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A NATUREZA E A TAREFA DA IGREJA *


                                            INTRODUÇÃO


       O ser humano é um ser social. Necessita da companhia de outras pessoas. Ninguém é tão
completo a ponto de poder dispensar o contato com outros ou prescindir da ajuda deles. Exemplo mais
flagrante disso é a interdependência de homem e mulher. Conforme a Bíblia, somente juntos eles formam
um todo e constituem “uma só carne” (Gn 2.24). Mas há outros exemplos: a família, o clube, o sindicato,
o partido político, a nação são outros paradigmas de organização social que mostram a necessidade
humana de convivência. Também a comunidade cristã, a igreja se insere nesse universo social. Primeiro
tópico da disciplina vai enfocar justamente o tema da eclesiologia. O tema será abordado em perspectiva
bíblica, mas com os olhos voltados igualmente para a realidade eclesiológica em nosso país.
Perguntaremos pela natureza da igreja, por sua razão de ser, pelos traços que a distinguem de outras
formas de convivência, pela sua tarefa em nosso mundo.
       O tema se justifica por si mesmo. Lutero dizia em seu tempo: “Graças a Deus, uma criança de
sete anos sabe o que é a igreja, a saber, os santos crentes e os cordeirinhos que ouvem a voz de seu
pastor”. Hoje já não temos tanta certeza assim. Quando se fala em igreja, algumas pessoas pensam numa
construção com torre e sinos ou em organizações liderada por pastores ou bispos. Em termos práticos se
enxerga nelas entidades religiosas que se caracterizam por acirrada disputa de clientela. Para outros, ela
se tornou um fenômeno suspeito, com um discurso antiquado, que acumulou pecados ao longo de sua
história, tornando-se, não raro, cúmplice de crimes. Outros, ainda, enxergam na igreja uma organização
que explora a boa fé e a carência das pessoas, “mercadejando a palavra de Deus”, para usar palavras do
apóstolo Paulo (2 Co 2.17), e transformando-a em negócio lucrativo.
       Por outro lado, há sinais evidentes de que a igreja também merece respeito. Solidariedade com os
empobrecidos, doentes e injustiçados, consolo para os aflitos, oposição aos males da época, compromisso
com a ética e a verdade – onde se pode encontrar isso senão na igreja de Jesus Cristo? No período das
ditaduras na América Latina, muitos cristãos sofreram perseguição em fidelidade a Deus, ao preço do
sofrimento, da renúncia e até da vida. A igreja foi e continua sendo defensora da justiça. Não se dobrou
diante do arbítrio. Manteve acesa a chama da fé, da esperança e do amor. Sem esta igreja, corajosa e
cumpridora de seu mandato, provavelmente a situação de nosso continente estaria muito pior.
        Ainda assim, o quadro é confuso. Assusta o número de “cristãos” indiferentes ou distantes do
evangelho. Observa-se a estagnação de igrejas tradicionais, sinal evidente de que necessitam repensar
suas ênfases e formas de atuação. Chama a atenção, igualmente, a proliferação e o crescimento de igrejas
novas. Junto com sinais legítimos de renovação, porém, preocupa a constrangedora concorrência
existente entre elas, fruto das ambições pessoais de suas lideranças. Afinal, o que é igreja, quais os sinais
que identificam a igreja de Jesus Cristo e qual é o seu mandato?


