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“Oficialmente [a tia Emília] nunca foi minha professora,
pois como lhe disse, eu não tinha idade escolar quando
a acompanhava à aldeia. Depois houve um conflito fa-
miliar e passei a viver com o meu avô, então professor
reformado. Meu avô perdera-se de amores pela criada
(risos), minhas tias disseram-lhe que era «uma afronta
à memória da mamã» e o velho, indignado, saiu de casa
levando-me consigo. Começava outro capítulo da minha
vida. Meu avô era muito avarento, mas criatura singular.
O elemento mais ilustre de uma dinastia de campónios.
Um tio dele, que era padre, tinha-o posto a estudar, a
trabalhar numa farmácia e a estudar. A verdade é que
conseguiu chegar a mestre-escola, como se dizia naquele
tempo”.
ALTINO DO TOJAL
[1939-2018]
A VIDA É ESTA COISA
HOMENAGEM NO 80º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DO AUTOR
PÓVOA DE LANHOSO - 26 DE JULHO DE 2019
Coordenação de José Abílio Coelho
Autores dos textos: Altino do Tojal | Costa Carvalho
Jorge Cruz | José Abílio Coelho | Rui Serapicos
Tó de Porto d’Ave | Urbano Tavares Rodrigues
Altino do Tojal, entrevista à Página da Educação, 2001
ALTINO DO TOJAL
[1939-2018]
A VIDA É ESTA COISA
HOMENAGEM NO 80º ANIVERSÁRIO
DO NASCIMENTO DO AUTOR
PÓVOA DE LANHOSO - 26 DE JULHO DE 2019
Coordenação de José Abílio Coelho
Autores dos textos
Altino do Tojal
Costa Carvalho
Jorge Cruz
José Abílio Coelho
Tó de Porto d’Ave
Urbano Tavares Rodrigues
Ilustrações de Miranda, H. Mourato
2
BILHETE DE
Altino do Tojal, oficialmente registado com o nome de Altino Martins
da Costa, nasceu na cidade de Braga, a 26 de julho de 1939, tendo vindo a
falecer em Brunhais, Póvoa de Lanhoso, a 15 de julho de 2018. Foi criado
até aos 5 anos pela sua mãe, Leonor, e a partir dessa idade pelo avô materno,
professor de primeiras letras já reformado, tendo dividido o seu tempo de
menino e moço entre Braga, onde seu avô residia, e a Póvoa de Lanhoso, onde
tinha propriedades e residiam duas de suas filhas, entre elas a mãe de Altino.
A outra era a tia Emília, professora do ensino básico residente em Porto d’Ave
(Taíde), com quem o menino passou tempos de aprendizagem e de quem viria
a dizer, repetidamente, a ela dever o gosto pela escrita.
Muito jovem, ainda, Altino empregou-se na Biblioteca Pública de Braga,
onde, protegido pelo então director Dr. Egídio Guimarães, escreveu os primei-
ros contos que viriam a integrar a edição do seu primeiro livro, “Sardinhas e
Lua” (Pax, 1964) - o qual viria ser o modelo de “Os Putos”.
3
Foi, posteriormente, jornalista profissional, tendo desempenhado fun-
ções no Jornal de Notícias durante sete anos. Em 1973 saiu a público a 1ª edi-
ção de “Os Putos” (Prelo Editora), que inseria os contos de “Sardinhas e Lua” e
outros até então inéditos. Um dos contos inseridos nesta edição desagradou
profundamente aos maiorais do JN, onde trabalhava, que o despediram em
maio desse mesmo ano.
Em 1974 veio a público o livro “A Homenagem” e, em 1975, saiu, pela Sea-
ra Nova, outra edição de “Os Putos” - livro que jultrapassou já as trinta edi-
ções e do qual, alguns contos, foram adaptados ao teatro, à televisão, à rádio
e à banda desenhada. Nos finais dos anos setenta Altino do Tojal mudou-se
para Lisboa, para trabalhar no jornal O Século, onde estaria até ao encerra-
mento do mesmo. A RTP realizou, em 1978, o telefilme “Os Putos”, com Virgí-
lio Castelo, Lídia Franco, Carlos Macedo, Carlos Pimenta e Laura Soveral. Em
1979 foi editado o romance “O Oráculo de Jamais”, ao passo que a obra “Os
IDENTIDADE
4
Putos” continuou a ser alvo de sucessivas edições, pelas mais variadas edito-
ras. “Orvalho do Oriente” nasceu em 1981, e, em 1983, saiu pela Dom Quixote
“Viagem a Ver o Que Dá”. “Histórias de Macau”, produto de uma digressão do
autor pelo Oriente, saiu em 1987.
“Ruínas e Gente”, de 1991, resulta de uma viagem do autor pelas antigas
culturas mediterrânicas, nomeadamente a grega e a egípcia. A editora No-
vosmeios lança as obras completas do autor com “O Oráculo de Jamais”, “Or-
valho do Oriente”, “Viagem A Ver o Que Dá”, “Histórias de Macau”, “Ruínas
e Gente” e “Bodas de cem mil bárbaros”, tendo o Círculo de Leitores lançado
uma edição comemorativa do 30º aniversário de “Os Putos” (1994). A INCM
- Imprensa Nacional-Casa da Moeda reeditou, entretanto, toda a obra do autor.
Em 2001 saiu a público a 27ª edição, pela Ave Rara, de “Os Putos”, inserindo
quatro inéditos. E, em 2011, foi publicada a colectânea “Noite de Consoada e
Outros Natais”, pela INCM.
No dia 15 de julho de 2018, depois de algum tempo doente, Altino do
Tojal veio a falecer no concelho Póvoa de Lanhoso onde, sob a proteção dos
irmãos, e muito especialmente da irmã Emília, passou os últimos anos da
sua vida. As suas cinzas jazem no cemitério de Sobradelo da Goma, ainda do
concelho da Póvoa de Lanhoso, onde Altino tinha raízes muito profundas.
5
Com amigos numa inciativa cultural em Salvaterra del Miño (23.05.1982)
Extractos de uma entrevistaa Luís Souta,
para a Página da Educação, nº 106, outubro 2001
in https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=106&doc=8533&mid=2
“
- Fala-me da sua infância.
- Dois membros da minha família marcaram-me profundamente: a mi-
nha tia Emília e o meu avô. A minha tia Emília levava-me consigo para as
aldeolas onde dava aulas: S. Pedro de Valbom, Valdezende... Tempo ainda de
iluminação a petróleo, de carros de bois a lamuriar por caminhos primitivos...
Acompanhei minha tia nos meus cinco, seis anos. Não tinha ainda idade para
andar na escola, mas ela exigia de mim o mesmo que exigia aos alunos.
(...)
- Eram pessoas que durante a semana estavam nas aldeias onde lecciona-
vam e só ao fim-de-semana é que regressavam a Braga?
- Sim. E como se conheciam, acontecia irem às vezes juntas ao cinema.
Também eu ia ao cinema com a minha tia, já que por esses tempos não havia
classificações etárias. Aos nove anos, por exemplo, vi o Hamlet, do Shakes-
6
peare, numa admirável adaptação cinematográfica de Lawrence Olivier. Sabe
que me impressionou muito esse filme? Foi o meu primeiro contacto com a
morte, através da conhecida cena dos coveiros. Bom, acho que não foi o pri-
meiro; o primeiro acontecera pouco antes, e mais impressivo, quando assisti
à exumação dos restos mortais de minha avó. Talvez por isso, a Morte paira
sobre muita da minha produção literária.
- Hoje há a tendência para afastar as crianças da imagem da morte. Acha
isso negativo?
- No meu caso foi uma fonte de inspiração.
- Fale sobre a vida na aldeia, com sua tia.
- À noite, rezávamos o terço. Minha tinha era muito religiosa. Orações,
orações... aquilo nunca mais acabava. Depois do rosário propriamente dito,
havia que rezar pelas almas dos parentes já falecidos, uma legião interminá-
vel, e depois em prol das almas mais abandonadas. Dava-me o sono, mas eu
sabia que a seguir vinha o encantamento, porque minha tia contava-me histó-
rias antes de adormecermos. Contava-as como só ela sabia contar. Tinha um
dom para contar histórias como nunca vi em mais ninguém.
- Nunca conta histórias do seu avô relacionadas com a escola e com a
profissão dele...
- Não o acompanhei no activo, já entrara na reforma. Era um velhote
muito avarento, como disse, mas com um agradável toque de loucura. Levava-
-me amiúde à Citânia de Briteiros e divagava horas esquecidas acerca do povo
rude que ali vivera, dos costumes e das lendas. Meu avô foi de certo modo o
responsável pelo meu interesse pela arqueologia, que mais tarde, já adulto, me
levaria a visitar tudo quanto é ruína, no Egipto, na Grécia, por sítios desses.
- Escrevia logo?
- Ia tomando notas. (...)
- E depois da emigração fracassada?
- Regressei a Braga, onde o director da Biblioteca Pública, Dr. Egídio
Guimarães, me contratou para fazer uns pequenos serviços, a troco de uma
uma modestíssima quantia que só dava para me hospedar numa espelunca
(...) frequentada por pobres diabos sem eira nem beira. Situação estranha mas
extraordinariamente enriquecedora, pelo contraste, pelo jogo alternante de
sombras e luz. Por um lado, a espelunca, com as suas misérias; por outro, a
Biblioteca Pública, aquela catedral do saber, com milhares de livros à minha
disposição. Dei sequência ao caminho aberto por minha tia Emília, cultivei-
-me ardentemente, como autodidacta que era. (...)”
7
8
Altino, um escritor muito
caricaturado e D. Leonor,
sua mãe: enormes
semelhanças físicas
9
Sardinhas e Lua
Altino do Tojal
O menino tinha faces terrosas e grandes olhos acesos.
Enquanto a mãe formigava longe, desentranhando o pregão, ele manti-
nha-se sentado à porta de casa, o pés unidos e as mãos nos joelhos, como um
faraozinho.
Galinhas ativas e cães tristes erravam pela calçada, gatos preguiçavam
nos telhados, o mulherio lavava roupa no tanque público. Mas, quando cho-
via, não se viam lavadeiras, nem galinhas, nem gatos – só um ou outro cão
triste. O empedrado reluzia friamente sob a chuva e o enxurro arrastava pela
valeta, diante do menino, esqueletos e cabeças de sardinha; também arras-
tava outras imundícies, mas o que feria mais a atenção eram os despojos de
sardinha.
Ao anoitecer, a mãe do menino regressava com o tabuleiro vazio.
– Vendi as ‘sadinhas’ todas, jóia, todas. Só trago a tua - dizia ela ao me-
nino, amorosamente, agachando-se para lhe dar a mão.
Sem dizer nada, o menino descolava o rabito da soleira fria e entrava em
casa, em passos curtinhos, pela mão enorme da mãe.
– Vou já fritar a tua ‘sadinhinha’. – A mãe pousava o tabuleiro, acendia
o lume. - Tens muita fome, jóia?
Não tardariam os homens grandes. O menino sabia-o; e olhava medro-
samente para a porta da rua, enquanto a mãe deixava escorrer o fio de azeite
na sertã.
– Tens muita fome, jóia?
Diante do lume, com a saia preta tremeluzente de escamas, a mãe parecia
um firmamento.
10
E o menino, numa lamúria, entre dois bocejos:
– Mãe, vamos numir...
Já os homens grandes perpassavam lá fora, espreitando.
– Pronto, jóia. – A mãe tirava, com o garfo, a sardinha da sertã. – Com
pãozinho, sim? Vê lá se te pelas!
Os homens grandes iam entrando, silenciosamente. Trémulo, o menino
soprava a sardinha jacente num pedação de broa, para a esfriar, e pedia:
– Mãe, deixe-me tomer a sadinha lá fora...
E os homens grandes à espera, silenciosos, expelindo fumaças para o
teto... Uma prisca saía voando, a piparote, logo morrendo em centelhas no
escuro.
– Pois sim, jóia; mas tem cuidado, não te calquem os pezinhos – reco-
mendava a mãe. E entre beijos chilreados, à orelha do menino: – Eles hoje
vão-se embora cedo, vais ver.
– Sim mãe.
E o menino, em passos curtinhos, ia sentar-se outra vez à soleira da por-
ta, com a sua sardinha no pedação de broa. Antes de se aferrolhar no quarto
com o primeiro dos homens grandes, a mãe olhava risonhamente o menino,
e o menino, semivoltado, olhava seriamente a mãe.
Mas logo da rua surgia o gato – muito afoito, mesmo arrogante, cauda
no ar, a exigir.
– Olá, Miau!... – dizia o menino ao gato, afagando-lhe o lombo veludí-
neo. E dava-lhe da sua sardinha.
Depois, manquitando, acercava-se o cão – tristonho, humilde, cauda en-
tre as patas, a suplicar.
– Olá, Ão-Ão!... – E, acariciando o focinho sofredor do cão, o menino
dava-lhe da sua sardinha.
