1. O documento descreve a história de Antônio Conselheiro, um líder religioso que fundou a comunidade de Canudos na Bahia no final do século 19.
2. Conselheiro levantou a comunidade contra o regime republicano e a elite agrária, defendendo valores de liberdade, justiça e igualdade.
3. Canudos chegou a ter cerca de 30 mil habitantes e se tornou um desafio político ao governo, levando as forças armadas a atacarem e destruírem a comunidade entre 1896-1897.
1. Identidade Corporativa
É levantando bandeiras que se faz
César Queiroz
nascer uma cultura de marca 2012
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“E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos
até os ombros, barba inculta e longa. Face escaveirada, olhar
fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim
americano; abordoado ao clássico bastão” 1. Esse é o peregrino.
Nasceu em Quixeramobim, Província do O pai morre. Ele muda constantemente de
Ceará, em uma família, segundo João Brígido, cidade e de profissão. Atua como negociante,
amigo de infância, numerosa de homens professor, balconista, advogado provisionado.
válidos, ágeis, inteligentes e bravos, vivendo Teve filhos. Sua esposa o traiu com um policial.
de vaqueirice e de pequena criação, que se Muitos fracassos comerciais e frustrações,
envolveram em conflitos com os poderosos muda novamente. Reencontra seu amigo de
Araújos, família rica, filiada a outras das infância e escritor João Brígido e declara: “Vou
mais antigas do norte da Província. para onde me chamam os mal aventurados”.
Sua infância é sofrida. Extermínio de parentes Dizia ter uma promessa a cumprir, erguer vinte
pela família Araújo. Alcoolismo do pai e os e cinco igrejas, longe do Ceará. Assim fala
maltratos da madrasta. Diziam, no entanto, Honório Vilanova, sobrevivente de Canudos:
que era um moço sério, trabalhador, honesto,
religioso e de boa caligrafia. Cursara as aulas
de latim de seu avô, o professor Manoel
Antônio Ferreira Nobre. Estudou também
Português, Aritmética, Geografia e Francês.
Este artigo é uma homenagem ao Wally Olins e seu texto “Corporate Identity: The Myth and the Reality” publicado no segundo
capítulo do livro “Revealing the Corporation” editado por John Balmer e Stephen Grayser em 2003. No texto (que é uma transcrição
de uma palestra ministrada pelo autor em 6 de dezembro de 1978 para os membros da Royal Society for the Encouragement
of Arts) Olins analisa a Revolução Francesa e suas implicações para a gestão de marca. Aponta que, apesar da sua importância
fundamental, a identidade corporativa não é entendida em sua profundidade e tida apenas como elementos gráficos.
1
. CUNHA, Euclides (1902) - Os Sertões.
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Nunca mais pude esquecer aquela presença. Era forte como um
touro, os cabelos negros e lisos lhe caíam nos ombros, os olhos
pareciam encantados, de tanto fogo, dentro de uma batina de
azulão, os pés metidos numa alpercata de currulepe, chapéu
de palha na cabeça. Era manso de palavra e bom de coração. Só
aconselhava para o bem. Nunca pensei, eu e compadre Antônio,
que um dia nossos destinos se cruzariam com o desse homem.
Uma tarde, ele foi embora do Urucu, caminhando vagarosamente,
levando no braço o borreguinho que meu irmão lhe dera.
Ficamos olhando a sua figura esquisita, durante algum tempo,
do alpendre. Até que sumiu na estrada, não para sempre.
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Caminhava por toda parte do Sertão. Conhecia cada canto e seus
segredos. Conheceu face a face o sofrimento do povo. Rezava. Fazia
sermões. Dava conselhos, em uma época de extrema miséria e grande
seca por vir. Seu comportamento não era bem tido pelos latifundiários,
e nem por alguns líderes da igreja.
O acusaram de matar sua mãe. Foi preso, apanhou e teve os cabelos
raspados. A igreja o proibiu de pregar. Não encontraram provas e
voltou a peregrinar. A abolição da escravatura iniciou e assim escreve
o peregrino:
(...) sua alteza a senhora Dona Isabel libertou a escravidão,
que não fez mais do que cumprir a ordem do céu; porque era
chegado o tempo marcado por Deus para libertar esse povo de
semelhante estado, o mais degradante a que podia ver reduzido
o ente humano; a força moral (que tanto a orna) com que ela
procedeu à satisfação da vontade divina constitui a confiança
que tem em Deus para libertar esse povo, não era motivo
suficiente para soar o brado da indignação que arrancou o ódio
da maior parte daqueles a quem esse povo estava sujeito.
