento. Nesse sentido, as palavras de
Sigmund Freud:
A arte é o único domínio em que o poder soberano de ideias se tem
conservado até os nossos dias. E só na arte que os homens atormentados
pelo desejo podem obter como que uma satisfação; e, graças à ilusão
artística, este jogo produz os mesmos efeitos afetivos que produziria se se
tratasse de algo real. Com razão se fala em magia da arte e se compara o
artista a um mago.24
A Música, expressão artística que é, penetra em espaços profundos do
ser, motivo pelo qual, além das emoções que permite vazar, muito nos esclarece e
nos ensina. Vladimir Passos de Freitas, no ensaio mencionado, destaca uma série
de músicas como “Saudosa Maloca”, de Adoniram Barbosa; “O pequeno burguês”,
de Martinho da Vila, e “Charles anjo 45”, de Jorge Benjor, que tratam,
respectivamente, de temas como cumprimento da lei, mercado de trabalho dos
bacharéis em Direito e dos efeitos no morro da prisão de um criminoso que ali
mantinha a ordem
25
.
Mas o que isso tem a ver com o Direito?
Num primeiro momento, numa visão apressada: nada, haja vista que não
guarda pertinência com as técnicas e métodos de interpretar/aplicar o Direito, ou
com a Ciência do Direito, que, mesmo na interpretação dos fatos, objeto de prova
em processos judiciais, vale-se de critérios pré-estabelecidos para sua valoração,
23
A música “Como nossos pais”, de Belchior, bem ilustra isso, ao dizer: “não quero lhe falar, meu
grande amor, das coisas que aprendi nos discos (...)”.
24
Coleção Pensamento Vivo – Freud. São Paulo: Martin Claret. 2005. p. 84.
25
FREITAS, Vladimir Passos. Direito e música é tema rico e pouco explorado. Jornal Estado do
Parná, Curitiba, 17 jan. 2011. Caderno Direito & Justiça.
11
caso dos princípios da presunção de inocência; da comunhão da prova; do “in dubio
pro reo” ou “in dubio pro operario” etc.
No entanto, uma visão mais acurada, permite verificar que a
interpretação/aplicação do Direito transcende à simples técnica ou operações lógico-
dedutivas. Se não fosse assim, os próprios operadores do sistema jurídico seriam
dispensáveis. Bastaria recorrer a programas computacionais, forjados mediante
códigos binários, para se atingir o resultado correto; objetivo e exato para a solução
dos casos. Mas assim não é. O Direito precisa do ser humano para sair das “folhas
de papel”. Tanto é que a decisão judical é chamada de “sentença”. O vocábulo que
advém do latim “sententia” e emana de “sentiendo”, gerúndio do verbo “sentire”, isto
é, sentimento, emoção, intuição. É por isso que Tourinho Filho afirma que, pela
sentença, “o juiz declara o que sente (‘quod judex per eam quid sentiat declaret)”.
26
Este aspecto nos remete a um dos símbolos mais conhecidos do Direito,
ou seja, o símbolo da Justiça dos Romanos, representado pela deusa “Iustitia”, que
apresentava os olhos vendados, ao contrário do símbolo de Justiça dos Gregos,
representado pela deusa Diké, filha de Zeus e Themis, que tinha os olhos abertos.27
Assim, poder-se-ia dizer que o símbolo da Justiça dos gregos seria mais adequado,
pois, com olhos abertos, sugere uma maior atenção por parte daqueles que atuam
com temas ligados à Justiça, além de que afastaria críticas e comentários de
pessoas menos avisadas ou mal-intencionadas, que, não raramente, afirmam em
tom jocoso e tendencioso que a “justiça é cega!”.
Todavia, os Romanos, dotados que eram de elevado senso prático, não
se distanciaram da realidade tal como ela se apresentava. Dessa maneira, não
demoraram a perceber que o Direito não se esgota na lei, como destacado por
Mário Moacyr Porto. É preciso algo mais. Mais do que simples “visão”, que por
vezes cega para o óbvio, é preciso sentir, perceber, captar os sentimentos que
26
TOURINHO FILHO “apud” POLONI, Ismair Roberto. Técnica Estrutural da Sentença Cível. Rio de
Janeiro: Forense, 2003. p. 09.
27
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 2ª
ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 32.
12
envolvem uma relação jurídica para se produzir um Direito Justo.28
Não por acaso,
para o jurista romano Celso: “Direito é a arte do bom e do equitativo” (“ius est ars
boni et aequi”) (DIGESTO, I, 1, 1). Aqui, pois, pode-se traçar um paralelo entre Direi-
to e Estética; entre Direito e Justiça; em suma, entre o Justo e o Belo. Esse paralelo
é bem apreendido por Mário Moacyr Porto:
Cedo vislumbrei, ao contato da admirável eurritmia que caracteriza as cons-
truções jurídicas, que o Direito é, essencialmente, uma obra de arte. O ne-
cessário afinamento que deverá existir entre a disciplina jurídica e a realida-
de social, a harmonia que se impõe a fim de que o Direito se revele uma
verdade de quilate válido entre o "dado" dos chamados "fatos normativos" e
o processo técnico de elaboração do positivismo jurídico, expressa, essen-
cialmente, uma revelação estética, uma identificação entre o justo e o belo.29
Mais adiante, o mesmo autor complementa:
A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música. Interpretar
é recriar, pois as notas musicais, como os textos de lei, são processos téc-
nicos de expressão, e não meios inextensíveis de exprimir. Há virtuosos do
piano que são verdadeiros datilógrafos do teclado. Infiéis à música, por ex-
cessiva fidelidade às notas, são instrumentistas para serem escutados, e
não intérpretes para serem entendidos. O mesmo acontece com a exegese
da lei jurídica. Aplicá-la é exprimi-la, não como uma disciplina limitada em si
mesma, mas como uma direção que se flexiona às sugestões da vida.
30
O Direito, portanto, não é apenas fruto de um paradigma fundado no
racional, no científico, na objetividade, na certeza, próprios de uma modernidade
cartesiana e newtoniana de outrora. Ao contrário, para se chegar à Justiça, a
interpretação/aplicação do Direito carece de elementos próprios da estética,
notadamente da sensibilidade, sob pena de fazer do Direito e da Justiça duas
28
Sobre esta particularidade, Diogo Ribeiro Ferreira traça o seguinte paralelo: “Saindo do mundo
jurídico, é interessante comentarmos que o cantor italiano Andrea Bocelli é conhecido pelo talento que
possui independentemente da faculdade da visão. Na música “Con te partiró” ele comenta a luz, a
janela, a lua e o sol, sem se esquecer de comentar sonhos e horizontes. Com uma voz invejada por
muitos cantores, ele é capaz de empolgar o público. A habilidade desse cantor nos faz refletir que a
falta de visão não impede o talento, tampouco o desempenho de uma atividade com maestria, o que
retoma a ideia da visão da “justiça”. Também nos faz cogitar que a visão pode conduzir ao deslum-
bramento, enquanto que a falta dela pode conduzir ao tratamento isonômico, ou seja, sua ausência
não conduz a um destino inexorável.” FERREIRA, Diogo Ribeiro. Direito e Música. Disponível
<http://www. www.hojeemdia.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2011.
29
PORTO, Mário Moacyr. Estética do Direito. Disponível em <www.leidsonfarias.adv.br/estetica.html>.
Acesso em 20 dez. 2011.
30
PORTO, Mário Moacyr. Ibidem.
13
realidades diversas e inconciliáveis entre si. A seguir, focar-se-á nessa tentativa de
aproximação entre Direito e Justiça, apoiando-se, para tanto, em elementos da
estética e, por conseguinte, da Música.
5. DIREITO E JUSTIÇA
Direito e Justiça são dois lados da mesma moeda. O Direito deve buscar
a Justiça. O Direito deve ser Justo31
. A propósito, vale lembrar Eduardo Couture
que, em seus Mandamentos do Advogado, no 4º mandamento, nominado como “lu-
ta”, pontificou: “teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em
conflito o direito e a justiça, luta pela justiça”.
Mas o que vem a ser Justiça?
E mais: como alcançá-la?
Para tentar responder a essas questões, que de há muito intrigam o ser
humano, convém citar uma passagem de Cecília Meireles que, ao tentar descrever
o que seria liberdade, afirmou: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não
(a) entenda”. Pois bem, o mesmo se pode dizer sobre Justiça: “não há ninguém que
(a) explique e ninguém que não (a) entenda”32
.
Na mesma esteira, está observação do personagem Pip, na obra Great
Expectations, de Charles Dickens: “não há nada que seja percebido e sentido tão
precisamente quanto a injustiça”.
33
Estas passagens mostram que a concepção de Justiça, mais do que des-
crita, explicada ou definida deve ser sentida, apreendida, captada, aferida, aquilata-
da num “mix” que envolve lei e fatos; texto e contexto; pessoas, circunstâncias e
contigências que interagem entre si e afluem para um mesmo entorno.
31
Em sentido contrário, está o pensamento de Kelsen para quem “(a) ciência jurídica não tem espaço
para os juízos de justiça”. KELSEN, Hans. O Que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho
da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 223.