Até que a lua despontava, branca e gorda, no negrume dos telhados.
– Olá luinha!... – Sorrindo, o menino oferecia à Lua o resto da sua sar-
dinha nas mãozitas estendidas, como num prato.
A Lua sorria também ao menino, que julgava ouvi-la dizer:
– Tome tu, menino.
11
12
O que sossegava o menino. A Lua tinha as faces cheias e o menino tinha-
-as cavadas; a Lua não era como ele, nem como o cão, nem como o gato; a Lua
devia comer muitas sardinhas.
Com a consciência tranquila, o menino punha-se a esbichar o resto da
sua sardinha, chupando gulosamente os dedos. No fim comeria o pãozinho
Erguia amiúde os olhos à lua, já alta, e sorria-lhe. Eram muito amigos.
E lá ficava a sorrir-lhe, arrotando à sardinha, na friagem da soleira, cada
vez mais absorto, cada vez mais faraozinho.
Nem dava pelos homens grandes que saíam, assim como nunca ouvia a
sapateta pesada daqueles que iam chegando. E um tacão crudelíssimo, um
tacão retardatário calcava-lhe invariavelmente os pezitos.
Que grito!...
E o menino chorava enquanto sentisse dores, deitando cuspe nos pezitos
– único remédio que conhecia.
Vinha o cão – tristonho, cabisbaixo, a manquitar – e lambia-lhe os pe-
zitos, a cara reluzente de lágrimas, de novo os pezitos. Rabujando, o menino
afagava a contrapelo o cão que o lambia e olhava medrosamente para den-
tro, onde alguns homens grandes estavam ainda à espera. Depois, água nos
olhos, sacudido por soluços, fitava outra vez a Lua, numa queixa muda, até o
último dos homens grandes sair.
– Anda jóia, vamos numir. – A mãe curvava-se para o menino, sem abo-
toar a blusa, sem compor a cabeleira. – Viste como hoje foi depressa, viste?
O menino abraçava-a, contente, triunfante; e, sobre aquele ombro nu,
suado, mordido, erguia um olhar radioso à Lua, um último, para que a Lua
soubesse: – Ele, o homem pequenino, ia numir toda a noite com a mãe. Toda
a noite!...
Mais tarde, quando chovia, a aguaça, correndo impetuosamente pela
valeta, arrastava consigo os despojos da sardinha, misturados com outras
imundícies.
13
T de Tojal
Costa Carvalho
O Altino do Tojal, cedo o percebi, era de outros quereres. Raça de homem,
aquele! Até no nome a ironia: Altino, não sendo habitante de Venécia, do To-
jal, sem alma onde crescessem tojos.
Monta-cargas de sofrimentos próprios e dos que lhe eram infligidos por
outros, passei a vê-lo como uma daquelas joias em que há uma só pedra en-
gastada – a solidão. Mas uma daquelas solidões malditas, porque sofrendo o
castigo da pessoal companhia.
Uma única vez pareceu entrarmos em choque. Coordenava eu, também,
o suplemento dos domingos, e, no desejo de agradar a Deus e ao Diabo, não
querendo mostrar predileção por este ou por aquele texto, terei subalterniza-
do um original do Altino. Frontalmente, perguntou-me: “Você envergonha-se
do que eu escrevo?”
Como assim?! Vergonha sinto eu agora em não ter percebido, então, que
pelas minhas mãos passavam manuscritos de rara beleza literária. “Os Putos”
eram-me confiados ainda numa fase de gestação, a mim que hoje reconheço
ter tido pouca agudeza de vista. Só isso?
O Altino do Tojal completará, em julho, 50 anos. E já recebeu, antecipada-
mente, a merecida prenda de aniversário: a 15ª edição de “Os Putos”, publica-
do, pela primeira vez, há 15 anos, mas desta feita com mais outros exemplares
contos. O novo e o novíssimo não enjeitaram a arte “velha” do Altino do Tojal,
levada para o teatro, filmada para a televisão, recreada em banda desenhada.
Tanta coisa daria para ser famoso, colunável, entrevistável, comercializável.
14
Só que o Altino é um bicho de buraco – e acusa-se – “Tem cá um destes feitios!”
É assim que a firmeza de carácter entra no quadro das debilidades psíquicas...
Quixotesco, um dia caiu na tentação de franquear-se à sátira. Pagou caro
o atrevimento. De novo fechado dentro de si, encarcerado na solidão, o espí-
rito parou-se-lhe de cansado, em qualquer lado, enquanto o corpo seguia em
frente, voltando, uma vez por outra, atrás, à procura da alma macia e fresca do
“santo” Altino praguejando no deserto.
Altino do Tojal surgiu-me, então, de bigode e pera, e, não fora o cachimbo,
parecia-me um dos inesquecíveis quadros de El Greco. Se ele me lesse, apon-
tar-me-ia o indicador direito como uma pistola, fazendo balas das suas típicas
e pausadas palavras: “Do que você se foi lembrar, ó seu patusco!”
Também a tia, que tanto suspirava por ter um escritor na família, jamais
se apercebeu de que o seu desejo estava plenamente satisfeito no menino que
ensinara a ler e a escrever corretamente.
Tal como ao longo de 22 anos vem acontecendo, voltei a perder o contacto
com o Altino do Tojal. Mas, sempre que meto o dente numa sande de presun-
to, sinto-me apanhado em falta pelo crescer de água na boca do escritor e jor-
nalista: “Com que então, seu finório, banqueteando-se com o manjar dos deu-
ses! E eu que sonhei, esta noite, com uma invasão de presuntinhos voadores!”
Coisas de “Putos” que, felizmente, nos recusamos a deixar de ser. Ele e eu!
E ambos sabemos porquê...
In “O Primeiro de Janeiro”, de 7/1/1989
PS: Como agradecimento ao meu “retratado” reproduzo parte da carta que o Altino
do Tojal me escreveu, datada de 9 de janeiro de 1989: “O texto do Costa Carvalho –
repito – fez-me mergulhar no passado e constituiu um tónico. Até hoje, pouco tem sido
escrito sobre a minha obra, e este ‘T – de TOJAL’, é sem dúvida a prosa mais desnuda-
damente bela que me dedicaram. Bela e profunda – embora excessivamente generosa, o
que já é atribuível à amizade”.
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16
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O observador da espécie humana
Jorge Cruz
Falar sobre Altino do Tojal não é empreendimento fácil, sobretudo para
quem, como eu, jamais pertenceu ao diminuto conjunto de pessoas que com
ele privou amiúde.
Conheci-o, é certo, mas foram algo fugazes os nossos contactos. Fui seu
camarada de profissão mas a distância física das redacções e a circunstância
do Altino sempre se ter assumido como cultor, não direi do isolamento, mas
de um certo recolhimento, contribuíram para que nunca tivéssemos sido ín-
timos.
As poucas conversas que mantivemos, geralmente por motivos vaga-
mente profissionais, foram contributo diminuto para aprofundar o conheci-
mento da complexa personalidade de um escritor que era, ele próprio, prota-
gonista de uma riquíssima história de vida.
Como seu leitor, conhecia o labor do ficcionista. Aliás, os encómios, en-
tre outros, de Óscar Lopes e Urbano Tavares Rodrigues, que garantiam que
Altino “tinha virtudes raras de prosador” dissipariam quaisquer dúvidas, se
existissem. Mas faltava conhecer o homem que dava forma à escrita.
Essa descoberta, essa percepção dos predicados humanos do Altino,
acabou por me ser de certa forma facilitada através do seu conterrâneo e
amigo comum, o pintor Jerónimo.
A partir das longas e multitemáticas conversas com este artista plástico
e poeta bracarense, que partilhou com o Altino laços de fraterna amizade,
pude construir com maior nitidez e rigor a imagem do autor de “Os Putos”. E
confirmei quão certeiras tinham sido muitas das convicções que, através da
18
leitura da sua escrita ou dos breves contactos pessoais, havia formado e que
foram o cimento para a construção da sua imagem. Imagem que, posso as-
severar, corresponde a um personagem fascinante nas diferentes dimensões
humanas: Altino do Tojal foi um homem carismático na convivência, no trato
e até no isolamento a que se impôs. Declinava falar em público e recusava
dar entrevistas. Enfim, pertencia à espécie rara, praticamente em vias de ex-
tinção, daqueles que, tendo embora muito para transmitir, preferia viver na
sombra, apenas dialogando através dos seus livros.
Embora profissionalmente exercendo o jornalismo, “por razões de pão
mais vinho”, é um facto que o seu projecto de vida, digamos o grande desíg-
nio que elegeu, passava realmente pela escrita, sim, mas como escritor. E na
realidade Altino sempre se revelou um exímio contador de histórias, talento
que lhe vem praticamente da infância e que terá sido desenvolvido e apurado
com as narrativas da tia Emília e também do avô, os dois familiares que mais
o marcaram, conforme viria a reconhecer numa raríssima entrevista concedi-
da com enorme relutância a Luís Souto e publicada em A Página da Educação.
Acredito que as circunstâncias difíceis com que se defrontou ainda bas-
tante novo terão sido a massa que viria a moldar a determinação do jovem
Altino para a escrita, para contar histórias. O árduo percurso de autodidacta
que fez questão de experienciar contou com a preciosa ajuda do Dr. Egídio
Guimarães, ao tempo director da Biblioteca Pública de Braga, e essa terá sido
a ferramenta que faltava para metamorfosear o candidato no escritor que
viria a ser.
Curiosamente, ao reconhecer a qualidade da escrita do Altino, foi mes-
mo aquele intelectual quem incentivou a publicação do livro “Sardinhas e
Lua”, que reuniu as primeiras histórias daquele que mais tarde viria a ser
editado como a sua obra mais conhecida, “Os Putos”.
Apesar do enorme sucesso do seu principal livro – que registou mais de
três dezenas de reedições e foi adaptado ao teatro, à televisão e à banda dese-
nhada -, seria extremamente injusto reduzir a produção literária de Altino do
Tojal a esta obra. Ela tem enorme relevância, até do ponto de vista autobio-
19
gráfico, como o próprio autor teve oportunidade de escrever na contracapa
da 29.ª edição revista e aumentada: “Há n’Os Putos tanto de mim que, se
quisesse autobiografar-me, o primeiro dos seus 153 contos, escrito quando
moço, era um excelente começo, enquanto o último, escrito já na velhice,
seria o epílogo perfeito.”
Mas o escritor deixou-nos outras obras de enorme valia e que justifi-
cam a sua releitura, como serão os casos do romance “O Oráculo de Jamais”
(1979), das “Histórias de Macau” (1987) ou ainda de “Ruínas e Gente” (1991),
estes últimos produtos de uma estadia no Oriente e de uma viagem à Grécia
e ao Egipto, respectivamente.
Nesta breve e singela homenagem, faço questão de evocar não apenas o
grande escritor Altino mas também a sua enorme capacidade de observação
da espécie humana nas suas múltiplas dimensões. E faço-o porque acredito
que foi esse olhar, essa curiosidade sem fim, bem patentes na sua prosa, que
o elevaram ao estatuto de contador de histórias de excelência.
Altino, jovem (ao centro, no alto), com a família
20
21
O meu Altino do Tojal
José Abílio Coelho
O Altino e eu fomos amigos durante mais de um quarto de século. Duran-
te este tempo visitei-o várias vezes no seu pequeno apartamento de Lisboa
e ele passou boas temporadas no meu, na Póvoa de Lanhoso, sempre metido
naquela sua roupagem minhota de pessoa arrumada e educada ao extremo.
Diziam que tinha fúrias, mau feitio, que era agreste quando queria, mas eu,
no que a mim respeitou, nunca lhe conheci esses defeitos. Sabia, sim, que
era um homem de sombras, com as quais lutava, como Dom Quixote contra
os moinhos de vento. Mas, essas, respeitei-lhas sempre como fardo que ele
queria carregar sozinho.
De tempos a tempos repetíamos sardinhadas num pequeno restaurante
que ele frequentava a dois passos da sua casa lisboeta, e fomos vezes sem
conta degustar a vitela assada ou o cabrito à minhota, sempre acompanhados
do bom tinto da terra, à Casa Gomes, perto da minha. E, se para aí estivesse,
era um regalo vê-lo comer.
