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Universidade de Brasília - Instituto de Artes
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Disciplina: Poéticas em Cena – 2/2015
Professor: Dr. Fernando Antônio Pinheiro Villar de Queiroz
Doutorando: Tiago Mundim
Cor de gente, cor de asfalto
A primeira impressão que tive ao me deparar com a assemblagem de Mônica Leite foi
um misto de curiosidade pela obra de arte e questionamentos sobre sua pesquisa no mestrado.
A plasticidade da obra foi instigadora: uma boneca toda coberta de terra, em um espaço
também sujo por esta terra, com um baú e uma caneca, tudo envolto por um grande saco de
lixo  preto.  Ao  lado,  existiam  três  “filtros”  para  a  visão:  uma lupa de aumento, uma lupa que
distorce e um óculos-escuro marrom, que dá uma cor amarronzada à assemblagem,
reforçando ainda mais a cor da terra.
Ao mesmo tempo em que a obra me convidava à exploração e ao toque – uma vez que
o corpo todo da boneca, a caneca e o baú estavam repletos de textos, frases e palavras –, os
filtros na parte externa da obra me reforçavam a observação pelo olhar apenas, modificando e
explorando o que estava sendo visto apenas pelos filtros da visão que estavam à disposição ao
lado do saco preto de lixo.
Na boneca, as palavras soltas coladas em seu corpo – pessoa, brasil, corpos, lixo, falar,
fronteira, movimento, sangue – me levaram a entender essa pessoa como não sendo um ser
humano completo, mas uma pessoa composta de fragmentos, incompletos, que ao mesmo
tempo tentavam transformar esse monte de terra em gente e colocava essa pessoa no lugar
desse barro avermelhado, misturando o ser à terra.
Ao analisar dentro do baú a olho nú, pude ver um chapéu de palha, um vestido de festa
de boneca rasgado, um garfo e um pergaminho com algo escrito, mas que não consegui ler.
Resolvi então me fazer uso do primeiro filtro deixado sobre a mesa e tentei com a lupa de
aumento ler o que estava escrito no pergaminho. Mesmo aproximando do texto com a lupa
não consegui decifrar o que estava escrito e imaginei que o texto seria então algum segredo
que quer ser revelado, mas que não pode ser decifrado pela escrita, somente pela voz e pelo
corpo da boneca, que precisa sair debaixo de toda aquela terra para poder revelar-se.
Ainda instigado com a plasticidade da assemblagem, comecei a exploração com os
outros filtros, buscando agora não apenas a beleza da obra de arte, mas o objeto de pesquisa
da pesquisadora que criou a obra.
A cor de barro foi fortemente alterada pela lente dos óculos-escuros, que trouxe uma
imagem de seca, nordeste, sertão, poeira. Imaginei que o objeto de pesquisa da autora seria a
busca pela poesia da arte que está encoberta pela poeira da vida, que precisa ser sacudida para
ser  vista  e  ouvida.  E  que  tudo  dependeria  dos  “filtros”  e  da  nossa  maneira  de  olhar  para  o  
mundo para poder entender e revelar essa poesia por debaixo dessa terra toda.
Quando passamos para a discussão da assemblagem em grupo, surgiram comentários
que complementavam a minha primeira observação e outros que levaram para outros
caminhos. Foi observado pelo grupo que os escritos no corpo da mulher estavam revelando
uma mulher bruta, meio analfabeta, que não sabe escrever; o olho coberto pela palavra
sangue, trazendo a ideia da violência doméstica enfrentada pelas mulheres; existia também
um pedaço de palha dentro do baú, como se fosse resquícios de um estupro que esta mulher
havia sofrido; que a mulher havia sido desenterrada, encontrada dentro do saco de lixo,
trazendo uma tristeza e um peso muito grande para aquele personagem ali representado.
Foi mais uma vez remetida a imagem do sertão pelo uso da caneca de ferro, que é uma
caneca tradicional do interior do sertão e das coisas que estavam dentro do baú, que seriam o
chapéu de palha e os desenhos de roupa na parte interna, que foram vistos após as pessoas
mexerem e abrirem o baú, retirando as coisas que estavam inicialmente encobrindo esses
desenhos. O baú foi visto como o seu fardo, a bagagem da vida daquela mulher barrenta, cuja
cor se misturava à cor do lugar.