                              1. IGREJA, COMUNIDADE, DENOMINAÇÃO


       Procuremos clarear, de início, alguns conceitos. Costumamos distinguir atualmente entre
“comunidade” e “igreja”: enquanto a primeira é a congregação local, a segunda designa um conjunto de
comunidades. A distinção faz sentido, pois é necessário diferenciar o organismo das células que o
compõem. De acordo com o Novo Testamento, porém, igreja e comunidade são sinônimos. A diferença é
apenas de ordem etimológica: a palavra igreja provém do grego (evkklhsi,a/ekklesia) e designa pessoas
convocadas para uma assembléia. O termo comunidade provém do latim e designa um grupo que se une
por interesses comuns.
       Ainda assim, o Novo Testamento não nivela a dimensão local e universal da comunidade de Jesus
Cristo. O apóstolo Paulo escreve à igreja que está em Corinto (1 Co 1.2) ou às igrejas da Galácia (Gl
1.2). Trata-se de comunidades locais. Mas todas pertencem à mesma igreja. Por isso não elas podem
isolar-se uma das outras, mas devem entender-se como parte do mesmo corpo (Cl 1.18; Ef 1.22-23). É
com base nisso que Paulo estimula a solidariedade entre elas, exortando as comunidades gentílicas a
levantar uma coleta em favor das comunidades da Judéia, em gratidão pelos bens espirituais recebidos
através delas (Rm 15.25-33). Ao mesmo tempo, a formulação de Paulo deixa entrever que a igreja não é
simplesmente a soma das comunidades. Ao contrário: cada comunidade local, seja em Corinto, Roma ou
na Galácia, é reflexo e concretização peculiar da única igreja de Deus no mundo. Assim como em cada
célula está contido o mapa cromossômico do corpo, assim também na comunidade: em cada uma delas,
desde que fiel ao evangelho, está contida integralmente a igreja de Deus.
       Isso não impede que as comunidades locais se apresentem com variedade de formas e coloridos
culturais. A diferença entre elas é legítima. Já nos primeiros tempos conviviam cristãos de fala hebraica e
grega, portanto, oriundos de diferentes ambientes (At 6.1). Divergiam as tradições, os costumes, as
etnias. Nem sempre a pluralidade cabia numa só organização comunitária. A igreja de Jesus Cristo não
pode pretender a uniformidade. Ela precisa adequar-se ao contexto em que vive, articular o evangelho a
partir da respectiva cultura, falar a linguagem do povo. Destaque-se que a comunidade cristã não está
atrelada a nenhuma cultura específica (cf. 1 Co 9.19-20). Ela pode vestir os “trajes típicos” da respectiva
localidade e região. Ela deve abrir-se para a diversidade de culturas. Ela congrega gente concreta, de
todas as nações (Mt 28.19).
       Algo semelhante vale para as tradições confessionais e denominacionais. Também elas tornam
diferentes as comunidades, imprimindo-lhes marcas específicas. Desde o início isso foi assim. A piedade
judaica e helenística não se expressava exatamente nos mesmos moldes. Assim também hoje. Existem
comunidades católicas, luteranas, presbiterianas, anglicanas, metodistas, batistas, pentecostais e outras
tantas. Elas diferem em assuntos litúrgicos, de doutrina e de práxis. Divergem em suas eclesiologias.
Também isso é legítimo, embora somente até certo ponto, pois essa variedade precisa caber num
denominador comum. Caso contrário, seria impossível evitar o caos, o conflito, a perda de identidade.
Comunidade, para ser cristã, precisa alicerçar-se em fundamento evangélico. Por isso, na variedade de
formas, é preciso poder distinguir um núcleo comum que identifica as diversas confissões como igreja de
Jesus Cristo.


                                    2. COMO NASCE A IGREJA


       Igreja nasce de modo sempre igual, ou seja, pela palavra de Deus e pelos sacramentos. Podemos
observar isto claramente em Atos 2. Propomos que você releia este texto sob esta perspectiva. Em
síntese, o texto afirma que no dia de Pentecostes, por ação do Espírito Santo que acabara de ser
derramado, Pedro se levanta e anuncia que Jesus de Nazaré, o crucificado que Deus levantou da morte, é
Senhor e Messias. Este testemunho criou fé, conduziu ao batismo de quase três mil pessoas, à comunhão
de mesa e à partilha dos bens, distribuídos à medida que alguém tinha necessidade. Nesse dia nasceu a
igreja de Jerusalém. Não tardou que fossem fundadas outras comunidades. Os apóstolos se lançaram à
missão, atendendo à grande comissão de Jesus. Fizeram discípulos de todas as nações e ensinaram o
evangelho (Mt 28.18-19). A igreja tem a sua origem na missão e na evangelização.
       A eclesiologia da Reforma diz a mesma coisa. Define a igreja como sendo “a congregação dos
santos na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente”
(Confissão de Augsburgo, cap. IV). Lutero insistia que a igreja é criatura do evangelho. O próprio
Espírito Santo, por palavra e Sacramento, “chama, reúne, ilumina e santifica toda a Igreja” (Catecismo
Menor). Portanto, igreja não é invenção ou fundação humana. É fruto do agir de Deus.
       Igreja também é fruto da fé das pessoas, pois a palavra de Deus, que exige e julga e, por outro
lado, também perdoa, justifica e liberta, quer ser acolhida e convertida em vivência. O mesmo vale para
os sacramentos, cujo significado de modo algum se restringe ao perdão dos pecados. O batismo é o sinal
visível de nossa vocação ao discipulado e à novidade de vida (Rm 6.1-14). É inserção na comunidade (1
Co 12.13). Na santa ceia, por sua vez, Jesus concede comunhão consigo mesmo e, simultaneamente, une
os comungantes num só corpo (1 Co 10.16-17). A ceia é, assim podemos concluir, a contínua renovação
e reconstituição da comunidade. No entanto, isso não acontece de forma mágica: o dom do sacramento
quer ser recebido pela fé. Fé significa uma resposta afirmativa ao chamado do evangelho, uma reação
agradecida à ação de Deus, confiança nas promessas divinas. Esta fé é fundamental, mas possível
somente porque Deus agiu e falou primeiro. A igreja, embora constituída por pessoas que crêem, tem
Cristo por fundamento (1 Co 3.11). Sem o evangelho, ela não existe. Nasce da misericórdia de Deus,
bem como da fé que lhe responde.


