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Historia da provincia
GELSON LUIZ MIKUSZKA




          FÉ E MISSÃO
HISTÓRIA DA PROVÍNCIA REDENTORISTA
         DE CAMPO GRANDE
              1929-1989


             1ª Edição




              Curitiba
            Redentorista
                                     2
2009


                    Todos os direitos reservados
 Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem a permissão escrita
                              do editor
___________________________________________________________

Mikuszka, Gelson Luiz

      Fé e Missão: História da Província Redentorista de Campo
Grande 1929-1989 / Gelson Luiz Mikuszka. — Curitiba, PR:
Redentorista, 2009.

       ISBN 978-85-909103-0-5

       1. Congregações Cristãs 2. Redentoristas no Brasil 3. Missão
redentorista


       CDD – 255.640981
______________________________________________

Redentorista
Rua Ubaldino do Amaral - Alto da Glória
Caixa Postal 20013 - CEP 80062-980
Curitiba /PR




                                                                     3
Agradecimentos


Aos que de uma forma ou outra
contribuíram com este livro
Pe. Joaquim Parron – Pe. Afonso Tremba
– Pe. Sérgio Sviental – Pe. Armando
Russo – Otávio Schimieguel

Depoimentos
Pe. Lourenço Kearns – Pe. Eugenio
Sullivan – Pe. Egidio Gardner – Pe.
Guilherme Tracy – Pe. João Hennessy –
Edmundo Twomey – Pe. Ricardo Blissert



                                    4
Introdução

      É    emocionante ver as imagens que mostram o
momento em que o homem pisou pela primeira vez na lua.
Neil Amstrong, comandante dessa maravilhosa façanha,
definiu esse momento como um grande salto da
humanidade. Vieram descobrimentos, novos costumes, a
derrocada de partidos políticos e muitas transformações.
Apareceram as revoluções armadas, tecnológicas, científicas,
humanas e sociais. Nasceram os movimentos; vieram os
Beatles e os Rolling Stones. Inventaram o toca-fitas, a TV e os
primeiros computadores, que de tão imensos, pareciam
grandes “monstros” tecnológicos. Estes evoluíram,
reduziram seu tamanho e aumentaram a eficiência. Nasceu o
CD e morreu o vinil. A medicina avançou e aprendeu a
clonar. Fala-se em projeto genoma, cura da AIDS e avanços
programados para um futuro próximo. Progredimos na
tecnologia, podemos nos comunicar instantaneamente, mas
ainda não demos o maior de todos os saltos: não
conseguimos minimizar a saudade, preencher a solidão,
acalmar a ansiedade, erradicar o preconceito, evitar
catástrofes e mortes. Enfim, a humanidade continua carente e
precisa de um grande salto em direção ao ser humano.
Requisito básico para que isso aconteça é a fé. O problema é
que poucos a entendem e sabem de sua força e poder no
mundo. Outros se referem a ela dizendo ser uma coisa
doentia, covarde, própria dos fracos e oprimidos, que não
tendo outra coisa em que se agarrar a inventam para
sobreviver, vivendo de ilusão e esperança em algo que não
vai levar a absolutamente nada. Mas não entendem que a fé,

                                                             5
a priori, não muda o mundo, mas muda as pessoas; e as
pessoas mudam o mundo.
       Examinando a história de nossos pioneiros,
verificamos que em meio a tantos infortúnios, pela fé
mostraram ser capazes de realizações que admiram e
impulsionam o mundo. Graças à fé, tais “filhos de Santo
Afonso”, vindo das longínquas terras norte-americanas,
trouxeram esperança para os pobres, sofridos e
abandonados. Andavam por regiões despovoadas,
enfrentando as dificuldades e obstáculos da missão. Como
verdadeiros heróis, entre cânticos e preces, se lançaram aos
campos de pastoreio, plantaram, colheram e cuidaram das
almas. Como desbravadores de corações, construíram uma
nova realidade erguendo paróquias, escolas, comunidades,
orientando homens e mulheres em direção ao céu. Mais do
que enfermeiros de corpos, foram verdadeiros médicos de
almas. Aprenderam na prática que a fé é chama aquecedora
do espírito na busca de forças para superar mágoas,
decepções, revoltas e até mesmo a morte.
       Tempos que longe vão! Não havia televisão, nem
muitos carros, nem muitas opções. O principal meio de
transporte era o cavalo, trem e os pés que entravam na mata,
encontravam      pessoas,    construíam      comunidades     e
descobriam maravilhas. As notícias demoravam a chegar ao
destino e, quando chegavam, não era mais novidade, já era
passado. O padre era obrigado a usar a batina o tempo todo
e, se não fossem alguns “rebeldes”, todos teriam de usar a
chamada “tonsura”. No início, as missas eram celebradas em
latim e quase sempre em capelas mal construídas e lugarejos
distantes, sem conforto, sem luz elétrica, somente com a força
da fé. Índios, peões, caboclos e gente humilde eram os
ouvintes da Palavra de Deus.


                                                            6
Buscando ajudar as regiões que missionavam,
construíram belas igrejas, bem equipadas escolas e as
primeiras grandes construções. Implementaram a cultura, a
educação, a religiosidade e a fé. Na memória dos anciãos e
em cada trecho da região se faz presente a história, o registro
daquilo que o missionário de preto com rosário e cruz na
cintura se propôs a fazer.
        Duas passagens de navio partindo dos Estados
Unidos até o Brasil em 1929, alguns dólares, um monte de
sonhos e muita vontade de trabalhar abriram toda essa
possibilidade. Não foi fácil, era preciso ser um bom
empreendedor, coisas precisavam ser construídas, um povo
precisava ser atendido e evangelizado. Com o desabrochar
das plantas pantaneiras, o canto dos pássaros nativos, o sol
ardente e aquecedor, entre os caboclos e peões, entre a gente
simples do interior do Mato Grosso e do Paraná, ora
enfrentando cobras, ora passando rios, visitando fazendas,
cabanas e tribos indígenas, assim nasceu a Província de
Campo Grande. Simples, ousada, inserida, popular,
adentrando nos lares mais distantes. Não foi somente o suor
desses pioneiros, nem seu desejo, nem sua garra, nem sua
inteligência ou talento, mas a fé que traziam e alimentavam
no coração e nas comunidades. Mais do que um livro de
história, este é um livro de fé. Esses homens souberam usar
sua fé, demonstrando destemor para com o trabalho, mesmo
diante das fraquezas, tribulações e limitações. Perseveraram
na missão e traziam na consciência aquilo que ensina São
Paulo no capítulo cinco da carta aos Romanos: “Nós nos
gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz
a perseverança, a perseverança produz a fidelidade comprovada, e a
fidelidade comprovada produz a esperança. E a esperança não
engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo
Espírito Santo que nos foi dado”.

                                                                7
1
                   Deus nos toma pela mão


       Tu te lembras, Deus?    Este que hoje pega na caneta para
narrar esta crônica, era um pobre e humilde menino, calção de
suspensório, olhar amedrontado e cheio de curiosidade. Era
raquítico, pequeno e, quando pela primeira vez se deparou com
aqueles missionários de fala esquisita, roupa preta, rosário e cruz
na cintura, ganhou o apelido de Tuiuiú. Não sei por que o apelido,
mas passou a fazer parte da minha vida e da minha história. O
tuiuiú é uma ave comum em nossa região pantaneira; de tão
comum tornou-se a ave-símbolo por aqui. Possui um voar suave e
elegante e uma bela plumagem preta, vermelha e branca que
demonstra a beleza da criação divina. Desconfio que o apelido
fosse a maneira desses missionários demonstrarem carinho para
comigo ou talvez porque foi a primeira ave daqui que lhes chamou
a atenção. Não sei, mas, confesso que sempre sonhava em subir
nas costas de um tuiuiú, voar pelas matas e campos pantaneiros,
olhando do alto a exuberância da natureza, os animais e as plantas
que embelezam nossas terras, o rio Aquidauana, rio Miranda e
tantos outros que sempre me fascinaram. Como deve ser lindo,
aprumado nas longas asas de um tuiuiú, ver do alto toda essa
beleza. Seria a sensação de ser Deus, sobrevoando toda sua
criação. Gosto de pensar que tal apelido me foi dado porque o
missionário viu em mim esse sonho, esse desejo. Ou, quem sabe,
foi Deus quem propriamente o inspirou.
        O fato é que ainda menino eu sempre procurava Deus.
Parece que nasci para O procurar. Minha vida era perguntar para
as pessoas sobre Ele. Muitos riam de mim, faziam troça e me
tratavam como débil mental. Devido a isso, aprendi a blasfemar.
Afinal de contas, sou um ser humano. Ficava desesperado pela
                                                                 8
falta de resposta. Certa noite, no auge do meu desespero, Deus
pegou minha mão e colocou-me frente a frente com a experiência
que traria as respostas que sempre busquei e daria novo rumo à
minha vida, meu encontro com aqueles missionários de preto. A
partir dali compreendi como era fácil encontrar Aquele que
sempre busquei.
        Hoje, sentado à janela do meu pobre barraco, vejo nuvens
pouco carregadas. Sinto meus braços cansados e minhas mãos
carentes de forças até mesmo para apertar as contas do rosário que
aprendi a debulhar nesses tão longos anos. Chove manso no
campo pantaneiro, sinto cheiro de terra no ar. Diviso as
mangueiras em flor que exalam um cheiro forte de mel. Ao longe,
ouço a seriema que canta tristemente. Talvez louve a chuva que
molha os pântanos. As folhas das plantas parecem rir e chorar ao
mesmo tempo. Riem pela chuva que cai e lhes traz vida nova.
Choram pelas gotas de água que passam por elas e no chão
desaparecem. Parece que Deus se transforma em chuva e desce
sobre o mundo para nos visitar. De fato, como narra o texto da
criação, somos feitos de barro e por isso nos deliciamos com o
aguaceiro que revigora a vida, somos parte dele. Sinto que a
chuva banha meu coração e me traz toda uma enxurrada de
lembranças na alma que nem em toda eternidade esquecerei.
Aliás, acho que eternidade é reviver os momentos felizes e bons
que passamos. E nesse sentimento surge Aquele pelo qual toda
vida suspirei, o próprio Deus, Aquele que encontrei na presença
dos missionários de preto que vieram de muito longe para
santificar nossas terras pantaneiras. Muitos ensinamentos nos
deixaram e muitas coisas mudaram a partir de então.
        Em todos esses anos guardei comigo as lembranças dessa
experiência e todos os ensinamentos deixados. Por muitas noites, à
luz     do   meu      grande    companheiro     lampião,    anotei
escrupulosamente todas as palavras e frases que aprendia. Eles
não cansavam de dizer que era preciso salvar nossa alma e que
quem reza se salva, quem não reza se condena. Aquelas palavras
entravam em meu coração como pontas afiadas de uma lança


                                                                9
impregnada de algo divino. E mais ainda, sentia que se não
revelasse tudo que aprendia eu também não me salvaria.
        Muitas vezes peguei na caneta para escrever, mas, morto
de medo, renunciava. Sim, as letras são como anjos bons e maus,
podem animar, motivar, salvar e falar a verdade, mas também
podem nos trair, nos desanimar, nos levar a mentir e a fazer
pessoas se perderem. Sempre tive medo delas, talvez por isso
estudei pouco. Mas, vencendo a tentação de não escrever, aos
poucos fui transportando minhas observações para o papel. Não
são muitas, mas podem ajudar outras almas a buscarem ânimo no
caminho da salvação do mundo. Esses escritos fui guardando
comigo, o tempo passou, as rugas vieram e os papéis amarelaram,
vi que precisava dar um jeito em tudo isso, pois minhas
lembranças não podiam morrer comigo. Acredito Deus, que mais
uma vez me tomaste pela mão e, sem mais nem menos, certa tarde
fui à Igreja, como sempre costumo ir, assisti à missa, comunguei e
voltei pra casa correndo. Algo tomou conta de mim. Não
conversei com ninguém, queria manter meu hálito puro pelo
corpo do Senhor que havia acabado de receber. Juntei minhas
anotações, senti que havia chegado a hora, fiz o sinal da cruz e
comecei a escrever esta crônica, onde relato como fui tocado e por
que decidi viver mais perto de Deus. Meu nome? Ah, isso não é
importante, o importante é que minha história está próxima da
história de um Deus que faz sua caminhada na história de homens
que conheço como Missionários Redentoristas.




                                                               10
2
                             O Início


       Senhor me ajude a dizer a verdade. Abre bem minha
memória. Esclarece meu espírito e minhas lembranças. Não me
deixe esquecer nada. Acredito que da sinceridade de minhas
palavras depende a salvação da minha alma, da simplicidade de
minhas lembranças, depende a salvação de muitas almas.
Confesso que lembro muitos fatos e missionários, de outros não
lembro bem, portanto, falarei do que sei e presenciei. Quero relatar
exatamente aquilo que ouvi e vivi.
        Soube que foi no mês de setembro do ano de 1843. O cheiro
de chuva e a beleza das árvores floridas tomavam conta dos
campos. O canto dos pássaros, pela alegria da chuva e renovação
da vida, fazia sinfonia nos confins das matas mineiras. Toda essa
exuberância natural dá a sensação de se passear pelo paraíso.
Certamente Deus estava dizendo que essa é apenas uma pequena
amostra daquilo que a vida eterna nos reserva.
        Há exatamente 21 anos, o Brasil ficara independente da
corte portuguesa e se preparava para viver a façanha histórica de
livrar-se do marco negativo da escravatura que lotava os navios
negreiros, dizimava famílias africanas, deixando fazendeiros cada
vez mais ricos com o trabalho escravo nas fazendas cafeeiras,
campos canavieiros e minas de extração de ouro e diamante. Uma
luta que se arrastou por anos e chegou ao legado final nessa época.
Como pode o ser humano achar que o outro deve ser seu escravo,
sua propriedade!
        Em meio a todo esse emaranhado de acontecimentos,
sentado em sua cadeira forrada com couro de boi, em frente à
pequena mesa do escritório episcopal, de onde pela janela podia
apreciar a silhueta verde-escuro das montanhas mineiras que
                                                                 11
circundam a cidade de Mariana, Dom Antonio Ferreira Viçoso
elabora uma carta. Nesta, um pedido que mudaria muita coisa na
vida religiosa, cultural e educacional de Minas Gerais e de todo o
país. Esse momento daria início àquilo que chamamos de Saga
Redentorista no Brasil.
        Grande fã de Santo Afonso Maria de Ligório, o fundador
da Congregação dos Missionários Redentoristas, Dom Antonio foi
o primeiro bispo brasileiro a pedir a presença destes para essa
chamada “Terra de Santa Cruz”. Empreitada que culminou com a
vinda dos redentoristas holandeses no ano de 1893 e a fundação da
primeira Unidade redentorista em terras brasileiras.
        A grande razão disso é que Dom Antonio Viçoso era um
leitor assíduo das obras de Santo Afonso, introduzindo-as no
Ensino de Teologia Moral em seu seminário. Como bispo, imitava
o exemplo de Santo Afonso, aplicando ao seu rebanho uma prática
verdadeiramente missionária, durante as visitas que fazia às
paróquias onde exercia sua vocação de pastor. Não é de estranhar
que procurasse ter a presença redentorista por perto. Sua simpatia
pelos “filhos de Santo Afonso” foi adquirida pelas obras que esse
santo elaborou. Disso, aprende-se que a missão também pode ser
realizada através das obras escritas, que sendo bem preparadas
vão ensinado na atualidade e na posteridade do autor.
        Os “filhos de Santo Afonso” eram vistos como verdadeiros
combatentes da degradação religiosa que assolava a classe
popular, em diversos setores, buscando evangelizar os pobres,
intensificando a ação pastoral entre o povo e a zona rural. A meta
principal era viver intensamente o espírito do fundador, um
gentil-homem napolitano, de início advogado, mais tarde
chamado por Deus a ser padre, que no despertar da vocação
depositou aos pés da imagem de Nossa Senhora sua espada de
nobre voltando-se inteiramente para a salvação das pobres almas
da região napolitana. Indo contra o ditado de que “santo de casa
não faz milagre”, conquistou renome como pregador, em muitos
lugares do reino de Nápoles, sua terra natal, sobretudo nas praças.
Sentiu-se chamado a evangelizar os mais abandonados pela Igreja,
quando esteve em contato com os cabreiros de Santa Maria Dei

                                                                12
Monti. Para melhor atingi-los, adotou a prática das Missões
Populares em lugarejos e povoados na zona rural napolitana.
Essas missões duravam muitos dias e eram pregadas em pequenas
aldeias e bairros espalhados pelos campos e regiões mais pobres,
sem se importar com os retornos financeiros que outros trabalhos
possibilitavam em regiões mais abastadas. Ao lado desse sistema
de missões populares, Santo Afonso destacou-se pela composição
de seu tratado de teologia moral, cuja essência traz uma
mensagem teológico-religiosa de misericórdia em favor dos
pecadores. Com essa teologia, combatia as idéias de Jansênio, o
propagador do jansenismo, e as teorias regalistas. Tinha ainda um
grande amor a Nossa Senhora e propagava uma insistente
devoção à Mãe de Deus, dizendo ser ela um instrumento de
extrema importância na obra da redenção; e defendia com afinco o
dogma da Imaculada Conceição, muitos anos antes deste ser
proclamado. Seus estudos foram tão importantes que praticamente
todos os teólogos da época adotaram sua teologia moral,
sobretudo párocos e pregadores das Santas Missões.
        A espiritualidade redentorista, sua doutrina teológica, sua
catequese e pastoral estavam em plena harmonia e sintonia com a
orientação dos papas e com o pensamento eclesial da segunda
metade do século XIX pelo compromisso de trabalhar os
sacramentos, a fidelidade ao papado e a singular importância
atribuída a Nossa Senhora na obra da salvação. O grande apreço
pelos “filhos de Santo Afonso” motivava os bispos a buscar com
insistência que pastoreassem seus imensos rebanhos, que às vezes
passavam anos sem ter a presença da Igreja. Foi assim que Deus
introduziu nas terras brasileiras, através do velho bispo de
Mariana, a figura do missionário redentorista, dando maior
motivação para a instauração do seu reino através desses
verdadeiros “apóstolos das periferias”, tornando-se presente no
coração de milhares de fiéis.
       A façanha redentorista, ora espiritual, ora histórica, marcou
presença em terras mato-grossenses através da Província de Campo
Grande, ou missão de Aquidauana, como ficou conhecida. Eu,
como testemunha dessa façanha, pretendo fazer uma viagem que
                                                                 13
revela pessoas, personalidades e feitos desses grandes homens de
Deus que até hoje influenciam nossa vida religiosa, educacional,
moral e até arquitetônica.
                                   3
                  Os primeiros encaminhamentos
                                (1929)


       Guardo      com carinho na lembrança a noite de 21 de
janeiro de 1930. Noite que mudou minha vida e a de muitas
pessoas que conheço e conheci. Mesmo diante das truculências e
dificuldades sociais pelas quais passávamos, eu tinha certeza de
que Deus estava conosco. O ar em nosso país cheirava revolução e
golpe. Sentia que estávamos prestes a enfrentar uma guerra civil.
Nossos corações batiam descompassados quando se tocava nessas
questões. Confesso, eu tinha muito medo! Afinal, revolução cheira
à morte e eu era o que menos queria morrer. Vivíamos uma
verdadeira turbulência política e econômica. Vigorava por aqui a
chamada República Velha, caracterizada pela centralização do
poder entre os partidos políticos e a conhecida aliança política
"café-com-leite", entre São Paulo e Minas Gerais. Esse Regime
mantinha vínculos com grandes proprietários de terras. Era um
desconforto político total. Os bares, escolas e rodas de conversas
de Aquidauana falavam dos problemas e da insegurança que isso
gerava.
        Nos Estados Unidos a situação também era complicada.
Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Yorque, ocorrida em
1929, veio uma década conhecida como “Grande Depressão”,
caracterizada pela recessão econômica no país. A indústria de
construção e o setor imobiliário já haviam estagnado em 1926,
juntando-se ao declínio das indústrias da agricultura, pecuária,
mineração e do petróleo. Em todos estes setores, a superprodução
e a competição de produtos de outros países baixaram preços e
lucros. Salários deixaram de crescer tirando dos consumidores a
possibilidade de compra de novas residências e de outros
                                                               14
produtos de comércio da época. A exportação de produtos
industrializados     gradualmente      caía  pela   ascensão   do
protecionismo do mundo industrializado. A quebra da bolsa de
valores drenou a confiança de possíveis consumidores e a
confiança de instituições financeiras. Estas tornaram-se
extremamente relutantes no investir. A economia americana caiu
numa severa depressão econômica. A “Grande Depressão” foi
marcada por altos níveis de desemprego, investimentos mal feitos
e grande deflação. Em resposta à recessão, o Congresso e o
Presidente norte-americano Hebert Hoover aprovaram uma tarifa
alfandegária tentando fixar preços a fazendeiros, criando um
programa de ajuda social para empregar centenas de pessoas, pois
havia milhões de desempregados e o grande descontentamento
surgia entre as classes trabalhadoras.
        Em meio a esse emaranhado problema político/financeiro
dos dois países, encontramos o nascimento de uma obra divina
que ligava os Estados Unidos ao Brasil e influenciaria muito as
nossas terras brasileiras. A luz que procurávamos finalmente se
acendia. Envolto por essa situação e espreitando tudo que poderia
acontecer em nível mundial, eu sentia no coração que Deus nos
preparava um novo caminho, onde poderíamos ver o brilho da
esperança. A história de Deus se apresenta na história dos homens
e a história dos homens certamente se faz verdade na história de
Deus. É dentro desse contexto que se dá a grande batalha humana
e divina. Fugir disso é achar que o Reino de Deus está somente
acima das nuvens. Sei que isso não é verdade. Uma história de
homens que buscam e testemunham Deus. E a história de um
Deus que através de homens deixa ser buscado e testemunhado. É
isso que pretendo narrar, partindo do que vivi, escutei e
experimentei nesses anos todos.
        Deus utiliza as pessoas para ajudá-lo a iluminar o mundo.
Sei que a luz se acende quando alguém se dispõe a mexer no
interruptor. Quem finalmente acionou o interruptor para iluminar
minha e nossa história foi, sem dúvida, o padre Hippolyto
Chavelon, dos salesianos, que obedecendo ao mandato de vigário
geral da Diocese de Corumbá, percebeu as dificuldades que

                                                              15
enfrentavam em missionar essa tão vasta região. No ano de 1927
escreveu ao Monsenhor Egidio Lori relatando a possibilidade dos
redentoristas assumirem alguma paróquia nas regiões de Ponta
Porã, Bela Vista, Porto Murtinho e Nioaque. Ambas eram frentes
de missão que pertenciam aos salesianos. Em 27 de março de 1927
mais uma carta, agora endereçada ao Superior Geral dos
redentoristas, padre Patrick Murray, que responde dizendo não ter
missionários disponíveis para enviar ao Mato Grosso. Diz ele que
a primeira vinda dos redentoristas ao Mato Grosso foi um mal
entendido, porque a Província alemã não tinha disponibilidade de
missionários nem para si mesma. Falavam de um episódio
ocorrido anos antes, precisamente em 1924, quando dois
redentoristas da Áustria tentaram uma fundação em Campo
Grande, conhecida como “fundação provisória”. Eram os
Missionários Johan Baptista Feichtner e Alois Hamerl.
Trabalharam em Campo Grande na paróquia Santo Antonio por
dois meses. Deixaram seu rastro pastoral no segundo livro de
batismo dessa paróquia, na página 90, onde provam que durante
essa estadia realizaram oitenta e três batizados e certamente
muitos casamentos, pois infelizmente não se sabe onde foram
parar os registros matrimoniais da época. Após esse curto período
em Campo Grande, no dia 23 de junho do mesmo ano, voltaram
para Viena, a Província de onde vieram não tinha condições
financeiras de manter o trabalho missionário e necessitava deles
em outro lugar na Áustria. Pensavam que a Província alemã do
Sul poderia ajudar na fundação que iniciaram em nosso país, mas
não tinham missionários nem para suprir suas comunidades na
Alemanha. Além do mais, os dois missionários ficariam sozinhos e
se um deles adoecesse, a obra estaria comprometida por inteiro. A
decisão mais evidente foi tirá-los daqui. Com sua partida, quem
tomou posse da paróquia Santo Antonio foi o então vigário de
Corumbá, padre Hipollyto Chavelon, salesiano.
       Em 1927, a Santa Sé fez um apelo aos redentoristas para
enviarem missionários à América Latina. Pegando esse gancho,
Dom Antonio Lustosa, também salesiano, recém nomeado bispo
da Diocese de Corumbá, tinha um ótimo relacionamento com os