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Gostava do povo. Não apenas tinha consciência política. Ergueu-se
contra o regime. É proclamada a república, mas em nada adiantou.
A terra e o poder continuaram nas mãos da elite. E assim também
duramente continuaram seus sermões:
Agora tenho de falar-vos de um assunto que tem sido o assombro
e o abalo dos fiéis, de um assunto que só a incredulidade do
homem ocasionaria semelhante acontecimento: a República, que
é incontestavelmente um grande mal para o Brasil que era outrora
tão bela a sua estrela, hoje, porém, foge toda a segurança, porque
um novo governo acaba de ter o seu invento e do seu emprego lança
mão como meio mais eficaz e pronto para o extermínio da religião2.
. MACEDO, 1974, p. 175
2
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No sertão, em plena seca, ergue templos
sagrados em lugares esquecidos e abandonados.
Ergue também açudes. Ao seu lado tinha os
mestres de obras Manoel Faustino e Manoel
Feitosa. Compadece das pessoas e de suas
necessidades. Toca corações. O nome já muito
falado se tornava cada vez mais forte: Antônio
Conselheiro. Seus seguidores, os conselheiristas.
Inicia conflitos com a força militar. Em
Masseté, armados de garruchas, cacetes e
espingardas de caça reagiram ao ataque da
Estátua de Conselheiro, na antiga Canudos, mostra polícia. Conselheiro percebeu que era hora
a força de quem defendeu suas ideias até a morte de partir. A pressão do governo republicano,
da igreja e dos latifundiários tendia a crescer.
Reúne então seus seguidores e parte sertão
a dentro em busca da “Terra Prometida”.
Chega então ao lugar. Seu nome: Canudos (vinha
do nome de uma planta Canudos-de-Pito, boa
para fumar longos cachimbos), em pleno coração
da Bahia, em plena vegetação de caatinga, à
beira do rio Vaza-Barris e rodeado de morros os
quais se chamavam Cambaio, Caipã, Canabrava,
Cocorobó, Poço de Cima, Saui e Angico.
Canudos e as estradas regionais
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Batiza o lugar, afinal é sagrado. Dá-lhe
um novo nome: Bello Monte. A nenhum
pertencia e era de todos, assim ensinava
Conselheiro. Imediatamente cavaram
trincheiras. Desejavam ardentemente proteger
a liberdade, a justiça, os ideais e crenças
que uniam o povo. Era necessário um livro e
assim foi escrito pelo líder: “Apontamentos
dos Preceitos da Divina Lei de Nosso Senhor
Jesus Cristo para a Salvação dos Homens”.
Canudos tornou-se o segundo maior município
Visão geral de Canudos 1 da Bahia, tinha 1/4 da população de Salvador.
Diziam que todo o sertão queria ir para Bello
Monte. Como afetava a economia do estado
(pois muitos trabalhadores abandonavam as
terras onde trabalhavam) não demorou a reagir a
elite agrária nordestina. O governo também não
se contentara com o fato, pois era uma nação
dentro de outra sem o pagamento de impostos.
Visão geral de Canudos 2
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Em Bello Monte, a praça da igreja era o centro
espiritual e político da comunidade. Moravam ali
os líderes em casas de telhas. Ao redor foram
se formando becos entrelaçados, levantando
casas de taipa. Muitos diziam que lá “corria
rios de leite e as barrancas eram de cuscuz”.
Novos grupos iam chegando. Muitos ex-escravos
e até índios Kaimbé e Kiriri se agregaram.
Atribuições eram expedidas. Antônio Vilanova
cuidava da economia canudense e também era
uma espécie de “juiz de paz”. Fazia também
parte dos dirigentes das operações militares e
sob a sua guarda ficavam as armas e munições.
A defesa pessoal de Antônio Conselheiro
era formada por 600 homens que também
eram responsáveis pela segurança da cidade.