                                         3. SINAIS DA IGREJA


       Somente Deus sabe quem realmente crê. O ser humano é incapaz de identificar, sem margem de
erro, o lobo disfarçado de ovelha (cf. Mt 7.15). Por isso, a verdadeira igreja está oculta. Como não se
pode separar já agora o joio do trigo (Mt 13.24-30), a igreja antiga incluiu a igreja entre os objetos de fé:
“Creio... na santa igreja cristã”. Aliás, esta fé na igreja não se compara à fé no Espírito Santo, que
introduz o terceiro artigo do Credo Apostólico. Pois a confiança integral nós a depositamos não na igreja,
e sim, no Deus triúno. A igreja não possui poder salvador por si mesma. Por isso, na verdade, não cremos
na igreja, e sim, a igreja. É este o sentido do Credo, ou seja: nós cremos que a comunhão dos santos e
verdadeiramente crentes existe, em meio e através de todas as denominações. A santa igreja cristã não é
ilusão. É realidade, a despeito de possíveis evidências em contrário.
       Portanto, há uma diferença entre a igreja que cremos e a igreja que vemos. Nenhuma instituição
eclesiástica tem o direito de se igualar à primeira. Somente o juízo final vai revelar o verdadeiro rebanho
do bom pastor (cf. Mt 7.21; 13.30). Todavia, isto não permite o desprezo às igrejas concretas que
procuram trilhar a senda do discipulado. Pois a igreja verdadeira não existe à parte das instituições
eclesiásticas. Está oculta em meio a elas.
       Mesmo assim, existem critérios de autenticidade eclesial. Há sinais que constantemente fazem
aparecer a igreja verdadeira. A eles pertencem, com absoluta primazia, a pregação da palavra e a
celebração dos sacramentos, que outra coisa não são do que palavras visíveis. O culto da comunidade, o
estudo bíblico, a propagação do evangelho, a celebração do batismo e da santa ceia é que identificam a
igreja de Deus. Isto desde que haja preocupação com a coerência evangélica, pois a igreja que cremos é
igreja apostólica, alicerçada na tradição das primeiras testemunhas, bem como na dos profetas que as
precederam. Esta tradição original do evangelho nós a temos na Bíblia, na Sagrada Escritura, razão pela
qual ela possui função normativa na igreja. Apostólico é sinal de evangélico, e vice-versa. Está aí o
alerta: toda igreja que se diz evangélica deve zelar também pela sua apostolicidade.
        Mas há outros sinais da igreja, além destes. Lutero aponta para ofício das chaves (=a confissão
dos pecados), a convocação de servidores eclesiásticos, a oração pública de louvor e agradecimento a
Deus, a cruz imposta à comunidade em razão de sua obediência a Deus. Particularmente este último
distintivo se tornou relevante na América Latina. Pode haver uma igreja autêntica que seja insensível ao
clamor dos oprimidos? Injustiça, violência, corrupção desafiam a voz profética da igreja. Põem à prova a
fidelidade a Jesus, o profeta por excelência, o profeta crucificado (cf. Lc 1.76; Mc 8.34-38). É o que vale
em sentido geral: Jesus Cristo mesmo identifica sua igreja. Quanto mais ele aparece falando e atuando,
tanto mais a igreja corresponde à sua vocação. Pois ela é parte do reino de Cristo, a esfera em que ele é
Senhor e Mestre, e nós, os irmãos e as irmãs (Mt 23.8).