                                                              16
redentoristas que residiam em Aparecida. Motivado pelo padre
Chavelon, começou a pedir à Virgem Maria que intercedesse ao
seu Filho e concedesse a graça de contar com a ajuda dos “filhos
de Santo Afonso”, pois vivia um grande sufoco na Diocese, que
contava somente com cinco padres para atender uma área de sete
paróquias num território de 126.231 km² e uma população de 140
mil habitantes. A escassez de padres impedia a Igreja de se
desenvolver na região.
        Com as investidas sempre crescentes do bispo junto à Santa
Sé, em fevereiro de 1929, padre Patrick Murray, então Superior
Geral dos redentoristas, escreveu ao padre Baron, Provincial nos
Estados Unidos, comunicando a possibilidade da Província de
Baltimore assumir uma missão no Brasil, já que tal Província
mostrava condições melhores para empreender esse trabalho. Um
mês depois, em março de 1929, o Superior Geral dos redentoristas
escreveu a Dom Lustosa e pediu informações a respeito do
trabalho que ora oferecia aos redentoristas. Dom Lustosa
enumerou a falta de padres e a grande propagação de protestantes
e espíritas na região. Com essas informações, no dia 24 de junho
de 1929, festa de São João Batista, ficou decidido que a Província
de Baltimore assumiria a nova fundação a título de experiência e
inicialmente mandaria dois missionários. No dia 04 de agosto,
após fervorosa oração, Dom Lustosa escreveu ao Provincial de
Baltimore e expressou a alegria em receber os redentoristas em sua
Diocese, implorando que viessem o mais rápido possível
prometendo toda cooperação possível. Começou então outro
problema aos redentoristas norte-americanos: encontrar os
missionários que melhor se adaptassem ao trabalho e à língua.
Reunidos em oração e pedindo as luzes divinas sobre a escolha,
apareceram dois possíveis nomes: padre Francis de Assis Mohr e
Alphonso Maria Hild.
        Após a escolha, os dois foram comunicados da nova
missão. Num forte espírito missionário, mesmo sem saber o que os
esperava, assumiram com prontidão e disponibilidade esse grande
desafio, pois o consideravam dentro do Espírito de Santo Afonso.
A notícia da aceitação da missão foi amplamente publicada nos

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jornais seculares e religiosos do Brasil e aceita como grande
presente de Deus.
        Padre Mohr era vigário de uma paróquia em North East e
padre Hild fazia parte da equipe missionária, em Ephrata. Lembro
que nas aulas de catecismo padre Mohr sempre contava que fez o
Seminário Menor em North East, foi aceito para o noviciado no dia
21 de junho de 1911 em Ilchester, Maryland. Lugares que nunca
conheci, mas que me pareciam ser o paraíso de tanto que eu ouvia
falar das belezas e dos grandes festivais que por lá aconteciam.
Dizia que no noviciado se sentia feliz e contente, mas passou por
muitas provações e dificuldades, mesmo assim a graça de Deus
sempre foi maior, podendo vencê-las sempre. O dia que recebeu o
hábito redentorista, 02 de agosto de 1911, foi para ele um dia
muito especial. Sempre desejou consagrar-se totalmente ao
serviço a Deus como religioso redentorista. Sentiu o chamado
vocacional desde criança e sempre dizia que assim iria até a morte.
Comentava que havia feito uma relação de atitudes para ser um
bom redentorista como: estar sempre mais unido a Deus fazendo
sua santa vontade; escapar das tentações do mundo; fazer
penitência pelos pecados do passado; tornar-se um santo;
trabalhar para a maior honra e glória de Deus; pregar as missões,
trabalhando para a salvação das almas mais abandonadas;
espalhar a devoção à Santíssima Virgem e promover o bem da
Congregação. Sempre pedia nas orações que Nosso Senhor Jesus e
sua Mãe o ajudassem a perseverar e alcançar as metas a que se
propunha. Essas partilhas de vida do padre Mohr nos ajudavam a
criar no coração mais amor pela fé, nos motivando a rezar mais e
mais.
        O padre Hild comentava sobre as missões que pregava nos
Estados Unidos e lembrava com bastante nostalgia que recebeu a
notícia para vir ao Brasil quando pregava as missões em
Annapolis, Maryland. Sua última pregação antes de partir para cá
foi na paróquia Imaculada Conceição, em Baltimore, exatamente
onde foi criado. Estava encerrando a novena solene em honra à
Apresentação de Nossa Senhora, na noite antes de viajar. Foi nessa


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mesma comunidade que celebrou sua Primeira Missa Solene como
sacerdote.




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                    Aquidauana, início da missão


       Aquidauana fica no pantanal mato-grossense. O Pantanal
é uma das maiores planícies de sedimentação do mundo, ocupa
grande parte do Brasil e se estende aproximadamente por 140 mil
km2, avançando também por países vizinhos como Argentina,
Bolívia e Paraguai. A planície inundável, com leves ondulações,
pontilhadas por morros isolados e ricos em depressões rasas tem
seus limites demarcados por variados sistemas de elevações como
chapadas e serras, sendo cortada por grande quantidade de rios,
todos pertencentes à Bacia do Paraguai. Na região pantaneira, a
paisagem altera-se profundamente nas duas estações bem
definidas do ano: a seca e a chuvosa. Durante a seca, os extensos
campos, cobertos predominantemente por gramíneas e vegetação
de cerrado, perdem água, que chega a escassear, ficando
restrita aos rios perenes de leitos definidos e às lagoas próximas a
esses rios, tempo de firmar a consciência de que a água é um
tesouro e sem ela somos frágeis. No tempo da seca berra o gado
impaciente reclamando o verde pasto e aparece o fazendeiro com o
olhar de penitente, muitas vezes descrente, pensando que o
mundo vai se acabar. Transporta o gado pra lá e pra cá nas
grandes comitivas para que a boiada não pereça de sede. Mas a
natureza é divina, graciosa e sempre majestosa, findando a seca
com as nuvens que, de novembro a março, enriquecem todo o
Pantanal. Tudo se transforma no período das cheias. A vegetação
muda e as depressões ficam inundadas, formando extensos lagos
de extrema beleza, apresentando diferentes cores na água, de
acordo com as algas que se desenvolvem e criam matizes de verde,
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amarelo, azul, vermelho ou preto. Com a inundação, grande
quantidade de matéria orgânica é carregada pela correnteza a
longas distâncias.     Durante a vazante, esses detritos são
depositados nas margens dos rios e lagoas, transformando-se em
fertilizantes do solo. Esse patrimônio ecológico, habitado por
incontáveis espécies de mamíferos e répteis, aves e peixes, tem
uma vegetação exuberante e é traduzido em movimento de
formas, cores e sons, sendo um dos mais belos espetáculos da
Terra. Sem dúvida, Deus fez essa beleza para ver no rosto do ser
humano um olhar de admiração e alegria. Algo que sempre
observamos nos olhos dos turistas que por aqui transitam. Algo
que observei profundamente também nos olhos dos missionários
que aqui chegaram e puderam ver a exuberância dessa natureza.
         Conhecida por “lugar das Araras grandes”, nome
interpretado da língua guarani-guaicuru, a cidade de Aquidauana
teve início em 15 de agosto de 1898, quando alguns fazendeiros da
Vila de Miranda se reuniram para escolher um local a fim de
fundar um povoado. O local foi exatamente onde hoje se ergue a
imponente matriz Imaculada Conceição. Um ano após,
construíram os primeiros ranchos de palha no meio da mata. Em
agosto de 1898 passou pelo povoado o padre salesiano José Solari,
que vinha de Miranda em direção a Campo Grande. Ali no arraial
rezou a primeira missa e atendeu as necessidades espirituais do
povo. O próximo sacerdote foi o padre Agostinho Collie, no mês
de junho de 1904. No evento, administrou o sacramento do
batismo e por alguns dias rezou na pequena vila. O mesmo
sacerdote voltou em 1916 e, na véspera do aniversário do
povoado, em 1918, rezou a missa incentivando a erguer ali uma
pequena capela. Em 1899 Aquidauana foi elevada à categoria de
paróquia de Paz, o que conhecemos hoje como Distrito e, em 18 de
dezembro de 1906, ganhou o título de Município.
         A paróquia de Aquidauana, conhecida primeiramente
como Nossa Senhora da Conceição, foi instituída em 04 de abril de
1912, por Dom Cyrilo Paula de Freitas, natural de Minas Gerais e
primeiro bispo de Corumbá. Seu território foi desmembrado das
paróquias de Miranda e Nioaque. Pela falta de sacerdotes, por

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muitos anos dependeu da paróquia Nossa Senhora da Candelária,
de Corumbá. Os vigários de Corumbá a visitavam de vez em
quando, como faziam também com Miranda e Nioaque. A
ausência de padres nessa localidade favoreceu o desamparo
espiritual do povo, que foi tornando-se gradativamente uma
população afastada de Deus.
        Eu nem era nascido, mas sei pelos estudos escolares e pela
minha extremada curiosidade, que no natal de 1919 foi nomeado,
pelo terceiro bispo diocesano de Corumbá, Dom José Mauricio da
Rocha, como vigário residente em Aquidauana, o salesiano padre
José Giardelli. Em abril de 1920, Dom Mauricio fez uma visita à
paróquia e constatou que a matriz era pequena demais e que não
passava de uma pequena capela mor. E incentivou o novo pároco
a iniciar as obras da nova matriz. Para valorizar a liturgia, o
coronel José Alves Ribeiro fez a oferta generosa das alfaias e
apetrechos necessários para o culto sagrado na pequena Igreja, que
se tornava matriz. As obras da nova matriz demoraram a ser
iniciadas. A intendência municipal ajudou na construção do lindo
templo em estilo neo-gótico. O engenheiro responsável pela obra
foi Francisco Luciano Seccomani. É uma edificação isolada, com
fundação de pedra, estrutura de concreto, alvenaria de tijolos
maciços revestidos de argamassa. Possui vitrais laterais e a
cobertura é feita de estrutura de madeira e telhas de barro.
        Em 1924 havia somente padres salesianos em toda diocese
de Corumbá. Eles atendiam Corumbá, Aquidauana, Campo
Grande e Três Lagoas. O restante das paróquias eram visitadas por
padres itinerantes, na medida em que podiam. Entre 1919 e 1920 o
padre Pedro Massa, Inspetor dos salesianos no Mato Grosso, foi
nomeado sucessor de Dom Antonio Malan, que havia chegado em
1894 com a primeira turma de salesianos no Mato Grosso. Em
1921, a Santa Sé chamou o padre Pedro Massa para ser
administrador apostólico da Prelazia de Rio Negro, no Amazonas.
Pouco depois assumiu a Prelazia de Porto Velho e em 1927 foi
convidado a administrar a Diocese de Corumbá, pois Dom José
Mauricio Rocha tinha sido transferido para Bragança Paulista,


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vindo a falecer naquela diocese quarenta e dois anos depois, em
1969.
        Em 1929, já como bispo da Diocese de Corumbá, Dom
Antonio de Almeida Lustosa, numa visita à Aquidauana, fica
assustado com a pouca participação dos fiéis aos atos religiosos,
com a péssima qualidade da Escola Paroquial da localidade e
critica pesadamente a falta de atendimento às comunidades rurais
da paróquia. Eram sinais claros de que algo precisava ser feito, e
urgentemente. Sinto que Deus dava sinais ao bispo para ir em
busca de novas possibilidades e então apareceram os missionários
redentoristas. Eram os passos definitivos em direção a uma nova
jornada.




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5
                          A Difícil Viagem

       A oração sempre será a grande arma que Deus confiou ao
ser humano para vencer os desafios e entrar em sintonia com Ele.
Sem ela ficaríamos à mercê de muitos males e sem forças para
vencer os inimigos, as dificuldades e os desânimos. Certamente
que ela foi o grande estímulo e força na orientação daqueles
missionários norte americanos que aceitaram o desafio de começar
nessas paragens a imensa obra de evangelização que presenciamos
e vivemos hoje.
       Ao aceitar a missão, os caminhos foram traçados e chegara
o momento da partida. A noite não tinha sido fácil para os dois
missionários que iriam adentrar em campos vastos de desafios. O
coração do padre Hild palpitava qual pipoca pulando na panela,
prestes a ser devorada por bocas insaciáveis. Padre Mohr, por sua
vez, tentava manter-se calmo e dono da situação. Mesmo assim,
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sentia a responsabilidade e o desafio da missão que ora assumira.
Sabia que a jornada era longa, desafiante e dura. Cada passo seria
um salto para o desconhecido, mas podia contar com a força de
Deus e estava certo que iria combater o bom combate, e acima de
tudo, guardaria a fé. Essas palavras do apóstolo Paulo, sobre o
momento íntimo e profundo de uma decisão, certamente pesaram
muito e foram verdadeiras companheiras daqueles missionários
perspicazes e decididos.
        Devagar o sol se escondeu, deixando a cidade e o mar
nova-iorquinos se perderem de vista. A manhã chegaria cheia de
calor e brilho, renovando os pensamentos e mostrando a beleza do
mundo através da humanidade desperta. Era hora de descansar o
corpo da lida daquele dia. Cheios de esperança e fé, mas
apreensivos, aqueles dois homens se entregaram ao descanso da
noite, pois o dia seguinte seria decisivo e histórico. Era o momento
de dizer “adeus” aos amigos, parentes e confrades que ficariam
nos Estados Unidos. Era momento de se preparar para dizer “Oi”
ao novos amigos, novos desafios, nova missão, novo mundo e
nova vida.
        Após a difícil noite, como prêmio veio a linda manhã. O sol
brilhava resplendente no porto de Nova York. Parecia que o astro
rei estava feliz pela nascente obra divina em campos tão difíceis da
região mato-grossense. Há poucos dias a comunidade redentorista
tinha comemorado os 197 anos do nascimento da Congregação.
Isso dava mais ânimo aos ansiosos corações missionários, que
seriam os pioneiros de uma nova era de evangelização às vésperas
de comemorar o segundo centenário do nascimento da
Congregação em Nápoles. Todos sabiam que a missão assumida
era um grande risco, mas ao mesmo tempo, de extrema
necessidade pastoral. O povo vivia como rebanho sem pastor.
        Inspirados pela Virgem Mãe do Perpétuo Socorro e
imbuídos do espírito de missão, com alguns dólares no bolso,
algumas malas para a sobrevivência e muita vontade de trabalhar,
os dois partiram de Nova York a bordo do Vapor Northen Prince
The Furness Line. Era sábado, 23 de novembro de 1929. Destino


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da viagem: as longínquas terras brasileiras, diocese de Corumbá,
sudoeste do Mato Grosso, cidade de Aquidauana.
         Doze dias, embalados pela maresia, entre enjôo, calor e
expectativas, aportaram no Rio de Janeiro em dia 05 de dezembro
e foram recebidos pelos missionários redentoristas holandeses que
ali missionavam. À noite embarcaram para Santos, chegando lá no
dia seguinte, onde o vice-provincial dos redentoristas alemães de
São Paulo, Padre Estevão Maria Heigenhauser, os aguardava. O
tempo corria e era preciso acompanhá-lo. Somente seis semanas
para familiarizar-se com a língua e já tiveram que partir em
direção a Aquidauana, ponto final dessa grande viagem e início de
uma nova e longa caminhada. Sabiam que ainda teriam muito pela
frente. Sabiam que tudo estava apenas começando. Padre Estevão
chamava essa região pantaneira de Mato Grosso do Oeste. Em sua
visão, toda a região tinha as mesmas possibilidades de
desenvolvimento do Oeste dos EUA, setenta ou cem anos atrás.
No dia 21 de dezembro, padre Estevão recebeu uma carta de Dom
Lustosa, que expressou sua alegria com a chegada dos
missionários norte-americanos e aprovou o plano destes ficarem
um tempo em Aparecida para aprenderem melhor a língua
portuguesa.
        No dia 30 de dezembro de 1929, finalzinho do ano, padre
Mohr escreveu de Aparecida para o padre José Hild, nos Estados
Unidos, e a carta falava sobre suas primeiras impressões do Brasil:

               “Graças a Deus estamos bem e até progredindo devagar
       com a língua portuguesa. Estamos experimentando-a com todos
       que encontramos. Rezamos com o povo, depois das missas em
       português tentamos conversar com as crianças. Vamos chegar,
       creia em mim! Padre Afonso está bem feliz. De fato, tentamos
       estar sempre alegres e felizes, especialmente quando estamos com
       a comunidade e parece que eles estão gostando de nós. Mas há
       alguns muito sérios e severos. O padre Heigenhauser é muito
       bom, de bom gênio, alegre e muito caridoso. Você realmente não
       exagerou falando sobre ele. Até nem falou suficiente. Ele é nosso
       melhor amigo e mão direita em tudo que tentamos fazer. E

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sabendo que ele vai nos acompanhar para o Mato Grosso, é um
       grande alívio e conforto. Eles têm uma grande editora aqui e
       podem imprimir tudo. Pertence à vice-Província e é uma fonte de
       renda. Padre Heigenhauser nos deu muitos livros em português.
       Livros de oração, de leitura espiritual. As visitas ao Santíssimo
       Sacramento, as Escrituras, etc.” (Pe. Francis Mohr, 1929)

        No dia 02 de janeiro outra carta foi escrita por Dom Lustosa
recomendando que os recém-chegados ficassem em Aparecida até
o mês de março. Janeiro e fevereiro são os meses mais quentes do
ano no Mato Grosso e isso poderia assustar os missionários
acostumados ao frio dos Estados Unidos. Também comunicou que
as paróquias a serem atendidas eram Aquidauana, Miranda, Bela
Vista, Porto Murtinho e Nioaque. Ao receber tal carta, padre Mohr
achou estranho o pedido para que ficassem em Aparecida até
março, mas como Dom Lustosa prometeu visitar Aparecida entre
os dias 16 e 17 de janeiro, preferiu esperar sua chegada para saber
dos detalhes. Enquanto esperavam, tiveram a oportunidade de ir
com padre Estevão até Itu, ao Convento das Redentoristinas e
ficaram impressionados com as cores americanas do seu hábito. As
irmãs expressaram grande felicidade com o projeto dos
missionários norte-americanos em trabalhar no Brasil. Depois,
passaram pela difícil experiência de submeter-se à tonsura clerical,
utilizada naquela época tanto no Brasil como em países com
maioria católica. A cerimônia da tonsura aconteceu em 14 de
janeiro. Sem ela o povo não acreditaria que seriam sacerdotes e
missionários.
        Numa carta ao Provincial nos Estados Unidos, datada de 16
de janeiro de 1930, padre Mohr escreve que encontrou o bispo
naquele mesmo dia e tirou dúvidas sobre o trabalho que iriam
realizar no Mato Grosso. Entre outras coisas, os missionários
teriam licença para crismar. O bispo comentou que em toda a
região havia entre dez e dezoito mil índios e tais informações
ajudaram nos planos e projetos de evangelização. Finalmente, no
dia 17 de janeiro, sexta-feira, embarcaram para Araraquara, onde a
vice-Província de São Paulo tinha casa. No domingo, dia 19, foram

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até Bauru, embarcando em definitivo para o Mato Grosso. Viagem
que levou um dia e meio.
        Foi da cidade de Bauru, Estado de São Paulo, que saiu o
trem para o pantanal. Ao cruzar a divisão dos estados de São
Paulo e Mato Grosso, ficava nítida a mudança da paisagem. Havia
grande disputa entre os passageiros para pegar os melhores
lugares nas plataformas entre os vagões ou nas janelas do trem.
Observar o trem fumegante mata adentro era uma dádiva. Isso
sem contar a quantidade de animais da região que era possível
admirar ao longo do percurso. Mas havia dificuldades, a cabine da
velha locomotiva expelia ardentes centelhas; resultado da queima
de madeira da fornalha, que produzia vapor e fazia aquela
máquina se mover como uma grande serpente pelos trilhos de
bitola estreita apoiados em terra pura, sem a base de pedra, que
proporcionava uma imensa nuvem de poeira se arrastando atrás
daquele monstro de ferro que navegava e berrava fumegante a
uma velocidade de vinte quilômetros por hora, levando os
passageiros até os longínquos confins do Brasil. A viagem era
sempre uma grande aventura e as centelhas incandescentes da
voraz fornalha devoravam tudo que em frente dela passasse. Os
passageiros sofriam, pois quando abriam a janela das cabines
dificilmente ficavam ilesos às faíscas, fumaça e poeira; se as
fechavam, enfrentavam o horrível calor do clima e das fornalhas
daquele imenso dragão de ferro. As roupas, devido às fagulhas da
lenha incandescente daquele monstro lambedor de fogo, ficavam
cheias de furinhos, qual ninho de traças que destroça a vestimenta
guardada nos cabides e guarda-roupas. Sempre havia muitos
animais nos trilhos: cavalos, bois, antas, capivaras, sucuris. Muitos
eram esmagados pelo monstro de ferro. Dependendo do embalo e
da quantidade de lenha na fornalha, em algumas elevações o trem
ficava sem forças e não subia. Era preciso parar por uma hora ou
mais, abastecer com lenha até que o motor a vapor tivesse força
suficiente e puxasse os vagões. Se outro trem estivesse vindo de
encontro, tinha que parar na estação por mais ou menos uma hora
até o outro chegar. Era um verdadeiro milagre que chegasse no
horário. Normal era atrasar cinco ou seis horas. Essa aventura

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dentro da locomotiva com certeza preparava os passageiros pelo
que viria à frente, pois o calor tropical e a poeira da região mato-
grossense eram insuportáveis.
         Somente aqueles que viajavam no terrível calor e poeira da
via Férrea Noroeste podem imaginar como aqueles missionários
sentiam-se após a aventura de um dia e meio dentro do trem
numa viagem insuportável de São Paulo ao Mato Grosso,
acumulando em suas roupas, cabelo e pele a fumaça, poeira e suor
intermináveis. Sempre fiquei curioso sobre o que teria trazido
esses homens de tão longe para falarem de Deus neste lugar que
eu considerava o início do fim do mundo. Era uma nova língua,
um povo estranho, uma comida diferente e uma região
desconhecida para eles. Quais teriam sido seus pensamentos
quando aqui chegaram? Quando, olhando pelas janelas do velho e
barulhento trem, viram grandes extensões de mata e planícies,
sabendo que toda aquela região seria sua primeira paróquia no
Brasil. Seu futuro campo de batalha a favor do Reino de Deus. O
futuro cenário das grandes vitórias ou derrotas, centro de muitos
sofrimentos e abnegações. Certamente surgiu-lhes na alma um
pouco de saudade de sua terra e dos seus que por lá ficaram. Sim,
porque se tratando de homens, de pensamentos e emoções
humanas, essa história não pode ser reduzida a meras e frias
estatísticas. Deve ser vislumbrada como história de vocacionados,
enviados a uma terra desconhecida, austera e difícil, de lutas e
desânimos, medos e privações. Certo dia perguntei a um deles
sobre a dureza da viagem de trem até o Pantanal, e a resposta foi
seca, rápida e certeira, como um bom norte-americano a faz:

– Pior do que viajar muitos dias nesse trem é ser condenado ao inferno
sem nem ao menos lutar!