Todos usavam uniformes e eram chamados
de Guarda Católica. Havia também os que
A comunidade de Canudos marchando para cuidavam do plantio e os que construíam.
a Guerra – Pintura de Trípoli Gaudenzi
Impressiona a autenticidade e a originalidade
na formação da comunidade de Bello Monte
em torno da figura de Conselheiro. Como
pode haver um grupo do qual os membros
entregam a si mesmos em lutas e guerras
sangrentas (que duraram mais de um ano)
contra o regime e a cultura predominante?
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De um lado tem-se o invisível em canudos. A cultura ortodoxa resultado do sistema
O líder acreditava, levantava a bandeira e agia. econômico latifundiário (poucos recursos
Ele era a manifestação de um “chamado”, para muitos, e muitos recursos para
de uma visão, de uma causa que girava em poucos) não fazia sentido e era questionada
torno da liberdade e do fazer o bem. O fato por Conselheiro: refletia o maltrato, a
de serem contra o pagamento de impostos discriminação e a não valorização do ser
refletia a crença que partilhavam. Não humano. Era preciso uma ruptura social,
era sobre impostos, era sobre a justiça, e o início de uma nova forma de viver
sobre levantar e prosseguir adiante com e enxergar o mundo e as pessoas.
suas crenças. E o movimento não era
nem tampouco sobre a pessoa de Antônio As crenças, valores e ideais do líder iam
Conselheiro e sim o que ele representava. de encontro à ruptura. Pulsão constante
a romper a cultura ortodoxa do contexto.
O que significava o líder senão uma resposta Inovou, portanto, a forma de viver ao criar
aos anseios coletivos? Como não era sobre uma comunidade em que tudo era de todos.
ele, poderia ter sido João Conselheiro, André Cada vez mais pessoas se juntavam em
Conselheiro. Porém, foi Antônio que em sua torno de Conselheiro. Eram discipuladas,
história levantou, ergueu, viveu e colocou para ensinadas. A comunidade crescia. Era unida,
fora suas crenças e como elas respondiam aos direcionada pela liberdade e estimulada a
anseios e desejos dos sertanejos e ao contexto fazer o bem. Os que agregavam sentiam
em que viviam: a intensa miséria, a grande parte de algo maior. O fazer era conjunto,
seca de 1877 (que trouxe consigo a morte de como também o construir e o plantar.
mais de 300 mil sertanejos), a abolição da
escravatura, a monarquia e suas contradições
e adiante a republica em 1889 que em nada
deu poder aos cidadãos. O palco político,
social e econômico estava então montado.
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O mundo é pura crença. Canudos escancara esse fato. Agir pressupõe
acreditar. Pressupõe valoração, construção de sentidos pela interação
social. No mais profundo da construção de grupos a crença é a força
constante e invisível que move e direciona pessoas. É o alicerce do qual
surgem expressões que comunicam quem é o grupo. Como diz Peterson:
Nonetheless – to live, it is necessary to act. Action presupposes
belief and interpretation (implicit, if not explicit). Belief has to be
grounded in faith, in the final analysis (as the criteria by which a
moral theory might be evaluated have to be chosen, as well)3.
Do outro lado tem-se o visível. É natural No centro da comunidade localizava-se
na formação de um grupo, exteriorizar (em a igreja e a praça. Ponto de referência e
imagens, palavras e ações) suas crenças e junto com a cruz símbolos dos ideais e
ideais. No caso de canudos o lugar foi batizado fundamentos da comunidade. Se todo lugar
mediante ritual liderado pelo Conselheiro. era sagrado ali era lugar de reverência,
de onde emanavam os valores e as
Ganhou um novo nome, Bello Monte. Antes, crenças em forma de rituais e sermões
porém, o nome Antônio Conselheiro já era que direcionavam os membros (tudo
forte, único e compartilhado tanto entre era de todos). O povo se reunia para
os membros do grupo quanto fora dele ouvir e juntos entoavam cantigas e hinos
(latifundiários, líderes católicos e o governo). celebrando quem era e o que representava.