32
Citação de memória do autor.
14
Justiça não é um conceito racional. Tanto que, por mais esforço e tinta
que filósofos e filósofos do Direito, de Platão a Aristóteles; de São Tomás de Aquino
a Kant, passando por Rousseau; de Radbruch a Perelman, Rawls, Bobbio e mesmo
Amartya Sen, pouco se afastou, “mutatis mutandis”, do “dar a cada um o que é seu”,
que, por sua vez, já estava previsto no Digesto I, 1, 1; e no Institutas, I, 1, 3, dos
Romanos34
.
Esta definição de Justiça, porém, é insuficiente e remete a outros questi-
onamentos. Por exemplo: “o que deve ser dado” a cada um?
Isto apenas confirma que a Justiça dificilmente será alcançada pelo o fei-
xe racional. Deve, assim, ser buscada além dos limites da razão, isto é, a partir de
sentimentos. Raramente, será materializada – exceto por suposto acaso –, por meio
de leituras autômatas de disposições legais, elaborados “pret-a-porter”, conforme
previsão do distante e imaginário personagem conhecido como legislador, que,
muitas vezes, não anteviu – sequer imaginou – o imprevisível, o imponderável que é
a vida humana; individual ou coletiva. É nesse diapasão, que Maria Francisca
Carneiro, defende que “o Direito não seria – não é – uma atividade meramente
racional, mas englobaria também aspetos tangentes à emoção e à sensibilidade”.35
Com efeito, operar o Direito – e com Justiça – pressupõe, dentre outras,
uma postura de empatia para com o próximo. Colocar-se no lugar do outro, “sentir”
seus dramas, seus sonhos, seus desejos; pôr-se em sua posição; vislumbrar suas
expectativas, legítimas ou não; perceber suas dores, frustrações, anseios e medos;
reais ou fictícios, e tentar, no caso, valendo-se, de preferência, da régua de Lesbos,
mencionoda por Aristóteles, no Capítulo 5, de sua Ética a Nicômaco36
, para tentar
33
DICKENS, Charles “apud” SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Tradução Denise Bottmann e Ricardo
Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 09.
34
Nesse sentido, a título de exemplo, transcreve-se os lineamentos que compõem o conceito de Jus-
tiça em Perelman: “1. A cada qual a mesma coisa. 2. A cada qual segundo seus mérito. 3. A cada qual
segundo suas obras. 4. A cada qual segundo suas necessidades. 5. A cada qual segundo sua posi-
ção. 6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.” PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. 09.
35
CARNEIRO, Maria Francisca. “Op. cit.”, p. 14.
36
Para Aristóteles “o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça
legal. (…) E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da
sua universalidade. E, mesmo, é esse o motivo por que nem todas as coisas são determinadas pela
lei: em torno de algumas é impossível legislar, de modo que se faz necessário um decreto. Com efeito,
quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar
15
restabelecer o equilíbrio (“mesótes”) que tenha sido abalado ou rompido por razões
específicias e/ou inusitadas no episódio.
Aqui repousa a ideia de Justiça, seja ela distributiva, comutativa,
restaurativa, retributiva, o que transcende a meras regras frias e/ou a partir de
interpretações mecânicas. Antes, exige sentimentos próprios da “Aesthesis”, em que
a Música, inegavelmente, se insere e auxilia.
Por evidente, não se pretende aqui desenvolver ou expor novo método ou
teoria de raciocínio jurídico apto a proclamar novel teoria da Justiça. Nada mais e-
quivocado. Defende-se, sim, a ideia de que o Direito não pode prescindir do concei-
to e mesmo da busca da Justiça por mais difícil e, talvez, utópico que isso possa
parecer. Caso contrário, pode-se incorrer num niilismo jurídico pernicioso sem pre-
cedentes e com ele aceitar, por indiferença ou passividade, qualquer Direito, mesmo
aquele próprio de regimes totalitários, relegando ao esquecimento todos os valores
humanitários presentes nos Direitos Fundamentais, conquistados que foram a duras
penas em Séculos de Civilização, o que seria inegável retrocesso
37
.
Neste particular, Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida advertem:
“O Direito, quando se afasta da justiça, revela-se, em grande parte, arbítrio, força
opressora, puro ato de imposição, e, com isso, sem ser balança, oprime pela espada
que deve proteger”.38
A dificuldade de se atingir e se concretizar um Direito Justo, mais do que
uma meta ou um objetivo, será sempre um desafio do qual não pode se afastar seu
intérprete/aplicador. A dificuldade deve ser vista mais como um elemento de motiva-
ção, e não como um fim inatingível. Dificuldade, aliás, não é sinônimo de impossibi-
lidade, até porque, como a experiência demonstra, decisões judiciais justas são pro-
feridas!
as molduras lésbicas: a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto
se adapta aos fatos”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bor-
nheim. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 334-337.
37
Nesse sentido, oportuna a observação de Ihering: “Todas as grandes conquistas da história do
direito, como a abolição da escravatura e da servidão, a livre aquisição da propriedade territorial, a
liberdade de profissão e de consciência, só puderam ser alcançadas através de séculos de lutas
intensas e ininterruptas.” IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Tradução de Pietro Nassetti. 2ª
ed. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 31.
16
Seguindo essa mesma orientação, estão as entusiáticas recomendações
de Cesar Asfor Rocha, na obra Cartas a um jovem juiz:
A nenhum de nós é estranho o tormentoso problema da justiça, não faltando
os que dizem que ela é algo tão subjetivo e rebelde à conceituação que é
empreendidamento impossível defenir-lhe o exato conteúdo. Mesmo os que
participam dessa desalentadora conclusão sabem detectar uma injustiça
quando a encontram, e isso já é suficiente para afirmar que a justiça é um
bem que se pode alcançar; basta persegui-lo com obstinação e denodo, o
que me faz lembrar a reflexão de Calamandrei ao dizer ser preciso acreditar
na justiça, que, como todas as divindades, só se revela àqueles que nela
creem.39
Em arremate, a aproximação entre Direito e Música emerge como fator
complementação e diálogo – jamais de exclusão – entre razão e emoção, o que a-
larga e amplia os caminhos para se chegar a um Direito Justo.
6. RISCOS DE UMA SUBJETIVIDADE DEMASIADA?
No contraponto do que aqui se expõe, poder-se-ia argumentar que esta
linha de pensamento contribui em demasia para a subjetividade, para
“decionismos”, para a manipulação de linguagem, para apelos emocionais
descontexutalizados, para um relativismo quase absoluto que aceita qualquer
solução jurídica, conforme as aspirações ou convicções pessoais e mesmo
habilidade do detentor da palavra, condutor e direcionador do raciocínio jurídico
alinhavado.
A crítica não procede.
Não há dúvida que toda forma de subjetividade, de fato, traz em si visões
de mundo diferentes, a partir das experiências do sujeito. Visões estas (valores)
que, sem dúvida, irão repercutir na solução jurídica do caso. Contudo, negar a
38
BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8ª ed. São
Paulo: Atlas, 2010. p. 694-695.
39
ROCHA, Cesar Asfor. Cartas a Um Jovem Juiz. Cada processo hospeda uma vida. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2009. p. 32.
17
subjetividade é antinatural. Ela sempre vai existir. A propósito, veja o que diz o
neurocientista Miguel Nicolelis:
Circuitos neurais formados por milhões ou mesmo bilhões de neurônios
produzem continuamente propriedades emergentes (...). Propriedades
emergentes também são responsáveis por outras funções cerebrais, mas
altamente complexas, como a percepção do mundo que nos cerca, a
geração de expectativas sobre eventos futuros e nosso senso de existir
como indivíduos únicos.
O sistema nervoso está sempre tomando a iniciativa e buscando
informações tanto sobre o corpo que habita como o mundo que o circunda,
compondo de maneira cuidadosa a máscara de realidade, opiniões, amores
(...). Essa procura incessante e quase obsessiva por informações e
conhecimento mantém o que gosto de chamar de ‘ponto de vista próprio do
cérebro’”
(...)
Dessa forma, a visão cartesiana de que o cérebro humano interpreta ou
decodifica passivamente sinais gerados no mundo exterior, sem nenhuma
opinião prévia, prejulgamento ou expectativa vinculados a esse processo,
não pode mais resistir à evidência experimental acumulada nas últimas
décadas”.
40
A par disso, a subjetividade, inerente à condição (e mente) humana,
longe está de ser um problema. Ao revés, é um dos caminhos a ser trilhado pelo
operador do Direito em busca de um Direito Justo. O Direito, assim como a vida, não
é estático. Deve, pois, acompanhar os passos da civilização, sejam estes para
frente ou para trás. Logo, somente um intérprete; ou melhor: um sujeito (daí
subjetividade) atento e, sobretudo, sensível ao cenário subjacente é que poderá
materializar um Direito com efetividade e em sintonia com a vida e valores que o
cercam.