       Ali veio a certeza de que eles tinham um grande amor à
missão de Nosso Senhor e uma verdadeira sede em levar almas
para o céu. Expressavam um bom senso de humor, vontade firme
e resoluta de enfrentar e suportar tudo. Sem esses itens, acredito,
sua história nunca teria sido escrita por aqui.

                                                                   28
Lembro do nosso primeiro encontro. Eu era apenas um
menino travesso, traquina e cheio de energia. Irrequieto e com o
peito ansioso de tanta curiosidade pulava por todos os lados para
participar melhor de todo aquele murmúrio e confusão que
acontecia na estação da cidade. Não sabia direito do que se tratava,
mas lembro que a fumaça da máquina a vapor e seu cheiro de
lenha com o gás produzido a partir da queima do carvão tomava
conta do local e lacrimejava nossos olhos. Alguns minutos depois
fui compreender que naquela noite do dia 20 de janeiro de 1930,
segunda-feira, três missionários acabavam de chegar à minha
querida Aquidauana. Porque vieram eu nem imaginava, também
não sabia seus nomes, somente horas depois descobri: Afonso
Maria Hild, Francisco de Assis Mohr e Estevão Heigenhauser. A
primeira impressão era de difícil aproximação entre nós, pois a
linguagem e o sistema de vida desses missionários parecia ser
muito rígido, notei que havia certa barreira. Certamente que a
cultura pesava muito. Além disso, dois deles apenas balbuciavam
algumas palavras em português. Pensei em meu intimo que nunca
iria compreendê-los.
        No momento da chegada desses homens diferentes, de
hábito preto, cruz e rosário na cintura, em meio aquele calor
infernal e fatigados pela longa e estressante viagem lá estava eu,
assistindo tudo, sentindo que minha vida seria diferente dali em
diante. Não sei por que sentia isso. Talvez fosse pressentimento,
talvez intuição, mas sentia. Foi quando o maior deles me chamou e
numa linguagem totalmente enrolada perguntou meu nome.
Menino do interior, matungo que raramente via gente nova por
essas terras, e quando tinha visita em casa geralmente se escondia
de vergonha, respondi gaguejando e desajeitado. Ele riu me olhou
fixo e engraçadamente disse: “olha pequeno tuiuiú, mesmo sendo
pequeno, se quiseres, poderás ser muito útil a Deus”. Aquelas
palavras entraram em meu ser como bala de carabina que derruba
qualquer animal. Senti a divindade tomar conta de mim e saí
pulando de braços abertos como um pássaro, ou um tuiuiú, como
ele acabava de me chamar. Ali começou minha história de vida na
presença de Deus. Ali começou tudo que hoje sou.

                                                                 29
Padre Estevão Heigenhauser veio à Aquidauana com
nossos dois missionários para ajudá-los nas acomodações e nos
primeiros contatos com o povo. Padre Mohr o descreveu como
homem fino e esplêndido acolhedor. Também foi um grande
socorro a nós, que pela humildade e ignorância das coisas de Deus
e dos problemas culturais e de linguagem, não tínhamos condições
alguma de ajudá-los. Durante alguns meses praticamente deixou
de lado suas funções como vice-provincial de São Paulo para ser
intérprete, despachante, amigo e irmão dos novos missionários.
Sem essa ajuda aquele inicio teria sido mais doloroso e com
inúmeras outras dificuldades. Mas, chegaria a hora dos nossos
missionários darem os primeiros passos sozinhos. Havia muitas
almas a serem cultivadas nos campos pantaneiros.




                               6
               Tomada de Posse da Paróquia
                            (1930)


       A lua estava cheia e o vapor quente da noite tomava conta
de todos, parecia que o inferno havia aberto suas portas para nos
amedrontar com seu bafo quente e insuportável. O tempo estava
tão quente que o calor forçava nossas entranhas, e estas pareciam
querer derreter os pensamentos e ações. Mas, em meio a todo esse
mormaço, aquela foi para mim uma noite memorável, onde tudo
parecia diferente e, no âmago da minha jovialidade, nunca havia
experimentado tanta doçura e tanta leveza em meu ser. Algo
diferente estava acontecendo. Parece que Deus acabava de
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aterrissar em nossa região. Que sensação de alívio, de paz, de
eternidade. Algo indescritível acontecia comigo. É como se
estivesse morrendo de sede e de repente surgisse do nada um copo
de água fresca trazida de uma fonte divina. Bebo-a e fico saciado
por toda eternidade.
        Ao contar isso estremeço, minha velhice mostra a
incapacidade de escrever o que sinto, faltam palavras para me
expressar. Lembro como se fosse hoje a fisionomia daqueles dois
missionários de preto que nos trouxeram novo rumo. Um,
encorpado, olhar fechado, cheio de saúde, palavreado difícil,
misturava inglês com português, alemão e sei lá mais o quê.
Parecia não ter medo de nada. Poderíamos dizer que era um
embaixador da coragem e, certamente, capaz de derrubar e
levantar um cavalo com a força que parecia armazenar nos braços.
Enquanto proferia as palavras, seus olhos se abriam como
alçapões, descobrindo as entranhas, coração, rins e pulmões, num
verdadeiro fogaréu humano. Um missionário destemido,
verdadeiro desbravador de almas. Passou seus últimos anos no
Brasil, na cidade de Bela Vista. Andava a cavalo, quando
encontrava um que agüentasse seu peso, ou de jeep para chegar
mais avidamente ao destino. Desde que o vi pela última vez nunca
se queixou de nada. Sempre agüentou firme a missão que
assumiu. Fiquei sabendo que faleceu nos Estados Unidos, no dia
22 de janeiro de 1952, exatamente 22 anos depois que aqui chegou.
        O outro, macilento, sempre aparentava estar doente e
amedrontado. Em 1935, cinco anos depois que chegou ao Brasil,
voltou para os Estados Unidos e faleceu pouco depois, no dia 13
de junho de 1936, vitimado pelo câncer. Dois homens fisicamente
opostos um ao outro, mas com um mesmo objetivo: trazer Deus
para nossas almas carentes.
        De início tinham pouco contato conosco e pouca amizade
com o povo. Tinham de usar constantemente a roupa preta, batina,
dentro e fora de casa, criando um grande muro de relacionamento.
Muitas pessoas chegavam a ter medo dos missionários. Com o
correr dos anos e na convivência fui descobrindo a docilidade e a
alegria que cada um trazia em si. Aos poucos fui descobrindo tudo

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que haviam enfrentado para estarem ali. Aprendi que a vida
exige-nos o impossível do possível. Deus parece querer nos
ensinar que as melhores conquistas devem ser feitas à base de suor
e sangue, caso contrário, não tem gosto de vitória. E assim as
vitórias vão aparecendo, mas o jogo é difícil e nem sempre deixa
ileso quem dele participa. Cada passo exige mais coragem e
quanto mais coragem mais se alonga a tarefa. Certamente que só
podemos chegar ao final do caminho se damos os primeiros
passos. É a norma da vida. Foi isso que vi acontecer e nisso
alimento minhas lembranças e conquistas.
        Da maneira como falavam da viagem e da chegada em
Aquidauana, percebi que aqueles dias e semanas anteriores, as
noites no navio e no trem, não tinham sido tranqüilos. Os
pensamentos vagavam e a ansiedade tomava conta dos seus
corações. Nem mesmo o frio, que naquele mês de novembro, início
de toda viagem, começava a castigar os ares norte-americanos,
conseguia refrescar a ansiedade daqueles corações. Aqueles
missionários estavam prontos pra tudo, mas nunca haviam
imaginado encabeçar uma frente de trabalho nas condições
calorentas e empoeiradas das terras do Mato Grosso. O ser
humano constrói seus planos, no entanto, Deus sempre tem
outros.
        Imagino como seus corações deveriam estar cheios de
Deus. Dava para sentir que haviam colocado fé na realização dos
seus planos e sonhos; e que traziam na mente a certeza de que
Deus os fortalecia. Foi essa certeza que trouxe aqueles homens e
depois mais um bando deles para nossa região, mudando por
completo nossas vidas, influenciando nosso modo de ver o mundo
e até a arquitetura local. Não dá para negar que Deus pousou sua
mão sobre nós na pessoa de cada missionário de preto que por
aqui passou e ainda passa. Quantas renúncias fizeram para estar
aqui e falar de Deus. Quantas coisas tiveram que deixar para trás,
em nome de um Reino e de uma fé. Ao chegarem ao destino,
sentiram isso de perto. Mais tarde, fiquei sabendo, pediram ao
superior maior em Roma para substituir o hábito de cor preta pelo


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branco, em função de aliviar o calor, mas não se sabe por que
razão o pedido foi rejeitado.
        Desde a chegada do trem, tudo o que acontecia era
novidade. A estação ferroviária estava abarrotada por uma parede
de curiosos e tantos outros, entre os quais estava um pequeno
grupo de paroquianos, reunidos para saudar os missionários.
Lembro-me que alguém proferiu um rápido discurso de boas-
vindas, era o intendente municipal. Trouxeram de São Paulo,
como companhia, um casal de alemães: Senhora e Senhor
Birmoser. Ela faria a comida por alguns anos e ele faria os serviços
gerais, tornando-se, mais tarde, chofer dos missionários. A solução
era boa, mas com certas dificuldades. Eles falavam somente
alemão e, internamente, a comunidade aderiu ao idioma, inclusive
durante as refeições e recreio comunitário. Isso acabou gerando
conflitos quando chegou o segundo grupo de missionários, no mês
de agosto. Os que chegaram não falavam alemão e se sentiram
excluídos do grupo. Tiveram que chegar ao consenso de não
utilizar mais o alemão na comunidade, evitando a exclusão dos
outros.
        Após a calorosa recepção, partiram rumo à nova e
inacabada matriz, onde por três noites consecutivas houve reza e
pregação feita pelo reverendíssimo padre Estevão, o guia dos
recém-chegados. Da Igreja foram para a residência temporária, nos
limites da cidade. Era uma pequena casa de tijolos com quatro
aposentos, um telhado avariado que vazava muito quando chovia,
banheiros fora de casa, que eram verdadeiros incômodos, em
especial à noite e nos dias de chuva. Quartos pequenos e quase
sem nenhuma privacidade era muito frio no inverno e muito calor
no verão. Para ter água era preciso trazer do rio, a dez minutos de
caminhada. Ajudávamos conforme podíamos, mas nem sempre
fazíamos muito. Ali viveriam até 24 de agosto de 1933, quando a
nova casa ficaria pronta.
        Padre Estevão continuou conosco até a entrega definitiva
da paróquia aos novos responsáveis. Sendo este um valente
orador e preparando o coração dos fiéis, no dia 25 de janeiro fez a
entrega oficial da paróquia ao padre Francis de Assis Mohr.

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Registro esse que pode ser confirmado no livro de batismo escrito
pelo punho do próprio padre Mohr. O padre salesiano que
cuidava daqui não estava presente nesse dia por motivos de saúde,
por isso foi padre Estevão quem deu posse aos missionários. Eu,
ainda menino, bisbilhoteiro que só, o vi rasurar aquelas duas
folhas do livro de batismo e na terceira escrever o dia em que
tomou posse definitiva da paróquia. Dali em diante seria o
missionário pastor de um rebanho sedento e esfomeado da Palavra
Divina.
        O porquê de ter rasurado aquelas duas folhas? Imagino
que foi uma maneira de marcar o início de uma nova era. O
começo de uma nova caminhada. No mesmo dia da posse, como
penhor de Deus em nossas terras e pelo novo trabalho, houve a
bênção com o Santíssimo Sacramento. No dia 26, domingo,
tivemos a missa solene pregada pelo então pároco padre Antonio
Maria Marto, Salesiano. À tarde, uma bonita procissão que
aumentou o fervor e a boa impressão dos fiéis para com o novo
trabalho que se iniciava. Não esqueço que passamos o dia todo na
Igreja decorando-a, do nosso modo e jeito. Os missionários ficaram
admirados com a criatividade. Muitas mulheres ajudaram
cortando papéis e buscando flores nos jardins e no mato. Lembro-
me que padre Mohr observou, bem no início de sua chegada, que a
igreja estava praticamente abandonada, não tinha homens
participando, somente algumas mulheres, e que nas missas de
domingo havia mais cachorros que gente. E fez ainda outras
observações numa carta que escreveu para seus superiores nos
Estados Unidos:

         “Que surpresa nos aguardava em nossa chegada”? Havia uma
multidão na estação. Os oficiais da cidade estavam nos esperando: as
crianças de Maria, os meninos e meninas escoteiros. Todos estavam lá,
exceto o pároco, que se atrasou, pois o trem chegou 19 minutos antes da
programação. Todos apertamos as mãos e pareciam estar muito felizes
com a nossa chegada. Dirigimo-nos para a Igreja da cidade no carro
oficial. Formou-se uma procissão formal de carros. Chegando à Igreja
fomos vê-la internamente. As pessoas e crianças também foram para a

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igreja. Depois fizeram uma fervorosa oração de ação de graças. Sentamo-
nos e então o vigário, um salesiano, que estava aqui há pouco tempo, fez o
discurso de boas vindas. Padre Estevão respondeu rapidamente. A igreja
é nova, e não está finalizada. Mas está sendo usada para os serviços
divinos. É um grande lugar sagrado, e tem um altar bem miserável. Há
dois espaços grandes ao lado do altar. Um deles pode ser usado como
lugar sagrado para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ou outro santo.
        Tudo estava acertado para que nos fosse entregue formalmente no
dia 25 de janeiro. O pároco daqui preparou uma grande cerimônia.
Entretanto, no sábado à tarde fez exame de saúde e não pôde estar
presente no dia da posse. Padre Estevão foi quem transferiu a paróquia
dos Salesianos para nós. A igreja estava maravilhosamente decorada.
Havia pessoas importantes da cidade. Padre Estevão recitou o rosário e
convidou as pessoas para cantar a ladainha e o sermão. Depois fez um
bonito fervorinho, rezando a Deus pelo trabalho dos salesianos e fez um
agradecimento a eles em nome da paróquia. Falou sobre os redentoristas,
quem eles são, de onde vem e sobre a nova época e história de
Aquidauana.
        Disse que os missionários redentoristas estão entrando num
campo fértil do Mato Grosso. Foi então que do centro da Igreja ele me
chamou. Eu saí da sacristia e vim. Eu estava vestido com as roupas
litúrgicas para a missa. Ele apontou-me e disse que agora eu era o novo
vigário, enviado ao Brasil. Apontando para as pessoas da cidade ele
indicou os meus cargos. Entregou-me as chaves, os livros da paróquia, os
livros das associações e irmandades, etc. subiu à plataforma do altar e
falou por dez minutos, em português, o que havia memorizado. No dia
seguinte houve a solene procissão pelas ruas. Uma tripla novena em
louvor a Imaculada Conceição, São Sebastião e Santa Teresa, a pequena
das flores. O padre salesiano retornou dos seus exames de saúde e
conduziu a procissão por inteiro. Na procissão, os homens carregavam as
imagens. Uma linha de meninas vestidas de branco representavam os
diferentes Estados do país. Mais de três mil pessoas estavam nessa
procissão, que foi para o centro da cidade. No fim o padre salesiano fez
um eloqüente discurso, abraçou a bandeira brasileira e invocou as bênçãos
de Deus sobre o país e todos os povos”. (carta do padre Francis Mohr)



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Assim as coisas foram acontecendo: cansaço, novidade,
correria, desafios, chuva, calor, previsões e muita oração. Mesmo
assim, encontraram tempo para aprender um pouco da história do
lugar e ficaram sabendo que a cidade foi fundada às margens do
Rio Aquidauana para servir como porto para os fazendeiros do
pequeno distrito. Explica-se, desse modo, o porquê de a
construção da Matriz ter ficado próxima ao rio, e não mais acima,
por onde a cidade desenvolveu-se mais tarde. Na fundação da
cidade a via férrea não existia e todos os suplementos viajavam
por barco. A viagem absorvia três meses. Era como ir do Rio de
Janeiro a Buenos Aires navegando, precisava subir o Rio Paraguai,
descer o Rio Miranda e entrar no Rio Aquidauana. Assim, o núcleo
das cidades sempre tendia a crescer às margens do rio. Todo esse
movimento, juntando os pedidos à proteção de Deus para
enfrentar um rio cheio de perigos e armadilhas, motivou a erguer
ali uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Imaculada
Conceição, no ano de 1898. O local escolhido ficava alguns metros
da barranca do rio e o responsável foi um sacerdote de Nioaque,
que vinha ocasionalmente rezar missas e ministrar os sacramentos.
Mal sabia que essa capela, em poucos anos, receberia os
propagadores por excelência da devoção Mariana e ergueriam ali
um legado espiritual que atingiria milhares de pessoas com a
Palavra de Deus e o ardor da missão.




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7

    37
Primeiros Frutos da Missão
                           (1930)


      O tempo continuava quente, mas agora com muita
chuva. Era época das cheias pantaneiras. Os pássaros
cantavam alegres, pareciam desconfiar que a vida humana
depende da alegria do seu cantar. Os peixes pulavam da
água, ora para apanhar comida, ora para agradecer ao
criador por ter proporcionado uma nova era a essa região.
Tu Deus, estavas conosco e eu não tenho dúvidas. As nuvens
carregadas despejavam metros e metros de água sobre todos
nós, lembrando que tínhamos recebido uma benção muito
grande na pessoa daqueles missionários. O céu estava
abençoando a todos com sua presença divina no mundo.
       Foi muito inspirador ver aqueles homens de Deus
enfrentar outra cultura e viver o desafio de preencher um
vazio religioso provocado pela falta de padres numa área tão
vasta como essa do Mato Grosso. Aprendi muito ao ver
esses missionários deixarem o conforto de sua pátria
embrenhando-se na mata, ora andando a cavalo no calor e na
chuva, ora a pé, ora no “fordinho”, levando a mensagem de
Deus para os pobres, nos lugares mais distantes dessas tão
vastas paróquias. Sei que essa determinação e garra não
atingiram somente a mim, mas muitas pessoas que
começaram a buscar Deus com mais freqüência. Prova disso
é que todos os domingos a pequena capela de Nossa Senhora
da Imaculada Conceição recebia cerca de duzentos e
cinqüenta fiéis para assistir ao Sacrifício Divino e escutar a
fala animadora e retórica dos missionários do além-mar. Os
cachorros deixaram de ser a maioria na participação da
missa. Embora nem todos entendessem o que os missionários

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pronunciavam, pela pouca familiaridade com a língua dos
mesmos, sei que a Copiosa Redenção do Cristo veio
caminhar pelas nossas estradas embrenhando-se em nossas
vidas pela ação desses peregrinos e trabalhadores da vinha
do Senhor, forjados e redivivos na escola de Santo Afonso
Maria de Ligório, o idealizador das missões redentoristas.
      Certa vez vi padre Mohr observar suas primeiras
impressões de Aquidauana com as seguintes Palavras:

       “Povo muito amável e amigável, famílias grandes e
hospitaleiras.”

       Dizem que só caminharemos vinte quilômetros se
dermos os primeiros passos. E foi assim que esses homens
de Deus construíram a sua história junto com a nossa. Já no
início do mês de fevereiro, padre Mohr viajou para Miranda,
pois na manhã seguinte, por vontade do bispo, iria assumir
oficialmente a Paróquia Nossa Senhora do Carmo. Entre
discursos, vivas e muitos rojões, a história redentorista
começava em Miranda. Cidade que nasceu a partir de
lavradores que escolheram terras favoráveis à agricultura e à
criação de gado.
        Toda a população acorreu à missa com a Igreja ainda
em construção. Entre os fiéis presentes havia dois garotos
que se mostravam sapecas diante de toda aquela
movimentação, pois só tinham seis anos de idade, mas na
hora da missa permaneceram quietinhos. Eram Armando
Russo e Moacir Bossay. Sentiram-se chamados por Deus e
foram os primeiros frutos do trabalho redentorista no Mato
Grosso do Sul. Anos mais tarde escreveriam um bom pedaço
dessa história sendo missionários redentoristas no Brasil e
exercendo o sacerdócio. Esses dois meninos, envolvidos pela
dimensão missionária sentiram-se atraídos aos caminhos de

                                                          39
Deus e justamente seis anos depois do início de todo esse
trabalho, em 1936, ingressaram no Seminário Redentorista.
       Levados pelo padre Jose Fien, iniciaram seus estudos
no Seminário Menor, em Aparecida, juntamente com os
seminaristas da Província de São Paulo. Era muito cedo para
ter um seminário próprio para tal obra. Mas o sonho já
começava a ganhar corpo e no ano de 1958 foi inaugurado no
Paraná, na cidade de Ponta Grossa, o Seminário Menor do
Santíssimo Redentor.
       Padre Armando foi o primeiro brasileiro a ser enviado
para os estudos de filosofia e teologia nos Estados Unidos.
Foi um verdadeiro lutador nos cursilhos e continua seu
trabalho de comunicação através do rádio. Ficou dezenas de
anos como diretor da Rádio Difusora de Paranaguá, no
Paraná, onde enfrentou muitos desafios. Conta que nos
tempos de revolução no Brasil, iniciados em 1963, confrontou
os grupos “comunistas” no microfone da rádio e até recebeu
juras de morte. Diz que haviam escolhido um poste para
enforcá-lo, caso vacilasse.
       Padre Moacir foi o segundo. Um grande incentivador
das Missões Populares e das vocações. É constantemente
lembrado pelo seu trabalho vocacional. Sabia conquistar e
angariar missionários para a vinha do Senhor, junto aos
jovens, nas missões e nos lugares onde passava. Viveu de
mala por mais de 20 anos nas Santas Missões Populares.
Tocou a vida de milhares de pessoas. Tinha uma memória
invejável e lembrava de todos os párocos com quem tinha
contato nas missões, inclusive o nome dos cachorros das
casas onde ficava hospedado, em virtude das missões.
Muitos missionários, a exemplo desses dois, foram formados
e fizeram essa experiência de estudar nos Estados Unidos.
Até surgir o Seminário Maior São Clemente, em Curitiba, a
capital do Paraná.

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A partir dessas duas primeiras vocações surgiram
outras, tanto que, em 1932, receberam o primeiro candidato a
irmão, Jorge da Silva. Ele chegou aos redentoristas altamente
recomendado pelos salesianos. Morou um ano no noviciado
em Pindamonhangaba, fazendo um profundo aprendizado
sobre a vida redentorista, depois veio para Aquidauana. Mas
era muito doente e sofria bastante com isso. Acabou indo
para Campo Grande, ficando lá por três meses, depois foi
desobrigado do seu juramento, a pedido dele mesmo.