Quando o tempo crescia em horas e em vontades passeávamos pela Braga
da sua meninice, pela rua D. Pedro V ou pela zona da estação de caminhos
de ferro, onde habitara com o avô António José e a criada deste, mas calcor-
reávamos também a minha Póvoa e o seu termo, experimentando subir aos
montes de Sobradelo da Goma, onde o Altino-criança rompera fundilhos e
joelhos, ou os caminhos estreitos de Taíde, Travassos e Esperança, que lhe
recordavam tempos em que o Altino-moço ainda procurava um percurso para
a vida. Em Sobradelo, dizia-me: “Aqui morava a Se Cunça e o Felisberto…”. E,
na Esperança: “Ali, naquela tasca, teve lugar uma história fantástica da mi-
22
nha mocidade… sabe aqueles contos que prometi escrever para a sua edição
de ‘Os Putos’? Num deles vou contar esse episódio…”. A Taíde fomos mais
que uma vez visitar a sepultura da tia Emília, perante a qual o Altino baixava
a cabeça como se estivesse em presença do Santíssimo Sacramento. Foi a tia
Emília, dizia-o frequentemente e escreveu-o no conto “Que Pena!...”, que o
influenciou a ser escritor. “Era bonita, educada, gentil… foi a maior amiga
que eu tive na vida”.
Em Braga, por sua escolha, fomos um dia almoçar a uma tasquinha en-
costada ao Arco da Porta Nova. Era o restaurantezinho onde ele costumava
comer quando, em jovenzito, trabalhou na Biblioteca Pública de Braga. Ali,
enquanto nos batíamos com um bacalhau à Narcisa em companhia do jorna-
lista Rui Serapicos e da professora Lurdes Silva, recordámos velhos amigos
da sua cidade de outrora e especialmente o seu avô, o professor de primeiras
letras António José da Costa, e o seu especial protetor, o antigo diretor da
biblioteca pública, Dr. Egídio Guimarães. Numa outra passagem pelo mesmo
local, anos depois, constatámos que a velha casa de pasto tinha sido trans-
formada numa agência funerária. Altino, que esperava ver ainda ali o “seu”
velho restaurante, parou no meio da rua, apontou à montra com flores e mo-
tivos fúnebres o dedo vigoroso e, naquele seu jeito irónico, disse:
- A tasca morreu, mas o cangalheiro veio para a sepultar e ficou…
Em minha casa ficávamos acordados ao longo de madrugadas compridas.
De cachimbo na mão, do qual só de longe a longe puxava uma fumaça que,
libertada pelo canto da boca, ficava a espreguiçar-se no espaço que ocupáva-
mos, revelava-me coisas da sua vida, quase sempre envolvidas nas sombras a
que já aludi. Falava pausadamente, pronunciando cada palavra sílaba a síla-
ba, para, de vez em quando, cofiando a perinha aparada com que decorava o
queixo, pedir desculpas com aqueles seus modos educados e dizer:
- Não quero mais falar nisso…
Mas não era verdade. No dia seguinte, na nossa tertúlia noturna, sentá-
vamos-mos na sala e ele continuava a contar. “Criança pequena, quando eu
andava a passear por Braga com o meu avô, havia um cavalheiro que, ali entre
23
Com José Abílio Coelho, acima, numa viagem ao Alentejo e, abaixo,
na Póvoa de Lanhoso, em 2017
24
a arcada e a brasileira, me fixava de longe com um olhar que eu não entendia,
parecendo que me queria falar com os seus olhos grandes e vivos… Mas meu
avô, quando o via, pegava-me pela mão e levava-me para casa, a galope… Só
mais tarde vim a saber que aquele homem era o meu pai…”.
Altino desfiava os seus mistérios. E eu sentia que, não querendo contar,
precisava de o fazer. Falava da tia Emília, do avô António, da filha Alice, da
mãe, dos irmãos, do Dr. Egídio Guimarães, do pintor Jerónimo… - gente
da sua galeria de seres queridos e que também lhe fornecia matéria com que
construía algumas das personagens das suas histórias.
Por vezes a amizade requeria silêncios à distância. Ficávamos meses sem
trocar uma carta ou um telefonema mas, por iniciativa minha ou dele, lá sur-
gia um motivo que nos levava a reatar… As semanas seguintes eram de con-
versas várias e repetidas, por escrito ou por telefone, e eu sentia que muitos
dos telefonemas eram para o Altino como que uma ida ao confessionário.
Quando surgia oportunidade, combinávamos um encontro. E tudo voltava a
ser como era antes. No fundo, eu respeitava os seus espaços e ele não pedia
mais que isso. Talvez fosse essa a razão pela qual nunca nos zangamos.
Mas que o Altino cultivava as suas desavenças, as suas divergências, os
seus códigos de honra e os seus espaços de afastamento, era inegável. Isso
mesmo ouvi, por mais de uma vez, a amigos meus que tinham sido amigos
dele. Lembro-me bem, aliás, que, certa altura, chegados nessa manhã a Lis-
boa vindos da participação, no dia anterior, na semana da leitura de uma
escola de Moura, subíamos, eu e ele, a rua do Carmo em direção ao Bairro
Alto, onde iríamos visitar uns alfarrabistas seus amigos à procura de bons li-
vros baratos. Em sentido contrário vinham dois escritores de renome, nossos
conhecidos, em amena cavaqueira. Vendo-nos, pararam e cumprimentaram-
-me educadamente, ao que retribuí; mas quando dei por ele, o Altino estava
já do outro lado da rua a olhar, sereno e concentrado, para as montras da
livraria Sá da Costa. Depois de, algo constrangido pela situação, me ter des-
pedido dos amigos e atravessado a artéria para me encontrar com ele, nem
me deixou abrir a boca, atirando: “Você ainda se dá com gente dessa espécie?”
25
Altino do Tojal com a filha, Alice
26
“Claro que dou, nunca me fizeram mal...”, argumentei. Seguimos, então, em
franca conversa a caminho das lojas de livros usados, sem voltarmos a trocar
qualquer palavra sobre a sua desavença com os dois colegas de letras. Era
assim, respeitando cada um o espaço do outro que, muitas vezes, tendo opi-
niões diferentes, mantínhamos a nossa amizade.
Em 2001 fiz-lhe uma edição do seu livro mais conhecido, para o qual o
próprio escolheu uma designação que me encheu de brios: “Os melhores con-
tos de Os Putos”, seguido do subtítulo “e quatro inéditos”. Claro que quando
é o contista a escolher aqueles que considera os “melhores contos” da sua
obra, quem edita (e eu era editor amador, de ocasião, apenas interessado
em trazer a público alguns livros de autores ligados à minha terra, sem visar
qualquer lucro com a edição…) fica um tudo-nada vaidoso. Assim aconteceu
comigo, pois ainda hoje tenho o maior orgulho de dizer que fiz a 27ª edição
de “Os Putos”. Foi, aliás, nas andanças da divulgação deste livro que Altino do
Tojal me apresentou um dos homens mais humildes que conheci, o seu amigo
Urbano Tavares Rodrigues, escritor e professor catedrático de Letras na uni-
versidade de Lisboa que, mais tarde, viria a escrever e a dar-me um conto seu,
original, para integrar outra edição minha: “Os Dias do Pai”.
Aí por 2015 o Altino voltou a desaparecer do meu radar. Foi a Emília, sua
irmã, que tempos depois me deu nota de que o autor de “Histórias de Macau”
estava bastante doente. Alguém a tinha avisado de Lisboa. Morava, então,
sozinho na rua Bernardo Lima, perto da Sociedade Portuguesa de Autores, e
estava a viver sérios problemas de saúde. Tinha, inclusive, sido levado, con-
tra sua vontade, para o Júlio de Matos, de onde trouxe muitas queixas da
unidade de saúde e do tratamento que ali lhe aplicaram. Convidou-o então a
Emília para se acantonar na sua casa, em Sobradelo da Goma, onde o Altino
iniciou uma verdadeira guerra contra o fim da vida.
Foi nesse tempo que mantivemos muitas e longas conversas. Num desses
encontros, em que esteve presente a Emília, mostrou vontade de me fazer
chegar alguns materiais para que um dia eu lhe pudesse dedicar uma bre-
ve biografia. Tinha, até, escolhido um modelo - o do meu livrinho sobre o
27
Em Savaterra del Miño (23.05.1982) e, em baixo, a rua com o seu nome em
Beirã (Marvão), sobre a qual escreveu o conto Viagem à minha rua
28
poeta João Augusto Bastos. Recomendou-me fontes, entregou-me alguma
informação, escolheu eventuais amigos e textos críticos que deveria ouvir,
ler e citar, disse-me que iria juntar outros documentos para me entregar mais
tarde. Estes últimos ainda não me chegaram às mãos, mas o que possuo che-
gará e sobejará para, no futuro, se tiver saúde, escrever tal biografia. Se por
qualquer imponderável não puder, terei o cuidado de deixar o que possuo a
alguém que lhe dê aproveitamento válido e saiba respeitar o biografado.
Entre dias melhores e piores, Altino do Tojal foi, mais tarde, acolhido
num lar, em Brunhais, onde passou os seus últimos tempos, sempre acari-
nhado pelos irmãos, e onde viria a falecer em 15 de julho de 2018.
Viveu os seus derradeiros anos num quase anonimato. Mas todos os
grandes jornais do país lhe noticiaram a morte, rendendo-lhe palavras de me-
recido louvor. No seu velório contou com uma coroa de flores enviada pelo
presidente da República que, ausente do país em viagem oficial, se fez repre-
sentar no funeral por um capitão-de-fragata. Outras entidades, como a câ-
mara da cidade dos arcebispos, onde nasceu, dedicaram-lhe pesado silêncio.
Faria hoje (26 de julho de 2019) oitenta anos esse escritor maior que tan-
tos apreciaram pelas suas histórias. Após a justa presença de um represen-
tante da presidência da República no seu funeral, há pouco mais de um ano,
voltou Tojal e a ser o Altino-humilde, e quase só, que palmilhou décadas de
vida em caminhos sem candeia que lhe alumiasse o trajeto. Hoje, em sua
memória, reuniram-se alguns poucos amigos e familiares num restaurante
da Póvoa de Lanhoso, entre duas e três dezenas de pessoas que viveram ao
longo das décadas as suas histórias reais ou ficcionadas. Mas o Altino, o que
nunca gostou de festas nem de luzes, o que sempre se afastou dos movimen-
tos intelectuais, o que só era amigo do amigo e não do amigo-conveniente,
estará agora a ver-nos desde o lugar onde se encontra, cofiando ainda a peri-
nha que lhe enfeita o queixo, talvez tirando umas fumaças do seu cachimbo,
para, apontando o dedo esguio à mesa onde nos encontrámos, se rir naquela
sua gargalhada chocalheira e dizer: “Olha que grupo de pândegos ali está!...”
29
Uma hora com Tojal
Rui Serapicos
Guardo, com dedicatória autografada e datada pelo autor, um livro de
Altino do Tojal. Conversei com ele numa taberna em Braga, junto ao Arco da
Porta Nova, no Verão de 2002. Caía a tarde e a conversa, para a qual fui con-
vidado pelo José Abílio Coelho, não chegou a durar uma hora. Eu tinha de ser
rápido, era para o dia seguinte no Correio do Minho, um texto de abertura de
página sobre a publicação, pela Editorial Ave Rara, de “Os melhores contos de
‘Os Putos’ e quatro inéditos”.
Horas antes, aceitara o convite, sem estar preparado. Acontece aos jorna-
listas. Fui ouvi-lo, com o descaramento de uma tábua rasa quanto à sua obra
literária. Já me apresentei assim a Maria Ondina Braga, que me revelou ter
sido no jornal onde escrevo que publicou o seu primeiro texto. E a Maria do
Sameiro Barroso, que me suscitou os românticos alemães e confessou a sua
perturbação de menina “com o nome de uma nossa senhora”. Ou a Mário
Cláudio, que me contou ter passado a Páscoa em Braga, em procissões de Se-
mana Santa, como anjinho, e a Vergílio Alberto Vieira, que me testemunhou
traumas de guerra. Também me ofereceram livros autografados.
Do homem, cordial e reservado, lembro o desencantamento. Trabalhara
na biblioteca pública, perto da taberna onde estávamos; fora jornalista no
Porto e em Lisboa. Não aprofundou a passagem nas redacções (vim depois
a saber que tinha sido despedido de um jornal por causa de uma publicação
literária). Disse-me ter passado a escrever trabalhos jornalísticos sem os as-
sinar. Não recordo se disse ter seguido tal opção para não confundir os seus
textos literários com os jornalísticos ou se, hipótese que formulo agora e não
30
Página de revisão
31
naquela tarde, deixou de assinar textos em jornais porque com eles não se
identificaria enquanto autor.
Forjei a convicção de que, mais ainda do que ter sido despedido pela pu-
blicação de contos que não agradaram aos chefes, pode ter sido a percepção
crescente da perda de condições para escrever livremente que levou o autor
a reorientar esforços, energia e talento, para a literatura, a sua praia. Sem
códigos que normalizem os que escrevem nos jornais, um poema, um conto
ou uma novela podem ir ao essencial da condição humana. Penso hoje em
Tojal como um homem que nos deixou dos seus lugares e do seu tempo, es-
pecialmente as décadas de 1960, 1970 e 1980, um testemunho singular, na
senda de Soeiro Pereira Gomes e da sua famosa epígrafe “filhos dos homens
que nunca foram meninos”.