Além do mais, todas as vezes que se tentou construir um Direito objetivo,
certo e seguro; rígido e fechado, os resultados foram desastrosos. Ficou
demonstrado que a ideia de completude do ordenamento jurídico e do juiz como a
boca da lei, nos moldes da Escola da Exegese da França, são incompatíveis com a
40
NICOLELIS, Miguel. Muito Além do Nosso Eu. São Paulo: Companhia de Letras, 2011. p. 51-53.
18
vida real. O Direito, assim como a vida, se constrói e se reconstrói dia a dia; num
fenômeno autopoiético, bem ao estilo descrito por Niklas Lhumann41
.
Some-se a isso, que a subjetividade que existe no Direito não significa
que todo o poder de dizer o Direito está restrito a apenas um indivíduo, hipótese em
que, aí sim, haveria riscos de uma subjetividade exacerbada; de uma ditadura
judicial ou daquele dotado da melhor retórica. Mas o que se tem hoje é que a
interpretação/aplicação do Direito se realiza mediante um processo dialético, de
modo que ao se mencionar o vocábulo “juiz”, não se está a dizer “um” juiz ou “o”
juiz, mas a se referir ao Poder Judiciário, que, por seu turno, é composto de vários
juízes e que, num único processo, em regra, atuam em vários níveis e graus
recursais, pulverizando o “juris dictio”. Isto, ao invés de restringir e concentrar o
debate, amplia-o pois é da soma que resulta o todo.
Ainda nesta linha, não se pode esquecer que existem inúmeros critérios,
princípios e institutos jurídicos, edificados ao longo da História do Direito, que
permitem coibir raciocínios jurídicos teratológicos, supostamente decorrentes de
uma subjetividade inaceitável. Podem ser lembrados a necessidade de se observar
o devido processo legal em sua concepção substancial; que, por si só, traz implícito
o contraditório e a ampla defesa; a oportunidade de revisões das decisões judiciais,
via recursos; os delineamentos que materializam a teoria das provas. Há, outrossim,
os métodos e princípios de hermenêutica jurídica que permitem checar o caminho
trilhado pelo operador ao construir seu discurso jurídico, tudo com vistas a impedir
erros e falhas. Erros e falhas, a propósito, que, queiram ou não, sempre existirão,
por ser tratar de obra executada por humanos (“errare humanum est”), o que,
também, não pode ser desconsiderado.
Neste cariz, o que se pode dizer é que a relação entre Direito e Música
não ignora a subjetividade e os sentimentos, emoções, valores que a acompanham.
Ao contrário, amplifica-os e, por conseguinte, enriquece o debate, não de maneira
autoritária, cega, abstrata ou formal, mas aberta ao ser humano; à vida. Estabelece
pontes que permitem unir razão e emoção, o que, em outros estudos, vem sendo
41
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Introdução a
uma Teoria Social Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 57-73.
19
chamado de “razão sensível”42
. E é neste cenário que Eduardo Bittar e Guilherme
Assis de Almeida sustentam: “quando razão e sensibilidade se encontram, o Direito
opera (a)Justiça”43
.
A associação entre Direito e Música permite ao estudioso e ao operador
do Direito um papel mais ativo, flexível, perspicaz e atento à dinâmica que
caracteriza e torneia as relações intersubjetivas. Alerta-o que atrás da “dureza” da lei
e da “frieza” dos autos existem pessoas, movidas por sentimentos, os quais não
podem ser desprezados pelo operador, o que contribuirá para um Direito melhor
interpretado/aplicado; um Direito Justo.
Esta aproximação, cumpre destacar, não nega ou exclui as balizas que
fundamentam o Direito em suas premissas racionais. Muito ao contrário,
complementa-o e auxilia-o numa empreitada convergente entre Direito e Justiça.
7. CONCLUSÕES
1. O estudo transdisciplinar tem sido uma nova maneira de se estudar o
Direito, ampliando o espectro do investigador. Atualmente, há registros de pesquisas
envolvendo Direito e Cinema, Direito e Literatura, Direito e Matemática e, inclusive,
Direito e Música. Esta perspectiva contribui para uma visão mais humanística e sen-
sível de captar a realidade da vida e da natureza humana, sem negar ou rejeitar a
técnica jurídica, o que, acredita-se, contribui para uma melhor interpreta-
ção/aplicação do Direito.
2. Atualmente, já existem pesquisas cotejando Direito e Música. Embora
estas ainda estejam em fase inicial, já se pode perceber que a Música, como ex-
pressão artística que é, permite ao estudioso e operador do Direito acessar campos
que os limites da razão não adentra. Amplia-se, pois, o instrumental do estudo do
Direito.
3. Dentre os vários pontos em comum entre Direito e Música está a in-
terpretação. Tanto a Música, como o Direito tomam por base referenciais. Na músi-
42
MAFFESOLI, Michel. Éloge De La Raison Sensible. Paris: La Table Ronde, 2005.
43
BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Op. cit., p. 699.
20
ca esse referencial é a partitura; no Direito, em linhas gerais, a lei. Sucede que, por
mais objetivo que sejam esses sinais (signos) tidos como referenciais, sempre será
necessária a intervenção humana; o intérprete. É este que fará a ponte entre esses
sinais e a realidade, visando a harmonia, tanto no Direito, como na Música.
4. A relação entre Direito e Música permite a aproximação entre Direito e
Estética. Enquanto o Direito busca a Justiça, a Estética se foca no Belo. Ambos têm
como pressuposto a sensibilidade de seus agentes para expressar o que não se
revela pela mera técnica. A técnica é apenas instrumento empregado por seus a-
gentes para se chegar ao Belo ou ao Justo. Mas só a técnica não basta para atingir
seu fim, salvo situações excepcionais, decorrentes mais do acaso do que de outros
fatores.
5. A definição clássica e secular de Justiça (“dar a cada um que é seu”)
evidencia sinais de limitação no plano racional. Afinal, o que deve ser dado a cada
um? Isto confirma que um Direito Justo exige mais do que regras pré-moldadas para
a dinâmica complexa e, por vezes, imponderável da realidade da vida e dos relacio-
namentos intersubjetivos. Exige sensibilidade para ver o que, ordinariamente, não
está à vista.
6. A abertura que a relação entre Direito e Música propicia ao reconhecer
o fator sensibilidade presente em ambos, não implica em riscos de uma subjetivida-
de demasiada e, com isso, colocar em risco a segurança jurídica. Primeiro, porque a
subjetividade é inerente à condição humana, sendo, pois, inafastável. Segundo,
porque existem critérios e institutos jurídicos a coibir disparates jurídicos, eventual-
mente decorrentes de uma subjetividade que se revele inadmissível em casos con-
cretos. Terceiro e, por último, a relação entre Direito e Música, ao reconhecer o fator
emoção na contribuição de um Direito Justo, não exclui os instrumentos da razão
jurídica. Ao contrário, implica na ampliação de horizontes, complementares e
dialógicos na materialização de um Direito Justo.
REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando:
Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
21
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Leonel Vallandro e Gerd Bornheim.
Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os
conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do
Direito. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Regina Elaine Santos. Direito e ma-
temática: uma abordagem interdisciplinar. Site Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n.
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Nuria Fabris, 2008.
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www.hojeemdia.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2011.
FREITAS, Vladimir Passos de. Direito e música é tema rico e pouco explorado.
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GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2008.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direi-
to. São Paulo: Malheiros. 2002.
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-
Moderna. Introdução a uma Teoria Social Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advo-
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IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Tradução Pietro Nassetti. 2ª ed. São
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22
KELSEN, Hans. O Que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da
ciência. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
LACERDA, Gabriel. O Direito no Cinema. São Paulo: FGV, 2007.
LOPES, Mônica Sette. Uma Metáfora: Música e Direito. São Paulo: LTr, 2006.
MAFFESOLI, Michel. Éloge de La Raison Sensible. Paris: La Table Ronde, 2005.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Ja-
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NICOLELIS, Miguel. Muito Além do Nosso Eu. São Paulo: Companhia de Letras,
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Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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Forense, 2003.
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REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
ROCHA, Cesar Asfor. Cartas a Um Jovem Juiz. Cada processo hospeda uma
vida. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009.
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Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
STEVENSON, Robert Louis. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Bibliobaz-
zar, LlC, 2008.
TELLES JR, Goffredo da Silva. Direito Quântico. São Paulo: Juarez de Oliveira,
2007.