                                                          41
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                       Novos Desafios
                            (1930)


       “A  messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi
ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe.”
Essas palavras de Jesus explicitam bem a consciência da
imensa missão e como eram poucos aqueles que percebiam a
necessidade de orientar o povo, transmitir-lhes um sentido
de esperança e de paz. Sozinho, Jesus sabia que levaria sua
obra a bom termo, mas não quis, chamou os discípulos para
ajudarem e aprenderem dele e continuarem a semeadura do
Reino. A exemplo disso, percebendo que o trabalho
aumentava e a necessidade era grande, no mês seguinte após
a chegada, ainda batendo o pó da estrada de ferro, padre
Mohr escreveu aos seus superiores em Nova York pedindo
de imediato a ajuda de pelo menos mais quatro missionários.
A resposta não demorou. Foi informado que os quatro novos
missionários haviam sido escolhidos e se preparavam para a
nova missão. Nesse ínterim, como superior da missão,
resolveu fazer uma viagem de reconhecimento pela região.
Com um Ford modelo 29, visitou Nioaque, as aldeias

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Bananal, Ipegue e Taunay. Foi à Miranda, Bonito, chegando a
Bela vista, que na época contava com mil e quinhentos
habitantes. Cruzou o rio Apa e visitou a cidade de Bella
Vista, no Paraguai, que tinha dois mil habitantes. Ambas não
tinham padres para atendê-las.
        Voltando, era momento de preparar a festa de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro, devoção que trouxeram dos
Estados Unidos. Essa festa deveria ser especial, pois era a
primeira de nossas vidas. Requisitou mais uma vez a ajuda
dos missionários de São Paulo, que prontamente atenderam
ao pedido e enviaram padre Afonso Zartmann para pregar o
novenário de Nossa Senhora. Foi muito bonito. A
participação foi de grande escala, quase metade dos cinco mil
habitantes de nossa cidade participou da solene procissão de
encerramento no domingo, dia 22 de junho. A partir disso,
mais de trezentas pessoas se inscreveram como membros da
Arquiconfraria da Mãe do Perpétuo Socorro. Era bênção
sobre bênção. A Mãe do Perpétuo Socorro amparava os
missionários que a cada dia tinham uma surpresa especial
para nós. O amparo da Mãe do céu era tanto que no fim do
mês de junho padre Mohr anunciou que em breve chegariam
quatro novos missionários. E noticiou que a missão em
Aquidauana estava finalmente oficializada. Isso trouxe
tranqüilidade aos missionários, pois, em Roma, cogitava-se
tirá-los daqui e enviá-los para cuidar dos índios xavantes, no
Xingu.
        Finalmente, no dia 22 de julho, terça-feira,
desembarcaram no Rio de Janeiro, vindo dos Estados
Unidos, os novos missionários. Padre Mohr foi recepcioná-
los e contava que subiu no navio para dar um grande abraço
em todos, num estilo verdadeiramente redentorista. Dizia
que as palavras não poderiam descrever a alegria em
encontrá-los. Após um pequeno contato com o idioma, no

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dia 01 de agosto de 1930, época de intenso frio no chamado
inverno pantaneiro, os quatro chegaram a Aquidauana. Eram
os missionários Henrique Plufg, Guilherme Fee, Jose Fien e
Rudolfo Reiss. Pareciam muito motivados e jubilosos em
auxiliar na salvação das almas de nossa terra. Ao olhar para
aqueles recém-chegados, tive a impressão de que sabiam
exatamente de quem era a messe e quem eram os
trabalhadores. Mas o ser humano é limitado e veio aos meus
pensamentos se seria honra ou castigo estar na lista dos
enviados para o Brasil. Será que formar uma equipe para tal
missão no Mato Grosso fazia parte dos planos deles? Nunca
obtive respostas, mas confio que somente o tempo e a
consciência de cada um pôde responder a tais indagações. O
certo é que nenhum deles era “profissional” em missão fora
do seu país; nenhum deles pensou em integrar a lista dos
continuadores de Jesus nesta região. Estou convencido de
que os critérios de Deus são diferentes dos nossos. Para Ele
não são as qualidades ou defeitos dos candidatos que
contam, mas a docilidade ao Espírito. Sei que, de um modo
ou de outro, se sentiram tocados, por estar na lista de Jesus.
Mais uma vez, tive certeza de que Deus não “escolhe os
capacitados, mas capacita os que Ele escolheu”.
       Lembro bem do padre Henrique Plufg. Sempre estava
descontente em ter vindo ao Brasil, mas em nome da
obediência, realizava sua missão com especial carinho.
Contava-nos que nasceu nos Estados Unidos, em Nova York,
num lugar chamado Bronx. Era luterano e quando tinha
vinte anos de idade se converteu ao catolicismo. Antes de vir
para o Brasil, entre os anos de 1927 e 1930, foi secretário do
provincial em Nova York. Inclusive, soube há pouco tempo
que foi ele quem batizou o padre Clemente Krug, também
redentorista norte-americano. Chamava nossas terras de
Oeste selvagem do Brasil, a exemplo do padre Estevão de
                                                           44
São Paulo. Acredito que reclamava bastante da situação do
trabalho por aqui devido à necessidade de sujeitar-se a viajar
pelo mato, por centenas de quilômetros de estradas
poeirentas em péssimo estado, as quais dificilmente
poderiam ser chamadas de estradas. Visitava aldeias
indígenas que praticamente não falavam português e
famílias que moravam em taperas de pau-a-pique rebocadas
com barro e cobertas com folhas de palmeira ou sapé.
Sempre que falava com pessoas de sua terra, aconselhava-as
a não virem para cá. Dizia que aqui não tinha nada para ver,
nem riquezas para serem descobertas, e que havia um monte
de inconvenientes como animais selvagens, mosquitos,
cobras enormes e o calor infernal. Reclamava que aqui era
quente e úmido a maior parte do ano. Seu maior passatempo
era tirar fotografias. Fotografava o carro atolado nos lamaçais
pantaneiros, as araras em seus vôos elegantes, o tuiuiú no
ninho, seus companheiros missionários em diversas
situações e as construções das igrejas. Comentava muito
sobre a alimentação. Esse é um fator importante para quem
visita o país, em especial o Mato Grosso. Foi para ele uma
grande dificuldade se adaptar aos hábitos alimentares do
lugar. Deixar costumes de lado e ingerir uma nova
alimentação era um verdadeiro sacrifício. Dizia que sua
maior surpresa no fator alimentação era a imensa quantidade
de carne acompanhada de farinha de mandioca que o povo
daqui comia. Ria muito quando lhe ofereciam carne seca e
chamava isso de bife seco. Contava que certa vez foi visitar
algumas comunidades de fazenda, bem distantes de
Aquidauna, e presenciou o preparo de um alimento que lhe
deixou amedrontado. Ele viu a cozinheira esquentar uma
lata enorme de gordura e colocá-la na panela de arroz ainda
não cozido. A água não foi adicionada até que a gordura
fosse totalmente absorvida pelo arroz. Diz que o alimento era

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gostoso e repetiu várias vezes, mas teve que comer sem
pensar, caso contrário jamais iria ingeri-lo. Sentiu que seu
estômago pulava com tanta gordura e que tudo o que havia
comido foi rapidamente expelido em forma líquida via
fundilho das calças. Em contrapartida, padre Plufg dizia
estar contente pela experiência que adquiriu no Brasil
ajudando as pessoas na área da fé, na educação e também na
área da saúde. Ficava muito feliz em nos ajudar a adquirir
hábitos até então desconhecidos nesta região. Encorajava-nos
a comer muita fruta e muitos vegetais. Certa vez apareceu
com um saco cheio de laranjas, sentou-se em frente da casa e
começou a descascar e a comê-las. Todos ficamos admirados
com aquele missionário estrangeiro comendo uma fruta que
para nós não tinha muito valor e nem pensávamos em
consumi-la. Mas, ao descascar as laranjas, nos falava das suas
vitaminas e valores protéicos, dizendo ser riquíssima em
vitamina C, auxiliando o organismo na resistência às
infecções, formação dos ossos e dentes, cicatrização das
feridas e queimaduras, dando vitalidade às gengivas,
evitando hemorragias e conservando a mocidade. Padre
Plufg explicava que o ferro contido na laranja faz parte do
sistema produtor de energia e leva às células o oxigênio que
os pulmões respiram. Para que não se perdessem todas essas
vitaminas, aconselhava-nos, caso não fôssemos consumi-las,
deixá-las com casca, se fosse consumi-las descascar e comê-
las imediatamente. Todos esses ensinamentos nos
convenceram. Em pouco tempo havíamos aprendido a
saboreá-la de modo natural ou em compotas, doces e licores.
Aprendi que era necessário ficar mais atento aos passos
daqueles homens, pois tínhamos muitas coisas para aprender
e, quem sabe, melhorar muito a nossa qualidade de vida.
Não sei se era uma resposta ensaiada ou algo que vinha da
espiritualidade, mas todos eles sempre repetiam num grande

                                                           46
chavão: “nós aprendemos mais do que ensinamos a vocês”.
       Fiquei sabendo que padre Plufg foi enviado ao Brasil
para fundar uma casa em Santos. Essa residência deveria ser
um local de descanso para os missionários. A idéia nunca
saiu do papel. Mais tarde, tornou-se superior em
Aquidauana e vice-provincial consultor. Padre Plufg era
conhecido como Papai Noel, pois sempre presenteava os
paroquianos com coisas que sobravam da comunidade. Certa
vez houve uma grande festa na paróquia de Aquidauana e
ele repartiu todo o lucro da festa entre as pessoas que haviam
trabalhado. Isso evidencia a mentalidade de que vieram nos
ajudar e explica o fato de o término da Igreja, da escola e da
casa paroquial ter sido custeado com dólares americanos, os
chamados óbulos caridosos dos fiéis norte-americanos.
Parece que a situação somente foi mudar na década de 60,
quando essa prática foi severamente questionada pelo
Provincial dos Estados Unidos e todos começaram a perceber
que precisavam levar a obra adiante com recursos providos
do Brasil.
       Padre Henrique Plufg retornou aos Estados Unidos
quinze anos depois que chegou ao Brasil, no ano de 1945, e
faleceu em seu país de origem no dia 19 de outubro de 1961.




                                                           47
9
            Miranda, vizinha de Aquidauana
                          (1930)


      É mês de Agosto, ainda sentimos o frio que se abateu
sobre nossa região neste ano. Ouço o grunhido das grandes
araras que brincam sobre o coqueiro. Ao longe, o João-de-
barro num imenso estardalhaço anuncia que sua nova casa
foi concluída ou que há perigo à vista. Um bando de
capivaras, com seus filhotes, atravessam as águas do Rio
Aquidauana. Devem buscar alimento ou simplesmente
passeiam e se exercitam. Há uma leve brisa no ar. Os galhos
das árvores mexem-se suavemente demonstrando que a
                                                        48
natureza está viva. O sabiá canta alegremente na copa de
uma das árvores perto daqui.
        Diante de paisagem tão rica, volto ao dia 09 de agosto
de 1930 e lembro, como se fosse hoje, na sacristia da Igreja de
Aquidauana, a distribuição dos trabalhos aos novos
missionários que acabavam de chegar. Sem dúvida, os
ventos sopravam a favor da grande obra evangelizadora que
vivíamos desde o mês de janeiro. A distribuição ficou assim
delineada: padres Afonso Hild e Jose Fien iriam trabalhar em
Miranda; padre Rudolfo Reiss e William Fee, em Bela Vista.
Esses dois últimos também tinham a missão de cuidar
temporariamente da paróquia de Bella Vista, no Paraguai.
Em Aquidauana ficariam os padres Francis Mohr e Henry W.
Plufg. Feita a distribuição, cada um deveria se dirigir para a
nova empreitada missionária. O tempo urgia e as almas
precisavam de acompanhamento e dedicação. A poeira da
estrada era causticante, mas nada poderia impedir que os
servos de Deus prosseguissem em sua jornada. Miranda e
Bela Vista aguardavam ansiosos pela chegada daqueles que
ajudariam a escrever uma nova história na região, qual terra
seca aguardando pelas águas da chuva.
        Miranda é uma paróquia vizinha de Aquidauana.
Territorialmente, sozinha é maior que a Bélgica e de muito
difícil acesso aos seus arredores. Ao oeste tem a cidade de
Porto Esperança, mais distante de Miranda do que o
tamanho total de Porto Rico. Na estação chuvosa, os
pântanos cobriam os caminhos impedindo as viagens e
dificultando o desenvolvimento do catolicismo em muitos
lugares da paróquia. No verão, entre os meses de setembro e
abril, os termômetros chegavam a marcar 45 graus à noite.
        Seus registros batismais e de casamento datam de
1824, dois anos após o Brasil se tornar independente de
Portugal. Os primeiros registros foram assinados pelo padre

                                                            49
Bento de Souza, capelão militar da fronteira. Em 25 de agosto
de 1835, um decreto do Imperador do Brasil elevou Miranda
ao estado de paróquia, iniciando assim a divisão entre tempo
eclesiástico e civil. Miranda foi invadida em janeiro de 1865,
após o ditador Lopez, do Paraguai, ter ordenado a invasão
do Brasil, mas ofereceu grande resistência devido ao número
de tropas brasileiras civis e militares que guardavam
pântanos e matas. Em fevereiro, o pároco de Miranda, um
Frei italiano chamado Mariano Bagnaia, que tinha se juntado
às tropas de inspeção, retornou à cidade para apanhar
comida e roupas para os paroquianos que guardavam a
floresta. Encontrou a igreja em ruínas. Apesar dos
paraguaios culparem os índios pela destruição, o frei
protestou energicamente contra o comando paraguaio.
Recusando ser protegido pelos fiéis, foi levado como
prisioneiro para Assunção. Mas, libertado sob intervenção do
Consulado italiano, voltou à Miranda para ajudar seu povo
nas necessidades e sofrimentos. Motivou a população a
reconstruir Miranda após a derrota dos paraguaios, que se
retiraram do Brasil. Conta-se que esse Frei, quando morava
em Corumbá no ano de 1887, foi acusado de não pagar o
relógio da igreja que acabara de ser construído. Diante dessa
calúnia, vingou-se rogando uma praga contra os moradores
de Corumbá. Expulso, enterrou suas sandálias em lugar
incerto, afirmando que a cidade somente retomaria o
desenvolvimento quando fossem desenterradas. Verdadeira
ou não, a lenda ainda é satirizada na abertura do carnaval
corumbaense, reconhecido como um dos melhores do
interior brasileiro. E sempre sai às ruas de Corumbá o bloco
carnavalesco chamado “As Sandálias de Frei Mariano”,
abrindo o carnaval da cidade.
        O sucessor do Frei Mariano foi Julião Urquia, que
ficou em Miranda de 1874 até 1910. Durante seu pastoreio, o

                                                           50
Brasil se tornou República, a igreja se separou do Estado, a
religião foi proibida nas escolas pública e o casamento civil
tornou-se obrigatório no Brasil. Nesse período, foi regulada a
navegação no Rio Miranda. Depois do padre Julião, os
carmelitas, provindos da Holanda, cuidaram de Miranda por
dois anos. E então, assumiram os salesianos, de 1913 a 1930,
até que o padre Francis Mohr, dia 09 de fevereiro de 1930,
assumiu formalmente a paróquia em nome dos redentoristas
norte-americanos. Os salesianos agradeceram imensamente a
chegada de mais missionários para o Estado, mas haviam
deixado Miranda dois meses antes. Padre Mohr e Hild
avisaram o povo que iriam rezar as missas dos domingos em
Miranda e Aquidauana até a chegada dos outros
redentoristas americanos em agosto.
       Enviados para lá no mês de agosto, padres Hild e Fien
se colocaram imediatamente a trabalho. Lembro bem do
padre Jose Fien. Sempre me pareceu seguro de si e sabendo
onde colocava os pés. Ficou no Brasil quinze anos. Em 1945,
voltou para os Estados Unidos. Faleceu no dia 01 de agosto
de 1986 com 84 anos na chamada casa de “Saratoga”. Os dois
buscaram concluir as obras da Igreja matriz, que estava
inacabada. As paredes estavam levantadas, havia teto, as
portas estavam colocadas, mas não tinha piso, era somente
terra. Não havia instalações de água nem eletricidade, sem
janelas, sem canaletas para a água da chuva, sem acabamento
interno ou externo. Tinha um humilde tabernáculo com a
presença do Santíssimo, anunciada por uma chama
vermelha, alimentada continuamente com óleo. Ao tomar
posse, padre Hild, com muito esforço e sacrifício, buscou
concluir a Igreja matriz, auxiliado pela comunidade e por
doações americanas. A igreja foi projetada pelo construtor
português Manoel Secco Thomé e pelo arquiteto alemão
Frederico Urlass, quando da sua passagem pela cidade.

                                                           51
A primeira casa dos missionários tinha dois quartos,
uma grande sala e uma cozinha pequena. A sala era
dividida com uma cortina e uma cama. A cozinha não estava
pronta para uso. Os missionários faziam as refeições na casa
do Prefeito da cidade, Pascoal Russo. Mais tarde, vieram
cuidar da escola as irmãs, que também faziam suas refeições
no mesmo local. O filho dessa família, Armando Russo e seu
colega Moacir Bossay, ainda meninos na época, tornaram-se
os primeiros missionários brasileiros ordenados em Esopus,
New York, em 1949. Depois voltaram para trabalhar como
missionários no Brasil, sua Pátria Mãe.
       A despeito do enorme tamanho da paróquia e da
extensa população, atendiam mais de 20 mil almas. Duas
das maiores fazendas do mundo – em extensão, não em
número de gado – estavam no território paroquial. Seis
estações de linha férrea, distante meia hora cada uma,
estavam dentro de uma das fazendas. Muitas panteras, tigres
e sucuris eram vistas nessa região. Para medir o tamanho da
fazenda sempre utilizavam a distância que o jeep percorria.
Se este levava uma hora para cruzá-la, do início ao fim, então
era uma fazenda considerada pequena. Em cada fazenda
havia mais de quinhentas pessoas, que moravam espalhadas
na grande extensão do seu território. Com raras exceções, a
população nunca era o maior obstáculo para o
desenvolvimento da fé.
       As viagens até Miranda quase sempre eram feitas de
trem. Lembro que eu ia à casa de uma tia em Miranda, que
morava bem próximo à estação ferroviária, e ficava
observando o trem. Era um lugar interessante, ali se
juntavam dois trechos de linha, um vindo de Água Clara e
outro de Pedro Celestino. Quando tinha oportunidade de
estar em Miranda, gostava de ver o trem da Noroeste,
sempre atrasado, com as janelas refletindo os quadros da

                                                           52
vida humana. O trem passava à uma hora da tarde, mas
nunca respeitava o horário. Apitava, diminuía a velocidade e
parava na estação, onde o povo embarcava e desembarcava,
acomodando-se entre a primeira ou segunda classe. Em seus
bancos de madeira ou estofados, aguardavam o apito e o
grito de partida. Os ferroviários, com seus uniformes e
quepes, picotavam os bilhetes, vendiam doces, revistas e
gibis, sempre com um sorriso estampado no rosto.
        Padre José Fien auxiliava seu co-irmão Hild e dedicou-
se à construção da primeira Igreja em louvor a Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro em todo o Estado do Mato
Grosso. Localizada na aldeia indígena Cachoeirinha, a nova
igreja foi inaugurada em novembro de 1931. Construíram
outras capelas em aldeias indígenas e realizaram excursões
no mais espesso e vasto matagal. É difícil para quem não
conhece a região pantaneira calcular as grandes distâncias e
compreender o isolamento quase completo das aldeias,
fazendas e povoados que se distribuem pelo mato afora.
Estudei sobre os bandeirantes e aprendi que eram homens
destemidos e se embrenhavam no mato explorando cascalho
nos rios e abrindo povoações. Enfim, levando o progresso ao
interior do nosso Brasil. Tudo feito no lombo de animais,
durante dias e mais dias numa estafante jornada de homens
decididos. Em pouco tempo essas pequenas povoações se
transformaram em vilas, ávidas por progresso. O
bandeirante lutou pela ambição terrena e material. Numa
luta semelhante, com sacrifício idêntico, os missionários
fizeram por um ideal muito mais elevado, puramente
espiritual, o de levar Deus a quem não O conhecia. Sabiam
que as coisas mais valiosas da vida são gratuitas. Portadores
da “bandeira” missionária, a exemplo dos bandeirantes, os
missionários desbravavam as almas nos lugares e povoados
das paróquias de Miranda, Bela Vista e Aquidauana. Um

                                                           53
verdadeiro desafio no tempo que aqui chegaram os
redentoristas e do trabalho que realizaram com sacrifício e
abnegação. Seus vinte ou trinta mil paroquianos viviam
espalhados por essa imensa região onde o vizinho mais
próximo morava a quilômetros de distância. Lugar onde a
estação das chuvas deixava caminhos totalmente
intransitáveis. Muitas vezes partiam de carro ou caminhão e
voltavam para casa cavalgando um velho burro.
       Em 1932, o padre Reiter percorreu a cavalo até os
lugares mais distantes da paróquia. Fez esse penoso trabalho
por mais dois anos, quando juntamente com o padre Francis
Dotzler foi chamado a trabalhar no Estado do Paraná. Um
estudo dos registros da paróquia revela que o padre Reiter
realizou inúmeras dessas viagens árduas buscando confortar
as almas mais abandonadas e distantes de Miranda. Esse
nobre exemplo motivava os outros, que às vezes ficavam
desanimados com o exigente trabalho nas empreitadas pelo
mato. Por tantas vezes passavam fome e sede, sofriam com o
ataque de insetos, calor escaldante, cansaço e doença. Tudo
precisa ser apreciado. Nas noites, descansando da árdua
labuta diária e admirando as estrelas, certamente pensavam
nos resultados concretos do trabalho e dos desconfortos e
alegrias da empreitada. Sempre ouvíamos os missionários
reclamarem da imensa umidade de Miranda, e era tanta que
chegava a enferrujar os grampos dos breviários. Num
mesmo verão, mais de cinqüenta cobras venenosas foram
mortas, sempre encontradas dentro dos jeeps, no porão da
casa, na sacristia ou em alguma sala dentro da igreja. Por
inúmeras vezes meus parentes retornavam para o lar à noite,
após as devoções na igreja, e encontravam jacarés dentro de
casa, precisando espantá-los com um pedaço de pau ou a
pedradas. Os mosquitos vinham em legião e a nós, pele
acostumada aos maus tratos, não atacavam muito, mas os

                                                         54
missionários, coitados, sempre eram os mais perseguidos.
Freqüentemente os missionários distribuíam remédio contra
a malária. Mostravam-se, pela destreza com que agiam e
pelas dificuldades que enfrentavam serem verdadeiros
gigantes que trabalhavam nessas condições somente porque
tinham fé.
        Embora só estivesse pronta para ser ocupada em seis
meses, a escola paroquial foi inaugurada num domingo, 19
de março de 1933, dia de São José. Desde o início, a
responsabilidade ficou a cargo das Irmãs Vicentinas,
originárias da Bélgica, mas em sua maioria brasileiras. A
escola tinha, em média, 300 alunos. Era muito simples e
ocupava as salas de aula da escola primária. A construção
começou em 1953 com o padre Leo Henighan no ano de
1953. Padre Tomas Sheehan, mais tarde, resolveu melhorá-la.
Atualmente, nesse edifício, funciona a prefeitura de Miranda.
Os alicerces são feitos de pedra bruta. Os tijolos foram
comprados em Aquidauana e tudo foi transportado pela
companhia de trem Noroeste. As intenções de missas no
Brasil, que ajudaram nas despesas da construção, eram
poucas, por isso sempre recebiam as intenções dos EUA.
        Aos poucos a Palavra de Deus foi penetrando na vida
do povo. Muitas vezes o número de almas a serem
contatadas dependia dos jeeps disponíveis para o trabalho,
fato nem sempre fácil de ser resolvido, porque estes
necessitavam de freqüentes reparos devido às condições
difíceis da estrada e não se encontravam mecânicos
competentes para deixá-los viáveis. Os tambores de gasolina
sempre vinham misturados com muita água, devido ao suor
em decorrência do calor, umidade e freqüentes chuvas. Os
imigrantes italianos e japoneses contribuíram muito com
Miranda. Eram tão firmes na fé e houve tempo que havia
cinco japoneses responsáveis pelos cursos de batismos.