A palavra foi então passada à artista, que pode confirmar ou refutar o que as pessoas
haviam falado sobre a obra e sobre seu objeto de pesquisa. Segundo Mônica, as lupas seriam
os olhos da pesquisadora, que poderiam servir tanto de lente aumento quanto lente de
deturpação. Que o objeto a ser pesquisado está lá, mas o que é visto pela pesquisadora é que
pode fazer diferença no resultado alcançado com a pesquisa. As diferentes lupas foram
justamente uma sugestão para enxergar, e não somente ver a condição precária daquele ser ali
representado. Seria uma forma de olhar mais de perto, ter outros pontos de vista com as
diferentes lupas e cores.
O objeto de pesquisa de Mônica tem a ver com os moradores de rua e toda a sua
história, que pode ser carregada dentro de uma única mala. Ela reflete também sobre a cor
desses moradores de rua, que possuem uma cor de asfalto, que acaba os deixando camuflados
no asfalto, como se eles também fossem feitos de asfalto. Como Mônica é do Nordeste, ao
chegar em Brasília ela estava andando na rua e viu um morador de rua no meio da terra
avermelhada de Brasília e ficou encantada com a cor da terra e com a mesma mistura da cor
deste morador de rua com o lugar, como se ele estivesse camuflado e misturado ao ambiente.
Ao retirar os óculos-escuros, ela viu que a cor estava na verdade alterada pela lente dos
óculos, e foi quando ela se deu conta que a observação com relação à pesquisa também
poderia  ser  alterada  de  acordo  com  o  “filtro”  que  ela  estivesse  usando;;  que  tudo  seria  apenas  a  
visão dela frente à realidade.
E foi exatamente isto que ela quis trazer com a assemblagem: essa mistura de
investigação   à   distância,   protegido   pelo   “filtro”   do   olhar,   ao   mesmo   tempo   em   que   a   fez  
refletir sobre a pesquisadora que precisa colocar a mão na massa para conseguir o máximo
dos olhares em cima do seu objeto de pesquisa. A terra, além de representar essa alteração da
cor  de  acordo  com  o  “filtro”  utilizado,  representava  também  a  sujeira.  Que  para ver o que
tinha dentro da mala/baú, era preciso sujar a mão de terra. Que era preciso colocar a mão no
lixo também, que é um lugar que ninguém na verdade quer colocar a mão, mas ao mesmo
tempo é o sustento de muitos moradores de rua. E que para entender e estudar esses
moradores de rua, é preciso se sujar, é preciso colocar a mão no lixo, é preciso colocar a mão
na terra. Ao mesmo tempo em que se necessita ter um cuidado especial ao entrar em contato
com essa população; é preciso certo tato e um cuidado humanamente correto ao se lidar com
uma pessoa que já é tão maltratada pela vida.
Mônica deseja, com a pesquisa dela, entender a teatralidade do corpo dos moradores
de rua, entender a dramaturgia corporal por trás desse corpo maltratado – por isso as palavras
coladas no corpo da boneca. A mala/baú veio também retratar que as pessoas de rua não tem
onde guardar suas coisas, e que eles normalmente guardam todos os seus pertences em uma
mala, que eles deixam nos centros de recolhimento, que se dispõem a guardar essas malas
para os moradores de rua, que retornam de tempos em tempos atrás de seus pertences, pois
sabem que ali é um lugar seguro para deixar suas coisas, pois na rua serão roubadas. Mônica
também quis trazer uma assemblagem que falasse por si só, sem se preocupar em explicar
toda a pesquisa com uma única obra. E acredito que ela tenha cumprido bem o seu objetivo,
levando o grupo à uma discussão muito interessante sobre sua pesquisa e sobre a forma de se
fazer pesquisa: podemos ficar olhando com um  olhar  externo  repleto  de  “filtros”  que  alteram  
as realidades de acordo com nossa vontade, e podemos também mergulharmos no objeto
pesquisado, o que nos leva a nos sujar e nos misturar com o mesmo, podendo ter uma visão
mais perto da realidade do que está sendo pesquisado.