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Direito e Música: aproximações para uma razão sensível

  • 1. 1 DIREITO & MÚSICA: aproximações para uma “razão sensível” José Ricardo Alvarez Vianna1 “A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música”. Mário Moacyr Porto Resumo: O artigo objetiva examinar possíveis conexões entre Direito e Música e de que maneira estas podem contribuir para o aprimoramento da interpretação/aplicação do Direito. Destaca que, tanto no Direito, como na Música, a interpretação exerce relevante peso no produto final da obra. Afirma que a Música, como expressão artística que é, revela aspectos profundos da natureza humana que a razão não pe- netra. Dessa forma, como o ser humano não é só razão, o Direito, para não se afastar da realidade, não deve se orientar apenas em premissas racionais. Ao contrário, o operador jurídico, na solução de casos, deve também agir com sensibilidade e perspicácia, captando e apreendendo os sentimentos e emoções que estão presentes – porém ocultas – nas relações jurídicas intersubjetivas. Com esta postura, acredita-se, ampliam-se os caminhos de convergência entre Direito e Justiça; ou, por outras palavras, emergem outras possibilidades para se chegar a um Direito Justo. Palavras-chave: Direito – Música – Interpretação – Razão – Emoção – Justiça. Abstract: The article aims to examine possible connections between Law and Music and how it can contribute to the improvement of the interpretation/application of Law. It emphasizes that, both in the Law and in the Music, the interpretation has significant importance in the final product of the work. States that the Music, as artistic expression, reveals deep aspects of human nature where the reason can not penetrate. Thus, as the human beings are not only governed by reason, the Law should not be labored just on rational, otherwise the law could deviate from reality. Instead, the legal operator must also act with sensibility and insight to solve the conflicts. He should capture the feelings and emotions that are present – but hidden – in the relationships among people. With this approach, the paths of convergence between Law and Justice could be enlarged; or, in other words, new possibilities could arise to get a fair trial. Keywords: Law – Music – Interpretation – Reason – Emotion – Justice.
  • 2. 2 1. INTRODUÇÃO Este artigo se propõe a analisar possíveis conexões entre Direito e Música. Embora, a princípio, sejam áreas incompatíveis e inconciliáveis entre si, um olhar mais atento revela que esta circunstância não impede que se identifiquem zonas de influência e de aprendizado recíprocos. Nesta sede, porém, concentrar-se- á em alguns pontos em comum entre Direito e Música para, na sequência, avaliar de que forma a Música pode contribuir para uma melhor aplicação/interpretação do Direito. Tem-se por objetivo geral destacar que a Música, enquanto expressão artística (Estética), transita por caminhos que as premissas racionais do Direito, em tese, não ingressam, mas que também interferem e moldam, de forma relevante, as relações jurídicas, uma vez que estas têm como protagonistas seres humanos, os quais não são apenas dotados de razão. Tem-se por objetivo específico ressaltar que os operadores e estudiosos do Direito, a exemplo do que ocorre na Música, também podem laborar a partir do sensível, das emoções e dos sentimentos que compõe e integram o ser humano, e não apenas ficarem circunscritos aos postulados lógico-formais que, ordinariamente, orientam o raciocínio jurídico. Esta abertura de horizontes, todavia, suscita questionamentos, os quais, de igual modo, almeja-se responder, tais como: as conexões entre Direito e Música guardam pertinência entre o Justo e o Belo? A aproximação entre Direito e Música 1 Juiz de Direito no Paraná, mestre e doutorando em Direito, membro fundador do Instituto de Latino- Americano de Argumentação Jurídica (ILAAG) e professor da Escola da Magistratura.
  • 3. 3 pode contribuir para a concretização de um Direito Justo? Ao ampliar o leque de interpretação/aplicação do Direito para o “sensível”, não há riscos de uma subjetividade demasiada, comprometendo a segurança jurídica? O texto, porém, não tem pretensão exaustiva, tampouco se assenta juízos definitivos. Busca-se tão-somente empreender novas possibilidades de laborar com o Direito e, assim, aproximá-lo da Justiça. Se fomentar a reflexão no leitor, independentemente de sua adesão às ideias aqui expostas, já se terá atingido seu desiderato. 2. APORTES APROXIMATIVOS Há um ditado no meio jurídico, de autoria incerta, que diz: “quem só sabe Direito, não sabe nem Direito”. É neste contexto que, de alguns anos para cá, o Direito tem sido estudado não só sob uma perspectiva jurídica isolada, mas também a partir de possíveis interconexões com outras áreas. Assim, traçam-se paralelos entre Direito e Literatura 2 , Direito e Cinema 3 , Direito e Psicanálise 4 , Direito e Matemática5 , Direito e Física6 , Direito e Neurociência7 e, inclusive, Direito e Música. Esta postura aberta de estudar o Direito amplia o espectro do investigador, ressaltando-lhes elementos humanísticos, superando a mera técnica jurídica, o que contribui para uma visão do Direito mais percuciente e sensível, apromixando-o da Justiça. Isto faz lembrar Miguel Reale que, em referência ao orador Romano, alertou: “nas lições de Cícero...devemos conhecer perfeitamente o homem, a natureza humana para, depois, conhecer o Direto”8 . 2 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 3 LACERDA, Gabriel. O Direito no Cinema. São Paulo: FGV, 2007. 4 CAFFÉ, Mara. Psicanálise e Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2010. 5 CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Regina Elaine Santos. Direito e matemática: uma abor- dagem interdisciplinar. Site Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2849, 20 abr. 2011. Acesso: 20 dez. 2011. 6 TELLES JR, Goffredo da Silva. Direito Quântico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007. 7 FERNANDEZ, Atahualpa e FERNANDEZ, Marly. Neuroética, Direito e Neurociência – Conduta Hu- mana, Liberdade e Racionalidade Jurídica. Curitiba: Juruá, 2007. 8 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 61.
  • 4. 4 É exatamente este o motor desses estudos transdisciplinares. Busca-se conhecer o ser humano em sua amplitude e complexidade; suas paixões, dramas, ilusões e sentimentos. Não se deixa esquecer que o ser humano é “luz”, mas, ao mesmo tempo, “sombra”; “médico” e “monstro”, como bem apreendido pelo escritor escocês Robert Louis Stevenson9 ; que a esperança, como consta da lendária Caixa de Pandora, é indissociável componente humano. Em suma, que o ser humano é formado por desejos, sonhos, medos, traumas, ideais; que, em sua efêmera passagem nisto convencionamente chamando mundo, convive com a angústia da morte e com as incertezas da vida, a qual pode ser bela ou dramática, conforme as experiências, valores ou significados que cada qual atribua aos episódios com que se deparar. São estes, dentre vários outros componentes, que acompanharão o ser humano e, por conseguinte, influenciarão o convívio social, razão pela qual não podem ser desconsiderados pelo Direito e por seus operadores, pesquisadores, estudiosos. Nesta conformidade, conhecendo melhor o ser humano, crê-se que o Direito pode ser melhor interpretado e aplicado, pois, uma vez mais próximo da realidade da vida, maiores as oportunidades de se alcançar o aspirado “bom senso”, tão apregoado onde quer que o Direito seja reclamado, mas de tão difícil consenso. Realidade, vida, Direito e ser humano devem ser vistos sob um mesmo panorama, até porque, como advertiu George Ripert: “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito” 10 . Como diz o milenar brocado: “ex factum oriutur jus” (o Direito advém dos fatos), de maneira que se o Direito visa regular as relações humanas de maneira harmoniosa – vocábulo que já remete à ideia de música –, deve, antes, conhecer essa realidade e, em especial, esse ser humano; a natureza humana, a condição humana, haja vista que, em última análise, é este o destinatário final do Direito. É este “conhecer” que a aproximação entre Direito e Música aspira e, acredita-se, contribui. Isto porque, a música, longe de ser mera combinação de sons, ritmos, melodias, tem acompanhado a humanidade desde seus primeiros passos, 9 STEVENSON, Robert Louis. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Bibliobazzar, LlC, 2008. 10 Citação de memória pelo autor.
  • 5. 5 expressando sentimentos, emoções, instintos, enfim revelando o outro lado da nossa espécie, que não se esgota na razão, na vontade ou em nosso consciente. Ao contrário, resulta da combinação dessas emoções e da razão. Comprova o que aqui se quer dizer ao olhar para nossa História e encon- trar traços musicais desde as civilizações Pré-Históricas, assim como nas Antigas Civilizações, como Mesopotâmia, Egito e Grécia só para citar algumas. Não é por acaso, portanto, que a música, de maneira direta ou indireta, está e esteve presente em sociedade desde em liturgias religiosas, a celebrações militares e patrióticas, ou como forma de expressar sentimentos como liberdade, amor, paixão, tristeza, indig- nação. Daí a grande variedade de gêneros musicais, que vão da música erudita ao hip hop; do country ao jazz; da música típica dos pigmeus Baka do Gabão ao serta- nejo de raiz ou MPB brasileiros. Música e ser humano caminham lado a lado. Aquela é manifestação, ex- pressão, sublimação, catarse deste. Revela-o. Daí por que se afigura essencial pa- ra o Direito na busca de melhor conhecer e mais se aproximar deste mesmo ser humano, que, mais próximo da realidade, poderá melhor reger o comportamento humano e suas múltiplas interações sociais. No Brasil, já existem estudos, embora pioneiros, sobre uma possível aproximação entre Direito e Música. Sobre o tema se destaca a obra de Mônica Sette Lopes, professora de Direito e juíza do trabalho em Minas Gerais, com o sugestivo título “Uma Metáfora: Música e Direito” 11 . Na mesma linha, mediante simples pesquisa na internet, podem ser encontrados outros ensaios com esse viés, como “Direito e música é tema rico e pouco explorado”, de Vladimir Passos de Freitas12 , e “Direito e Música”, de Diogo Ferreira de Freitas 13 . Seguramente, esses trabalhos permitem a identificação de pontos de convergência e influência mútua entre Direito e Música; ou, se preferir, de que forma 11 LOPES, Mônica Sette. Uma Metáfora: Música e Direito. São Paulo: LTr, 2006. 12 FREITAS, Vladimir Passos de. Direito e música é tema rico e pouco explorado. Jornal Estado do Parná, Curitiba, 17 ja. 2011. Caderno Direito & Justiça. 13 FERREIRA, Diogo Ribeiro. Direito e Música. Disponível <http://www. www.hojeemdia.com.br>. A- cesso em: 20 dez. 2011.