                                                          55
Para um aprofundamento maior, mais tarde, veio o
Movimento Familiar cristão, os grupos de oração, o cursilho,
o PLC, encontros de catequistas, dentre outros mais. Junto à
cidade ficava a aldeia indígena denominada “passarinho”.
Havia outras três aldeias no interior da paróquia. Mais tarde,
padre Thomas Egan escreveu um pequeno livreto sobre suas
pesquisas da língua dos índios Terenos de Miranda. Da sede
da paróquia os missionários deslocavam-se para atender o
povo de quatro imensas fazendas, três estações de trem,
quatro colônias e nove pequenas localidades, verdadeiras
comunidades de base para o povo da região.
      No dia 31 de dezembro de 1993, sessenta e três anos
depois da chegada dos redentoristas, numa missa presidida
pelo Bispo Dom Onofre Candido Rosa e concelebrada pelos
redentoristas Lourenço Kearns, então Superior Provincial
dos redentoristas, e pelo redentorista João Leite, além de
outros sacerdotes, irmãs Lauritas e centenas de fiéis, a
administração da paróquia foi entregue aos cuidados da
Diocese de Jardim. Padre Lourenço descreveu brevemente as
seis décadas de trabalhos realizados nessa paróquia pelos
missionários redentoristas. Dom Onofre agradeceu,
admirando todo o esforço dos redentoristas em fazer com
que o povo buscasse a santidade. Alguém que estava na
assembléia, no momento histórico dessa entrega, certamente
rezou de coração pedindo as bênçãos do céu sobre todos os
missionários da Congregação do Santíssimo Redentor que
por ali passaram. Por todos os sacrifícios, pela escola
paroquial, que proporcionou e facilitou o ensino através das
inesquecíveis Irmãs Vicentinas; pelas sólidas construções
erguidas e colocadas a serviço da comunidade; pela
conclusão da bela igreja Matriz e pela igreja Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro, na aldeia Cachoeirinha. Deus e os anjos
do céu com certeza ouviram um obrigado por esse empenho

                                                           56
e dedicação. Tesouro que não se vende. Que não se arrenda.
Que não se compra. Tesouro que é dom de Deus e que
possibilitou acontecerem coisas maravilhosas através da
evangelização.




                           10
          Bela Vista, fronteira com o Paraguai
                         (1930)


      Sempre   acreditei que Deus não obriga ninguém a
fazer o bem. Também não obrigou Maria a aceitar ser a mãe