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  • 1. Universidade de Brasília - Instituto de Artes Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas Disciplina: Poéticas em Cena – 2/2015 Professor: Dr. Fernando Antônio Pinheiro Villar de Queiroz Doutorando: Tiago Mundim Cor de gente, cor de asfalto A primeira impressão que tive ao me deparar com a assemblagem de Mônica Leite foi um misto de curiosidade pela obra de arte e questionamentos sobre sua pesquisa no mestrado. A plasticidade da obra foi instigadora: uma boneca toda coberta de terra, em um espaço também sujo por esta terra, com um baú e uma caneca, tudo envolto por um grande saco de lixo  preto.  Ao  lado,  existiam  três  “filtros”  para  a  visão:  uma lupa de aumento, uma lupa que distorce e um óculos-escuro marrom, que dá uma cor amarronzada à assemblagem, reforçando ainda mais a cor da terra. Ao mesmo tempo em que a obra me convidava à exploração e ao toque – uma vez que o corpo todo da boneca, a caneca e o baú estavam repletos de textos, frases e palavras –, os
  • 2. filtros na parte externa da obra me reforçavam a observação pelo olhar apenas, modificando e explorando o que estava sendo visto apenas pelos filtros da visão que estavam à disposição ao lado do saco preto de lixo. Na boneca, as palavras soltas coladas em seu corpo – pessoa, brasil, corpos, lixo, falar, fronteira, movimento, sangue – me levaram a entender essa pessoa como não sendo um ser humano completo, mas uma pessoa composta de fragmentos, incompletos, que ao mesmo tempo tentavam transformar esse monte de terra em gente e colocava essa pessoa no lugar desse barro avermelhado, misturando o ser à terra. Ao analisar dentro do baú a olho nú, pude ver um chapéu de palha, um vestido de festa de boneca rasgado, um garfo e um pergaminho com algo escrito, mas que não consegui ler.
  • 3. Resolvi então me fazer uso do primeiro filtro deixado sobre a mesa e tentei com a lupa de aumento ler o que estava escrito no pergaminho. Mesmo aproximando do texto com a lupa não consegui decifrar o que estava escrito e imaginei que o texto seria então algum segredo que quer ser revelado, mas que não pode ser decifrado pela escrita, somente pela voz e pelo corpo da boneca, que precisa sair debaixo de toda aquela terra para poder revelar-se. Ainda instigado com a plasticidade da assemblagem, comecei a exploração com os outros filtros, buscando agora não apenas a beleza da obra de arte, mas o objeto de pesquisa da pesquisadora que criou a obra. A cor de barro foi fortemente alterada pela lente dos óculos-escuros, que trouxe uma imagem de seca, nordeste, sertão, poeira. Imaginei que o objeto de pesquisa da autora seria a busca pela poesia da arte que está encoberta pela poeira da vida, que precisa ser sacudida para ser  vista  e  ouvida.  E  que  tudo  dependeria  dos  “filtros”  e  da  nossa  maneira  de  olhar  para  o   mundo para poder entender e revelar essa poesia por debaixo dessa terra toda. Quando passamos para a discussão da assemblagem em grupo, surgiram comentários que complementavam a minha primeira observação e outros que levaram para outros
  • 4. caminhos. Foi observado pelo grupo que os escritos no corpo da mulher estavam revelando uma mulher bruta, meio analfabeta, que não sabe escrever; o olho coberto pela palavra sangue, trazendo a ideia da violência doméstica enfrentada pelas mulheres; existia também um pedaço de palha dentro do baú, como se fosse resquícios de um estupro que esta mulher havia sofrido; que a mulher havia sido desenterrada, encontrada dentro do saco de lixo, trazendo uma tristeza e um peso muito grande para aquele personagem ali representado. Foi mais uma vez remetida a imagem do sertão pelo uso da caneca de ferro, que é uma caneca tradicional do interior do sertão e das coisas que estavam dentro do baú, que seriam o chapéu de palha e os desenhos de roupa na parte interna, que foram vistos após as pessoas mexerem e abrirem o baú, retirando as coisas que estavam inicialmente