Em “Os putos” o escritor leva-nos a olhar infâncias. Por vezes, a ambien-
tes de miséria, como o bordel de Mina, onde resgata da prostituição uma
jovem virgem que procurava dinheiro para casar. “Chegue-se Silvestre, che-
gue-se! Está ali no quarto. Nunca tive carne assim…”. Ou como a peixeira que
vende o próprio corpo, mãe de um menino que partilha a refeição com os ga-
tos de Sardinhas e Lua. “Não tardariam os homens grandes. O menino sabia;
e olhava medrosamente a porta da rua”. Desta sua obra inicial encontrei uma
primeira edição nas prateleiras de um familiar, da geração de Tojal, que com
ele conviveu nos finais dos anos sessenta, em Braga. “No Nosso Café, conver-
sávamos, ele era muito mais à frente do que qualquer comum naquele tempo,
mas era preciso cuidado com os pides...”, conta-me, enquanto o ouço, como
no búzio a onda de Altino, que continua na sua praia a revolver as ondas e a
bater as rochas, fazendo delas areias.
32
33
Altino do Tojal
Tó de Porto d’Ave
É dividido entre a responsabilidade que esta missão pesa e o privilégio
de ver o meu nome gravado nesta homenagem a Altino do Tojal, que escrevo
estas linhas. Logo eu, que vivi mais de quatro décadas quase sem conhecer a
sua obra. Duas a três horas, até há alguns meses, foi quanto tempo eu tinha
desfruído nas páginas que escreveu.
A primeira vez que li Altino do Tojal, foi uma história servida num tom
muito engraçado, onde nos desperta para a facilidade com que a inversão da
verdade de um acontecimento pode nascer e a rapidez com que se transforma
num boato. Está contada na primeira pessoa, desenrola-se em lugares que
conheço bem e pode ser encontrada em “Contos do Minho”, um livro editado
há uns bons vinte anos, que carrega nomes de outros autores também mere-
cedores da nossa reverência.
Foi também por essa altura que li “O Oráculo de Jamais”, oferecido pelo
escritor José Abílio Coelho, amigo do autor e, como percebi, grande admira-
dor da sua obra. Isto é tudo que eu conhecia de Altino do Tojal até ao dia em
que deixou este lado da vida, sendo certo que viverá para sempre nas páginas
que nos deixou.
No dia da notícia da sua partida, José Abílio Coelho ofereceu-me mais
um livro, com o título: “A Semente das Palavras”, um pequeno volume que
guardo como um tesouro, que o é. Trata-se de mais uma coletânea onde Al-
tino do Tojal participa com o seu: “Sardinhas e Lua”. Abstenho-me de em-
pregar qualquer adjetivo para este conto, pois temo que aqueles que lerem
estas linhas sem o conhecerem, me apelidem de exagerado. Convido-os a ler
34
aquela história do menino que partilha a sua sardinha com um gato, um cão
e a lua, e, tal como eu, talvez fiquem outros tantos minutos a olhar para essa
mesma lua que, gorda e a sorrir, recusa a sua parte da sardinha, deixando-a
para o menino comer enquanto, sentado na soleira da porta, aguarda a mãe,
uma mãe carinhosa que tem que o deixar ali sozinho, enquanto atende os
“clientes”!
Ainda o cheiro daquela sardinha pairava na minha memória, chegou-me
às mãos a 28ª edição de “Os Putos”. Que livro grande, pensei. E é, é enor-
me! Cerca de uma dúzia daqueles contos bastaram para perceber que Altino
do Tojal era enorme. Durante vários dias, aquele livro acompanhou-me para
todo lado e não havia hora má para o abrir.
Importa dizer que a obra literária de Altino do Tojal está muito longe
de se resumir a “Os Putos”, e não tenho resistido à curiosidade de espreitar
outros livros seus. Ainda recentemente encontrei, nas prateleiras de um al-
farrabista, o “Oráculo de Jamais”, “Ruínas e Gente” e “Jogos de Luz e Outros
Natais”. Como já tinha lido o “Oráculo de Jamais”, trouxe apenas os outros
dois. No entanto, confesso nenhum se aproximou sequer, em sedução, a “Os
Putos”, esse livro delicioso que, há poucas semanas, a 29ª edição, a mais com-
pleta de todas, um calhamaço com quase oitocentas páginas, me foi oferecido
pela Emília, irmã do autor.
Li, alguns reli, mais umas largas dezenas de contos onde o autor, com
palavras de todos os dias, simples sem perderem brilho, nos mostra que exis-
tem tantos episódios do dia a dia que merecem ser contemplados e partilha-
dos. Para isso são necessárias duas características: olhos capazes de alcançar
a vastidão das coisas que parecem vulgares, e génio para as pintar com pala-
vras de forma a torná-las deliciosas para quem ler. Altino do Tojal tinha essas
duas características e muito mais. Por isso, cada conto, muitos deles com
apenas duas ou três páginas, é enorme porque diz muito, mas é sobretudo
belo e deixa obsorto quem lê.
A corda que substitui os suspensórios das calças esfarrapadas, três ta-
manhos acima, que vestem um rapazito sujo. Quem nunca se cruzou com
35
Acima, o pequeno Altino com o avô, a mãe e as tias
Em baixo, aos 40 e aos 78 anos de idade
36
este rapazito sem ver a poesia que Altino do Tojal viu? A manha da criança,
em “Solidão”, que procura companhia para falar ou brincar, e mente sem se
preocupar que aquele desconhecido perca o último autocarro. A esperteza
dos dois miúdos, ou putos, “Dupla Com Futuro!”, brincou o autor a dar este
título a este conto, onde dois larápios de palmo e meio mas já com a lição bem
aprendida, pregam uma mentira a uma mulher, dizendo-lhe que a sua cobra
de estimação entrou pela janela da sua casa, para ela sair sobressaltada, en-
quanto um deles, com a desculpa que vai apanhar o bicho, entrar para roubar
à vontade, ficando o outro a entretê-la, ou assustá-la, explicando-lhe com
minuciosidade o perigo que ali pode estar!
Não me sai da cabeça aquele menino de “Obséquio”, que conto delicioso
este, que não tinha vinte e cinco tostões para ir no elétrico até ao hospital, e
pede, por “obséquio”, um bilhete de dez tostões e percorreria o resto do ca-
minho a pé. O cobrador diz-lhe que não há bilhetes abaixo de quinze tostões
e manda-o sair, gabando-se aos outros passageiros: “Eu conheço bem esta
máfia”! Mas aquela criança só queria ir visitar alguém ao hospital.
Também “O Custódio”, que passou a vida a carregar sacos de carvão e era
olhado apenas como carregador de sacos de carvão, como se além disso não
fosse mais nada. No entanto tinha olhos de poeta, amava livros e era atraí-
do pelas montras das livrarias. E claro, o sorriso do menino de “Sardinhas
e Lua”, que, depois de ler em “A Semente das Palavras”, reencontrei em “Os
Putos”.
Uma particularidade nestes contos, é o facto do autor não julgar as suas
personagens. A responsabilidade de apontar o dedo, deixa-a para quem lê. A
traquinice é até elogiada, mesmo quando o alvo, ou a vítima, é ele próprio,
como naquela história, mais uma contada na primeira pessoa, em que um
menino faz troça dele por não vender nenhum livro numa feira. Achei tanta
piada àquele miúdo que dei comigo a desfrutar da irritação do próprio Altino
do Tojal.
Vi-o várias vezes, mas apenas em uma ocasião estive em contacto com
Altino do Tojal. Foi na esplanada de um café em Sobradelo da Goma, onde
37
ele estava com a Emília, sua irmã, e outros familiares. Já lá vão uns qua-
tro ou cinco anos, mas o seu semblante ficou gravado na minha memória.
Movimentos já muito lentos, mas aquele olhar não era como o dos comuns
mortais. Tinha os olhos já cansados, mas notava-se que eram olhos que ti-
nham visto muito e tudo continuava ali guardado. Cumprimentei-o, fi-lo com
a admiração de quem sabe que está perante um homem respeitado no mundo
da arte e da vida. Mas não é a mesma coisa quando somos nós próprios que
ficamos fascinados com a obra realizada por alguém. E este fascínio que hoje
nutro por este autor, deve-se muito em particular a “Os Putos”, e quando eu
li “Os Putos”, ele já não estava cá para lhe demonstrar o meu próprio reco-
nhecimento.
Muitos destes contos foram escritos bem perto de mim. Estavam por
aí, em prateleiras de livrarias, bibliotecas e alfarrabistas onde gosto de me
nutrir, e eu, longe de imaginar que aquelas páginas eram a delícia que hoje
posso testemunhar, fui adiando. E se eu sabia do reconhecimento que lhe era
atribuído, hoje sei que ele fica muito aquém do que lhe é devido.
Altino do Tojal irá, certamente, perdurar na história da literatura, muito
em particular quando o tema for o conto, onde o seu nome será escutado ao
lado de outros baluartes deste estilo literário. No entanto, atrevo-me a dizer
que a sua obra prima, “Os Putos”, será um título capaz de se sobrelevar ao
seu autor. Acredito até que algumas destas histórias, irão ultrapassar o nome
do autor e o título do livro e, como tantas outras que conhecemos, que se
contam de geração em geração sem se mencionar ou, por vezes, sem mesmo
se saber a sua origem, também alguns “Putos” irão seguir a sua vida fora das
páginas deste livro delicioso que Altino do Tojal nos deixou.
38
39
Os Putos
Urbano Tavares Rodrigues
Uma afirmação de talento, de autenticidade, de força criadora, com o ím-
peto, a ironia, a aliança da juventude e maturidade deste segundo livro de
Altino do Tojal é entre nós coisa rara e como tal cumpre saudar o aconteci-
mento. É possível, é mesmo provável que outros jovens ricos de vivências e
com palavras só suas para dizer, conservem nas gavetas, obras inéditas que
o mercado do livro, por desconfiança, não aceita, já que não existe estímulo
nem selecção nesse domínio em que a lei única (ou quase) é jogar pelo seguro.
Enfim, Altino rompeu a barreira. Depois de “Sardinhas e Lua”, propõe-nos
esta mão cheia de histórias incómodas, vividas ou vistas, não enfatizadas,
mas trágicas em sua simpleza rude, sabiamente rude. Os heróis-mártires, são
mesmo os putos, as crianças da lixeira, os meninos e meninas das aldeias de-
sertas de Trás-os-Montes, encolhidas, trémulas, no estrume e na urina como
o petiz metido no cortelho da porca “de joelhos perante um tojo”. Há o nada
e o sonho, há o regresso esperado do pai que virá de França.
“Marcha, Gabiel”, é um conto amargo de crianças grandes, com uma
marginália filosófica. Altino do Tojal tem uma escrita pessoal amassada com
o linguajar nortenho popular, regada pelo fluir da sua veia pícara e com pe-
daços de sol a luzirem entre tristezas e raivas que a palavra puxa, revela,
exacerba. Um escritor hibrido, mas forte, com vocação de rapsodo e costela
de letrado.
Dá-nos agora este belo livro, duro e comovente, verdadeiro e vertical, que
é o anúncio - assim o esperamos - de uma carreira de romancista.
Tem a edição que é da Prelo, uma linda capa, cheia de riso e de esperança,
temperos da mágoa que no livro também se encontram.
In O Século, 1973
40
CÓLOFON
Por cólofon designavam os gregos “cume”, “topo” ou “final”. Na idade média o cólofon
era, tal como as palavras “finis” ou “Laus Deos”, utilizado para nota ou informação de fecho
de um manuscrito ou livro impresso, dele constando, neste último caso e entre outra eventual
informação, o nome do editor ou impressor e a data de impressão da obra. Era um termo de
que o Altino gostava muito. Usamos, pois, este cólofon para aqui deixarmos a nota final desta
publicação.
Foi este caderno feito na empresa Graficamares, Lda., entre 23 e 25 de julho de 2019,
tendo sido impressos apenas 120 exemplares, destinados a ofertas, aos autores dos textos e
das ilustrações e aos familiares e amigos presentes num jantar, que teve lugar no Restaurante
Dulcídio, em Porto d’Ave, Taíde, concelho da Póvoa de Lanhoso, com o qual se comemorou
o 80º aniversário do nascimento do autor de “Os Putos”, falecido em 15 de julho de 2018.
Apenas parte dos textos neste caderno contidos foram escritos propositadamente para este
suporte, tendo os outros, aqui devidamente assinalados e datados, sido publicados em jornais
ao longo dos últimos anos. São, todos eles, testemunhos da maestria de Altino do Tojal en-
quanto autor. Também as ilustrações e fotografias foram colhidas de arquivos vários, muitas
delas sem identificação de autor.
Os livros do escritor nascido em Braga em 26 de julho de 1939, e sobretudo a coletânea
“Os Putos”, estão destinados à imortalidade. Por isso, esta breve publicação é apenas a candeia
que vai à frente, simples quanto baste - como, aliás, o autor de “Sardinhas e Lua” gostaria que
fosse - abrindo porém caminhos francos a outros textos biográficos que certamente irão apa-
recer nos próximos anos ou décadas.