  • 6. 6 a Música pode auxiliar na compreensão, interpretação e aplicação do Direito. A contribuição, aliás, é mais evidente quando se percebe que a Música, não raramente, expõe ao estudioso do Direito os “pontos cegos” que os limites da razão lhe impedem o acesso. Por outras palavras, a música revela o que as obras jurídicas, ordinariamente, não revelam, embora, por vezes, versem sobre o mesmo assunto. 3. A INTERPRETAÇÃO NA MÚSICA E NO DIREITO Direito e Música podem ser analisados sob diversos aspectos. Um destes diz respeito à interpretação. Mas de que forma? Quais os pontos em comum e/ou de divergência entre a interpretação no Direito e a interpretação na Música? Para responder a estas indagações, observa-se, por primeiro, que, tanto a Música, como o Direito, em linhas gerais, têm um referencial de partida. No Direito, pode-se apontar a lei como uma de suas principais fontes, sobretudo nos países de tradição Romano-Germânica (“Civil Law”). Dito de outro modo, como um de seus principais referenciais de partida. De modo equivalente ocorre com a Música, que, por sua vez, toma por base a partitura. Esta conexão entre tais áreas fica mais evidente quando se constata que, por mais objetiva e universal que seja a linguagem musical (signos), não raramente transpondo limites de tempo e de espaço, a interpretação de cada artista será, consciente ou não, uma leitura e, por conseguinte, uma obra personalíssima, peculiar e individual. Este detalhe não passou despercebido por Eros Grau que, em seu Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito, anotou: A interpretação musical e teatral importa compreensão + reprodução (a obra, objeto da interpretação, para que possa ser compreendida, tendo em vista a contemplação estética, reclama um intérprete; o primeiro intérprete compreende e reproduz e o segundo intérprete compreende mediante a – através da – compreensão/reprodução do primeiro intérprete) (ainda que
  • 7. 7 nessa segunda compreensão se manifeste, também, a construção de uma nova forma de expressão).14 Para elucidar seu pensamento, Eros Grau, na mesma obra – destaque- se: jurídica –, sustenta que há duas formas de expressão artística; a das artes “alográficas” e a das artes “autográficas”. E explica: “nas artes alográficas (música e teatro), a obra apenas se completa com o concurso de dois personagens: autor e intérprete; nas artes autográficas (pintura e romance), o autor contribui sozinho para a realização da obra.” 15 A posição de Eros Grau fica mais palpável quando se verifica que intérpretes de uma mesma música, valendo-se de idênticos critérios objetivos (partitura, letra etc.), jamais (re)produzirão uma obra de maneira igual. A nona sinfonia de Beethoven não será a mesma se executada pela Orquestra Filarmônica de Berlim, de Londres ou de Viena. É pelo mesmo motivo que a música Yesterday, dos The Beatles, uma das mais regravadas da História da Música, e nos mais variados estilos, de Frank Sinatra a Roupa Nova; de Elvis Presley, Plácido Domingo a Ray Charles, passando por The King Sisters, não foi expressa da mesma forma. Cada interpretação trouxe o traço pessoal de seu intérprete; seu marco individual; suas características específicas, seu talento e belezas peculiares. De modo similar o Direito. Por mais objetiva que seja a linguagem jurídica contida na lei, ela sempre será objeto de significação por parte do intérprete do Direito. Segundo estudos mais recentes da hermenêutica, da filosofia da linguagem e da semiótica jurídicas, interpretar os signos linguísticos longe está de estabelecer o “exato alcance e real significado” da expressão veiculada no texto normativo. Mas, sim, em atribuir sentido a este; impor significação aos vocábulos (signos) contidos na lei. Para realizar este processo de significação, o intérprete toma o texto legal como base, mas seu efetivo significado somente se aperfeiçoará após situá-lo no contexto fático em que será aplicado para dirimir o conflito ali existente. Por 14 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros. 2002. p. 68. 15 GRAU, Eros Roberto. Ibidem, p. 68.
  • 8. 8 exemplo: o vocábulo “idoso” contido no art. 77, § 5º, da CF16 , previsto como critério de desempate em hipótese afeta a eleições presidenciais, não necessariamente terá como pressuposto a idade de 60 (sessenta) anos, apesar da redação taxativa do art. 1º, da Lei 10.471/2003 (Estatuto do Idoso) 17 . Isto só confirma que, por vezes, uma mesma palavra, pode receber significações diversas, o que enaltece, assim como na música, o papel do intérprete. Essa necessidade de significações de expressões normativas em sintonia com a faticidade no processo interpretativo do Direito é, ainda, a base do fenômeno que vem sendo denominado como mutação constitucional, proveniente do Direito Alemão18 . Para quem adere a esta corrente (mutação constitucional), os vocábulos contidos da Constituição de 1988 não devem ser lidos, apreendidos, interpretados e, sobretudo, significados de acordo com a realidade político-social de 1988. Ao contrário, devem o ser em conformidade com a realidade contemporânea, isto é, conforme as circunstâncias e contingências da época em que é realizada a interpretação; no caso, 2011. Um exemplo pode ilustrar o que se pretende dizer. Em seu artigo 150, inc. VI, alínea “d”, a Constituição Federal, está prevista a imunidade tributária para livros. Mas o que é “livro”? É claro que o conceito de livro de 1988 irá diferir do conceito de 2012, isto porque, naquela época, não se falava – sequer se cogitava – em livros eletrônicos, CD-Rooms, sites, PDFs, tablets etc. Isto significa dizer que a interpretação jurídica não é, nem deve ser um processo mecânico e automatizado, muito menos deve se realizar mediante operações lógico-matemáticas, que aspiram, contra a dinâmica da vida, significações unívocas ou pretensamente exatas. Ao contrário, carece de intervenção humana, o que traz à tona o pensamento de Carlos Maximiliano, ao expor a necessidade do intérprete/aplicador do Direito, como um autêntico intermediário, um “mediador esclarecido” (...) “entre a letra morta dos 16 Art. 77 (…) § 5º - Se, na hipótese dos parágrafos anteriores, remanescer, em segundo lugar, mais de um candidato com a mesma votação, qualificar-se-á o mais idoso. 17 Art. 1 o – É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. 18 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os conceitos fundamen- tais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 123-139.
  • 9. 9 códigos e a vida real, apto a plasmar, com a matéria-prima da lei, uma obra de elegância moral e útil à sociedade”.19 É ainda Carlos Maximiliano, já agora traçando um paralelo entre interpretação do Direito e interpretação Musicial, quem diz: “Comparável seria o magistrado ao violinista de talento, que procura compreender bem a partirura, e imprime à execução cunho pessoal, um brilho particular, decorrente da própria virtuosidade”20 . Em resumo, não há como interpretar a Música sem o ser humano. E a leitura, a contribuição, a percepção deste é que dá vida à Música. Da mesma forma, o Direito. Seus intérpretes, valendo-se de técnicas, assim como também ocorre na Música, é que produzirão um Direito em sintonia com a realidade social respectiva, desvelando e revelando os sentidos dos vocábulos normativos, porém atentos aos sentimentos, emoções, dramas e angústias que se inserem e se escondem nas relações intersubjetivas que meros textos legais ou partituras são incapazes de captar e expressar. 4. ESTÉTICA E DIREITO Outros palalelos podem ser traçados entre Direito e Música. A estética é uma deles. A palavra estética advém do grego αισθητική ou aisthésis e quer dizer “faculdade de sentir”, “compreensão dos sentidos”, “percepção totalizante”21 . Para Maria Francisca Carneiro, sob o prisma filosófico, a estética pode ser entendida como “teoria sobre a natureza da percepção sensível, designando-se também assim o conhecimento da arte e do belo”.22 19 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 59. 20 MAXIMILIANO, Carlos. Ibidem, p. 81. 21 ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; e, MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filo- sofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 378. 22 CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e a Arte de Julgar. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. p. 13.
