O autor argumenta que:
1) De acordo com a lei brasileira, o feto, incluindo anencéfalos, é considerado uma pessoa e tem direitos jurídicos desde a concepção.
2) Abortar um feto anencéfalo é considerado crime de infanticídio segundo o Código Penal brasileiro.
3) A certeza do diagnóstico médico de anencefalia não é absoluta, portanto o aborto de fetos anencéfalos pode levar a erros e crimes.
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Pequena nota sobre
o direito a viver
E R O S R O B E RTO G R AU
I
nventei uma história para dicas marcantes – do ventre que No intervalo entre a concepção
celebrar a Vida. Ana, filha de o abrigou. Matar ou deixar mor- e o nascimento – dizia Pontes de
família muito rica, apaixo- rer o pequeno ser que foi parido Miranda – “os direitos, que se
na-se por um homem sem bens não é diferente da interrupção constituíram, têm sujeito, apenas
materiais, Antonio. Casa-se com da sua gestação. Mata-se durante não se sabe qual seja”.
separação de bens. Ana engra- a gestação, atualmente, com re- Não há, pois, espaço para dis-
vida de um anencéfalo e o casal cursos tecnológicos aprimorados, tinções, como assinalou o mi-
decide tê-lo. Ana morre de parto, bisturis eletrônicos dos quais os nistro aposentado do STF, José
o filho sobrevive alguns minutos, fetos procuram desesperada- Néri da Silveira, em parecer
herda a fortuna de Ana. Antonio mente escapar no interior de úte- sobre o tema:
herda todos os bens do filho que ros que os recusam. Mais “digna”
sobreviveu alguns minutos além seria a crueldade da sua execução Em nosso ordenamento jurí-
do tempo de vida de Ana. Nenhu- imediatamente após o parto, mes- dico, não se concebe distinção
ma palavra será suficiente para mo porque deixaria de existir ris- também entre seres humanos
negar a existência jurídica do co para as mães. Um breve homi- em desenvolvimento na fase in-
filho que só foi por alguns ins- cídio e tudo acabado. trauterina, ainda que se com-
tantes além de Ana. Vou contudo diretamente ao provem anomalias ou malfor-
A história que inventei é válida direito, nosso direito positivo. No mações do feto; todos enquanto
no contexto do meu discurso jurí- Brasil o nascituro não apenas é se desenvolvem no útero ma-
dico. Não sou pároco, não tenho protegido pela ordem jurídica, terno são protegidos, em sua
afirmação de espiritualidade a sua dignidade humana preexis- vida e dignidade humana, pela
nestas linhas postular. Aqui anoto tindo ao fato do nascimento, mas Constituição e leis.
apenas o que me cabe como arte- é também titular de direitos ad-
são da compreensão das leis. quiridos. Transcrevo a lei, artigo Trata-se de seres humanos que
Palavras bem arranjadas não 2o do Código Civil: podem receber doações [art. 542
bastam para ocultar, em quantos do Código Civil], figurar em dispo-
fazem praça do aborto de anen- A personalidade civil da pessoa sições testamentárias [art.1.799
céfalos, inexorável desprezo pela começa do nascimento com do Código Civil] e mesmo ser ado-
vida de quem poderia escapar vida; mas a lei põe a salvo, tados [art. 1.621 do Código Civil].
com resquícios de existência – e desde a concepção, os direitos É inconcebível, como afirmou
produzindo consequências jurí- do nascituro. Teixeira de Freitas ainda no
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século XIX, um de nossos mais Ora, se o filho anencéfalo aborto – o “moinho satânico”
renomados civilistas, que haja en- morto pela mãe sob a influência de que falava Karl Polanyi? 2
te com suscetibilidade de adqui- do estado puerperal é ser vivo, A mim causa espanto a ideia de
rir direitos sem que haja pessoa. por que não o seria o feto anen- que se esteja a postular abortos, e
E, digo eu mesmo agora, nele céfalo que – repito – pode rece- com tanto de ênfase, sem interes-
inspirado, que se a doação feita ber doações, figurar em dispo- se econômico determinado. O que
ao nascituro valerá desde que sições testamentárias e mesmo me permite cogitar da eventuali-
aceita pelo seu representante le- ser adotado? dade de, embora se aludindo à
gal – tal como afirma o artigo Que lógica é esta que toma defesa de apregoados direitos da
542 do Código Civil – é forçoso como ser, que considera ser al- mulher, estar-se a pretender a mi-
concluir que os nascituros já guém – e não res – o anencéfalo gração, da prática do aborto, do
existem e são pessoas, pois “o na- vítima de infanticídio, mas atri- universo da ilicitude penal, para o
da não se representa”. bui ao feto que lhe corresponde campo da exploração da atividade
Queiram ou não os que fazem o caráter de coisa ou algo assim? econômica. Em termos diretos e
praça do aborto de anencéfalos, De mais a mais, a certeza do incisivos, para o mercado.
o fato é que a frustração da sua diagnóstico médico da anence- Escrevi esta pequena nota para
existência fora do útero materno, falia não é absoluta, de modo que gritar, tão alto quanto possa, o di-
por ato do homem, é inadmissí- a prevenção do erro, mesmo cul- reito de viver.
vel [mais do que inadmissível, poso, não será sempre possível. O
criminosa] no quadro do direito que dizer, então, do erro doloso? 2
A grande transformação: as origens da
positivo brasileiro. É certo que, A quantas não chegaria, então, em nossa época. Tradução portuguesa de Fanny
salvo os casos em que há, com- seu dinamismo – se admitido o Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
provadamente, morte intrauteri-
na, o feto é um ser vivo.
Tanto é assim que nenhum,
entre a hierarquia dos juízes de
nossa terra, nenhum deles em tese
negaria aplicação do disposto no
artigo 123 do Código Penal,1 que
tipifica o crime de infanticídio, à
mulher que matasse, sob a in-
fluência do estado puerperal, o
próprio filho anencéfalo, duran-
te o parto ou logo após, sujeitan-
do-a a pena de detenção, de dois
a seis anos. Note-se bem que ao
texto do tipo penal acrescentei
unicamente o vocábulo
anencéfalo!
1
“Matar, sob a influência do estado
puerperal, o próprio filho, durante o
parto ou logo após: Pena – detenção de
dois a seis anos.”
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