No lugar destacado, onde quer que se encontre, Altino do Tojal, ao consultar este caderno,
há-de soltar a sua sonora gargalhada e, apontado-nos o dedo dardejante, dizer com a maior
das amizades: “Que pândegos!”
Obrigado, Altino, por ter sido nosso amigo e por nos ter dado a ler literatura da melhor.
Depósito Legal: 459298/19

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ALTINO_DO_TOJAL_A_VIDA_E_ESTA_COISA.pdf alguns contos

  • 1. “Oficialmente [a tia Emília] nunca foi minha professora, pois como lhe disse, eu não tinha idade escolar quando a acompanhava à aldeia. Depois houve um conflito fa- miliar e passei a viver com o meu avô, então professor reformado. Meu avô perdera-se de amores pela criada (risos), minhas tias disseram-lhe que era «uma afronta à memória da mamã» e o velho, indignado, saiu de casa levando-me consigo. Começava outro capítulo da minha vida. Meu avô era muito avarento, mas criatura singular. O elemento mais ilustre de uma dinastia de campónios. Um tio dele, que era padre, tinha-o posto a estudar, a trabalhar numa farmácia e a estudar. A verdade é que conseguiu chegar a mestre-escola, como se dizia naquele tempo”. ALTINO DO TOJAL [1939-2018] A VIDA É ESTA COISA HOMENAGEM NO 80º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DO AUTOR PÓVOA DE LANHOSO - 26 DE JULHO DE 2019 Coordenação de José Abílio Coelho Autores dos textos: Altino do Tojal | Costa Carvalho Jorge Cruz | José Abílio Coelho | Rui Serapicos Tó de Porto d’Ave | Urbano Tavares Rodrigues Altino do Tojal, entrevista à Página da Educação, 2001
  • 2. ALTINO DO TOJAL [1939-2018] A VIDA É ESTA COISA HOMENAGEM NO 80º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DO AUTOR PÓVOA DE LANHOSO - 26 DE JULHO DE 2019 Coordenação de José Abílio Coelho Autores dos textos Altino do Tojal Costa Carvalho Jorge Cruz José Abílio Coelho Tó de Porto d’Ave Urbano Tavares Rodrigues Ilustrações de Miranda, H. Mourato
  • 3. 2 BILHETE DE Altino do Tojal, oficialmente registado com o nome de Altino Martins da Costa, nasceu na cidade de Braga, a 26 de julho de 1939, tendo vindo a falecer em Brunhais, Póvoa de Lanhoso, a 15 de julho de 2018. Foi criado até aos 5 anos pela sua mãe, Leonor, e a partir dessa idade pelo avô materno, professor de primeiras letras já reformado, tendo dividido o seu tempo de menino e moço entre Braga, onde seu avô residia, e a Póvoa de Lanhoso, onde tinha propriedades e residiam duas de suas filhas, entre elas a mãe de Altino. A outra era a tia Emília, professora do ensino básico residente em Porto d’Ave (Taíde), com quem o menino passou tempos de aprendizagem e de quem viria a dizer, repetidamente, a ela dever o gosto pela escrita. Muito jovem, ainda, Altino empregou-se na Biblioteca Pública de Braga, onde, protegido pelo então director Dr. Egídio Guimarães, escreveu os primei- ros contos que viriam a integrar a edição do seu primeiro livro, “Sardinhas e Lua” (Pax, 1964) - o qual viria ser o modelo de “Os Putos”.
  • 4. 3 Foi, posteriormente, jornalista profissional, tendo desempenhado fun- ções no Jornal de Notícias durante sete anos. Em 1973 saiu a público a 1ª edi- ção de “Os Putos” (Prelo Editora), que inseria os contos de “Sardinhas e Lua” e outros até então inéditos. Um dos contos inseridos nesta edição desagradou profundamente aos maiorais do JN, onde trabalhava, que o despediram em maio desse mesmo ano. Em 1974 veio a público o livro “A Homenagem” e, em 1975, saiu, pela Sea- ra Nova, outra edição de “Os Putos” - livro que jultrapassou já as trinta edi- ções e do qual, alguns contos, foram adaptados ao teatro, à televisão, à rádio e à banda desenhada. Nos finais dos anos setenta Altino do Tojal mudou-se para Lisboa, para trabalhar no jornal O Século, onde estaria até ao encerra- mento do mesmo. A RTP realizou, em 1978, o telefilme “Os Putos”, com Virgí- lio Castelo, Lídia Franco, Carlos Macedo, Carlos Pimenta e Laura Soveral. Em 1979 foi editado o romance “O Oráculo de Jamais”, ao passo que a obra “Os IDENTIDADE
  • 5. 4 Putos” continuou a ser alvo de sucessivas edições, pelas mais variadas edito- ras. “Orvalho do Oriente” nasceu em 1981, e, em 1983, saiu pela Dom Quixote “Viagem a Ver o Que Dá”. “Histórias de Macau”, produto de uma digressão do autor pelo Oriente, saiu em 1987. “Ruínas e Gente”, de 1991, resulta de uma viagem do autor pelas antigas culturas mediterrânicas, nomeadamente a grega e a egípcia. A editora No- vosmeios lança as obras completas do autor com “O Oráculo de Jamais”, “Or- valho do Oriente”, “Viagem A Ver o Que Dá”, “Histórias de Macau”, “Ruínas e Gente” e “Bodas de cem mil bárbaros”, tendo o Círculo de Leitores lançado uma edição comemorativa do 30º aniversário de “Os Putos” (1994). A INCM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda reeditou, entretanto, toda a obra do autor. Em 2001 saiu a público a 27ª edição, pela Ave Rara, de “Os Putos”, inserindo quatro inéditos. E, em 2011, foi publicada a colectânea “Noite de Consoada e Outros Natais”, pela INCM. No dia 15 de julho de 2018, depois de algum tempo doente, Altino do Tojal veio a falecer no concelho Póvoa de Lanhoso onde, sob a proteção dos irmãos, e muito especialmente da irmã Emília, passou os últimos anos da sua vida. As suas cinzas jazem no cemitério de Sobradelo da Goma, ainda do concelho da Póvoa de Lanhoso, onde Altino tinha raízes muito profundas.
  • 6. 5 Com amigos numa inciativa cultural em Salvaterra del Miño (23.05.1982) Extractos de uma entrevistaa Luís Souta, para a Página da Educação, nº 106, outubro 2001 in https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=106&doc=8533&mid=2 “ - Fala-me da sua infância. - Dois membros da minha família marcaram-me profundamente: a mi- nha tia Emília e o meu avô. A minha tia Emília levava-me consigo para as aldeolas onde dava aulas: S. Pedro de Valbom, Valdezende... Tempo ainda de iluminação a petróleo, de carros de bois a lamuriar por caminhos primitivos... Acompanhei minha tia nos meus cinco, seis anos. Não tinha ainda idade para andar na escola, mas ela exigia de mim o mesmo que exigia aos alunos. (...) - Eram pessoas que durante a semana estavam nas aldeias onde lecciona- vam e só ao fim-de-semana é que regressavam a Braga? - Sim. E como se conheciam, acontecia irem às vezes juntas ao cinema. Também eu ia ao cinema com a minha tia, já que por esses tempos não havia classificações etárias. Aos nove anos, por exemplo, vi o Hamlet, do Shakes-
  • 7. 6 peare, numa admirável adaptação cinematográfica de Lawrence Olivier. Sabe que me impressionou muito esse filme? Foi o meu primeiro contacto com a morte, através da conhecida cena dos coveiros. Bom, acho que não foi o pri- meiro; o primeiro acontecera pouco antes, e mais impressivo, quando assisti à exumação dos restos mortais de minha avó. Talvez por isso, a Morte paira sobre muita da minha produção literária. - Hoje há a tendência para afastar as crianças da imagem da morte. Acha isso negativo? - No meu caso foi uma fonte de inspiração. - Fale sobre a vida na aldeia, com sua tia. - À noite, rezávamos o terço. Minha tinha era muito religiosa. Orações, orações... aquilo nunca mais acabava. Depois do rosário propriamente dito, havia que rezar pelas almas dos parentes já falecidos, uma legião interminá- vel, e depois em prol das almas mais abandonadas. Dava-me o sono, mas eu sabia que a seguir vinha o encantamento, porque minha tia contava-me histó- rias antes de adormecermos. Contava-as como só ela sabia contar. Tinha um dom para contar histórias como nunca vi em mais ninguém. - Nunca conta histórias do seu avô relacionadas com a escola e com a profissão dele... - Não o acompanhei no activo, já entrara na reforma. Era um velhote muito avarento, como disse, mas com um agradável toque de loucura. Levava- -me amiúde à Citânia de Briteiros e divagava horas esquecidas acerca do povo rude que ali vivera, dos costumes e das lendas. Meu avô foi de certo modo o responsável pelo meu interesse pela arqueologia, que mais tarde, já adulto, me levaria a visitar tudo quanto é ruína, no Egipto, na Grécia, por sítios desses. - Escrevia logo? - Ia tomando notas. (...) - E depois da emigração fracassada? - Regressei a Braga, onde o director da Biblioteca Pública, Dr. Egídio Guimarães, me contratou para fazer uns pequenos serviços, a troco de uma uma modestíssima quantia que só dava para me hospedar numa espelunca (...) frequentada por pobres diabos sem eira nem beira. Situação estranha mas extraordinariamente enriquecedora, pelo contraste, pelo jogo alternante de sombras e luz. Por um lado, a espelunca, com as suas misérias; por outro, a Biblioteca Pública, aquela catedral do saber, com milhares de livros à minha disposição. Dei sequência ao caminho aberto por minha tia Emília, cultivei- -me ardentemente, como autodidacta que era. (...)”
  • 8. 7
  • 9. 8 Altino, um escritor muito caricaturado e D. Leonor, sua mãe: enormes semelhanças físicas
  • 10. 9 Sardinhas e Lua Altino do Tojal O menino tinha faces terrosas e grandes olhos acesos. Enquanto a mãe formigava longe, desentranhando o pregão, ele manti- nha-se sentado à porta de casa, o pés unidos e as mãos nos joelhos, como um faraozinho. Galinhas ativas e cães tristes erravam pela calçada, gatos preguiçavam nos telhados, o mulherio lavava roupa no tanque público. Mas, quando cho- via, não se viam lavadeiras, nem galinhas, nem gatos – só um ou outro cão triste. O empedrado reluzia friamente sob a chuva e o enxurro arrastava pela valeta, diante do menino, esqueletos e cabeças de sardinha; também arras- tava outras imundícies, mas o que feria mais a atenção eram os despojos de sardinha. Ao anoitecer, a mãe do menino regressava com o tabuleiro vazio. – Vendi as ‘sadinhas’ todas, jóia, todas. Só trago a tua - dizia ela ao me- nino, amorosamente, agachando-se para lhe dar a mão. Sem dizer nada, o menino descolava o rabito da soleira fria e entrava em casa, em passos curtinhos, pela mão enorme da mãe. – Vou já fritar a tua ‘sadinhinha’. – A mãe pousava o tabuleiro, acendia o lume. - Tens muita fome, jóia? Não tardariam os homens grandes. O menino sabia-o; e olhava medro- samente para a porta da rua, enquanto a mãe deixava escorrer o fio de azeite na sertã. – Tens muita fome, jóia? Diante do lume, com a saia preta tremeluzente de escamas, a mãe parecia um firmamento.
  • 11. 10 E o menino, numa lamúria, entre dois bocejos: – Mãe, vamos numir... Já os homens grandes perpassavam lá fora, espreitando. – Pronto, jóia. – A mãe tirava, com o garfo, a sardinha da sertã. – Com pãozinho, sim? Vê lá se te pelas! Os homens grandes iam entrando, silenciosamente. Trémulo, o menino soprava a sardinha jacente num pedação de broa, para a esfriar, e pedia: – Mãe, deixe-me tomer a sadinha lá fora... E os homens grandes à espera, silenciosos, expelindo fumaças para o teto... Uma prisca saía voando, a piparote, logo morrendo em centelhas no escuro. – Pois sim, jóia; mas tem cuidado, não te calquem os pezinhos – reco- mendava a mãe. E entre beijos chilreados, à orelha do menino: – Eles hoje vão-se embora cedo, vais ver. – Sim mãe. E o menino, em passos curtinhos, ia sentar-se outra vez à soleira da por- ta, com a sua sardinha no pedação de broa. Antes de se aferrolhar no quarto com o primeiro dos homens grandes, a mãe olhava risonhamente o menino, e o menino, semivoltado, olhava seriamente a mãe. Mas logo da rua surgia o gato – muito afoito, mesmo arrogante, cauda no ar, a exigir. – Olá, Miau!... – dizia o menino ao gato, afagando-lhe o lombo veludí- neo. E dava-lhe da sua sardinha. Depois, manquitando, acercava-se o cão – tristonho, humilde, cauda en- tre as patas, a suplicar. – Olá, Ão-Ão!... – E, acariciando o focinho sofredor do cão, o menino dava-lhe da sua sardinha. Até que a lua despontava, branca e gorda, no negrume dos telhados. – Olá luinha!... – Sorrindo, o menino oferecia à Lua o resto da sua sar- dinha nas mãozitas estendidas, como num prato. A Lua sorria também ao menino, que julgava ouvi-la dizer: – Tome tu, menino.