  • 10. 10 Como já consignado, a música toca em sentimentos. A música “fala” de coisas da vida; de experiências de vida, de conflitos íntimos e interpessoais. Música é estética, portanto. Logo, a música nos tem muito a dizer23 . Muitas vezes entre a experiência de sentimentos e emoções há um abismo intransponível imposto pelos limites da razão, mas que a arte – e só ela, despida que é dessas barreiras – consegue transpor, permitindo o esclarecimento de abstratas e complexas emoções, o que conduz, inclusive, ao autoconhecimento. Nesse sentido, as palavras de Sigmund Freud: A arte é o único domínio em que o poder soberano de ideias se tem conservado até os nossos dias. E só na arte que os homens atormentados pelo desejo podem obter como que uma satisfação; e, graças à ilusão artística, este jogo produz os mesmos efeitos afetivos que produziria se se tratasse de algo real. Com razão se fala em magia da arte e se compara o artista a um mago.24 A Música, expressão artística que é, penetra em espaços profundos do ser, motivo pelo qual, além das emoções que permite vazar, muito nos esclarece e nos ensina. Vladimir Passos de Freitas, no ensaio mencionado, destaca uma série de músicas como “Saudosa Maloca”, de Adoniram Barbosa; “O pequeno burguês”, de Martinho da Vila, e “Charles anjo 45”, de Jorge Benjor, que tratam, respectivamente, de temas como cumprimento da lei, mercado de trabalho dos bacharéis em Direito e dos efeitos no morro da prisão de um criminoso que ali mantinha a ordem 25 . Mas o que isso tem a ver com o Direito? Num primeiro momento, numa visão apressada: nada, haja vista que não guarda pertinência com as técnicas e métodos de interpretar/aplicar o Direito, ou com a Ciência do Direito, que, mesmo na interpretação dos fatos, objeto de prova em processos judiciais, vale-se de critérios pré-estabelecidos para sua valoração, 23 A música “Como nossos pais”, de Belchior, bem ilustra isso, ao dizer: “não quero lhe falar, meu grande amor, das coisas que aprendi nos discos (...)”. 24 Coleção Pensamento Vivo – Freud. São Paulo: Martin Claret. 2005. p. 84. 25 FREITAS, Vladimir Passos. Direito e música é tema rico e pouco explorado. Jornal Estado do Parná, Curitiba, 17 jan. 2011. Caderno Direito & Justiça.
  • 11. 11 caso dos princípios da presunção de inocência; da comunhão da prova; do “in dubio pro reo” ou “in dubio pro operario” etc. No entanto, uma visão mais acurada, permite verificar que a interpretação/aplicação do Direito transcende à simples técnica ou operações lógico- dedutivas. Se não fosse assim, os próprios operadores do sistema jurídico seriam dispensáveis. Bastaria recorrer a programas computacionais, forjados mediante códigos binários, para se atingir o resultado correto; objetivo e exato para a solução dos casos. Mas assim não é. O Direito precisa do ser humano para sair das “folhas de papel”. Tanto é que a decisão judical é chamada de “sentença”. O vocábulo que advém do latim “sententia” e emana de “sentiendo”, gerúndio do verbo “sentire”, isto é, sentimento, emoção, intuição. É por isso que Tourinho Filho afirma que, pela sentença, “o juiz declara o que sente (‘quod judex per eam quid sentiat declaret)”. 26 Este aspecto nos remete a um dos símbolos mais conhecidos do Direito, ou seja, o símbolo da Justiça dos Romanos, representado pela deusa “Iustitia”, que apresentava os olhos vendados, ao contrário do símbolo de Justiça dos Gregos, representado pela deusa Diké, filha de Zeus e Themis, que tinha os olhos abertos.27 Assim, poder-se-ia dizer que o símbolo da Justiça dos gregos seria mais adequado, pois, com olhos abertos, sugere uma maior atenção por parte daqueles que atuam com temas ligados à Justiça, além de que afastaria críticas e comentários de pessoas menos avisadas ou mal-intencionadas, que, não raramente, afirmam em tom jocoso e tendencioso que a “justiça é cega!”. Todavia, os Romanos, dotados que eram de elevado senso prático, não se distanciaram da realidade tal como ela se apresentava. Dessa maneira, não demoraram a perceber que o Direito não se esgota na lei, como destacado por Mário Moacyr Porto. É preciso algo mais. Mais do que simples “visão”, que por vezes cega para o óbvio, é preciso sentir, perceber, captar os sentimentos que 26 TOURINHO FILHO “apud” POLONI, Ismair Roberto. Técnica Estrutural da Sentença Cível. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 09. 27 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: Técnica, Decisão, Dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 32.
  • 12. 12 envolvem uma relação jurídica para se produzir um Direito Justo.28 Não por acaso, para o jurista romano Celso: “Direito é a arte do bom e do equitativo” (“ius est ars boni et aequi”) (DIGESTO, I, 1, 1). Aqui, pois, pode-se traçar um paralelo entre Direi- to e Estética; entre Direito e Justiça; em suma, entre o Justo e o Belo. Esse paralelo é bem apreendido por Mário Moacyr Porto: Cedo vislumbrei, ao contato da admirável eurritmia que caracteriza as cons- truções jurídicas, que o Direito é, essencialmente, uma obra de arte. O ne- cessário afinamento que deverá existir entre a disciplina jurídica e a realida- de social, a harmonia que se impõe a fim de que o Direito se revele uma verdade de quilate válido entre o "dado" dos chamados "fatos normativos" e o processo técnico de elaboração do positivismo jurídico, expressa, essen- cialmente, uma revelação estética, uma identificação entre o justo e o belo.29 Mais adiante, o mesmo autor complementa: A lei não esgota o Direito, como a partitura não exaure a música. Interpretar é recriar, pois as notas musicais, como os textos de lei, são processos téc- nicos de expressão, e não meios inextensíveis de exprimir. Há virtuosos do piano que são verdadeiros datilógrafos do teclado. Infiéis à música, por ex- cessiva fidelidade às notas, são instrumentistas para serem escutados, e não intérpretes para serem entendidos. O mesmo acontece com a exegese da lei jurídica. Aplicá-la é exprimi-la, não como uma disciplina limitada em si mesma, mas como uma direção que se flexiona às sugestões da vida. 30 O Direito, portanto, não é apenas fruto de um paradigma fundado no racional, no científico, na objetividade, na certeza, próprios de uma modernidade cartesiana e newtoniana de outrora. Ao contrário, para se chegar à Justiça, a interpretação/aplicação do Direito carece de elementos próprios da estética, notadamente da sensibilidade, sob pena de fazer do Direito e da Justiça duas 28 Sobre esta particularidade, Diogo Ribeiro Ferreira traça o seguinte paralelo: “Saindo do mundo jurídico, é interessante comentarmos que o cantor italiano Andrea Bocelli é conhecido pelo talento que possui independentemente da faculdade da visão. Na música “Con te partiró” ele comenta a luz, a janela, a lua e o sol, sem se esquecer de comentar sonhos e horizontes. Com uma voz invejada por muitos cantores, ele é capaz de empolgar o público. A habilidade desse cantor nos faz refletir que a falta de visão não impede o talento, tampouco o desempenho de uma atividade com maestria, o que retoma a ideia da visão da “justiça”. Também nos faz cogitar que a visão pode conduzir ao deslum- bramento, enquanto que a falta dela pode conduzir ao tratamento isonômico, ou seja, sua ausência não conduz a um destino inexorável.” FERREIRA, Diogo Ribeiro. Direito e Música. Disponível <http://www. www.hojeemdia.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2011. 29 PORTO, Mário Moacyr. Estética do Direito. Disponível em <www.leidsonfarias.adv.br/estetica.html>. Acesso em 20 dez. 2011. 30 PORTO, Mário Moacyr. Ibidem.
  • 13. 13 realidades diversas e inconciliáveis entre si. A seguir, focar-se-á nessa tentativa de aproximação entre Direito e Justiça, apoiando-se, para tanto, em elementos da estética e, por conseguinte, da Música. 5. DIREITO E JUSTIÇA Direito e Justiça são dois lados da mesma moeda. O Direito deve buscar a Justiça. O Direito deve ser Justo31 . A propósito, vale lembrar Eduardo Couture que, em seus Mandamentos do Advogado, no 4º mandamento, nominado como “lu- ta”, pontificou: “teu dever é lutar pelo Direito, mas no dia em que encontrares em conflito o direito e a justiça, luta pela justiça”. Mas o que vem a ser Justiça? E mais: como alcançá-la? Para tentar responder a essas questões, que de há muito intrigam o ser humano, convém citar uma passagem de Cecília Meireles que, ao tentar descrever o que seria liberdade, afirmou: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”. Pois bem, o mesmo se pode dizer sobre Justiça: “não há ninguém que (a) explique e ninguém que não (a) entenda”32 . Na mesma esteira, está observação do personagem Pip, na obra Great Expectations, de Charles Dickens: “não há nada que seja percebido e sentido tão precisamente quanto a injustiça”. 33 Estas passagens mostram que a concepção de Justiça, mais do que des- crita, explicada ou definida deve ser sentida, apreendida, captada, aferida, aquilata- da num “mix” que envolve lei e fatos; texto e contexto; pessoas, circunstâncias e contigências que interagem entre si e afluem para um mesmo entorno. 31 Em sentido contrário, está o pensamento de Kelsen para quem “(a) ciência jurídica não tem espaço para os juízos de justiça”. KELSEN, Hans. O Que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 223. 32 Citação de memória do autor.