                                                       57
Historia da provincia
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  • 2. GELSON LUIZ MIKUSZKA FÉ E MISSÃO HISTÓRIA DA PROVÍNCIA REDENTORISTA DE CAMPO GRANDE 1929-1989 1ª Edição Curitiba Redentorista 2
  • 3. 2009 Todos os direitos reservados Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem a permissão escrita do editor ___________________________________________________________ Mikuszka, Gelson Luiz Fé e Missão: História da Província Redentorista de Campo Grande 1929-1989 / Gelson Luiz Mikuszka. — Curitiba, PR: Redentorista, 2009. ISBN 978-85-909103-0-5 1. Congregações Cristãs 2. Redentoristas no Brasil 3. Missão redentorista CDD – 255.640981 ______________________________________________ Redentorista Rua Ubaldino do Amaral - Alto da Glória Caixa Postal 20013 - CEP 80062-980 Curitiba /PR 3
  • 4. Agradecimentos Aos que de uma forma ou outra contribuíram com este livro Pe. Joaquim Parron – Pe. Afonso Tremba – Pe. Sérgio Sviental – Pe. Armando Russo – Otávio Schimieguel Depoimentos Pe. Lourenço Kearns – Pe. Eugenio Sullivan – Pe. Egidio Gardner – Pe. Guilherme Tracy – Pe. João Hennessy – Edmundo Twomey – Pe. Ricardo Blissert 4
  • 5. Introdução É emocionante ver as imagens que mostram o momento em que o homem pisou pela primeira vez na lua. Neil Amstrong, comandante dessa maravilhosa façanha, definiu esse momento como um grande salto da humanidade. Vieram descobrimentos, novos costumes, a derrocada de partidos políticos e muitas transformações. Apareceram as revoluções armadas, tecnológicas, científicas, humanas e sociais. Nasceram os movimentos; vieram os Beatles e os Rolling Stones. Inventaram o toca-fitas, a TV e os primeiros computadores, que de tão imensos, pareciam grandes “monstros” tecnológicos. Estes evoluíram, reduziram seu tamanho e aumentaram a eficiência. Nasceu o CD e morreu o vinil. A medicina avançou e aprendeu a clonar. Fala-se em projeto genoma, cura da AIDS e avanços programados para um futuro próximo. Progredimos na tecnologia, podemos nos comunicar instantaneamente, mas ainda não demos o maior de todos os saltos: não conseguimos minimizar a saudade, preencher a solidão, acalmar a ansiedade, erradicar o preconceito, evitar catástrofes e mortes. Enfim, a humanidade continua carente e precisa de um grande salto em direção ao ser humano. Requisito básico para que isso aconteça é a fé. O problema é que poucos a entendem e sabem de sua força e poder no mundo. Outros se referem a ela dizendo ser uma coisa doentia, covarde, própria dos fracos e oprimidos, que não tendo outra coisa em que se agarrar a inventam para sobreviver, vivendo de ilusão e esperança em algo que não vai levar a absolutamente nada. Mas não entendem que a fé, 5
  • 6. a priori, não muda o mundo, mas muda as pessoas; e as pessoas mudam o mundo. Examinando a história de nossos pioneiros, verificamos que em meio a tantos infortúnios, pela fé mostraram ser capazes de realizações que admiram e impulsionam o mundo. Graças à fé, tais “filhos de Santo Afonso”, vindo das longínquas terras norte-americanas, trouxeram esperança para os pobres, sofridos e abandonados. Andavam por regiões despovoadas, enfrentando as dificuldades e obstáculos da missão. Como verdadeiros heróis, entre cânticos e preces, se lançaram aos campos de pastoreio, plantaram, colheram e cuidaram das almas. Como desbravadores de corações, construíram uma nova realidade erguendo paróquias, escolas, comunidades, orientando homens e mulheres em direção ao céu. Mais do que enfermeiros de corpos, foram verdadeiros médicos de almas. Aprenderam na prática que a fé é chama aquecedora do espírito na busca de forças para superar mágoas, decepções, revoltas e até mesmo a morte. Tempos que longe vão! Não havia televisão, nem muitos carros, nem muitas opções. O principal meio de transporte era o cavalo, trem e os pés que entravam na mata, encontravam pessoas, construíam comunidades e descobriam maravilhas. As notícias demoravam a chegar ao destino e, quando chegavam, não era mais novidade, já era passado. O padre era obrigado a usar a batina o tempo todo e, se não fossem alguns “rebeldes”, todos teriam de usar a chamada “tonsura”. No início, as missas eram celebradas em latim e quase sempre em capelas mal construídas e lugarejos distantes, sem conforto, sem luz elétrica, somente com a força da fé. Índios, peões, caboclos e gente humilde eram os ouvintes da Palavra de Deus. 6
  • 7. Buscando ajudar as regiões que missionavam, construíram belas igrejas, bem equipadas escolas e as primeiras grandes construções. Implementaram a cultura, a educação, a religiosidade e a fé. Na memória dos anciãos e em cada trecho da região se faz presente a história, o registro daquilo que o missionário de preto com rosário e cruz na cintura se propôs a fazer. Duas passagens de navio partindo dos Estados Unidos até o Brasil em 1929, alguns dólares, um monte de sonhos e muita vontade de trabalhar abriram toda essa possibilidade. Não foi fácil, era preciso ser um bom empreendedor, coisas precisavam ser construídas, um povo precisava ser atendido e evangelizado. Com o desabrochar das plantas pantaneiras, o canto dos pássaros nativos, o sol ardente e aquecedor, entre os caboclos e peões, entre a gente simples do interior do Mato Grosso e do Paraná, ora enfrentando cobras, ora passando rios, visitando fazendas, cabanas e tribos indígenas, assim nasceu a Província de Campo Grande. Simples, ousada, inserida, popular, adentrando nos lares mais distantes. Não foi somente o suor desses pioneiros, nem seu desejo, nem sua garra, nem sua inteligência ou talento, mas a fé que traziam e alimentavam no coração e nas comunidades. Mais do que um livro de história, este é um livro de fé. Esses homens souberam usar sua fé, demonstrando destemor para com o trabalho, mesmo diante das fraquezas, tribulações e limitações. Perseveraram na missão e traziam na consciência aquilo que ensina São Paulo no capítulo cinco da carta aos Romanos: “Nós nos gloriamos também nas tribulações, sabendo que a tribulação produz a perseverança, a perseverança produz a fidelidade comprovada, e a fidelidade comprovada produz a esperança. E a esperança não engana, pois o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”. 7
  • 8. 1 Deus nos toma pela mão Tu te lembras, Deus? Este que hoje pega na caneta para narrar esta crônica, era um pobre e humilde menino, calção de suspensório, olhar amedrontado e cheio de curiosidade. Era raquítico, pequeno e, quando pela primeira vez se deparou com aqueles missionários de fala esquisita, roupa preta, rosário e cruz na cintura, ganhou o apelido de Tuiuiú. Não sei por que o apelido, mas passou a fazer parte da minha vida e da minha história. O tuiuiú é uma ave comum em nossa região pantaneira; de tão comum tornou-se a ave-símbolo por aqui. Possui um voar suave e elegante e uma bela plumagem preta, vermelha e branca que demonstra a beleza da criação divina. Desconfio que o apelido fosse a maneira desses missionários demonstrarem carinho para comigo ou talvez porque foi a primeira ave daqui que lhes chamou a atenção. Não sei, mas, confesso que sempre sonhava em subir nas costas de um tuiuiú, voar pelas matas e campos pantaneiros, olhando do alto a exuberância da natureza, os animais e as plantas que embelezam nossas terras, o rio Aquidauana, rio Miranda e tantos outros que sempre me fascinaram. Como deve ser lindo, aprumado nas longas asas de um tuiuiú, ver do alto toda essa beleza. Seria a sensação de ser Deus, sobrevoando toda sua criação. Gosto de pensar que tal apelido me foi dado porque o missionário viu em mim esse sonho, esse desejo. Ou, quem sabe, foi Deus quem propriamente o inspirou. O fato é que ainda menino eu sempre procurava Deus. Parece que nasci para O procurar. Minha vida era perguntar para as pessoas sobre Ele. Muitos riam de mim, faziam troça e me tratavam como débil mental. Devido a isso, aprendi a blasfemar. Afinal de contas, sou um ser humano. Ficava desesperado pela 8
  • 9. falta de resposta. Certa noite, no auge do meu desespero, Deus pegou minha mão e colocou-me frente a frente com a experiência que traria as respostas que sempre busquei e daria novo rumo à minha vida, meu encontro com aqueles missionários de preto. A partir dali compreendi como era fácil encontrar Aquele que sempre busquei. Hoje, sentado à janela do meu pobre barraco, vejo nuvens pouco carregadas. Sinto meus braços cansados e minhas mãos carentes de forças até mesmo para apertar as contas do rosário que aprendi a debulhar nesses tão longos anos. Chove manso no campo pantaneiro, sinto cheiro de terra no ar. Diviso as mangueiras em flor que exalam um cheiro forte de mel. Ao longe, ouço a seriema que canta tristemente. Talvez louve a chuva que molha os pântanos. As folhas das plantas parecem rir e chorar ao mesmo tempo. Riem pela chuva que cai e lhes traz vida nova. Choram pelas gotas de água que passam por elas e no chão desaparecem. Parece que Deus se transforma em chuva e desce sobre o mundo para nos visitar. De fato, como narra o texto da criação, somos feitos de barro e por isso nos deliciamos com o aguaceiro que revigora a vida, somos parte dele. Sinto que a chuva banha meu coração e me traz toda uma enxurrada de lembranças na alma que nem em toda eternidade esquecerei. Aliás, acho que eternidade é reviver os momentos felizes e bons que passamos. E nesse sentimento surge Aquele pelo qual toda vida suspirei, o próprio Deus, Aquele que encontrei na presença dos missionários de preto que vieram de muito longe para santificar nossas terras pantaneiras. Muitos ensinamentos nos deixaram e muitas coisas mudaram a partir de então. Em todos esses anos guardei comigo as lembranças dessa experiência e todos os ensinamentos deixados. Por muitas noites, à luz do meu grande companheiro lampião, anotei escrupulosamente todas as palavras e frases que aprendia. Eles não cansavam de dizer que era preciso salvar nossa alma e que quem reza se salva, quem não reza se condena. Aquelas palavras entravam em meu coração como pontas afiadas de uma lança 9
  • 10. impregnada de algo divino. E mais ainda, sentia que se não revelasse tudo que aprendia eu também não me salvaria. Muitas vezes peguei na caneta para escrever, mas, morto de medo, renunciava. Sim, as letras são como anjos bons e maus, podem animar, motivar, salvar e falar a verdade, mas também podem nos trair, nos desanimar, nos levar a mentir e a fazer pessoas se perderem. Sempre tive medo delas, talvez por isso estudei pouco. Mas, vencendo a tentação de não escrever, aos poucos fui transportando minhas observações para o papel. Não são muitas, mas podem ajudar outras almas a buscarem ânimo no caminho da salvação do mundo. Esses escritos fui guardando comigo, o tempo passou, as rugas vieram e os papéis amarelaram, vi que precisava dar um jeito em tudo isso, pois minhas lembranças não podiam morrer comigo. Acredito Deus, que mais uma vez me tomaste pela mão e, sem mais nem menos, certa tarde fui à Igreja, como sempre costumo ir, assisti à missa, comunguei e voltei pra casa correndo. Algo tomou conta de mim. Não conversei com ninguém, queria manter meu hálito puro pelo corpo do Senhor que havia acabado de receber. Juntei minhas anotações, senti que havia chegado a hora, fiz o sinal da cruz e comecei a escrever esta crônica, onde relato como fui tocado e por que decidi viver mais perto de Deus. Meu nome? Ah, isso não é importante, o importante é que minha história está próxima da história de um Deus que faz sua caminhada na história de homens que conheço como Missionários Redentoristas. 10
  • 11. 2 O Início Senhor me ajude a dizer a verdade. Abre bem minha memória. Esclarece meu espírito e minhas lembranças. Não me deixe esquecer nada. Acredito que da sinceridade de minhas palavras depende a salvação da minha alma, da simplicidade de minhas lembranças, depende a salvação de muitas almas. Confesso que lembro muitos fatos e missionários, de outros não lembro bem, portanto, falarei do que sei e presenciei. Quero relatar exatamente aquilo que ouvi e vivi. Soube que foi no mês de setembro do ano de 1843. O cheiro de chuva e a beleza das árvores floridas tomavam conta dos campos. O canto dos pássaros, pela alegria da chuva e renovação da vida, fazia sinfonia nos confins das matas mineiras. Toda essa exuberância natural dá a sensação de se passear pelo paraíso. Certamente Deus estava dizendo que essa é apenas uma pequena amostra daquilo que a vida eterna nos reserva. Há exatamente 21 anos, o Brasil ficara independente da corte portuguesa e se preparava para viver a façanha histórica de livrar-se do marco negativo da escravatura que lotava os navios negreiros, dizimava famílias africanas, deixando fazendeiros cada vez mais ricos com o trabalho escravo nas fazendas cafeeiras, campos canavieiros e minas de extração de ouro e diamante. Uma luta que se arrastou por anos e chegou ao legado final nessa época. Como pode o ser humano achar que o outro deve ser seu escravo, sua propriedade! Em meio a todo esse emaranhado de acontecimentos, sentado em sua cadeira forrada com couro de boi, em frente à pequena mesa do escritório episcopal, de onde pela janela podia apreciar a silhueta verde-escuro das montanhas mineiras que 11
  • 12. circundam a cidade de Mariana, Dom Antonio Ferreira Viçoso elabora uma carta. Nesta, um pedido que mudaria muita coisa na vida religiosa, cultural e educacional de Minas Gerais e de todo o país. Esse momento daria início àquilo que chamamos de Saga Redentorista no Brasil. Grande fã de Santo Afonso Maria de Ligório, o fundador da Congregação dos Missionários Redentoristas, Dom Antonio foi o primeiro bispo brasileiro a pedir a presença destes para essa chamada “Terra de Santa Cruz”. Empreitada que culminou com a vinda dos redentoristas holandeses no ano de 1893 e a fundação da primeira Unidade redentorista em terras brasileiras. A grande razão disso é que Dom Antonio Viçoso era um leitor assíduo das obras de Santo Afonso, introduzindo-as no Ensino de Teologia Moral em seu seminário. Como bispo, imitava o exemplo de Santo Afonso, aplicando ao seu rebanho uma prática verdadeiramente missionária, durante as visitas que fazia às paróquias onde exercia sua vocação de pastor. Não é de estranhar que procurasse ter a presença redentorista por perto. Sua simpatia pelos “filhos de Santo Afonso” foi adquirida pelas obras que esse santo elaborou. Disso, aprende-se que a missão também pode ser realizada através das obras escritas, que sendo bem preparadas vão ensinado na atualidade e na posteridade do autor. Os “filhos de Santo Afonso” eram vistos como verdadeiros combatentes da degradação religiosa que assolava a classe popular, em diversos setores, buscando evangelizar os pobres, intensificando a ação pastoral entre o povo e a zona rural. A meta principal era viver intensamente o espírito do fundador, um gentil-homem napolitano, de início advogado, mais tarde chamado por Deus a ser padre, que no despertar da vocação depositou aos pés da imagem de Nossa Senhora sua espada de nobre voltando-se inteiramente para a salvação das pobres almas da região napolitana. Indo contra o ditado de que “santo de casa não faz milagre”, conquistou renome como pregador, em muitos lugares do reino de Nápoles, sua terra natal, sobretudo nas praças. Sentiu-se chamado a evangelizar os mais abandonados pela Igreja, quando esteve em contato com os cabreiros de Santa Maria Dei 12
  • 13. Monti. Para melhor atingi-los, adotou a prática das Missões Populares em lugarejos e povoados na zona rural napolitana. Essas missões duravam muitos dias e eram pregadas em pequenas aldeias e bairros espalhados pelos campos e regiões mais pobres, sem se importar com os retornos financeiros que outros trabalhos possibilitavam em regiões mais abastadas. Ao lado desse sistema de missões populares, Santo Afonso destacou-se pela composição de seu tratado de teologia moral, cuja essência traz uma mensagem teológico-religiosa de misericórdia em favor dos pecadores. Com essa teologia, combatia as idéias de Jansênio, o propagador do jansenismo, e as teorias regalistas. Tinha ainda um grande amor a Nossa Senhora e propagava uma insistente devoção à Mãe de Deus, dizendo ser ela um instrumento de extrema importância na obra da redenção; e defendia com afinco o dogma da Imaculada Conceição, muitos anos antes deste ser proclamado. Seus estudos foram tão importantes que praticamente todos os teólogos da época adotaram sua teologia moral, sobretudo párocos e pregadores das Santas Missões. A espiritualidade redentorista, sua doutrina teológica, sua catequese e pastoral estavam em plena harmonia e sintonia com a orientação dos papas e com o pensamento eclesial da segunda metade do século XIX pelo compromisso de trabalhar os sacramentos, a fidelidade ao papado e a singular importância atribuída a Nossa Senhora na obra da salvação. O grande apreço pelos “filhos de Santo Afonso” motivava os bispos a buscar com insistência que pastoreassem seus imensos rebanhos, que às vezes passavam anos sem ter a presença da Igreja. Foi assim que Deus introduziu nas terras brasileiras, através do velho bispo de Mariana, a figura do missionário redentorista, dando maior motivação para a instauração do seu reino através desses verdadeiros “apóstolos das periferias”, tornando-se presente no coração de milhares de fiéis. A façanha redentorista, ora espiritual, ora histórica, marcou presença em terras mato-grossenses através da Província de Campo Grande, ou missão de Aquidauana, como ficou conhecida. Eu, como testemunha dessa façanha, pretendo fazer uma viagem que 13
  • 14. revela pessoas, personalidades e feitos desses grandes homens de Deus que até hoje influenciam nossa vida religiosa, educacional, moral e até arquitetônica. 3 Os primeiros encaminhamentos (1929) Guardo com carinho na lembrança a noite de 21 de janeiro de 1930. Noite que mudou minha vida e a de muitas pessoas que conheço e conheci. Mesmo diante das truculências e dificuldades sociais pelas quais passávamos, eu tinha certeza de que Deus estava conosco. O ar em nosso país cheirava revolução e golpe. Sentia que estávamos prestes a enfrentar uma guerra civil. Nossos corações batiam descompassados quando se tocava nessas questões. Confesso, eu tinha muito medo! Afinal, revolução cheira à morte e eu era o que menos queria morrer. Vivíamos uma verdadeira turbulência política e econômica. Vigorava por aqui a chamada República Velha, caracterizada pela centralização do poder entre os partidos políticos e a conhecida aliança política "café-com-leite", entre São Paulo e Minas Gerais. Esse Regime mantinha vínculos com grandes proprietários de terras. Era um desconforto político total. Os bares, escolas e rodas de conversas de Aquidauana falavam dos problemas e da insegurança que isso gerava. Nos Estados Unidos a situação também era complicada. Com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Yorque, ocorrida em 1929, veio uma década conhecida como “Grande Depressão”, caracterizada pela recessão econômica no país. A indústria de construção e o setor imobiliário já haviam estagnado em 1926, juntando-se ao declínio das indústrias da agricultura, pecuária, mineração e do petróleo. Em todos estes setores, a superprodução e a competição de produtos de outros países baixaram preços e lucros. Salários deixaram de crescer tirando dos consumidores a possibilidade de compra de novas residências e de outros 14
  • 15. produtos de comércio da época. A exportação de produtos industrializados gradualmente caía pela ascensão do protecionismo do mundo industrializado. A quebra da bolsa de valores drenou a confiança de possíveis consumidores e a confiança de instituições financeiras. Estas tornaram-se extremamente relutantes no investir. A economia americana caiu numa severa depressão econômica. A “Grande Depressão” foi marcada por altos níveis de desemprego, investimentos mal feitos e grande deflação. Em resposta à recessão, o Congresso e o Presidente norte-americano Hebert Hoover aprovaram uma tarifa alfandegária tentando fixar preços a fazendeiros, criando um programa de ajuda social para empregar centenas de pessoas, pois havia milhões de desempregados e o grande descontentamento surgia entre as classes trabalhadoras. Em meio a esse emaranhado problema político/financeiro dos dois países, encontramos o nascimento de uma obra divina que ligava os Estados Unidos ao Brasil e influenciaria muito as nossas terras brasileiras. A luz que procurávamos finalmente se acendia. Envolto por essa situação e espreitando tudo que poderia acontecer em nível mundial, eu sentia no coração que Deus nos preparava um novo caminho, onde poderíamos ver o brilho da esperança. A história de Deus se apresenta na história dos homens e a história dos homens certamente se faz verdade na história de Deus. É dentro desse contexto que se dá a grande batalha humana e divina. Fugir disso é achar que o Reino de Deus está somente acima das nuvens. Sei que isso não é verdade. Uma história de homens que buscam e testemunham Deus. E a história de um Deus que através de homens deixa ser buscado e testemunhado. É isso que pretendo narrar, partindo do que vivi, escutei e experimentei nesses anos todos. Deus utiliza as pessoas para ajudá-lo a iluminar o mundo. Sei que a luz se acende quando alguém se dispõe a mexer no interruptor. Quem finalmente acionou o interruptor para iluminar minha e nossa história foi, sem dúvida, o padre Hippolyto Chavelon, dos salesianos, que obedecendo ao mandato de vigário geral da Diocese de Corumbá, percebeu as dificuldades que 15
  • 16. enfrentavam em missionar essa tão vasta região. No ano de 1927 escreveu ao Monsenhor Egidio Lori relatando a possibilidade dos redentoristas assumirem alguma paróquia nas regiões de Ponta Porã, Bela Vista, Porto Murtinho e Nioaque. Ambas eram frentes de missão que pertenciam aos salesianos. Em 27 de março de 1927 mais uma carta, agora endereçada ao Superior Geral dos redentoristas, padre Patrick Murray, que responde dizendo não ter missionários disponíveis para enviar ao Mato Grosso. Diz ele que a primeira vinda dos redentoristas ao Mato Grosso foi um mal entendido, porque a Província alemã não tinha disponibilidade de missionários nem para si mesma. Falavam de um episódio ocorrido anos antes, precisamente em 1924, quando dois redentoristas da Áustria tentaram uma fundação em Campo Grande, conhecida como “fundação provisória”. Eram os Missionários Johan Baptista Feichtner e Alois Hamerl. Trabalharam em Campo Grande na paróquia Santo Antonio por dois meses. Deixaram seu rastro pastoral no segundo livro de batismo dessa paróquia, na página 90, onde provam que durante essa estadia realizaram oitenta e três batizados e certamente muitos casamentos, pois infelizmente não se sabe onde foram parar os registros matrimoniais da época. Após esse curto período em Campo Grande, no dia 23 de junho do mesmo ano, voltaram para Viena, a Província de onde vieram não tinha condições financeiras de manter o trabalho missionário e necessitava deles em outro lugar na Áustria. Pensavam que a Província alemã do Sul poderia ajudar na fundação que iniciaram em nosso país, mas não tinham missionários nem para suprir suas comunidades na Alemanha. Além do mais, os dois missionários ficariam sozinhos e se um deles adoecesse, a obra estaria comprometida por inteiro. A decisão mais evidente foi tirá-los daqui. Com sua partida, quem tomou posse da paróquia Santo Antonio foi o então vigário de Corumbá, padre Hipollyto Chavelon, salesiano. Em 1927, a Santa Sé fez um apelo aos redentoristas para enviarem missionários à América Latina. Pegando esse gancho, Dom Antonio Lustosa, também salesiano, recém nomeado bispo da Diocese de Corumbá, tinha um ótimo relacionamento com os 16
  • 17. redentoristas que residiam em Aparecida. Motivado pelo padre Chavelon, começou a pedir à Virgem Maria que intercedesse ao seu Filho e concedesse a graça de contar com a ajuda dos “filhos de Santo Afonso”, pois vivia um grande sufoco na Diocese, que contava somente com cinco padres para atender uma área de sete paróquias num território de 126.231 km² e uma população de 140 mil habitantes. A escassez de padres impedia a Igreja de se desenvolver na região. Com as investidas sempre crescentes do bispo junto à Santa Sé, em fevereiro de 1929, padre Patrick Murray, então Superior Geral dos redentoristas, escreveu ao padre Baron, Provincial nos Estados Unidos, comunicando a possibilidade da Província de Baltimore assumir uma missão no Brasil, já que tal Província mostrava condições melhores para empreender esse trabalho. Um mês depois, em março de 1929, o Superior Geral dos redentoristas escreveu a Dom Lustosa e pediu informações a respeito do trabalho que ora oferecia aos redentoristas. Dom Lustosa enumerou a falta de padres e a grande propagação de protestantes e espíritas na região. Com essas informações, no dia 24 de junho de 1929, festa de São João Batista, ficou decidido que a Província de Baltimore assumiria a nova fundação a título de experiência e inicialmente mandaria dois missionários. No dia 04 de agosto, após fervorosa oração, Dom Lustosa escreveu ao Provincial de Baltimore e expressou a alegria em receber os redentoristas em sua Diocese, implorando que viessem o mais rápido possível prometendo toda cooperação possível. Começou então outro problema aos redentoristas norte-americanos: encontrar os missionários que melhor se adaptassem ao trabalho e à língua. Reunidos em oração e pedindo as luzes divinas sobre a escolha, apareceram dois possíveis nomes: padre Francis de Assis Mohr e Alphonso Maria Hild. Após a escolha, os dois foram comunicados da nova missão. Num forte espírito missionário, mesmo sem saber o que os esperava, assumiram com prontidão e disponibilidade esse grande desafio, pois o consideravam dentro do Espírito de Santo Afonso. A notícia da aceitação da missão foi amplamente publicada nos 17
  • 18. jornais seculares e religiosos do Brasil e aceita como grande presente de Deus. Padre Mohr era vigário de uma paróquia em North East e padre Hild fazia parte da equipe missionária, em Ephrata. Lembro que nas aulas de catecismo padre Mohr sempre contava que fez o Seminário Menor em North East, foi aceito para o noviciado no dia 21 de junho de 1911 em Ilchester, Maryland. Lugares que nunca conheci, mas que me pareciam ser o paraíso de tanto que eu ouvia falar das belezas e dos grandes festivais que por lá aconteciam. Dizia que no noviciado se sentia feliz e contente, mas passou por muitas provações e dificuldades, mesmo assim a graça de Deus sempre foi maior, podendo vencê-las sempre. O dia que recebeu o hábito redentorista, 02 de agosto de 1911, foi para ele um dia muito especial. Sempre desejou consagrar-se totalmente ao serviço a Deus como religioso redentorista. Sentiu o chamado vocacional desde criança e sempre dizia que assim iria até a morte. Comentava que havia feito uma relação de atitudes para ser um bom redentorista como: estar sempre mais unido a Deus fazendo sua santa vontade; escapar das tentações do mundo; fazer penitência pelos pecados do passado; tornar-se um santo; trabalhar para a maior honra e glória de Deus; pregar as missões, trabalhando para a salvação das almas mais abandonadas; espalhar a devoção à Santíssima Virgem e promover o bem da Congregação. Sempre pedia nas orações que Nosso Senhor Jesus e sua Mãe o ajudassem a perseverar e alcançar as metas a que se propunha. Essas partilhas de vida do padre Mohr nos ajudavam a criar no coração mais amor pela fé, nos motivando a rezar mais e mais. O padre Hild comentava sobre as missões que pregava nos Estados Unidos e lembrava com bastante nostalgia que recebeu a notícia para vir ao Brasil quando pregava as missões em Annapolis, Maryland. Sua última pregação antes de partir para cá foi na paróquia Imaculada Conceição, em Baltimore, exatamente onde foi criado. Estava encerrando a novena solene em honra à Apresentação de Nossa Senhora, na noite antes de viajar. Foi nessa 18
  • 19. mesma comunidade que celebrou sua Primeira Missa Solene como sacerdote. 4 Aquidauana, início da missão Aquidauana fica no pantanal mato-grossense. O Pantanal é uma das maiores planícies de sedimentação do mundo, ocupa grande parte do Brasil e se estende aproximadamente por 140 mil km2, avançando também por países vizinhos como Argentina, Bolívia e Paraguai. A planície inundável, com leves ondulações, pontilhadas por morros isolados e ricos em depressões rasas tem seus limites demarcados por variados sistemas de elevações como chapadas e serras, sendo cortada por grande quantidade de rios, todos pertencentes à Bacia do Paraguai. Na região pantaneira, a paisagem altera-se profundamente nas duas estações bem definidas do ano: a seca e a chuvosa. Durante a seca, os extensos campos, cobertos predominantemente por gramíneas e vegetação de cerrado, perdem água, que chega a escassear, ficando restrita aos rios perenes de leitos definidos e às lagoas próximas a esses rios, tempo de firmar a consciência de que a água é um tesouro e sem ela somos frágeis. No tempo da seca berra o gado impaciente reclamando o verde pasto e aparece o fazendeiro com o olhar de penitente, muitas vezes descrente, pensando que o mundo vai se acabar. Transporta o gado pra lá e pra cá nas grandes comitivas para que a boiada não pereça de sede. Mas a natureza é divina, graciosa e sempre majestosa, findando a seca com as nuvens que, de novembro a março, enriquecem todo o Pantanal. Tudo se transforma no período das cheias. A vegetação muda e as depressões ficam inundadas, formando extensos lagos de extrema beleza, apresentando diferentes cores na água, de acordo com as algas que se desenvolvem e criam matizes de verde, 19
  • 20. amarelo, azul, vermelho ou preto. Com a inundação, grande quantidade de matéria orgânica é carregada pela correnteza a longas distâncias. Durante a vazante, esses detritos são depositados nas margens dos rios e lagoas, transformando-se em fertilizantes do solo. Esse patrimônio ecológico, habitado por incontáveis espécies de mamíferos e répteis, aves e peixes, tem uma vegetação exuberante e é traduzido em movimento de formas, cores e sons, sendo um dos mais belos espetáculos da Terra. Sem dúvida, Deus fez essa beleza para ver no rosto do ser humano um olhar de admiração e alegria. Algo que sempre observamos nos olhos dos turistas que por aqui transitam. Algo que observei profundamente também nos olhos dos missionários que aqui chegaram e puderam ver a exuberância dessa natureza. Conhecida por “lugar das Araras grandes”, nome interpretado da língua guarani-guaicuru, a cidade de Aquidauana teve início em 15 de agosto de 1898, quando alguns fazendeiros da Vila de Miranda se reuniram para escolher um local a fim de fundar um povoado. O local foi exatamente onde hoje se ergue a imponente matriz Imaculada Conceição. Um ano após, construíram os primeiros ranchos de palha no meio da mata. Em agosto de 1898 passou pelo povoado o padre salesiano José Solari, que vinha de Miranda em direção a Campo Grande. Ali no arraial rezou a primeira missa e atendeu as necessidades espirituais do povo. O próximo sacerdote foi o padre Agostinho Collie, no mês de junho de 1904. No evento, administrou o sacramento do batismo e por alguns dias rezou na pequena vila. O mesmo sacerdote voltou em 1916 e, na véspera do aniversário do povoado, em 1918, rezou a missa incentivando a erguer ali uma pequena capela. Em 1899 Aquidauana foi elevada à categoria de paróquia de Paz, o que conhecemos hoje como Distrito e, em 18 de dezembro de 1906, ganhou o título de Município. A paróquia de Aquidauana, conhecida primeiramente como Nossa Senhora da Conceição, foi instituída em 04 de abril de 1912, por Dom Cyrilo Paula de Freitas, natural de Minas Gerais e primeiro bispo de Corumbá. Seu território foi desmembrado das paróquias de Miranda e Nioaque. Pela falta de sacerdotes, por 20