  • 12. 11
  • 13. 12 O que sossegava o menino. A Lua tinha as faces cheias e o menino tinha- -as cavadas; a Lua não era como ele, nem como o cão, nem como o gato; a Lua devia comer muitas sardinhas. Com a consciência tranquila, o menino punha-se a esbichar o resto da sua sardinha, chupando gulosamente os dedos. No fim comeria o pãozinho Erguia amiúde os olhos à lua, já alta, e sorria-lhe. Eram muito amigos. E lá ficava a sorrir-lhe, arrotando à sardinha, na friagem da soleira, cada vez mais absorto, cada vez mais faraozinho. Nem dava pelos homens grandes que saíam, assim como nunca ouvia a sapateta pesada daqueles que iam chegando. E um tacão crudelíssimo, um tacão retardatário calcava-lhe invariavelmente os pezitos. Que grito!... E o menino chorava enquanto sentisse dores, deitando cuspe nos pezitos – único remédio que conhecia. Vinha o cão – tristonho, cabisbaixo, a manquitar – e lambia-lhe os pe- zitos, a cara reluzente de lágrimas, de novo os pezitos. Rabujando, o menino afagava a contrapelo o cão que o lambia e olhava medrosamente para den- tro, onde alguns homens grandes estavam ainda à espera. Depois, água nos olhos, sacudido por soluços, fitava outra vez a Lua, numa queixa muda, até o último dos homens grandes sair. – Anda jóia, vamos numir. – A mãe curvava-se para o menino, sem abo- toar a blusa, sem compor a cabeleira. – Viste como hoje foi depressa, viste? O menino abraçava-a, contente, triunfante; e, sobre aquele ombro nu, suado, mordido, erguia um olhar radioso à Lua, um último, para que a Lua soubesse: – Ele, o homem pequenino, ia numir toda a noite com a mãe. Toda a noite!... Mais tarde, quando chovia, a aguaça, correndo impetuosamente pela valeta, arrastava consigo os despojos da sardinha, misturados com outras imundícies.
  • 14. 13 T de Tojal Costa Carvalho O Altino do Tojal, cedo o percebi, era de outros quereres. Raça de homem, aquele! Até no nome a ironia: Altino, não sendo habitante de Venécia, do To- jal, sem alma onde crescessem tojos. Monta-cargas de sofrimentos próprios e dos que lhe eram infligidos por outros, passei a vê-lo como uma daquelas joias em que há uma só pedra en- gastada – a solidão. Mas uma daquelas solidões malditas, porque sofrendo o castigo da pessoal companhia. Uma única vez pareceu entrarmos em choque. Coordenava eu, também, o suplemento dos domingos, e, no desejo de agradar a Deus e ao Diabo, não querendo mostrar predileção por este ou por aquele texto, terei subalterniza- do um original do Altino. Frontalmente, perguntou-me: “Você envergonha-se do que eu escrevo?” Como assim?! Vergonha sinto eu agora em não ter percebido, então, que pelas minhas mãos passavam manuscritos de rara beleza literária. “Os Putos” eram-me confiados ainda numa fase de gestação, a mim que hoje reconheço ter tido pouca agudeza de vista. Só isso? O Altino do Tojal completará, em julho, 50 anos. E já recebeu, antecipada- mente, a merecida prenda de aniversário: a 15ª edição de “Os Putos”, publica- do, pela primeira vez, há 15 anos, mas desta feita com mais outros exemplares contos. O novo e o novíssimo não enjeitaram a arte “velha” do Altino do Tojal, levada para o teatro, filmada para a televisão, recreada em banda desenhada. Tanta coisa daria para ser famoso, colunável, entrevistável, comercializável.
  • 15. 14 Só que o Altino é um bicho de buraco – e acusa-se – “Tem cá um destes feitios!” É assim que a firmeza de carácter entra no quadro das debilidades psíquicas... Quixotesco, um dia caiu na tentação de franquear-se à sátira. Pagou caro o atrevimento. De novo fechado dentro de si, encarcerado na solidão, o espí- rito parou-se-lhe de cansado, em qualquer lado, enquanto o corpo seguia em frente, voltando, uma vez por outra, atrás, à procura da alma macia e fresca do “santo” Altino praguejando no deserto. Altino do Tojal surgiu-me, então, de bigode e pera, e, não fora o cachimbo, parecia-me um dos inesquecíveis quadros de El Greco. Se ele me lesse, apon- tar-me-ia o indicador direito como uma pistola, fazendo balas das suas típicas e pausadas palavras: “Do que você se foi lembrar, ó seu patusco!” Também a tia, que tanto suspirava por ter um escritor na família, jamais se apercebeu de que o seu desejo estava plenamente satisfeito no menino que ensinara a ler e a escrever corretamente. Tal como ao longo de 22 anos vem acontecendo, voltei a perder o contacto com o Altino do Tojal. Mas, sempre que meto o dente numa sande de presun- to, sinto-me apanhado em falta pelo crescer de água na boca do escritor e jor- nalista: “Com que então, seu finório, banqueteando-se com o manjar dos deu- ses! E eu que sonhei, esta noite, com uma invasão de presuntinhos voadores!” Coisas de “Putos” que, felizmente, nos recusamos a deixar de ser. Ele e eu! E ambos sabemos porquê... In “O Primeiro de Janeiro”, de 7/1/1989 PS: Como agradecimento ao meu “retratado” reproduzo parte da carta que o Altino do Tojal me escreveu, datada de 9 de janeiro de 1989: “O texto do Costa Carvalho – repito – fez-me mergulhar no passado e constituiu um tónico. Até hoje, pouco tem sido escrito sobre a minha obra, e este ‘T – de TOJAL’, é sem dúvida a prosa mais desnuda- damente bela que me dedicaram. Bela e profunda – embora excessivamente generosa, o que já é atribuível à amizade”.
  • 16. 15
  • 17. 16
  • 18. 17 O observador da espécie humana Jorge Cruz Falar sobre Altino do Tojal não é empreendimento fácil, sobretudo para quem, como eu, jamais pertenceu ao diminuto conjunto de pessoas que com ele privou amiúde. Conheci-o, é certo, mas foram algo fugazes os nossos contactos. Fui seu camarada de profissão mas a distância física das redacções e a circunstância do Altino sempre se ter assumido como cultor, não direi do isolamento, mas de um certo recolhimento, contribuíram para que nunca tivéssemos sido ín- timos. As poucas conversas que mantivemos, geralmente por motivos vaga- mente profissionais, foram contributo diminuto para aprofundar o conheci- mento da complexa personalidade de um escritor que era, ele próprio, prota- gonista de uma riquíssima história de vida. Como seu leitor, conhecia o labor do ficcionista. Aliás, os encómios, en- tre outros, de Óscar Lopes e Urbano Tavares Rodrigues, que garantiam que Altino “tinha virtudes raras de prosador” dissipariam quaisquer dúvidas, se existissem. Mas faltava conhecer o homem que dava forma à escrita. Essa descoberta, essa percepção dos predicados humanos do Altino, acabou por me ser de certa forma facilitada através do seu conterrâneo e amigo comum, o pintor Jerónimo. A partir das longas e multitemáticas conversas com este artista plástico e poeta bracarense, que partilhou com o Altino laços de fraterna amizade, pude construir com maior nitidez e rigor a imagem do autor de “Os Putos”. E confirmei quão certeiras tinham sido muitas das convicções que, através da
  • 19. 18 leitura da sua escrita ou dos breves contactos pessoais, havia formado e que foram o cimento para a construção da sua imagem. Imagem que, posso as- severar, corresponde a um personagem fascinante nas diferentes dimensões humanas: Altino do Tojal foi um homem carismático na convivência, no trato e até no isolamento a que se impôs. Declinava falar em público e recusava dar entrevistas. Enfim, pertencia à espécie rara, praticamente em vias de ex- tinção, daqueles que, tendo embora muito para transmitir, preferia viver na sombra, apenas dialogando através dos seus livros. Embora profissionalmente exercendo o jornalismo, “por razões de pão mais vinho”, é um facto que o seu projecto de vida, digamos o grande desíg- nio que elegeu, passava realmente pela escrita, sim, mas como escritor. E na realidade Altino sempre se revelou um exímio contador de histórias, talento que lhe vem praticamente da infância e que terá sido desenvolvido e apurado com as narrativas da tia Emília e também do avô, os dois familiares que mais o marcaram, conforme viria a reconhecer numa raríssima entrevista concedi- da com enorme relutância a Luís Souto e publicada em A Página da Educação. Acredito que as circunstâncias difíceis com que se defrontou ainda bas- tante novo terão sido a massa que viria a moldar a determinação do jovem Altino para a escrita, para contar histórias. O árduo percurso de autodidacta que fez questão de experienciar contou com a preciosa ajuda do Dr. Egídio Guimarães, ao tempo director da Biblioteca Pública de Braga, e essa terá sido a ferramenta que faltava para metamorfosear o candidato no escritor que viria a ser. Curiosamente, ao reconhecer a qualidade da escrita do Altino, foi mes- mo aquele intelectual quem incentivou a publicação do livro “Sardinhas e Lua”, que reuniu as primeiras histórias daquele que mais tarde viria a ser editado como a sua obra mais conhecida, “Os Putos”. Apesar do enorme sucesso do seu principal livro – que registou mais de três dezenas de reedições e foi adaptado ao teatro, à televisão e à banda dese- nhada -, seria extremamente injusto reduzir a produção literária de Altino do Tojal a esta obra. Ela tem enorme relevância, até do ponto de vista autobio-
  • 20. 19 gráfico, como o próprio autor teve oportunidade de escrever na contracapa da 29.ª edição revista e aumentada: “Há n’Os Putos tanto de mim que, se quisesse autobiografar-me, o primeiro dos seus 153 contos, escrito quando moço, era um excelente começo, enquanto o último, escrito já na velhice, seria o epílogo perfeito.” Mas o escritor deixou-nos outras obras de enorme valia e que justifi- cam a sua releitura, como serão os casos do romance “O Oráculo de Jamais” (1979), das “Histórias de Macau” (1987) ou ainda de “Ruínas e Gente” (1991), estes últimos produtos de uma estadia no Oriente e de uma viagem à Grécia e ao Egipto, respectivamente. Nesta breve e singela homenagem, faço questão de evocar não apenas o grande escritor Altino mas também a sua enorme capacidade de observação da espécie humana nas suas múltiplas dimensões. E faço-o porque acredito que foi esse olhar, essa curiosidade sem fim, bem patentes na sua prosa, que o elevaram ao estatuto de contador de histórias de excelência. Altino, jovem (ao centro, no alto), com a família
  • 21. 20
  • 22. 21 O meu Altino do Tojal José Abílio Coelho O Altino e eu fomos amigos durante mais de um quarto de século. Duran- te este tempo visitei-o várias vezes no seu pequeno apartamento de Lisboa e ele passou boas temporadas no meu, na Póvoa de Lanhoso, sempre metido naquela sua roupagem minhota de pessoa arrumada e educada ao extremo. Diziam que tinha fúrias, mau feitio, que era agreste quando queria, mas eu, no que a mim respeitou, nunca lhe conheci esses defeitos. Sabia, sim, que era um homem de sombras, com as quais lutava, como Dom Quixote contra os moinhos de vento. Mas, essas, respeitei-lhas sempre como fardo que ele queria carregar sozinho. De tempos a tempos repetíamos sardinhadas num pequeno restaurante que ele frequentava a dois passos da sua casa lisboeta, e fomos vezes sem conta degustar a vitela assada ou o cabrito à minhota, sempre acompanhados do bom tinto da terra, à Casa Gomes, perto da minha. E, se para aí estivesse, era um regalo vê-lo comer. Quando o tempo crescia em horas e em vontades passeávamos pela Braga da sua meninice, pela rua D. Pedro V ou pela zona da estação de caminhos de ferro, onde habitara com o avô António José e a criada deste, mas calcor- reávamos também a minha Póvoa e o seu termo, experimentando subir aos montes de Sobradelo da Goma, onde o Altino-criança rompera fundilhos e joelhos, ou os caminhos estreitos de Taíde, Travassos e Esperança, que lhe recordavam tempos em que o Altino-moço ainda procurava um percurso para a vida. Em Sobradelo, dizia-me: “Aqui morava a Se Cunça e o Felisberto…”. E, na Esperança: “Ali, naquela tasca, teve lugar uma história fantástica da mi-