  • 14. 14 Justiça não é um conceito racional. Tanto que, por mais esforço e tinta que filósofos e filósofos do Direito, de Platão a Aristóteles; de São Tomás de Aquino a Kant, passando por Rousseau; de Radbruch a Perelman, Rawls, Bobbio e mesmo Amartya Sen, pouco se afastou, “mutatis mutandis”, do “dar a cada um o que é seu”, que, por sua vez, já estava previsto no Digesto I, 1, 1; e no Institutas, I, 1, 3, dos Romanos34 . Esta definição de Justiça, porém, é insuficiente e remete a outros questi- onamentos. Por exemplo: “o que deve ser dado” a cada um? Isto apenas confirma que a Justiça dificilmente será alcançada pelo o fei- xe racional. Deve, assim, ser buscada além dos limites da razão, isto é, a partir de sentimentos. Raramente, será materializada – exceto por suposto acaso –, por meio de leituras autômatas de disposições legais, elaborados “pret-a-porter”, conforme previsão do distante e imaginário personagem conhecido como legislador, que, muitas vezes, não anteviu – sequer imaginou – o imprevisível, o imponderável que é a vida humana; individual ou coletiva. É nesse diapasão, que Maria Francisca Carneiro, defende que “o Direito não seria – não é – uma atividade meramente racional, mas englobaria também aspetos tangentes à emoção e à sensibilidade”.35 Com efeito, operar o Direito – e com Justiça – pressupõe, dentre outras, uma postura de empatia para com o próximo. Colocar-se no lugar do outro, “sentir” seus dramas, seus sonhos, seus desejos; pôr-se em sua posição; vislumbrar suas expectativas, legítimas ou não; perceber suas dores, frustrações, anseios e medos; reais ou fictícios, e tentar, no caso, valendo-se, de preferência, da régua de Lesbos, mencionoda por Aristóteles, no Capítulo 5, de sua Ética a Nicômaco36 , para tentar 33 DICKENS, Charles “apud” SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Tradução Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 09. 34 Nesse sentido, a título de exemplo, transcreve-se os lineamentos que compõem o conceito de Jus- tiça em Perelman: “1. A cada qual a mesma coisa. 2. A cada qual segundo seus mérito. 3. A cada qual segundo suas obras. 4. A cada qual segundo suas necessidades. 5. A cada qual segundo sua posi- ção. 6. A cada qual segundo o que a lei lhe atribui.” PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 09. 35 CARNEIRO, Maria Francisca. “Op. cit.”, p. 14. 36 Para Aristóteles “o equitativo é justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. (…) E essa é a natureza do equitativo: uma correção da lei quando ela é deficiente em razão da sua universalidade. E, mesmo, é esse o motivo por que nem todas as coisas são determinadas pela lei: em torno de algumas é impossível legislar, de modo que se faz necessário um decreto. Com efeito, quando a coisa é indefinida, a regra também é indefinida, como a régua de chumbo usada para ajustar
  • 15. 15 restabelecer o equilíbrio (“mesótes”) que tenha sido abalado ou rompido por razões específicias e/ou inusitadas no episódio. Aqui repousa a ideia de Justiça, seja ela distributiva, comutativa, restaurativa, retributiva, o que transcende a meras regras frias e/ou a partir de interpretações mecânicas. Antes, exige sentimentos próprios da “Aesthesis”, em que a Música, inegavelmente, se insere e auxilia. Por evidente, não se pretende aqui desenvolver ou expor novo método ou teoria de raciocínio jurídico apto a proclamar novel teoria da Justiça. Nada mais e- quivocado. Defende-se, sim, a ideia de que o Direito não pode prescindir do concei- to e mesmo da busca da Justiça por mais difícil e, talvez, utópico que isso possa parecer. Caso contrário, pode-se incorrer num niilismo jurídico pernicioso sem pre- cedentes e com ele aceitar, por indiferença ou passividade, qualquer Direito, mesmo aquele próprio de regimes totalitários, relegando ao esquecimento todos os valores humanitários presentes nos Direitos Fundamentais, conquistados que foram a duras penas em Séculos de Civilização, o que seria inegável retrocesso 37 . Neste particular, Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida advertem: “O Direito, quando se afasta da justiça, revela-se, em grande parte, arbítrio, força opressora, puro ato de imposição, e, com isso, sem ser balança, oprime pela espada que deve proteger”.38 A dificuldade de se atingir e se concretizar um Direito Justo, mais do que uma meta ou um objetivo, será sempre um desafio do qual não pode se afastar seu intérprete/aplicador. A dificuldade deve ser vista mais como um elemento de motiva- ção, e não como um fim inatingível. Dificuldade, aliás, não é sinônimo de impossibi- lidade, até porque, como a experiência demonstra, decisões judiciais justas são pro- feridas! as molduras lésbicas: a régua adapta-se à forma da pedra e não é rígida, exatamente como o decreto se adapta aos fatos”. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bor- nheim. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 334-337. 37 Nesse sentido, oportuna a observação de Ihering: “Todas as grandes conquistas da história do direito, como a abolição da escravatura e da servidão, a livre aquisição da propriedade territorial, a liberdade de profissão e de consciência, só puderam ser alcançadas através de séculos de lutas intensas e ininterruptas.” IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Tradução de Pietro Nassetti. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 31.
  • 16. 16 Seguindo essa mesma orientação, estão as entusiáticas recomendações de Cesar Asfor Rocha, na obra Cartas a um jovem juiz: A nenhum de nós é estranho o tormentoso problema da justiça, não faltando os que dizem que ela é algo tão subjetivo e rebelde à conceituação que é empreendidamento impossível defenir-lhe o exato conteúdo. Mesmo os que participam dessa desalentadora conclusão sabem detectar uma injustiça quando a encontram, e isso já é suficiente para afirmar que a justiça é um bem que se pode alcançar; basta persegui-lo com obstinação e denodo, o que me faz lembrar a reflexão de Calamandrei ao dizer ser preciso acreditar na justiça, que, como todas as divindades, só se revela àqueles que nela creem.39 Em arremate, a aproximação entre Direito e Música emerge como fator complementação e diálogo – jamais de exclusão – entre razão e emoção, o que a- larga e amplia os caminhos para se chegar a um Direito Justo. 6. RISCOS DE UMA SUBJETIVIDADE DEMASIADA? No contraponto do que aqui se expõe, poder-se-ia argumentar que esta linha de pensamento contribui em demasia para a subjetividade, para “decionismos”, para a manipulação de linguagem, para apelos emocionais descontexutalizados, para um relativismo quase absoluto que aceita qualquer solução jurídica, conforme as aspirações ou convicções pessoais e mesmo habilidade do detentor da palavra, condutor e direcionador do raciocínio jurídico alinhavado. A crítica não procede. Não há dúvida que toda forma de subjetividade, de fato, traz em si visões de mundo diferentes, a partir das experiências do sujeito. Visões estas (valores) que, sem dúvida, irão repercutir na solução jurídica do caso. Contudo, negar a 38 BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 694-695. 39 ROCHA, Cesar Asfor. Cartas a Um Jovem Juiz. Cada processo hospeda uma vida. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. p. 32.
  • 17. 17 subjetividade é antinatural. Ela sempre vai existir. A propósito, veja o que diz o neurocientista Miguel Nicolelis: Circuitos neurais formados por milhões ou mesmo bilhões de neurônios produzem continuamente propriedades emergentes (...). Propriedades emergentes também são responsáveis por outras funções cerebrais, mas altamente complexas, como a percepção do mundo que nos cerca, a geração de expectativas sobre eventos futuros e nosso senso de existir como indivíduos únicos. O sistema nervoso está sempre tomando a iniciativa e buscando informações tanto sobre o corpo que habita como o mundo que o circunda, compondo de maneira cuidadosa a máscara de realidade, opiniões, amores (...). Essa procura incessante e quase obsessiva por informações e conhecimento mantém o que gosto de chamar de ‘ponto de vista próprio do cérebro’” (...) Dessa forma, a visão cartesiana de que o cérebro humano interpreta ou decodifica passivamente sinais gerados no mundo exterior, sem nenhuma opinião prévia, prejulgamento ou expectativa vinculados a esse processo, não pode mais resistir à evidência experimental acumulada nas últimas décadas”. 40 A par disso, a subjetividade, inerente à condição (e mente) humana, longe está de ser um problema. Ao revés, é um dos caminhos a ser trilhado pelo operador do Direito em busca de um Direito Justo. O Direito, assim como a vida, não é estático. Deve, pois, acompanhar os passos da civilização, sejam estes para frente ou para trás. Logo, somente um intérprete; ou melhor: um sujeito (daí subjetividade) atento e, sobretudo, sensível ao cenário subjacente é que poderá materializar um Direito com efetividade e em sintonia com a vida e valores que o cercam. Além do mais, todas as vezes que se tentou construir um Direito objetivo, certo e seguro; rígido e fechado, os resultados foram desastrosos. Ficou demonstrado que a ideia de completude do ordenamento jurídico e do juiz como a boca da lei, nos moldes da Escola da Exegese da França, são incompatíveis com a 40 NICOLELIS, Miguel. Muito Além do Nosso Eu. São Paulo: Companhia de Letras, 2011. p. 51-53.