  • 21. muitos anos dependeu da paróquia Nossa Senhora da Candelária, de Corumbá. Os vigários de Corumbá a visitavam de vez em quando, como faziam também com Miranda e Nioaque. A ausência de padres nessa localidade favoreceu o desamparo espiritual do povo, que foi tornando-se gradativamente uma população afastada de Deus. Eu nem era nascido, mas sei pelos estudos escolares e pela minha extremada curiosidade, que no natal de 1919 foi nomeado, pelo terceiro bispo diocesano de Corumbá, Dom José Mauricio da Rocha, como vigário residente em Aquidauana, o salesiano padre José Giardelli. Em abril de 1920, Dom Mauricio fez uma visita à paróquia e constatou que a matriz era pequena demais e que não passava de uma pequena capela mor. E incentivou o novo pároco a iniciar as obras da nova matriz. Para valorizar a liturgia, o coronel José Alves Ribeiro fez a oferta generosa das alfaias e apetrechos necessários para o culto sagrado na pequena Igreja, que se tornava matriz. As obras da nova matriz demoraram a ser iniciadas. A intendência municipal ajudou na construção do lindo templo em estilo neo-gótico. O engenheiro responsável pela obra foi Francisco Luciano Seccomani. É uma edificação isolada, com fundação de pedra, estrutura de concreto, alvenaria de tijolos maciços revestidos de argamassa. Possui vitrais laterais e a cobertura é feita de estrutura de madeira e telhas de barro. Em 1924 havia somente padres salesianos em toda diocese de Corumbá. Eles atendiam Corumbá, Aquidauana, Campo Grande e Três Lagoas. O restante das paróquias eram visitadas por padres itinerantes, na medida em que podiam. Entre 1919 e 1920 o padre Pedro Massa, Inspetor dos salesianos no Mato Grosso, foi nomeado sucessor de Dom Antonio Malan, que havia chegado em 1894 com a primeira turma de salesianos no Mato Grosso. Em 1921, a Santa Sé chamou o padre Pedro Massa para ser administrador apostólico da Prelazia de Rio Negro, no Amazonas. Pouco depois assumiu a Prelazia de Porto Velho e em 1927 foi convidado a administrar a Diocese de Corumbá, pois Dom José Mauricio Rocha tinha sido transferido para Bragança Paulista, 21
  • 22. vindo a falecer naquela diocese quarenta e dois anos depois, em 1969. Em 1929, já como bispo da Diocese de Corumbá, Dom Antonio de Almeida Lustosa, numa visita à Aquidauana, fica assustado com a pouca participação dos fiéis aos atos religiosos, com a péssima qualidade da Escola Paroquial da localidade e critica pesadamente a falta de atendimento às comunidades rurais da paróquia. Eram sinais claros de que algo precisava ser feito, e urgentemente. Sinto que Deus dava sinais ao bispo para ir em busca de novas possibilidades e então apareceram os missionários redentoristas. Eram os passos definitivos em direção a uma nova jornada. 22
  • 23. 5 A Difícil Viagem A oração sempre será a grande arma que Deus confiou ao ser humano para vencer os desafios e entrar em sintonia com Ele. Sem ela ficaríamos à mercê de muitos males e sem forças para vencer os inimigos, as dificuldades e os desânimos. Certamente que ela foi o grande estímulo e força na orientação daqueles missionários norte americanos que aceitaram o desafio de começar nessas paragens a imensa obra de evangelização que presenciamos e vivemos hoje. Ao aceitar a missão, os caminhos foram traçados e chegara o momento da partida. A noite não tinha sido fácil para os dois missionários que iriam adentrar em campos vastos de desafios. O coração do padre Hild palpitava qual pipoca pulando na panela, prestes a ser devorada por bocas insaciáveis. Padre Mohr, por sua vez, tentava manter-se calmo e dono da situação. Mesmo assim, 23
  • 24. sentia a responsabilidade e o desafio da missão que ora assumira. Sabia que a jornada era longa, desafiante e dura. Cada passo seria um salto para o desconhecido, mas podia contar com a força de Deus e estava certo que iria combater o bom combate, e acima de tudo, guardaria a fé. Essas palavras do apóstolo Paulo, sobre o momento íntimo e profundo de uma decisão, certamente pesaram muito e foram verdadeiras companheiras daqueles missionários perspicazes e decididos. Devagar o sol se escondeu, deixando a cidade e o mar nova-iorquinos se perderem de vista. A manhã chegaria cheia de calor e brilho, renovando os pensamentos e mostrando a beleza do mundo através da humanidade desperta. Era hora de descansar o corpo da lida daquele dia. Cheios de esperança e fé, mas apreensivos, aqueles dois homens se entregaram ao descanso da noite, pois o dia seguinte seria decisivo e histórico. Era o momento de dizer “adeus” aos amigos, parentes e confrades que ficariam nos Estados Unidos. Era momento de se preparar para dizer “Oi” ao novos amigos, novos desafios, nova missão, novo mundo e nova vida. Após a difícil noite, como prêmio veio a linda manhã. O sol brilhava resplendente no porto de Nova York. Parecia que o astro rei estava feliz pela nascente obra divina em campos tão difíceis da região mato-grossense. Há poucos dias a comunidade redentorista tinha comemorado os 197 anos do nascimento da Congregação. Isso dava mais ânimo aos ansiosos corações missionários, que seriam os pioneiros de uma nova era de evangelização às vésperas de comemorar o segundo centenário do nascimento da Congregação em Nápoles. Todos sabiam que a missão assumida era um grande risco, mas ao mesmo tempo, de extrema necessidade pastoral. O povo vivia como rebanho sem pastor. Inspirados pela Virgem Mãe do Perpétuo Socorro e imbuídos do espírito de missão, com alguns dólares no bolso, algumas malas para a sobrevivência e muita vontade de trabalhar, os dois partiram de Nova York a bordo do Vapor Northen Prince The Furness Line. Era sábado, 23 de novembro de 1929. Destino 24
  • 25. da viagem: as longínquas terras brasileiras, diocese de Corumbá, sudoeste do Mato Grosso, cidade de Aquidauana. Doze dias, embalados pela maresia, entre enjôo, calor e expectativas, aportaram no Rio de Janeiro em dia 05 de dezembro e foram recebidos pelos missionários redentoristas holandeses que ali missionavam. À noite embarcaram para Santos, chegando lá no dia seguinte, onde o vice-provincial dos redentoristas alemães de São Paulo, Padre Estevão Maria Heigenhauser, os aguardava. O tempo corria e era preciso acompanhá-lo. Somente seis semanas para familiarizar-se com a língua e já tiveram que partir em direção a Aquidauana, ponto final dessa grande viagem e início de uma nova e longa caminhada. Sabiam que ainda teriam muito pela frente. Sabiam que tudo estava apenas começando. Padre Estevão chamava essa região pantaneira de Mato Grosso do Oeste. Em sua visão, toda a região tinha as mesmas possibilidades de desenvolvimento do Oeste dos EUA, setenta ou cem anos atrás. No dia 21 de dezembro, padre Estevão recebeu uma carta de Dom Lustosa, que expressou sua alegria com a chegada dos missionários norte-americanos e aprovou o plano destes ficarem um tempo em Aparecida para aprenderem melhor a língua portuguesa. No dia 30 de dezembro de 1929, finalzinho do ano, padre Mohr escreveu de Aparecida para o padre José Hild, nos Estados Unidos, e a carta falava sobre suas primeiras impressões do Brasil: “Graças a Deus estamos bem e até progredindo devagar com a língua portuguesa. Estamos experimentando-a com todos que encontramos. Rezamos com o povo, depois das missas em português tentamos conversar com as crianças. Vamos chegar, creia em mim! Padre Afonso está bem feliz. De fato, tentamos estar sempre alegres e felizes, especialmente quando estamos com a comunidade e parece que eles estão gostando de nós. Mas há alguns muito sérios e severos. O padre Heigenhauser é muito bom, de bom gênio, alegre e muito caridoso. Você realmente não exagerou falando sobre ele. Até nem falou suficiente. Ele é nosso melhor amigo e mão direita em tudo que tentamos fazer. E 25
  • 26. sabendo que ele vai nos acompanhar para o Mato Grosso, é um grande alívio e conforto. Eles têm uma grande editora aqui e podem imprimir tudo. Pertence à vice-Província e é uma fonte de renda. Padre Heigenhauser nos deu muitos livros em português. Livros de oração, de leitura espiritual. As visitas ao Santíssimo Sacramento, as Escrituras, etc.” (Pe. Francis Mohr, 1929) No dia 02 de janeiro outra carta foi escrita por Dom Lustosa recomendando que os recém-chegados ficassem em Aparecida até o mês de março. Janeiro e fevereiro são os meses mais quentes do ano no Mato Grosso e isso poderia assustar os missionários acostumados ao frio dos Estados Unidos. Também comunicou que as paróquias a serem atendidas eram Aquidauana, Miranda, Bela Vista, Porto Murtinho e Nioaque. Ao receber tal carta, padre Mohr achou estranho o pedido para que ficassem em Aparecida até março, mas como Dom Lustosa prometeu visitar Aparecida entre os dias 16 e 17 de janeiro, preferiu esperar sua chegada para saber dos detalhes. Enquanto esperavam, tiveram a oportunidade de ir com padre Estevão até Itu, ao Convento das Redentoristinas e ficaram impressionados com as cores americanas do seu hábito. As irmãs expressaram grande felicidade com o projeto dos missionários norte-americanos em trabalhar no Brasil. Depois, passaram pela difícil experiência de submeter-se à tonsura clerical, utilizada naquela época tanto no Brasil como em países com maioria católica. A cerimônia da tonsura aconteceu em 14 de janeiro. Sem ela o povo não acreditaria que seriam sacerdotes e missionários. Numa carta ao Provincial nos Estados Unidos, datada de 16 de janeiro de 1930, padre Mohr escreve que encontrou o bispo naquele mesmo dia e tirou dúvidas sobre o trabalho que iriam realizar no Mato Grosso. Entre outras coisas, os missionários teriam licença para crismar. O bispo comentou que em toda a região havia entre dez e dezoito mil índios e tais informações ajudaram nos planos e projetos de evangelização. Finalmente, no dia 17 de janeiro, sexta-feira, embarcaram para Araraquara, onde a vice-Província de São Paulo tinha casa. No domingo, dia 19, foram 26
  • 27. até Bauru, embarcando em definitivo para o Mato Grosso. Viagem que levou um dia e meio. Foi da cidade de Bauru, Estado de São Paulo, que saiu o trem para o pantanal. Ao cruzar a divisão dos estados de São Paulo e Mato Grosso, ficava nítida a mudança da paisagem. Havia grande disputa entre os passageiros para pegar os melhores lugares nas plataformas entre os vagões ou nas janelas do trem. Observar o trem fumegante mata adentro era uma dádiva. Isso sem contar a quantidade de animais da região que era possível admirar ao longo do percurso. Mas havia dificuldades, a cabine da velha locomotiva expelia ardentes centelhas; resultado da queima de madeira da fornalha, que produzia vapor e fazia aquela máquina se mover como uma grande serpente pelos trilhos de bitola estreita apoiados em terra pura, sem a base de pedra, que proporcionava uma imensa nuvem de poeira se arrastando atrás daquele monstro de ferro que navegava e berrava fumegante a uma velocidade de vinte quilômetros por hora, levando os passageiros até os longínquos confins do Brasil. A viagem era sempre uma grande aventura e as centelhas incandescentes da voraz fornalha devoravam tudo que em frente dela passasse. Os passageiros sofriam, pois quando abriam a janela das cabines dificilmente ficavam ilesos às faíscas, fumaça e poeira; se as fechavam, enfrentavam o horrível calor do clima e das fornalhas daquele imenso dragão de ferro. As roupas, devido às fagulhas da lenha incandescente daquele monstro lambedor de fogo, ficavam cheias de furinhos, qual ninho de traças que destroça a vestimenta guardada nos cabides e guarda-roupas. Sempre havia muitos animais nos trilhos: cavalos, bois, antas, capivaras, sucuris. Muitos eram esmagados pelo monstro de ferro. Dependendo do embalo e da quantidade de lenha na fornalha, em algumas elevações o trem ficava sem forças e não subia. Era preciso parar por uma hora ou mais, abastecer com lenha até que o motor a vapor tivesse força suficiente e puxasse os vagões. Se outro trem estivesse vindo de encontro, tinha que parar na estação por mais ou menos uma hora até o outro chegar. Era um verdadeiro milagre que chegasse no horário. Normal era atrasar cinco ou seis horas. Essa aventura 27
  • 28. dentro da locomotiva com certeza preparava os passageiros pelo que viria à frente, pois o calor tropical e a poeira da região mato- grossense eram insuportáveis. Somente aqueles que viajavam no terrível calor e poeira da via Férrea Noroeste podem imaginar como aqueles missionários sentiam-se após a aventura de um dia e meio dentro do trem numa viagem insuportável de São Paulo ao Mato Grosso, acumulando em suas roupas, cabelo e pele a fumaça, poeira e suor intermináveis. Sempre fiquei curioso sobre o que teria trazido esses homens de tão longe para falarem de Deus neste lugar que eu considerava o início do fim do mundo. Era uma nova língua, um povo estranho, uma comida diferente e uma região desconhecida para eles. Quais teriam sido seus pensamentos quando aqui chegaram? Quando, olhando pelas janelas do velho e barulhento trem, viram grandes extensões de mata e planícies, sabendo que toda aquela região seria sua primeira paróquia no Brasil. Seu futuro campo de batalha a favor do Reino de Deus. O futuro cenário das grandes vitórias ou derrotas, centro de muitos sofrimentos e abnegações. Certamente surgiu-lhes na alma um pouco de saudade de sua terra e dos seus que por lá ficaram. Sim, porque se tratando de homens, de pensamentos e emoções humanas, essa história não pode ser reduzida a meras e frias estatísticas. Deve ser vislumbrada como história de vocacionados, enviados a uma terra desconhecida, austera e difícil, de lutas e desânimos, medos e privações. Certo dia perguntei a um deles sobre a dureza da viagem de trem até o Pantanal, e a resposta foi seca, rápida e certeira, como um bom norte-americano a faz: – Pior do que viajar muitos dias nesse trem é ser condenado ao inferno sem nem ao menos lutar! Ali veio a certeza de que eles tinham um grande amor à missão de Nosso Senhor e uma verdadeira sede em levar almas para o céu. Expressavam um bom senso de humor, vontade firme e resoluta de enfrentar e suportar tudo. Sem esses itens, acredito, sua história nunca teria sido escrita por aqui. 28
  • 29. Lembro do nosso primeiro encontro. Eu era apenas um menino travesso, traquina e cheio de energia. Irrequieto e com o peito ansioso de tanta curiosidade pulava por todos os lados para participar melhor de todo aquele murmúrio e confusão que acontecia na estação da cidade. Não sabia direito do que se tratava, mas lembro que a fumaça da máquina a vapor e seu cheiro de lenha com o gás produzido a partir da queima do carvão tomava conta do local e lacrimejava nossos olhos. Alguns minutos depois fui compreender que naquela noite do dia 20 de janeiro de 1930, segunda-feira, três missionários acabavam de chegar à minha querida Aquidauana. Porque vieram eu nem imaginava, também não sabia seus nomes, somente horas depois descobri: Afonso Maria Hild, Francisco de Assis Mohr e Estevão Heigenhauser. A primeira impressão era de difícil aproximação entre nós, pois a linguagem e o sistema de vida desses missionários parecia ser muito rígido, notei que havia certa barreira. Certamente que a cultura pesava muito. Além disso, dois deles apenas balbuciavam algumas palavras em português. Pensei em meu intimo que nunca iria compreendê-los. No momento da chegada desses homens diferentes, de hábito preto, cruz e rosário na cintura, em meio aquele calor infernal e fatigados pela longa e estressante viagem lá estava eu, assistindo tudo, sentindo que minha vida seria diferente dali em diante. Não sei por que sentia isso. Talvez fosse pressentimento, talvez intuição, mas sentia. Foi quando o maior deles me chamou e numa linguagem totalmente enrolada perguntou meu nome. Menino do interior, matungo que raramente via gente nova por essas terras, e quando tinha visita em casa geralmente se escondia de vergonha, respondi gaguejando e desajeitado. Ele riu me olhou fixo e engraçadamente disse: “olha pequeno tuiuiú, mesmo sendo pequeno, se quiseres, poderás ser muito útil a Deus”. Aquelas palavras entraram em meu ser como bala de carabina que derruba qualquer animal. Senti a divindade tomar conta de mim e saí pulando de braços abertos como um pássaro, ou um tuiuiú, como ele acabava de me chamar. Ali começou minha história de vida na presença de Deus. Ali começou tudo que hoje sou. 29
  • 30. Padre Estevão Heigenhauser veio à Aquidauana com nossos dois missionários para ajudá-los nas acomodações e nos primeiros contatos com o povo. Padre Mohr o descreveu como homem fino e esplêndido acolhedor. Também foi um grande socorro a nós, que pela humildade e ignorância das coisas de Deus e dos problemas culturais e de linguagem, não tínhamos condições alguma de ajudá-los. Durante alguns meses praticamente deixou de lado suas funções como vice-provincial de São Paulo para ser intérprete, despachante, amigo e irmão dos novos missionários. Sem essa ajuda aquele inicio teria sido mais doloroso e com inúmeras outras dificuldades. Mas, chegaria a hora dos nossos missionários darem os primeiros passos sozinhos. Havia muitas almas a serem cultivadas nos campos pantaneiros. 6 Tomada de Posse da Paróquia (1930) A lua estava cheia e o vapor quente da noite tomava conta de todos, parecia que o inferno havia aberto suas portas para nos amedrontar com seu bafo quente e insuportável. O tempo estava tão quente que o calor forçava nossas entranhas, e estas pareciam querer derreter os pensamentos e ações. Mas, em meio a todo esse mormaço, aquela foi para mim uma noite memorável, onde tudo parecia diferente e, no âmago da minha jovialidade, nunca havia experimentado tanta doçura e tanta leveza em meu ser. Algo diferente estava acontecendo. Parece que Deus acabava de 30
  • 31. aterrissar em nossa região. Que sensação de alívio, de paz, de eternidade. Algo indescritível acontecia comigo. É como se estivesse morrendo de sede e de repente surgisse do nada um copo de água fresca trazida de uma fonte divina. Bebo-a e fico saciado por toda eternidade. Ao contar isso estremeço, minha velhice mostra a incapacidade de escrever o que sinto, faltam palavras para me expressar. Lembro como se fosse hoje a fisionomia daqueles dois missionários de preto que nos trouxeram novo rumo. Um, encorpado, olhar fechado, cheio de saúde, palavreado difícil, misturava inglês com português, alemão e sei lá mais o quê. Parecia não ter medo de nada. Poderíamos dizer que era um embaixador da coragem e, certamente, capaz de derrubar e levantar um cavalo com a força que parecia armazenar nos braços. Enquanto proferia as palavras, seus olhos se abriam como alçapões, descobrindo as entranhas, coração, rins e pulmões, num verdadeiro fogaréu humano. Um missionário destemido, verdadeiro desbravador de almas. Passou seus últimos anos no Brasil, na cidade de Bela Vista. Andava a cavalo, quando encontrava um que agüentasse seu peso, ou de jeep para chegar mais avidamente ao destino. Desde que o vi pela última vez nunca se queixou de nada. Sempre agüentou firme a missão que assumiu. Fiquei sabendo que faleceu nos Estados Unidos, no dia 22 de janeiro de 1952, exatamente 22 anos depois que aqui chegou. O outro, macilento, sempre aparentava estar doente e amedrontado. Em 1935, cinco anos depois que chegou ao Brasil, voltou para os Estados Unidos e faleceu pouco depois, no dia 13 de junho de 1936, vitimado pelo câncer. Dois homens fisicamente opostos um ao outro, mas com um mesmo objetivo: trazer Deus para nossas almas carentes. De início tinham pouco contato conosco e pouca amizade com o povo. Tinham de usar constantemente a roupa preta, batina, dentro e fora de casa, criando um grande muro de relacionamento. Muitas pessoas chegavam a ter medo dos missionários. Com o correr dos anos e na convivência fui descobrindo a docilidade e a alegria que cada um trazia em si. Aos poucos fui descobrindo tudo 31
  • 32. que haviam enfrentado para estarem ali. Aprendi que a vida exige-nos o impossível do possível. Deus parece querer nos ensinar que as melhores conquistas devem ser feitas à base de suor e sangue, caso contrário, não tem gosto de vitória. E assim as vitórias vão aparecendo, mas o jogo é difícil e nem sempre deixa ileso quem dele participa. Cada passo exige mais coragem e quanto mais coragem mais se alonga a tarefa. Certamente que só podemos chegar ao final do caminho se damos os primeiros passos. É a norma da vida. Foi isso que vi acontecer e nisso alimento minhas lembranças e conquistas. Da maneira como falavam da viagem e da chegada em Aquidauana, percebi que aqueles dias e semanas anteriores, as noites no navio e no trem, não tinham sido tranqüilos. Os pensamentos vagavam e a ansiedade tomava conta dos seus corações. Nem mesmo o frio, que naquele mês de novembro, início de toda viagem, começava a castigar os ares norte-americanos, conseguia refrescar a ansiedade daqueles corações. Aqueles missionários estavam prontos pra tudo, mas nunca haviam imaginado encabeçar uma frente de trabalho nas condições calorentas e empoeiradas das terras do Mato Grosso. O ser humano constrói seus planos, no entanto, Deus sempre tem outros. Imagino como seus corações deveriam estar cheios de Deus. Dava para sentir que haviam colocado fé na realização dos seus planos e sonhos; e que traziam na mente a certeza de que Deus os fortalecia. Foi essa certeza que trouxe aqueles homens e depois mais um bando deles para nossa região, mudando por completo nossas vidas, influenciando nosso modo de ver o mundo e até a arquitetura local. Não dá para negar que Deus pousou sua mão sobre nós na pessoa de cada missionário de preto que por aqui passou e ainda passa. Quantas renúncias fizeram para estar aqui e falar de Deus. Quantas coisas tiveram que deixar para trás, em nome de um Reino e de uma fé. Ao chegarem ao destino, sentiram isso de perto. Mais tarde, fiquei sabendo, pediram ao superior maior em Roma para substituir o hábito de cor preta pelo 32
  • 33. branco, em função de aliviar o calor, mas não se sabe por que razão o pedido foi rejeitado. Desde a chegada do trem, tudo o que acontecia era novidade. A estação ferroviária estava abarrotada por uma parede de curiosos e tantos outros, entre os quais estava um pequeno grupo de paroquianos, reunidos para saudar os missionários. Lembro-me que alguém proferiu um rápido discurso de boas- vindas, era o intendente municipal. Trouxeram de São Paulo, como companhia, um casal de alemães: Senhora e Senhor Birmoser. Ela faria a comida por alguns anos e ele faria os serviços gerais, tornando-se, mais tarde, chofer dos missionários. A solução era boa, mas com certas dificuldades. Eles falavam somente alemão e, internamente, a comunidade aderiu ao idioma, inclusive durante as refeições e recreio comunitário. Isso acabou gerando conflitos quando chegou o segundo grupo de missionários, no mês de agosto. Os que chegaram não falavam alemão e se sentiram excluídos do grupo. Tiveram que chegar ao consenso de não utilizar mais o alemão na comunidade, evitando a exclusão dos outros. Após a calorosa recepção, partiram rumo à nova e inacabada matriz, onde por três noites consecutivas houve reza e pregação feita pelo reverendíssimo padre Estevão, o guia dos recém-chegados. Da Igreja foram para a residência temporária, nos limites da cidade. Era uma pequena casa de tijolos com quatro aposentos, um telhado avariado que vazava muito quando chovia, banheiros fora de casa, que eram verdadeiros incômodos, em especial à noite e nos dias de chuva. Quartos pequenos e quase sem nenhuma privacidade era muito frio no inverno e muito calor no verão. Para ter água era preciso trazer do rio, a dez minutos de caminhada. Ajudávamos conforme podíamos, mas nem sempre fazíamos muito. Ali viveriam até 24 de agosto de 1933, quando a nova casa ficaria pronta. Padre Estevão continuou conosco até a entrega definitiva da paróquia aos novos responsáveis. Sendo este um valente orador e preparando o coração dos fiéis, no dia 25 de janeiro fez a entrega oficial da paróquia ao padre Francis de Assis Mohr. 33
  • 34. Registro esse que pode ser confirmado no livro de batismo escrito pelo punho do próprio padre Mohr. O padre salesiano que cuidava daqui não estava presente nesse dia por motivos de saúde, por isso foi padre Estevão quem deu posse aos missionários. Eu, ainda menino, bisbilhoteiro que só, o vi rasurar aquelas duas folhas do livro de batismo e na terceira escrever o dia em que tomou posse definitiva da paróquia. Dali em diante seria o missionário pastor de um rebanho sedento e esfomeado da Palavra Divina. O porquê de ter rasurado aquelas duas folhas? Imagino que foi uma maneira de marcar o início de uma nova era. O começo de uma nova caminhada. No mesmo dia da posse, como penhor de Deus em nossas terras e pelo novo trabalho, houve a bênção com o Santíssimo Sacramento. No dia 26, domingo, tivemos a missa solene pregada pelo então pároco padre Antonio Maria Marto, Salesiano. À tarde, uma bonita procissão que aumentou o fervor e a boa impressão dos fiéis para com o novo trabalho que se iniciava. Não esqueço que passamos o dia todo na Igreja decorando-a, do nosso modo e jeito. Os missionários ficaram admirados com a criatividade. Muitas mulheres ajudaram cortando papéis e buscando flores nos jardins e no mato. Lembro- me que padre Mohr observou, bem no início de sua chegada, que a igreja estava praticamente abandonada, não tinha homens participando, somente algumas mulheres, e que nas missas de domingo havia mais cachorros que gente. E fez ainda outras observações numa carta que escreveu para seus superiores nos Estados Unidos: “Que surpresa nos aguardava em nossa chegada”? Havia uma multidão na estação. Os oficiais da cidade estavam nos esperando: as crianças de Maria, os meninos e meninas escoteiros. Todos estavam lá, exceto o pároco, que se atrasou, pois o trem chegou 19 minutos antes da programação. Todos apertamos as mãos e pareciam estar muito felizes com a nossa chegada. Dirigimo-nos para a Igreja da cidade no carro oficial. Formou-se uma procissão formal de carros. Chegando à Igreja fomos vê-la internamente. As pessoas e crianças também foram para a 34
  • 35. igreja. Depois fizeram uma fervorosa oração de ação de graças. Sentamo- nos e então o vigário, um salesiano, que estava aqui há pouco tempo, fez o discurso de boas vindas. Padre Estevão respondeu rapidamente. A igreja é nova, e não está finalizada. Mas está sendo usada para os serviços divinos. É um grande lugar sagrado, e tem um altar bem miserável. Há dois espaços grandes ao lado do altar. Um deles pode ser usado como lugar sagrado para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, ou outro santo. Tudo estava acertado para que nos fosse entregue formalmente no dia 25 de janeiro. O pároco daqui preparou uma grande cerimônia. Entretanto, no sábado à tarde fez exame de saúde e não pôde estar presente no dia da posse. Padre Estevão foi quem transferiu a paróquia dos Salesianos para nós. A igreja estava maravilhosamente decorada. Havia pessoas importantes da cidade. Padre Estevão recitou o rosário e convidou as pessoas para cantar a ladainha e o sermão. Depois fez um bonito fervorinho, rezando a Deus pelo trabalho dos salesianos e fez um agradecimento a eles em nome da paróquia. Falou sobre os redentoristas, quem eles são, de onde vem e sobre a nova época e história de Aquidauana. Disse que os missionários redentoristas estão entrando num campo fértil do Mato Grosso. Foi então que do centro da Igreja ele me chamou. Eu saí da sacristia e vim. Eu estava vestido com as roupas litúrgicas para a missa. Ele apontou-me e disse que agora eu era o novo vigário, enviado ao Brasil. Apontando para as pessoas da cidade ele indicou os meus cargos. Entregou-me as chaves, os livros da paróquia, os livros das associações e irmandades, etc. subiu à plataforma do altar e falou por dez minutos, em português, o que havia memorizado. No dia seguinte houve a solene procissão pelas ruas. Uma tripla novena em louvor a Imaculada Conceição, São Sebastião e Santa Teresa, a pequena das flores. O padre salesiano retornou dos seus exames de saúde e conduziu a procissão por inteiro. Na procissão, os homens carregavam as imagens. Uma linha de meninas vestidas de branco representavam os diferentes Estados do país. Mais de três mil pessoas estavam nessa procissão, que foi para o centro da cidade. No fim o padre salesiano fez um eloqüente discurso, abraçou a bandeira brasileira e invocou as bênçãos de Deus sobre o país e todos os povos”. (carta do padre Francis Mohr) 35
  • 36. Assim as coisas foram acontecendo: cansaço, novidade, correria, desafios, chuva, calor, previsões e muita oração. Mesmo assim, encontraram tempo para aprender um pouco da história do lugar e ficaram sabendo que a cidade foi fundada às margens do Rio Aquidauana para servir como porto para os fazendeiros do pequeno distrito. Explica-se, desse modo, o porquê de a construção da Matriz ter ficado próxima ao rio, e não mais acima, por onde a cidade desenvolveu-se mais tarde. Na fundação da cidade a via férrea não existia e todos os suplementos viajavam por barco. A viagem absorvia três meses. Era como ir do Rio de Janeiro a Buenos Aires navegando, precisava subir o Rio Paraguai, descer o Rio Miranda e entrar no Rio Aquidauana. Assim, o núcleo das cidades sempre tendia a crescer às margens do rio. Todo esse movimento, juntando os pedidos à proteção de Deus para enfrentar um rio cheio de perigos e armadilhas, motivou a erguer ali uma pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Imaculada Conceição, no ano de 1898. O local escolhido ficava alguns metros da barranca do rio e o responsável foi um sacerdote de Nioaque, que vinha ocasionalmente rezar missas e ministrar os sacramentos. Mal sabia que essa capela, em poucos anos, receberia os propagadores por excelência da devoção Mariana e ergueriam ali um legado espiritual que atingiria milhares de pessoas com a Palavra de Deus e o ardor da missão. 36