  • 23. 22 nha mocidade… sabe aqueles contos que prometi escrever para a sua edição de ‘Os Putos’? Num deles vou contar esse episódio…”. A Taíde fomos mais que uma vez visitar a sepultura da tia Emília, perante a qual o Altino baixava a cabeça como se estivesse em presença do Santíssimo Sacramento. Foi a tia Emília, dizia-o frequentemente e escreveu-o no conto “Que Pena!...”, que o influenciou a ser escritor. “Era bonita, educada, gentil… foi a maior amiga que eu tive na vida”. Em Braga, por sua escolha, fomos um dia almoçar a uma tasquinha en- costada ao Arco da Porta Nova. Era o restaurantezinho onde ele costumava comer quando, em jovenzito, trabalhou na Biblioteca Pública de Braga. Ali, enquanto nos batíamos com um bacalhau à Narcisa em companhia do jorna- lista Rui Serapicos e da professora Lurdes Silva, recordámos velhos amigos da sua cidade de outrora e especialmente o seu avô, o professor de primeiras letras António José da Costa, e o seu especial protetor, o antigo diretor da biblioteca pública, Dr. Egídio Guimarães. Numa outra passagem pelo mesmo local, anos depois, constatámos que a velha casa de pasto tinha sido trans- formada numa agência funerária. Altino, que esperava ver ainda ali o “seu” velho restaurante, parou no meio da rua, apontou à montra com flores e mo- tivos fúnebres o dedo vigoroso e, naquele seu jeito irónico, disse: - A tasca morreu, mas o cangalheiro veio para a sepultar e ficou… Em minha casa ficávamos acordados ao longo de madrugadas compridas. De cachimbo na mão, do qual só de longe a longe puxava uma fumaça que, libertada pelo canto da boca, ficava a espreguiçar-se no espaço que ocupáva- mos, revelava-me coisas da sua vida, quase sempre envolvidas nas sombras a que já aludi. Falava pausadamente, pronunciando cada palavra sílaba a síla- ba, para, de vez em quando, cofiando a perinha aparada com que decorava o queixo, pedir desculpas com aqueles seus modos educados e dizer: - Não quero mais falar nisso… Mas não era verdade. No dia seguinte, na nossa tertúlia noturna, sentá- vamos-mos na sala e ele continuava a contar. “Criança pequena, quando eu andava a passear por Braga com o meu avô, havia um cavalheiro que, ali entre
  • 24. 23 Com José Abílio Coelho, acima, numa viagem ao Alentejo e, abaixo, na Póvoa de Lanhoso, em 2017
  • 25. 24 a arcada e a brasileira, me fixava de longe com um olhar que eu não entendia, parecendo que me queria falar com os seus olhos grandes e vivos… Mas meu avô, quando o via, pegava-me pela mão e levava-me para casa, a galope… Só mais tarde vim a saber que aquele homem era o meu pai…”. Altino desfiava os seus mistérios. E eu sentia que, não querendo contar, precisava de o fazer. Falava da tia Emília, do avô António, da filha Alice, da mãe, dos irmãos, do Dr. Egídio Guimarães, do pintor Jerónimo… - gente da sua galeria de seres queridos e que também lhe fornecia matéria com que construía algumas das personagens das suas histórias. Por vezes a amizade requeria silêncios à distância. Ficávamos meses sem trocar uma carta ou um telefonema mas, por iniciativa minha ou dele, lá sur- gia um motivo que nos levava a reatar… As semanas seguintes eram de con- versas várias e repetidas, por escrito ou por telefone, e eu sentia que muitos dos telefonemas eram para o Altino como que uma ida ao confessionário. Quando surgia oportunidade, combinávamos um encontro. E tudo voltava a ser como era antes. No fundo, eu respeitava os seus espaços e ele não pedia mais que isso. Talvez fosse essa a razão pela qual nunca nos zangamos. Mas que o Altino cultivava as suas desavenças, as suas divergências, os seus códigos de honra e os seus espaços de afastamento, era inegável. Isso mesmo ouvi, por mais de uma vez, a amigos meus que tinham sido amigos dele. Lembro-me bem, aliás, que, certa altura, chegados nessa manhã a Lis- boa vindos da participação, no dia anterior, na semana da leitura de uma escola de Moura, subíamos, eu e ele, a rua do Carmo em direção ao Bairro Alto, onde iríamos visitar uns alfarrabistas seus amigos à procura de bons li- vros baratos. Em sentido contrário vinham dois escritores de renome, nossos conhecidos, em amena cavaqueira. Vendo-nos, pararam e cumprimentaram- -me educadamente, ao que retribuí; mas quando dei por ele, o Altino estava já do outro lado da rua a olhar, sereno e concentrado, para as montras da livraria Sá da Costa. Depois de, algo constrangido pela situação, me ter des- pedido dos amigos e atravessado a artéria para me encontrar com ele, nem me deixou abrir a boca, atirando: “Você ainda se dá com gente dessa espécie?”
  • 26. 25 Altino do Tojal com a filha, Alice
  • 27. 26 “Claro que dou, nunca me fizeram mal...”, argumentei. Seguimos, então, em franca conversa a caminho das lojas de livros usados, sem voltarmos a trocar qualquer palavra sobre a sua desavença com os dois colegas de letras. Era assim, respeitando cada um o espaço do outro que, muitas vezes, tendo opi- niões diferentes, mantínhamos a nossa amizade. Em 2001 fiz-lhe uma edição do seu livro mais conhecido, para o qual o próprio escolheu uma designação que me encheu de brios: “Os melhores con- tos de Os Putos”, seguido do subtítulo “e quatro inéditos”. Claro que quando é o contista a escolher aqueles que considera os “melhores contos” da sua obra, quem edita (e eu era editor amador, de ocasião, apenas interessado em trazer a público alguns livros de autores ligados à minha terra, sem visar qualquer lucro com a edição…) fica um tudo-nada vaidoso. Assim aconteceu comigo, pois ainda hoje tenho o maior orgulho de dizer que fiz a 27ª edição de “Os Putos”. Foi, aliás, nas andanças da divulgação deste livro que Altino do Tojal me apresentou um dos homens mais humildes que conheci, o seu amigo Urbano Tavares Rodrigues, escritor e professor catedrático de Letras na uni- versidade de Lisboa que, mais tarde, viria a escrever e a dar-me um conto seu, original, para integrar outra edição minha: “Os Dias do Pai”. Aí por 2015 o Altino voltou a desaparecer do meu radar. Foi a Emília, sua irmã, que tempos depois me deu nota de que o autor de “Histórias de Macau” estava bastante doente. Alguém a tinha avisado de Lisboa. Morava, então, sozinho na rua Bernardo Lima, perto da Sociedade Portuguesa de Autores, e estava a viver sérios problemas de saúde. Tinha, inclusive, sido levado, con- tra sua vontade, para o Júlio de Matos, de onde trouxe muitas queixas da unidade de saúde e do tratamento que ali lhe aplicaram. Convidou-o então a Emília para se acantonar na sua casa, em Sobradelo da Goma, onde o Altino iniciou uma verdadeira guerra contra o fim da vida. Foi nesse tempo que mantivemos muitas e longas conversas. Num desses encontros, em que esteve presente a Emília, mostrou vontade de me fazer chegar alguns materiais para que um dia eu lhe pudesse dedicar uma bre- ve biografia. Tinha, até, escolhido um modelo - o do meu livrinho sobre o
  • 28. 27 Em Savaterra del Miño (23.05.1982) e, em baixo, a rua com o seu nome em Beirã (Marvão), sobre a qual escreveu o conto Viagem à minha rua
  • 29. 28 poeta João Augusto Bastos. Recomendou-me fontes, entregou-me alguma informação, escolheu eventuais amigos e textos críticos que deveria ouvir, ler e citar, disse-me que iria juntar outros documentos para me entregar mais tarde. Estes últimos ainda não me chegaram às mãos, mas o que possuo che- gará e sobejará para, no futuro, se tiver saúde, escrever tal biografia. Se por qualquer imponderável não puder, terei o cuidado de deixar o que possuo a alguém que lhe dê aproveitamento válido e saiba respeitar o biografado. Entre dias melhores e piores, Altino do Tojal foi, mais tarde, acolhido num lar, em Brunhais, onde passou os seus últimos tempos, sempre acari- nhado pelos irmãos, e onde viria a falecer em 15 de julho de 2018. Viveu os seus derradeiros anos num quase anonimato. Mas todos os grandes jornais do país lhe noticiaram a morte, rendendo-lhe palavras de me- recido louvor. No seu velório contou com uma coroa de flores enviada pelo presidente da República que, ausente do país em viagem oficial, se fez repre- sentar no funeral por um capitão-de-fragata. Outras entidades, como a câ- mara da cidade dos arcebispos, onde nasceu, dedicaram-lhe pesado silêncio. Faria hoje (26 de julho de 2019) oitenta anos esse escritor maior que tan- tos apreciaram pelas suas histórias. Após a justa presença de um represen- tante da presidência da República no seu funeral, há pouco mais de um ano, voltou Tojal e a ser o Altino-humilde, e quase só, que palmilhou décadas de vida em caminhos sem candeia que lhe alumiasse o trajeto. Hoje, em sua memória, reuniram-se alguns poucos amigos e familiares num restaurante da Póvoa de Lanhoso, entre duas e três dezenas de pessoas que viveram ao longo das décadas as suas histórias reais ou ficcionadas. Mas o Altino, o que nunca gostou de festas nem de luzes, o que sempre se afastou dos movimen- tos intelectuais, o que só era amigo do amigo e não do amigo-conveniente, estará agora a ver-nos desde o lugar onde se encontra, cofiando ainda a peri- nha que lhe enfeita o queixo, talvez tirando umas fumaças do seu cachimbo, para, apontando o dedo esguio à mesa onde nos encontrámos, se rir naquela sua gargalhada chocalheira e dizer: “Olha que grupo de pândegos ali está!...”
  • 30. 29 Uma hora com Tojal Rui Serapicos Guardo, com dedicatória autografada e datada pelo autor, um livro de Altino do Tojal. Conversei com ele numa taberna em Braga, junto ao Arco da Porta Nova, no Verão de 2002. Caía a tarde e a conversa, para a qual fui con- vidado pelo José Abílio Coelho, não chegou a durar uma hora. Eu tinha de ser rápido, era para o dia seguinte no Correio do Minho, um texto de abertura de página sobre a publicação, pela Editorial Ave Rara, de “Os melhores contos de ‘Os Putos’ e quatro inéditos”. Horas antes, aceitara o convite, sem estar preparado. Acontece aos jorna- listas. Fui ouvi-lo, com o descaramento de uma tábua rasa quanto à sua obra literária. Já me apresentei assim a Maria Ondina Braga, que me revelou ter sido no jornal onde escrevo que publicou o seu primeiro texto. E a Maria do Sameiro Barroso, que me suscitou os românticos alemães e confessou a sua perturbação de menina “com o nome de uma nossa senhora”. Ou a Mário Cláudio, que me contou ter passado a Páscoa em Braga, em procissões de Se- mana Santa, como anjinho, e a Vergílio Alberto Vieira, que me testemunhou traumas de guerra. Também me ofereceram livros autografados. Do homem, cordial e reservado, lembro o desencantamento. Trabalhara na biblioteca pública, perto da taberna onde estávamos; fora jornalista no Porto e em Lisboa. Não aprofundou a passagem nas redacções (vim depois a saber que tinha sido despedido de um jornal por causa de uma publicação literária). Disse-me ter passado a escrever trabalhos jornalísticos sem os as- sinar. Não recordo se disse ter seguido tal opção para não confundir os seus textos literários com os jornalísticos ou se, hipótese que formulo agora e não
  • 32. 31 naquela tarde, deixou de assinar textos em jornais porque com eles não se identificaria enquanto autor. Forjei a convicção de que, mais ainda do que ter sido despedido pela pu- blicação de contos que não agradaram aos chefes, pode ter sido a percepção crescente da perda de condições para escrever livremente que levou o autor a reorientar esforços, energia e talento, para a literatura, a sua praia. Sem códigos que normalizem os que escrevem nos jornais, um poema, um conto ou uma novela podem ir ao essencial da condição humana. Penso hoje em Tojal como um homem que nos deixou dos seus lugares e do seu tempo, es- pecialmente as décadas de 1960, 1970 e 1980, um testemunho singular, na senda de Soeiro Pereira Gomes e da sua famosa epígrafe “filhos dos homens que nunca foram meninos”. Em “Os putos” o escritor leva-nos a olhar infâncias. Por vezes, a ambien- tes de miséria, como o bordel de Mina, onde resgata da prostituição uma jovem virgem que procurava dinheiro para casar. “Chegue-se Silvestre, che- gue-se! Está ali no quarto. Nunca tive carne assim…”. Ou como a peixeira que vende o próprio corpo, mãe de um menino que partilha a refeição com os ga- tos de Sardinhas e Lua. “Não tardariam os homens grandes. O menino sabia; e olhava medrosamente a porta da rua”. Desta sua obra inicial encontrei uma primeira edição nas prateleiras de um familiar, da geração de Tojal, que com ele conviveu nos finais dos anos sessenta, em Braga. “No Nosso Café, conver- sávamos, ele era muito mais à frente do que qualquer comum naquele tempo, mas era preciso cuidado com os pides...”, conta-me, enquanto o ouço, como no búzio a onda de Altino, que continua na sua praia a revolver as ondas e a bater as rochas, fazendo delas areias.