encobrindo esses desenhos. O baú foi visto como o seu fardo, a bagagem da vida daquela mulher barrenta, cuja cor se misturava à cor do lugar. A palavra foi então passada à artista, que pode confirmar ou refutar o que as pessoas haviam falado sobre a obra e sobre seu objeto de pesquisa. Segundo Mônica, as lupas seriam os olhos da pesquisadora, que poderiam servir tanto de lente aumento quanto lente de deturpação. Que o objeto a ser pesquisado está lá, mas o que é visto pela pesquisadora é que pode fazer diferença no resultado alcançado com a pesquisa. As diferentes lupas foram justamente uma sugestão para enxergar, e não somente ver a condição precária daquele ser ali representado. Seria uma forma de olhar mais de perto, ter outros pontos de vista com as diferentes lupas e cores. O objeto de pesquisa de Mônica tem a ver com os moradores de rua e toda a sua história, que pode ser carregada dentro de uma única mala. Ela reflete também sobre a cor desses moradores de rua, que possuem uma cor de asfalto, que acaba os deixando camuflados no asfalto, como se eles também fossem feitos de asfalto. Como Mônica é do Nordeste, ao chegar em Brasília ela estava andando na rua e viu um morador de rua no meio da terra avermelhada de Brasília e ficou encantada com a cor da terra e com a mesma mistura da cor deste morador de rua com o lugar, como se ele estivesse camuflado e misturado ao ambiente. Ao retirar os óculos-escuros, ela viu que a cor estava na verdade alterada pela lente dos óculos, e foi quando ela se deu conta que a observação com relação à pesquisa também poderia  ser  alterada  de  acordo  com  o  “filtro”  que  ela  estivesse  usando;;  que  tudo  seria  apenas  a   visão dela frente à realidade. E foi exatamente isto que ela quis trazer com a assemblagem: essa mistura de investigação   à   distância,   protegido   pelo   “filtro”   do   olhar,   ao   mesmo   tempo   em   que   a   fez  
  • 5. refletir sobre a pesquisadora que precisa colocar a mão na massa para conseguir o máximo dos olhares em cima do seu objeto de pesquisa. A terra, além de representar essa alteração da cor  de  acordo  com  o  “filtro”  utilizado,  representava  também  a  sujeira.  Que  para ver o que tinha dentro da mala/baú, era preciso sujar a mão de terra. Que era preciso colocar a mão no lixo também, que é um lugar que ninguém na verdade quer colocar a mão, mas ao mesmo tempo é o sustento de muitos moradores de rua. E que para entender e estudar esses moradores de rua, é preciso se sujar, é preciso colocar a mão no lixo, é preciso colocar a mão na terra. Ao mesmo tempo em que se necessita ter um cuidado especial ao entrar em contato com essa população; é preciso certo tato e um cuidado humanamente correto ao se lidar com uma pessoa que já é tão maltratada pela vida. Mônica deseja, com a pesquisa dela, entender a teatralidade do corpo dos moradores de rua, entender a dramaturgia corporal por trás desse corpo maltratado – por isso as palavras coladas no corpo da boneca. A mala/baú veio também retratar que as pessoas de rua não tem onde guardar suas coisas, e que eles normalmente guardam todos os seus pertences em uma mala, que eles deixam nos centros de recolhimento, que se dispõem a guardar essas malas para os moradores de rua, que retornam de tempos em tempos atrás de seus pertences, pois sabem que ali é um lugar seguro para deixar suas coisas, pois na rua serão roubadas. Mônica também quis trazer uma assemblagem que falasse por si só, sem se preocupar em explicar toda a pesquisa com uma única obra. E acredito que ela tenha cumprido bem o seu objetivo, levando o grupo à uma discussão muito interessante sobre sua pesquisa e sobre a forma de se fazer pesquisa: podemos ficar olhando com um  olhar  externo  repleto  de  “filtros”  que  alteram   as realidades de acordo com nossa vontade, e podemos também mergulharmos no objeto pesquisado, o que nos leva a nos sujar e nos misturar com o mesmo, podendo ter uma visão mais perto da realidade do que está sendo pesquisado.