  • 37. 7 37
  • 38. Primeiros Frutos da Missão (1930) O tempo continuava quente, mas agora com muita chuva. Era época das cheias pantaneiras. Os pássaros cantavam alegres, pareciam desconfiar que a vida humana depende da alegria do seu cantar. Os peixes pulavam da água, ora para apanhar comida, ora para agradecer ao criador por ter proporcionado uma nova era a essa região. Tu Deus, estavas conosco e eu não tenho dúvidas. As nuvens carregadas despejavam metros e metros de água sobre todos nós, lembrando que tínhamos recebido uma benção muito grande na pessoa daqueles missionários. O céu estava abençoando a todos com sua presença divina no mundo. Foi muito inspirador ver aqueles homens de Deus enfrentar outra cultura e viver o desafio de preencher um vazio religioso provocado pela falta de padres numa área tão vasta como essa do Mato Grosso. Aprendi muito ao ver esses missionários deixarem o conforto de sua pátria embrenhando-se na mata, ora andando a cavalo no calor e na chuva, ora a pé, ora no “fordinho”, levando a mensagem de Deus para os pobres, nos lugares mais distantes dessas tão vastas paróquias. Sei que essa determinação e garra não atingiram somente a mim, mas muitas pessoas que começaram a buscar Deus com mais freqüência. Prova disso é que todos os domingos a pequena capela de Nossa Senhora da Imaculada Conceição recebia cerca de duzentos e cinqüenta fiéis para assistir ao Sacrifício Divino e escutar a fala animadora e retórica dos missionários do além-mar. Os cachorros deixaram de ser a maioria na participação da missa. Embora nem todos entendessem o que os missionários 38
  • 39. pronunciavam, pela pouca familiaridade com a língua dos mesmos, sei que a Copiosa Redenção do Cristo veio caminhar pelas nossas estradas embrenhando-se em nossas vidas pela ação desses peregrinos e trabalhadores da vinha do Senhor, forjados e redivivos na escola de Santo Afonso Maria de Ligório, o idealizador das missões redentoristas. Certa vez vi padre Mohr observar suas primeiras impressões de Aquidauana com as seguintes Palavras: “Povo muito amável e amigável, famílias grandes e hospitaleiras.” Dizem que só caminharemos vinte quilômetros se dermos os primeiros passos. E foi assim que esses homens de Deus construíram a sua história junto com a nossa. Já no início do mês de fevereiro, padre Mohr viajou para Miranda, pois na manhã seguinte, por vontade do bispo, iria assumir oficialmente a Paróquia Nossa Senhora do Carmo. Entre discursos, vivas e muitos rojões, a história redentorista começava em Miranda. Cidade que nasceu a partir de lavradores que escolheram terras favoráveis à agricultura e à criação de gado. Toda a população acorreu à missa com a Igreja ainda em construção. Entre os fiéis presentes havia dois garotos que se mostravam sapecas diante de toda aquela movimentação, pois só tinham seis anos de idade, mas na hora da missa permaneceram quietinhos. Eram Armando Russo e Moacir Bossay. Sentiram-se chamados por Deus e foram os primeiros frutos do trabalho redentorista no Mato Grosso do Sul. Anos mais tarde escreveriam um bom pedaço dessa história sendo missionários redentoristas no Brasil e exercendo o sacerdócio. Esses dois meninos, envolvidos pela dimensão missionária sentiram-se atraídos aos caminhos de 39
  • 40. Deus e justamente seis anos depois do início de todo esse trabalho, em 1936, ingressaram no Seminário Redentorista. Levados pelo padre Jose Fien, iniciaram seus estudos no Seminário Menor, em Aparecida, juntamente com os seminaristas da Província de São Paulo. Era muito cedo para ter um seminário próprio para tal obra. Mas o sonho já começava a ganhar corpo e no ano de 1958 foi inaugurado no Paraná, na cidade de Ponta Grossa, o Seminário Menor do Santíssimo Redentor. Padre Armando foi o primeiro brasileiro a ser enviado para os estudos de filosofia e teologia nos Estados Unidos. Foi um verdadeiro lutador nos cursilhos e continua seu trabalho de comunicação através do rádio. Ficou dezenas de anos como diretor da Rádio Difusora de Paranaguá, no Paraná, onde enfrentou muitos desafios. Conta que nos tempos de revolução no Brasil, iniciados em 1963, confrontou os grupos “comunistas” no microfone da rádio e até recebeu juras de morte. Diz que haviam escolhido um poste para enforcá-lo, caso vacilasse. Padre Moacir foi o segundo. Um grande incentivador das Missões Populares e das vocações. É constantemente lembrado pelo seu trabalho vocacional. Sabia conquistar e angariar missionários para a vinha do Senhor, junto aos jovens, nas missões e nos lugares onde passava. Viveu de mala por mais de 20 anos nas Santas Missões Populares. Tocou a vida de milhares de pessoas. Tinha uma memória invejável e lembrava de todos os párocos com quem tinha contato nas missões, inclusive o nome dos cachorros das casas onde ficava hospedado, em virtude das missões. Muitos missionários, a exemplo desses dois, foram formados e fizeram essa experiência de estudar nos Estados Unidos. Até surgir o Seminário Maior São Clemente, em Curitiba, a capital do Paraná. 40
  • 41. A partir dessas duas primeiras vocações surgiram outras, tanto que, em 1932, receberam o primeiro candidato a irmão, Jorge da Silva. Ele chegou aos redentoristas altamente recomendado pelos salesianos. Morou um ano no noviciado em Pindamonhangaba, fazendo um profundo aprendizado sobre a vida redentorista, depois veio para Aquidauana. Mas era muito doente e sofria bastante com isso. Acabou indo para Campo Grande, ficando lá por três meses, depois foi desobrigado do seu juramento, a pedido dele mesmo. 41
  • 42. 8 Novos Desafios (1930) “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Pedi ao Senhor da messe que mande trabalhadores para a sua messe.” Essas palavras de Jesus explicitam bem a consciência da imensa missão e como eram poucos aqueles que percebiam a necessidade de orientar o povo, transmitir-lhes um sentido de esperança e de paz. Sozinho, Jesus sabia que levaria sua obra a bom termo, mas não quis, chamou os discípulos para ajudarem e aprenderem dele e continuarem a semeadura do Reino. A exemplo disso, percebendo que o trabalho aumentava e a necessidade era grande, no mês seguinte após a chegada, ainda batendo o pó da estrada de ferro, padre Mohr escreveu aos seus superiores em Nova York pedindo de imediato a ajuda de pelo menos mais quatro missionários. A resposta não demorou. Foi informado que os quatro novos missionários haviam sido escolhidos e se preparavam para a nova missão. Nesse ínterim, como superior da missão, resolveu fazer uma viagem de reconhecimento pela região. Com um Ford modelo 29, visitou Nioaque, as aldeias 42
  • 43. Bananal, Ipegue e Taunay. Foi à Miranda, Bonito, chegando a Bela vista, que na época contava com mil e quinhentos habitantes. Cruzou o rio Apa e visitou a cidade de Bella Vista, no Paraguai, que tinha dois mil habitantes. Ambas não tinham padres para atendê-las. Voltando, era momento de preparar a festa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, devoção que trouxeram dos Estados Unidos. Essa festa deveria ser especial, pois era a primeira de nossas vidas. Requisitou mais uma vez a ajuda dos missionários de São Paulo, que prontamente atenderam ao pedido e enviaram padre Afonso Zartmann para pregar o novenário de Nossa Senhora. Foi muito bonito. A participação foi de grande escala, quase metade dos cinco mil habitantes de nossa cidade participou da solene procissão de encerramento no domingo, dia 22 de junho. A partir disso, mais de trezentas pessoas se inscreveram como membros da Arquiconfraria da Mãe do Perpétuo Socorro. Era bênção sobre bênção. A Mãe do Perpétuo Socorro amparava os missionários que a cada dia tinham uma surpresa especial para nós. O amparo da Mãe do céu era tanto que no fim do mês de junho padre Mohr anunciou que em breve chegariam quatro novos missionários. E noticiou que a missão em Aquidauana estava finalmente oficializada. Isso trouxe tranqüilidade aos missionários, pois, em Roma, cogitava-se tirá-los daqui e enviá-los para cuidar dos índios xavantes, no Xingu. Finalmente, no dia 22 de julho, terça-feira, desembarcaram no Rio de Janeiro, vindo dos Estados Unidos, os novos missionários. Padre Mohr foi recepcioná- los e contava que subiu no navio para dar um grande abraço em todos, num estilo verdadeiramente redentorista. Dizia que as palavras não poderiam descrever a alegria em encontrá-los. Após um pequeno contato com o idioma, no 43
  • 44. dia 01 de agosto de 1930, época de intenso frio no chamado inverno pantaneiro, os quatro chegaram a Aquidauana. Eram os missionários Henrique Plufg, Guilherme Fee, Jose Fien e Rudolfo Reiss. Pareciam muito motivados e jubilosos em auxiliar na salvação das almas de nossa terra. Ao olhar para aqueles recém-chegados, tive a impressão de que sabiam exatamente de quem era a messe e quem eram os trabalhadores. Mas o ser humano é limitado e veio aos meus pensamentos se seria honra ou castigo estar na lista dos enviados para o Brasil. Será que formar uma equipe para tal missão no Mato Grosso fazia parte dos planos deles? Nunca obtive respostas, mas confio que somente o tempo e a consciência de cada um pôde responder a tais indagações. O certo é que nenhum deles era “profissional” em missão fora do seu país; nenhum deles pensou em integrar a lista dos continuadores de Jesus nesta região. Estou convencido de que os critérios de Deus são diferentes dos nossos. Para Ele não são as qualidades ou defeitos dos candidatos que contam, mas a docilidade ao Espírito. Sei que, de um modo ou de outro, se sentiram tocados, por estar na lista de Jesus. Mais uma vez, tive certeza de que Deus não “escolhe os capacitados, mas capacita os que Ele escolheu”. Lembro bem do padre Henrique Plufg. Sempre estava descontente em ter vindo ao Brasil, mas em nome da obediência, realizava sua missão com especial carinho. Contava-nos que nasceu nos Estados Unidos, em Nova York, num lugar chamado Bronx. Era luterano e quando tinha vinte anos de idade se converteu ao catolicismo. Antes de vir para o Brasil, entre os anos de 1927 e 1930, foi secretário do provincial em Nova York. Inclusive, soube há pouco tempo que foi ele quem batizou o padre Clemente Krug, também redentorista norte-americano. Chamava nossas terras de Oeste selvagem do Brasil, a exemplo do padre Estevão de 44
  • 45. São Paulo. Acredito que reclamava bastante da situação do trabalho por aqui devido à necessidade de sujeitar-se a viajar pelo mato, por centenas de quilômetros de estradas poeirentas em péssimo estado, as quais dificilmente poderiam ser chamadas de estradas. Visitava aldeias indígenas que praticamente não falavam português e famílias que moravam em taperas de pau-a-pique rebocadas com barro e cobertas com folhas de palmeira ou sapé. Sempre que falava com pessoas de sua terra, aconselhava-as a não virem para cá. Dizia que aqui não tinha nada para ver, nem riquezas para serem descobertas, e que havia um monte de inconvenientes como animais selvagens, mosquitos, cobras enormes e o calor infernal. Reclamava que aqui era quente e úmido a maior parte do ano. Seu maior passatempo era tirar fotografias. Fotografava o carro atolado nos lamaçais pantaneiros, as araras em seus vôos elegantes, o tuiuiú no ninho, seus companheiros missionários em diversas situações e as construções das igrejas. Comentava muito sobre a alimentação. Esse é um fator importante para quem visita o país, em especial o Mato Grosso. Foi para ele uma grande dificuldade se adaptar aos hábitos alimentares do lugar. Deixar costumes de lado e ingerir uma nova alimentação era um verdadeiro sacrifício. Dizia que sua maior surpresa no fator alimentação era a imensa quantidade de carne acompanhada de farinha de mandioca que o povo daqui comia. Ria muito quando lhe ofereciam carne seca e chamava isso de bife seco. Contava que certa vez foi visitar algumas comunidades de fazenda, bem distantes de Aquidauna, e presenciou o preparo de um alimento que lhe deixou amedrontado. Ele viu a cozinheira esquentar uma lata enorme de gordura e colocá-la na panela de arroz ainda não cozido. A água não foi adicionada até que a gordura fosse totalmente absorvida pelo arroz. Diz que o alimento era 45
  • 46. gostoso e repetiu várias vezes, mas teve que comer sem pensar, caso contrário jamais iria ingeri-lo. Sentiu que seu estômago pulava com tanta gordura e que tudo o que havia comido foi rapidamente expelido em forma líquida via fundilho das calças. Em contrapartida, padre Plufg dizia estar contente pela experiência que adquiriu no Brasil ajudando as pessoas na área da fé, na educação e também na área da saúde. Ficava muito feliz em nos ajudar a adquirir hábitos até então desconhecidos nesta região. Encorajava-nos a comer muita fruta e muitos vegetais. Certa vez apareceu com um saco cheio de laranjas, sentou-se em frente da casa e começou a descascar e a comê-las. Todos ficamos admirados com aquele missionário estrangeiro comendo uma fruta que para nós não tinha muito valor e nem pensávamos em consumi-la. Mas, ao descascar as laranjas, nos falava das suas vitaminas e valores protéicos, dizendo ser riquíssima em vitamina C, auxiliando o organismo na resistência às infecções, formação dos ossos e dentes, cicatrização das feridas e queimaduras, dando vitalidade às gengivas, evitando hemorragias e conservando a mocidade. Padre Plufg explicava que o ferro contido na laranja faz parte do sistema produtor de energia e leva às células o oxigênio que os pulmões respiram. Para que não se perdessem todas essas vitaminas, aconselhava-nos, caso não fôssemos consumi-las, deixá-las com casca, se fosse consumi-las descascar e comê- las imediatamente. Todos esses ensinamentos nos convenceram. Em pouco tempo havíamos aprendido a saboreá-la de modo natural ou em compotas, doces e licores. Aprendi que era necessário ficar mais atento aos passos daqueles homens, pois tínhamos muitas coisas para aprender e, quem sabe, melhorar muito a nossa qualidade de vida. Não sei se era uma resposta ensaiada ou algo que vinha da espiritualidade, mas todos eles sempre repetiam num grande 46
  • 47. chavão: “nós aprendemos mais do que ensinamos a vocês”. Fiquei sabendo que padre Plufg foi enviado ao Brasil para fundar uma casa em Santos. Essa residência deveria ser um local de descanso para os missionários. A idéia nunca saiu do papel. Mais tarde, tornou-se superior em Aquidauana e vice-provincial consultor. Padre Plufg era conhecido como Papai Noel, pois sempre presenteava os paroquianos com coisas que sobravam da comunidade. Certa vez houve uma grande festa na paróquia de Aquidauana e ele repartiu todo o lucro da festa entre as pessoas que haviam trabalhado. Isso evidencia a mentalidade de que vieram nos ajudar e explica o fato de o término da Igreja, da escola e da casa paroquial ter sido custeado com dólares americanos, os chamados óbulos caridosos dos fiéis norte-americanos. Parece que a situação somente foi mudar na década de 60, quando essa prática foi severamente questionada pelo Provincial dos Estados Unidos e todos começaram a perceber que precisavam levar a obra adiante com recursos providos do Brasil. Padre Henrique Plufg retornou aos Estados Unidos quinze anos depois que chegou ao Brasil, no ano de 1945, e faleceu em seu país de origem no dia 19 de outubro de 1961. 47
  • 48. 9 Miranda, vizinha de Aquidauana (1930) É mês de Agosto, ainda sentimos o frio que se abateu sobre nossa região neste ano. Ouço o grunhido das grandes araras que brincam sobre o coqueiro. Ao longe, o João-de- barro num imenso estardalhaço anuncia que sua nova casa foi concluída ou que há perigo à vista. Um bando de capivaras, com seus filhotes, atravessam as águas do Rio Aquidauana. Devem buscar alimento ou simplesmente passeiam e se exercitam. Há uma leve brisa no ar. Os galhos das árvores mexem-se suavemente demonstrando que a 48
  • 49. natureza está viva. O sabiá canta alegremente na copa de uma das árvores perto daqui. Diante de paisagem tão rica, volto ao dia 09 de agosto de 1930 e lembro, como se fosse hoje, na sacristia da Igreja de Aquidauana, a distribuição dos trabalhos aos novos missionários que acabavam de chegar. Sem dúvida, os ventos sopravam a favor da grande obra evangelizadora que vivíamos desde o mês de janeiro. A distribuição ficou assim delineada: padres Afonso Hild e Jose Fien iriam trabalhar em Miranda; padre Rudolfo Reiss e William Fee, em Bela Vista. Esses dois últimos também tinham a missão de cuidar temporariamente da paróquia de Bella Vista, no Paraguai. Em Aquidauana ficariam os padres Francis Mohr e Henry W. Plufg. Feita a distribuição, cada um deveria se dirigir para a nova empreitada missionária. O tempo urgia e as almas precisavam de acompanhamento e dedicação. A poeira da estrada era causticante, mas nada poderia impedir que os servos de Deus prosseguissem em sua jornada. Miranda e Bela Vista aguardavam ansiosos pela chegada daqueles que ajudariam a escrever uma nova história na região, qual terra seca aguardando pelas águas da chuva. Miranda é uma paróquia vizinha de Aquidauana. Territorialmente, sozinha é maior que a Bélgica e de muito difícil acesso aos seus arredores. Ao oeste tem a cidade de Porto Esperança, mais distante de Miranda do que o tamanho total de Porto Rico. Na estação chuvosa, os pântanos cobriam os caminhos impedindo as viagens e dificultando o desenvolvimento do catolicismo em muitos lugares da paróquia. No verão, entre os meses de setembro e abril, os termômetros chegavam a marcar 45 graus à noite. Seus registros batismais e de casamento datam de 1824, dois anos após o Brasil se tornar independente de Portugal. Os primeiros registros foram assinados pelo padre 49
  • 50. Bento de Souza, capelão militar da fronteira. Em 25 de agosto de 1835, um decreto do Imperador do Brasil elevou Miranda ao estado de paróquia, iniciando assim a divisão entre tempo eclesiástico e civil. Miranda foi invadida em janeiro de 1865, após o ditador Lopez, do Paraguai, ter ordenado a invasão do Brasil, mas ofereceu grande resistência devido ao número de tropas brasileiras civis e militares que guardavam pântanos e matas. Em fevereiro, o pároco de Miranda, um Frei italiano chamado Mariano Bagnaia, que tinha se juntado às tropas de inspeção, retornou à cidade para apanhar comida e roupas para os paroquianos que guardavam a floresta. Encontrou a igreja em ruínas. Apesar dos paraguaios culparem os índios pela destruição, o frei protestou energicamente contra o comando paraguaio. Recusando ser protegido pelos fiéis, foi levado como prisioneiro para Assunção. Mas, libertado sob intervenção do Consulado italiano, voltou à Miranda para ajudar seu povo nas necessidades e sofrimentos. Motivou a população a reconstruir Miranda após a derrota dos paraguaios, que se retiraram do Brasil. Conta-se que esse Frei, quando morava em Corumbá no ano de 1887, foi acusado de não pagar o relógio da igreja que acabara de ser construído. Diante dessa calúnia, vingou-se rogando uma praga contra os moradores de Corumbá. Expulso, enterrou suas sandálias em lugar incerto, afirmando que a cidade somente retomaria o desenvolvimento quando fossem desenterradas. Verdadeira ou não, a lenda ainda é satirizada na abertura do carnaval corumbaense, reconhecido como um dos melhores do interior brasileiro. E sempre sai às ruas de Corumbá o bloco carnavalesco chamado “As Sandálias de Frei Mariano”, abrindo o carnaval da cidade. O sucessor do Frei Mariano foi Julião Urquia, que ficou em Miranda de 1874 até 1910. Durante seu pastoreio, o 50
  • 51. Brasil se tornou República, a igreja se separou do Estado, a religião foi proibida nas escolas pública e o casamento civil tornou-se obrigatório no Brasil. Nesse período, foi regulada a navegação no Rio Miranda. Depois do padre Julião, os carmelitas, provindos da Holanda, cuidaram de Miranda por dois anos. E então, assumiram os salesianos, de 1913 a 1930, até que o padre Francis Mohr, dia 09 de fevereiro de 1930, assumiu formalmente a paróquia em nome dos redentoristas norte-americanos. Os salesianos agradeceram imensamente a chegada de mais missionários para o Estado, mas haviam deixado Miranda dois meses antes. Padre Mohr e Hild avisaram o povo que iriam rezar as missas dos domingos em Miranda e Aquidauana até a chegada dos outros redentoristas americanos em agosto. Enviados para lá no mês de agosto, padres Hild e Fien se colocaram imediatamente a trabalho. Lembro bem do padre Jose Fien. Sempre me pareceu seguro de si e sabendo onde colocava os pés. Ficou no Brasil quinze anos. Em 1945, voltou para os Estados Unidos. Faleceu no dia 01 de agosto de 1986 com 84 anos na chamada casa de “Saratoga”. Os dois buscaram concluir as obras da Igreja matriz, que estava inacabada. As paredes estavam levantadas, havia teto, as portas estavam colocadas, mas não tinha piso, era somente terra. Não havia instalações de água nem eletricidade, sem janelas, sem canaletas para a água da chuva, sem acabamento interno ou externo. Tinha um humilde tabernáculo com a presença do Santíssimo, anunciada por uma chama vermelha, alimentada continuamente com óleo. Ao tomar posse, padre Hild, com muito esforço e sacrifício, buscou concluir a Igreja matriz, auxiliado pela comunidade e por doações americanas. A igreja foi projetada pelo construtor português Manoel Secco Thomé e pelo arquiteto alemão Frederico Urlass, quando da sua passagem pela cidade. 51
  • 52. A primeira casa dos missionários tinha dois quartos, uma grande sala e uma cozinha pequena. A sala era dividida com uma cortina e uma cama. A cozinha não estava pronta para uso. Os missionários faziam as refeições na casa do Prefeito da cidade, Pascoal Russo. Mais tarde, vieram cuidar da escola as irmãs, que também faziam suas refeições no mesmo local. O filho dessa família, Armando Russo e seu colega Moacir Bossay, ainda meninos na época, tornaram-se os primeiros missionários brasileiros ordenados em Esopus, New York, em 1949. Depois voltaram para trabalhar como missionários no Brasil, sua Pátria Mãe. A despeito do enorme tamanho da paróquia e da extensa população, atendiam mais de 20 mil almas. Duas das maiores fazendas do mundo – em extensão, não em número de gado – estavam no território paroquial. Seis estações de linha férrea, distante meia hora cada uma, estavam dentro de uma das fazendas. Muitas panteras, tigres e sucuris eram vistas nessa região. Para medir o tamanho da fazenda sempre utilizavam a distância que o jeep percorria. Se este levava uma hora para cruzá-la, do início ao fim, então era uma fazenda considerada pequena. Em cada fazenda havia mais de quinhentas pessoas, que moravam espalhadas na grande extensão do seu território. Com raras exceções, a população nunca era o maior obstáculo para o desenvolvimento da fé. As viagens até Miranda quase sempre eram feitas de trem. Lembro que eu ia à casa de uma tia em Miranda, que morava bem próximo à estação ferroviária, e ficava observando o trem. Era um lugar interessante, ali se juntavam dois trechos de linha, um vindo de Água Clara e outro de Pedro Celestino. Quando tinha oportunidade de estar em Miranda, gostava de ver o trem da Noroeste, sempre atrasado, com as janelas refletindo os quadros da 52
  • 53. vida humana. O trem passava à uma hora da tarde, mas nunca respeitava o horário. Apitava, diminuía a velocidade e parava na estação, onde o povo embarcava e desembarcava, acomodando-se entre a primeira ou segunda classe. Em seus bancos de madeira ou estofados, aguardavam o apito e o grito de partida. Os ferroviários, com seus uniformes e quepes, picotavam os bilhetes, vendiam doces, revistas e gibis, sempre com um sorriso estampado no rosto. Padre José Fien auxiliava seu co-irmão Hild e dedicou- se à construção da primeira Igreja em louvor a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro em todo o Estado do Mato Grosso. Localizada na aldeia indígena Cachoeirinha, a nova igreja foi inaugurada em novembro de 1931. Construíram outras capelas em aldeias indígenas e realizaram excursões no mais espesso e vasto matagal. É difícil para quem não conhece a região pantaneira calcular as grandes distâncias e compreender o isolamento quase completo das aldeias, fazendas e povoados que se distribuem pelo mato afora. Estudei sobre os bandeirantes e aprendi que eram homens destemidos e se embrenhavam no mato explorando cascalho nos rios e abrindo povoações. Enfim, levando o progresso ao interior do nosso Brasil. Tudo feito no lombo de animais, durante dias e mais dias numa estafante jornada de homens decididos. Em pouco tempo essas pequenas povoações se transformaram em vilas, ávidas por progresso. O bandeirante lutou pela ambição terrena e material. Numa luta semelhante, com sacrifício idêntico, os missionários fizeram por um ideal muito mais elevado, puramente espiritual, o de levar Deus a quem não O conhecia. Sabiam que as coisas mais valiosas da vida são gratuitas. Portadores da “bandeira” missionária, a exemplo dos bandeirantes, os missionários desbravavam as almas nos lugares e povoados das paróquias de Miranda, Bela Vista e Aquidauana. Um 53
  • 54. verdadeiro desafio no tempo que aqui chegaram os redentoristas e do trabalho que realizaram com sacrifício e abnegação. Seus vinte ou trinta mil paroquianos viviam espalhados por essa imensa região onde o vizinho mais próximo morava a quilômetros de distância. Lugar onde a estação das chuvas deixava caminhos totalmente intransitáveis. Muitas vezes partiam de carro ou caminhão e voltavam para casa cavalgando um velho burro. Em 1932, o padre Reiter percorreu a cavalo até os lugares mais distantes da paróquia. Fez esse penoso trabalho por mais dois anos, quando juntamente com o padre Francis Dotzler foi chamado a trabalhar no Estado do Paraná. Um estudo dos registros da paróquia revela que o padre Reiter realizou inúmeras dessas viagens árduas buscando confortar as almas mais abandonadas e distantes de Miranda. Esse nobre exemplo motivava os outros, que às vezes ficavam desanimados com o exigente trabalho nas empreitadas pelo mato. Por tantas vezes passavam fome e sede, sofriam com o ataque de insetos, calor escaldante, cansaço e doença. Tudo precisa ser apreciado. Nas noites, descansando da árdua labuta diária e admirando as estrelas, certamente pensavam nos resultados concretos do trabalho e dos desconfortos e alegrias da empreitada. Sempre ouvíamos os missionários reclamarem da imensa umidade de Miranda, e era tanta que chegava a enferrujar os grampos dos breviários. Num mesmo verão, mais de cinqüenta cobras venenosas foram mortas, sempre encontradas dentro dos jeeps, no porão da casa, na sacristia ou em alguma sala dentro da igreja. Por inúmeras vezes meus parentes retornavam para o lar à noite, após as devoções na igreja, e encontravam jacarés dentro de casa, precisando espantá-los com um pedaço de pau ou a pedradas. Os mosquitos vinham em legião e a nós, pele acostumada aos maus tratos, não atacavam muito, mas os 54
  • 55. missionários, coitados, sempre eram os mais perseguidos. Freqüentemente os missionários distribuíam remédio contra a malária. Mostravam-se, pela destreza com que agiam e pelas dificuldades que enfrentavam serem verdadeiros gigantes que trabalhavam nessas condições somente porque tinham fé. Embora só estivesse pronta para ser ocupada em seis meses, a escola paroquial foi inaugurada num domingo, 19 de março de 1933, dia de São José. Desde o início, a responsabilidade ficou a cargo das Irmãs Vicentinas, originárias da Bélgica, mas em sua maioria brasileiras. A escola tinha, em média, 300 alunos. Era muito simples e ocupava as salas de aula da escola primária. A construção começou em 1953 com o padre Leo Henighan no ano de 1953. Padre Tomas Sheehan, mais tarde, resolveu melhorá-la. Atualmente, nesse edifício, funciona a prefeitura de Miranda. Os alicerces são feitos de pedra bruta. Os tijolos foram comprados em Aquidauana e tudo foi transportado pela companhia de trem Noroeste. As intenções de missas no Brasil, que ajudaram nas despesas da construção, eram poucas, por isso sempre recebiam as intenções dos EUA. Aos poucos a Palavra de Deus foi penetrando na vida do povo. Muitas vezes o número de almas a serem contatadas dependia dos jeeps disponíveis para o trabalho, fato nem sempre fácil de ser resolvido, porque estes necessitavam de freqüentes reparos devido às condições difíceis da estrada e não se encontravam mecânicos competentes para deixá-los viáveis. Os tambores de gasolina sempre vinham misturados com muita água, devido ao suor em decorrência do calor, umidade e freqüentes chuvas. Os imigrantes italianos e japoneses contribuíram muito com Miranda. Eram tão firmes na fé e houve tempo que havia cinco japoneses responsáveis pelos cursos de batismos. 55
  • 56. Para um aprofundamento maior, mais tarde, veio o Movimento Familiar cristão, os grupos de oração, o cursilho, o PLC, encontros de catequistas, dentre outros mais. Junto à cidade ficava a aldeia indígena denominada “passarinho”. Havia outras três aldeias no interior da paróquia. Mais tarde, padre Thomas Egan escreveu um pequeno livreto sobre suas pesquisas da língua dos índios Terenos de Miranda. Da sede da paróquia os missionários deslocavam-se para atender o povo de quatro imensas fazendas, três estações de trem, quatro colônias e nove pequenas localidades, verdadeiras comunidades de base para o povo da região. No dia 31 de dezembro de 1993, sessenta e três anos depois da chegada dos redentoristas, numa missa presidida pelo Bispo Dom Onofre Candido Rosa e concelebrada pelos redentoristas Lourenço Kearns, então Superior Provincial dos redentoristas, e pelo redentorista João Leite, além de outros sacerdotes, irmãs Lauritas e centenas de fiéis, a administração da paróquia foi entregue aos cuidados da Diocese de Jardim. Padre Lourenço descreveu brevemente as seis décadas de trabalhos realizados nessa paróquia pelos missionários redentoristas. Dom Onofre agradeceu, admirando todo o esforço dos redentoristas em fazer com que o povo buscasse a santidade. Alguém que estava na assembléia, no momento histórico dessa entrega, certamente rezou de coração pedindo as bênçãos do céu sobre todos os missionários da Congregação do Santíssimo Redentor que por ali passaram. Por todos os sacrifícios, pela escola paroquial, que proporcionou e facilitou o ensino através das inesquecíveis Irmãs Vicentinas; pelas sólidas construções erguidas e colocadas a serviço da comunidade; pela conclusão da bela igreja Matriz e pela igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, na aldeia Cachoeirinha. Deus e os anjos do céu com certeza ouviram um obrigado por esse empenho 56
  • 57. e dedicação. Tesouro que não se vende. Que não se arrenda. Que não se compra. Tesouro que é dom de Deus e que possibilitou acontecerem coisas maravilhosas através da evangelização. 10 Bela Vista, fronteira com o Paraguai (1930) Sempre acreditei que Deus não obriga ninguém a fazer o bem. Também não obrigou Maria a aceitar ser a mãe 57