. PETERSON, B. Jordan (1999). Maps of Meaning: The Architecture of Belief
3
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Como todo grupo de pessoas, as crenças
direcionam regras sociais sejam elas explícitas
ou não. Em Canudos dividiam os bens, os vícios da
bebida e da carne eram proibidos. As crenças e
valores que direcionavam o comportamento dos
membros ganhavam vida não apenas nos
sermões, como também, no livro escrito pelo
líder: “Apontamentos dos Preceitos da Divina Lei
de Nosso Senhor Jesus Cristo, para a Salvação
dos Homens”. Ali continha em palavras sua visão
sobre a vida humana.
Ruína da Igreja Velha de Canudos Foi criada uma escola com um professor e uma
professora. Lá as estórias eram contatadas aos
pequeninos. Uniformes foram confeccionados
para a Guarda Católica. As vestimentas e
seu estilo foram ganhando forma. As casas
eram de taipa e construídas em becos que
entrelaçavam. Plantavam e colhiam. A culinária
era compartilhada. Criaram cargos para a defesa,
o comércio e subsistência da população.
Casa de Taipa em Canudos
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A formação de grupos é sobre isso. É sobre Por onde viajamos ou passeamos, nosso
como o comportamento e a aparência tom de voz, gestos, postura, corte de
simbolizam e refletem a realidade. O cabelo, esportes que praticamos, são
invisível que direciona o visível. As crenças, fontes de sentidos que no conjunto
valores e ideais que institucionalizam uma funcionam como atalhos. Querendo ou não,
forma de viver, de enxergar o mundo, a si comunicam e dizem sobre quem somos.
mesmo e aos outros. É a pulsão constante
de uma identidade viva, que modela o Esse é o visível. Em si nada significa. Mas
desenvolvimento da personalidade do grupo. ao refletir uma realidade que pulsa a
Do intangível que se torna tangível. cada segundo, expressa uma identidade.
Ganha assim força e relevância e se torna
A formação de grupos é sobre a autenticidade meio pelo qual expressamos os sentidos e
de ideias, causas, sua relevância para as significados sobre nós mesmos. Meio pelo
pessoas e a diferença que fazem no seu dia a qual vivemos e interagimos e percebemos
dia. É um processo ontológico, de construção o mundo e as pessoas ao nosso redor.
do ser. É sobre a formação de identidades e
suas expressões que dizem e comunicam Isso é sedução pura. Representar ideais e
sobre as pessoas. causas autênticas que vão de encontro aos
nossos anseios e ao nosso contexto. E essa
Nós nos agregamos ao redor das marcas é a melhor oportunidade que têm as marcas.
e participamos de sua construção. Onde Serem meios de construção e expressão de
moramos, a roupa que usamos, por onde identidades, participando do dia a dia das
passamos, o que fazemos com o tempo livre, pessoas. Não é sobre benefícios (funcionais,
diz sobre quem somos. O que comemos, onde emocionais, apesar de serem importantes) é
estudamos ou trabalhamos, o carro que temos, sobre a participação na construção do ser.
escancaram características sobre nós.
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O que está em jogo são pessoas. O pensamento É levantando bandeiras que se faz nascer
não é matemático, não vem da engenharia. uma cultura em torno da marca. Pessoas
É ontológico, é sobre o ser humano e seus que aderem e se juntam ao seu redor.
sonhos, crenças e desejos. É sobre a vida
humana e seu contexto sociocultural. Sobre Sejam elas funcionários ou clientes ou
relacionar, viver, saborear, ver, encantar. vários outros interessados. Assim nasce
uma identidade corporativa (no caso
Afinal não somos máquinas, vivemos no quando o grupo de pessoas é uma empresa)
mundo da linguagem, de estórias, de encantos, peculiar, original, autêntica, relevante,
de medos, decepções, conquistas, sucesso, enraizada em um contexto sociocultural.
derrotas, aprendizagem, sentimentos.
De um lado a parte invisível (crenças,
É assim que as marcas podem seduzir, valores, sonhos) e de outro a parte visível
participando socialmente de nossas vidas. (comportamento, produtos/serviços, ambiente,
Levantando bandeiras que representam comunicação). Sem crenças é impossível
nossos anseios. Qual a relevância de uma quebrar ortodoxias e conectar com as pessoas.
visão egocêntrica? (“dobrar o tamanho nos E o que devem ser as marcas senão crenças?
próximos 5 anos”, “ser referencia na área”). Qual
o movimento ou revolução que as marcas se
propõem? Qual é a estória de transformação?