  • 18. 18 vida real. O Direito, assim como a vida, se constrói e se reconstrói dia a dia; num fenômeno autopoiético, bem ao estilo descrito por Niklas Lhumann41 . Some-se a isso, que a subjetividade que existe no Direito não significa que todo o poder de dizer o Direito está restrito a apenas um indivíduo, hipótese em que, aí sim, haveria riscos de uma subjetividade exacerbada; de uma ditadura judicial ou daquele dotado da melhor retórica. Mas o que se tem hoje é que a interpretação/aplicação do Direito se realiza mediante um processo dialético, de modo que ao se mencionar o vocábulo “juiz”, não se está a dizer “um” juiz ou “o” juiz, mas a se referir ao Poder Judiciário, que, por seu turno, é composto de vários juízes e que, num único processo, em regra, atuam em vários níveis e graus recursais, pulverizando o “juris dictio”. Isto, ao invés de restringir e concentrar o debate, amplia-o pois é da soma que resulta o todo. Ainda nesta linha, não se pode esquecer que existem inúmeros critérios, princípios e institutos jurídicos, edificados ao longo da História do Direito, que permitem coibir raciocínios jurídicos teratológicos, supostamente decorrentes de uma subjetividade inaceitável. Podem ser lembrados a necessidade de se observar o devido processo legal em sua concepção substancial; que, por si só, traz implícito o contraditório e a ampla defesa; a oportunidade de revisões das decisões judiciais, via recursos; os delineamentos que materializam a teoria das provas. Há, outrossim, os métodos e princípios de hermenêutica jurídica que permitem checar o caminho trilhado pelo operador ao construir seu discurso jurídico, tudo com vistas a impedir erros e falhas. Erros e falhas, a propósito, que, queiram ou não, sempre existirão, por ser tratar de obra executada por humanos (“errare humanum est”), o que, também, não pode ser desconsiderado. Neste cariz, o que se pode dizer é que a relação entre Direito e Música não ignora a subjetividade e os sentimentos, emoções, valores que a acompanham. Ao contrário, amplifica-os e, por conseguinte, enriquece o debate, não de maneira autoritária, cega, abstrata ou formal, mas aberta ao ser humano; à vida. Estabelece pontes que permitem unir razão e emoção, o que, em outros estudos, vem sendo 41 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós-Moderna. Introdução a uma Teoria Social Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 57-73.
  • 19. 19 chamado de “razão sensível”42 . E é neste cenário que Eduardo Bittar e Guilherme Assis de Almeida sustentam: “quando razão e sensibilidade se encontram, o Direito opera (a)Justiça”43 . A associação entre Direito e Música permite ao estudioso e ao operador do Direito um papel mais ativo, flexível, perspicaz e atento à dinâmica que caracteriza e torneia as relações intersubjetivas. Alerta-o que atrás da “dureza” da lei e da “frieza” dos autos existem pessoas, movidas por sentimentos, os quais não podem ser desprezados pelo operador, o que contribuirá para um Direito melhor interpretado/aplicado; um Direito Justo. Esta aproximação, cumpre destacar, não nega ou exclui as balizas que fundamentam o Direito em suas premissas racionais. Muito ao contrário, complementa-o e auxilia-o numa empreitada convergente entre Direito e Justiça. 7. CONCLUSÕES 1. O estudo transdisciplinar tem sido uma nova maneira de se estudar o Direito, ampliando o espectro do investigador. Atualmente, há registros de pesquisas envolvendo Direito e Cinema, Direito e Literatura, Direito e Matemática e, inclusive, Direito e Música. Esta perspectiva contribui para uma visão mais humanística e sen- sível de captar a realidade da vida e da natureza humana, sem negar ou rejeitar a técnica jurídica, o que, acredita-se, contribui para uma melhor interpreta- ção/aplicação do Direito. 2. Atualmente, já existem pesquisas cotejando Direito e Música. Embora estas ainda estejam em fase inicial, já se pode perceber que a Música, como ex- pressão artística que é, permite ao estudioso e operador do Direito acessar campos que os limites da razão não adentra. Amplia-se, pois, o instrumental do estudo do Direito. 3. Dentre os vários pontos em comum entre Direito e Música está a in- terpretação. Tanto a Música, como o Direito tomam por base referenciais. Na músi- 42 MAFFESOLI, Michel. Éloge De La Raison Sensible. Paris: La Table Ronde, 2005. 43 BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Op. cit., p. 699.
  • 20. 20 ca esse referencial é a partitura; no Direito, em linhas gerais, a lei. Sucede que, por mais objetivo que sejam esses sinais (signos) tidos como referenciais, sempre será necessária a intervenção humana; o intérprete. É este que fará a ponte entre esses sinais e a realidade, visando a harmonia, tanto no Direito, como na Música. 4. A relação entre Direito e Música permite a aproximação entre Direito e Estética. Enquanto o Direito busca a Justiça, a Estética se foca no Belo. Ambos têm como pressuposto a sensibilidade de seus agentes para expressar o que não se revela pela mera técnica. A técnica é apenas instrumento empregado por seus a- gentes para se chegar ao Belo ou ao Justo. Mas só a técnica não basta para atingir seu fim, salvo situações excepcionais, decorrentes mais do acaso do que de outros fatores. 5. A definição clássica e secular de Justiça (“dar a cada um que é seu”) evidencia sinais de limitação no plano racional. Afinal, o que deve ser dado a cada um? Isto confirma que um Direito Justo exige mais do que regras pré-moldadas para a dinâmica complexa e, por vezes, imponderável da realidade da vida e dos relacio- namentos intersubjetivos. Exige sensibilidade para ver o que, ordinariamente, não está à vista. 6. A abertura que a relação entre Direito e Música propicia ao reconhecer o fator sensibilidade presente em ambos, não implica em riscos de uma subjetivida- de demasiada e, com isso, colocar em risco a segurança jurídica. Primeiro, porque a subjetividade é inerente à condição humana, sendo, pois, inafastável. Segundo, porque existem critérios e institutos jurídicos a coibir disparates jurídicos, eventual- mente decorrentes de uma subjetividade que se revele inadmissível em casos con- cretos. Terceiro e, por último, a relação entre Direito e Música, ao reconhecer o fator emoção na contribuição de um Direito Justo, não exclui os instrumentos da razão jurídica. Ao contrário, implica na ampliação de horizontes, complementares e dialógicos na materialização de um Direito Justo. REFERÊNCIAS ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986.
  • 21. 21 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução Leonel Vallandro e Gerd Bornheim. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. Os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Regina Elaine Santos. Direito e ma- temática: uma abordagem interdisciplinar. Site Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2849, 20 abr. 2011. Acesso: 20 dez. 2011. CAFFÉ, Mara. Psicanálise e Direito. São Paulo: Quartier Latin, 2010. CARNEIRO, Maria Francisca. Direito, Estética e a Arte de Julgar. Porto Alegre: Nuria Fabris, 2008. FERNANDEZ, Atahualpa e FERNANDEZ, Marly. Neuroética, Direito e Neurociên- cia – Conduta Humana, Liberdade e Racionalidade Jurídica. Curitiba: Juruá, 2007. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1994 FERREIRA, Diogo Ribeiro. Direito e Música. Disponível <http://www. www.hojeemdia.com.br>. Acesso em: 20 dez. 2011. FREITAS, Vladimir Passos de. Direito e música é tema rico e pouco explorado. Jornal Estado do Paraná, Curitiba, 17 jan. 2011. Caderno Direito & Justiça. FREUD. Col. Pensamento Vivo. São Paulo: Martin Claret. 2005. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito e Literatura. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direi- to. São Paulo: Malheiros. 2002. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Autopoiese do Direito na Sociedade Pós- Moderna. Introdução a uma Teoria Social Sistêmica. Porto Alegre: Livraria do Advo- gado, 1997. IHERING, Rudolf von. A Luta pelo Direito. Tradução Pietro Nassetti. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2000.
  • 22. 22 KELSEN, Hans. O Que é Justiça? A justiça, o direito e a política no espelho da ciência. Tradução Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 1998. LACERDA, Gabriel. O Direito no Cinema. São Paulo: FGV, 2007. LOPES, Mônica Sette. Uma Metáfora: Música e Direito. São Paulo: LTr, 2006. MAFFESOLI, Michel. Éloge de La Raison Sensible. Paris: La Table Ronde, 2005. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 11ª ed. Rio de Ja- neiro: Forense, 1992. NICOLELIS, Miguel. Muito Além do Nosso Eu. São Paulo: Companhia de Letras, 2011. PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. Tradução Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. POLONI, Ismair Roberto. Técnica Estrutural da Sentença Cível. Rio de Janeiro: Forense, 2003. PORTO, Mário Moacyr. Estética do Direito. Disponível em <www.leidsonfarias.adv.br/estetica.html>. Acesso em 20 dez. 2011. REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988. ROCHA, Cesar Asfor. Cartas a Um Jovem Juiz. Cada processo hospeda uma vida. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Tradução Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. STEVENSON, Robert Louis. Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde. Bibliobaz- zar, LlC, 2008. TELLES JR, Goffredo da Silva. Direito Quântico. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2007.