  • 33. 32
  • 34. 33 Altino do Tojal Tó de Porto d’Ave É dividido entre a responsabilidade que esta missão pesa e o privilégio de ver o meu nome gravado nesta homenagem a Altino do Tojal, que escrevo estas linhas. Logo eu, que vivi mais de quatro décadas quase sem conhecer a sua obra. Duas a três horas, até há alguns meses, foi quanto tempo eu tinha desfruído nas páginas que escreveu. A primeira vez que li Altino do Tojal, foi uma história servida num tom muito engraçado, onde nos desperta para a facilidade com que a inversão da verdade de um acontecimento pode nascer e a rapidez com que se transforma num boato. Está contada na primeira pessoa, desenrola-se em lugares que conheço bem e pode ser encontrada em “Contos do Minho”, um livro editado há uns bons vinte anos, que carrega nomes de outros autores também mere- cedores da nossa reverência. Foi também por essa altura que li “O Oráculo de Jamais”, oferecido pelo escritor José Abílio Coelho, amigo do autor e, como percebi, grande admira- dor da sua obra. Isto é tudo que eu conhecia de Altino do Tojal até ao dia em que deixou este lado da vida, sendo certo que viverá para sempre nas páginas que nos deixou. No dia da notícia da sua partida, José Abílio Coelho ofereceu-me mais um livro, com o título: “A Semente das Palavras”, um pequeno volume que guardo como um tesouro, que o é. Trata-se de mais uma coletânea onde Al- tino do Tojal participa com o seu: “Sardinhas e Lua”. Abstenho-me de em- pregar qualquer adjetivo para este conto, pois temo que aqueles que lerem estas linhas sem o conhecerem, me apelidem de exagerado. Convido-os a ler
  • 35. 34 aquela história do menino que partilha a sua sardinha com um gato, um cão e a lua, e, tal como eu, talvez fiquem outros tantos minutos a olhar para essa mesma lua que, gorda e a sorrir, recusa a sua parte da sardinha, deixando-a para o menino comer enquanto, sentado na soleira da porta, aguarda a mãe, uma mãe carinhosa que tem que o deixar ali sozinho, enquanto atende os “clientes”! Ainda o cheiro daquela sardinha pairava na minha memória, chegou-me às mãos a 28ª edição de “Os Putos”. Que livro grande, pensei. E é, é enor- me! Cerca de uma dúzia daqueles contos bastaram para perceber que Altino do Tojal era enorme. Durante vários dias, aquele livro acompanhou-me para todo lado e não havia hora má para o abrir. Importa dizer que a obra literária de Altino do Tojal está muito longe de se resumir a “Os Putos”, e não tenho resistido à curiosidade de espreitar outros livros seus. Ainda recentemente encontrei, nas prateleiras de um al- farrabista, o “Oráculo de Jamais”, “Ruínas e Gente” e “Jogos de Luz e Outros Natais”. Como já tinha lido o “Oráculo de Jamais”, trouxe apenas os outros dois. No entanto, confesso nenhum se aproximou sequer, em sedução, a “Os Putos”, esse livro delicioso que, há poucas semanas, a 29ª edição, a mais com- pleta de todas, um calhamaço com quase oitocentas páginas, me foi oferecido pela Emília, irmã do autor. Li, alguns reli, mais umas largas dezenas de contos onde o autor, com palavras de todos os dias, simples sem perderem brilho, nos mostra que exis- tem tantos episódios do dia a dia que merecem ser contemplados e partilha- dos. Para isso são necessárias duas características: olhos capazes de alcançar a vastidão das coisas que parecem vulgares, e génio para as pintar com pala- vras de forma a torná-las deliciosas para quem ler. Altino do Tojal tinha essas duas características e muito mais. Por isso, cada conto, muitos deles com apenas duas ou três páginas, é enorme porque diz muito, mas é sobretudo belo e deixa obsorto quem lê. A corda que substitui os suspensórios das calças esfarrapadas, três ta- manhos acima, que vestem um rapazito sujo. Quem nunca se cruzou com
  • 36. 35 Acima, o pequeno Altino com o avô, a mãe e as tias Em baixo, aos 40 e aos 78 anos de idade
  • 37. 36 este rapazito sem ver a poesia que Altino do Tojal viu? A manha da criança, em “Solidão”, que procura companhia para falar ou brincar, e mente sem se preocupar que aquele desconhecido perca o último autocarro. A esperteza dos dois miúdos, ou putos, “Dupla Com Futuro!”, brincou o autor a dar este título a este conto, onde dois larápios de palmo e meio mas já com a lição bem aprendida, pregam uma mentira a uma mulher, dizendo-lhe que a sua cobra de estimação entrou pela janela da sua casa, para ela sair sobressaltada, en- quanto um deles, com a desculpa que vai apanhar o bicho, entrar para roubar à vontade, ficando o outro a entretê-la, ou assustá-la, explicando-lhe com minuciosidade o perigo que ali pode estar! Não me sai da cabeça aquele menino de “Obséquio”, que conto delicioso este, que não tinha vinte e cinco tostões para ir no elétrico até ao hospital, e pede, por “obséquio”, um bilhete de dez tostões e percorreria o resto do ca- minho a pé. O cobrador diz-lhe que não há bilhetes abaixo de quinze tostões e manda-o sair, gabando-se aos outros passageiros: “Eu conheço bem esta máfia”! Mas aquela criança só queria ir visitar alguém ao hospital. Também “O Custódio”, que passou a vida a carregar sacos de carvão e era olhado apenas como carregador de sacos de carvão, como se além disso não fosse mais nada. No entanto tinha olhos de poeta, amava livros e era atraí- do pelas montras das livrarias. E claro, o sorriso do menino de “Sardinhas e Lua”, que, depois de ler em “A Semente das Palavras”, reencontrei em “Os Putos”. Uma particularidade nestes contos, é o facto do autor não julgar as suas personagens. A responsabilidade de apontar o dedo, deixa-a para quem lê. A traquinice é até elogiada, mesmo quando o alvo, ou a vítima, é ele próprio, como naquela história, mais uma contada na primeira pessoa, em que um menino faz troça dele por não vender nenhum livro numa feira. Achei tanta piada àquele miúdo que dei comigo a desfrutar da irritação do próprio Altino do Tojal. Vi-o várias vezes, mas apenas em uma ocasião estive em contacto com Altino do Tojal. Foi na esplanada de um café em Sobradelo da Goma, onde
  • 38. 37 ele estava com a Emília, sua irmã, e outros familiares. Já lá vão uns qua- tro ou cinco anos, mas o seu semblante ficou gravado na minha memória. Movimentos já muito lentos, mas aquele olhar não era como o dos comuns mortais. Tinha os olhos já cansados, mas notava-se que eram olhos que ti- nham visto muito e tudo continuava ali guardado. Cumprimentei-o, fi-lo com a admiração de quem sabe que está perante um homem respeitado no mundo da arte e da vida. Mas não é a mesma coisa quando somos nós próprios que ficamos fascinados com a obra realizada por alguém. E este fascínio que hoje nutro por este autor, deve-se muito em particular a “Os Putos”, e quando eu li “Os Putos”, ele já não estava cá para lhe demonstrar o meu próprio reco- nhecimento. Muitos destes contos foram escritos bem perto de mim. Estavam por aí, em prateleiras de livrarias, bibliotecas e alfarrabistas onde gosto de me nutrir, e eu, longe de imaginar que aquelas páginas eram a delícia que hoje posso testemunhar, fui adiando. E se eu sabia do reconhecimento que lhe era atribuído, hoje sei que ele fica muito aquém do que lhe é devido. Altino do Tojal irá, certamente, perdurar na história da literatura, muito em particular quando o tema for o conto, onde o seu nome será escutado ao lado de outros baluartes deste estilo literário. No entanto, atrevo-me a dizer que a sua obra prima, “Os Putos”, será um título capaz de se sobrelevar ao seu autor. Acredito até que algumas destas histórias, irão ultrapassar o nome do autor e o título do livro e, como tantas outras que conhecemos, que se contam de geração em geração sem se mencionar ou, por vezes, sem mesmo se saber a sua origem, também alguns “Putos” irão seguir a sua vida fora das páginas deste livro delicioso que Altino do Tojal nos deixou.
  • 39. 38
  • 40. 39 Os Putos Urbano Tavares Rodrigues Uma afirmação de talento, de autenticidade, de força criadora, com o ím- peto, a ironia, a aliança da juventude e maturidade deste segundo livro de Altino do Tojal é entre nós coisa rara e como tal cumpre saudar o aconteci- mento. É possível, é mesmo provável que outros jovens ricos de vivências e com palavras só suas para dizer, conservem nas gavetas, obras inéditas que o mercado do livro, por desconfiança, não aceita, já que não existe estímulo nem selecção nesse domínio em que a lei única (ou quase) é jogar pelo seguro. Enfim, Altino rompeu a barreira. Depois de “Sardinhas e Lua”, propõe-nos esta mão cheia de histórias incómodas, vividas ou vistas, não enfatizadas, mas trágicas em sua simpleza rude, sabiamente rude. Os heróis-mártires, são mesmo os putos, as crianças da lixeira, os meninos e meninas das aldeias de- sertas de Trás-os-Montes, encolhidas, trémulas, no estrume e na urina como o petiz metido no cortelho da porca “de joelhos perante um tojo”. Há o nada e o sonho, há o regresso esperado do pai que virá de França. “Marcha, Gabiel”, é um conto amargo de crianças grandes, com uma marginália filosófica. Altino do Tojal tem uma escrita pessoal amassada com o linguajar nortenho popular, regada pelo fluir da sua veia pícara e com pe- daços de sol a luzirem entre tristezas e raivas que a palavra puxa, revela, exacerba. Um escritor hibrido, mas forte, com vocação de rapsodo e costela de letrado. Dá-nos agora este belo livro, duro e comovente, verdadeiro e vertical, que é o anúncio - assim o esperamos - de uma carreira de romancista. Tem a edição que é da Prelo, uma linda capa, cheia de riso e de esperança, temperos da mágoa que no livro também se encontram. In O Século, 1973
  • 41. 40 CÓLOFON Por cólofon designavam os gregos “cume”, “topo” ou “final”. Na idade média o cólofon era, tal como as palavras “finis” ou “Laus Deos”, utilizado para nota ou informação de fecho de um manuscrito ou livro impresso, dele constando, neste último caso e entre outra eventual informação, o nome do editor ou impressor e a data de impressão da obra. Era um termo de que o Altino gostava muito. Usamos, pois, este cólofon para aqui deixarmos a nota final desta publicação. Foi este caderno feito na empresa Graficamares, Lda., entre 23 e 25 de julho de 2019, tendo sido impressos apenas 120 exemplares, destinados a ofertas, aos autores dos textos e das ilustrações e aos familiares e amigos presentes num jantar, que teve lugar no Restaurante Dulcídio, em Porto d’Ave, Taíde, concelho da Póvoa de Lanhoso, com o qual se comemorou o 80º aniversário do nascimento do autor de “Os Putos”, falecido em 15 de julho de 2018. Apenas parte dos textos neste caderno contidos foram escritos propositadamente para este suporte, tendo os outros, aqui devidamente assinalados e datados, sido publicados em jornais ao longo dos últimos anos. São, todos eles, testemunhos da maestria de Altino do Tojal en- quanto autor. Também as ilustrações e fotografias foram colhidas de arquivos vários, muitas delas sem identificação de autor. Os livros do escritor nascido em Braga em 26 de julho de 1939, e sobretudo a coletânea “Os Putos”, estão destinados à imortalidade. Por isso, esta breve publicação é apenas a candeia que vai à frente, simples quanto baste - como, aliás, o autor de “Sardinhas e Lua” gostaria que fosse - abrindo porém caminhos francos a outros textos biográficos que certamente irão apa- recer nos próximos anos ou décadas. No lugar destacado, onde quer que se encontre, Altino do Tojal, ao consultar este caderno, há-de soltar a sua sonora gargalhada e, apontado-nos o dedo dardejante, dizer com a maior das amizades: “Que pândegos!” Obrigado, Altino, por ter sido nosso amigo e por nos ter dado a ler literatura da melhor. Depósito Legal: 459298/19