                       4. IMAGENS DA IGREJA NO NOVO TESTAMENTO


       Essa relação orgânica entre Jesus Cristo e a Igreja se evidencia através de várias imagens no Novo
Testamento. Jesus é a videira, nós os ramos, que precisam permanecer unidos a ela para produzir frutos
(Jo 15). Jesus é o bom pastor, que conhece as suas ovelhas e as chama pelo nome, que as conduz, protege
e dá a vida por elas, para que tenham vida em abundância (Jo 10). Nós somos a família de Deus,
edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Cristo Jesus a pedra angular, que faz com
que o edifício cresça como um santuário dedicado ao Senhor (Ef 2. 19-21). Jesus é o sumo-sacerdote que
se sacrificou a si mesmo pelos pecados do mundo (Hb 9.15-16). Vale destacar que a salvação que temos
em Jesus Cristo jamais deixa a pessoa na solidão. Reconcilia com Deus, sim. Dá novo ânimo e desperta a
fé. Simultaneamente, porém, remete ao próximo, a quem cumpre amar como a si mesmo. Jesus Cristo
cria comunidade como campo preferencial para a prática do amor. A pessoa cristã não é um acionista de
uma empresa em busca do lucro particular, e sim, membro de uma cooperativa a serviço da mutualidade
(Gl 6.2). Aprofundemos em seguida algumas dessas imagens, explorando o significado delas para a
natureza e a missão da igreja.
       a) Igreja como povo de Deus (lao.j qeou/ /laos theou): “Vós sois raça eleita, sacerdócio real,
nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pe 2.9). Essas palavras foram dirigidas a
comunidades cristãs do primeiro século, na Ásia Menor. Mas são válidas para a igreja em todos os
tempos. Elas dizem que a igreja reúne pessoas eleitas para ser povo de Deus, chamadas para exercer a
função sacerdotal no mundo. São nobres os seus atributos. Igreja é, em primeiro lugar, raça eleita. Essa
afirmação necessita ser corretamente compreendida, pois poderia induzir à arrogância, a atitudes elitistas,
à discriminação de outros povos. Várias vezes ao longo da história o povo de Deus efetivamente
sucumbiu a essa tentação, seja o povo da antiga ou da nova aliança. Por isso seja enfatizado que a eleição
não dá, em absoluto, razões para a vanglória. Tanto Israel quanto a igreja sabem que a sua eleição
aconteceu sem nenhum mérito de sua parte (Dt 7.6-8; 1 Co 1.26-29). A eleição não se volta contra as
nações, mas tem em vista a sua bênção, como se prefigura no chamado de Abraão para ser o pai do povo
de Israel: “...eu te abençoarei e te engrandecerei o nome. Sê te uma bênção...em ti serão benditas todas as
nações da terra”(Gn 12.2-3). Essa realidade ficou definitivamente clara em Jesus Cristo. Conforme o
testemunho de João Batista, através dele “toda a carne verá a salvação de Deus” (Lc 3.6). Através de
Jesus, Deus abriu as portas para o ingresso de todas as pessoas. O povo de Deus passa a reunir agora
“judeus e gregos” (Rm 1.16), reconciliados pela cruz (Ef 2.11-22). Possíveis diferenças entre eles já não
fazem mais sentido, porque eles se tornam um em Cristo Jesus (Gl 3.27-28).
Igreja é, além disso, sacerdócio real. Os sacerdotes designavam, na antiga aliança, um grupo
especial de pessoas que podia aproximar-se do altar para oferecer sacrifícios e mediar a relação entre
Deus e o povo. Na igreja todos podem apresentar-se diante de Deus como sacerdotes, sem a mediação de
pessoas especiais. Há apenas um mediador entre Deus e os seres humanos, e este é Cristo Jesus (1 Tm
2.5). A realeza desse sacerdócio tem em vista a dignidade e a liberdade, pois reis não têm senhores acima
de si, a não ser Deus.
       Igreja também é, finalmente, nação santa. É santa não porque fosse moralmente perfeita, e sim,
porque foi requisitada por Deus para ser sua propriedade, porque Deus perdoou as suas iniquidades e a
elegeu como parceira. O chamado à santidade é contínuo, porque Deus mesmo é santo (1 Pe 1.13-21). A
igreja continua sendo pecadora, mas é santa mesmo assim. Seus membros são santificados em Cristo (1
Co 1.2), sempre em profunda dependência da misericórdia de seu Senhor. Como santa, a igreja pertence
a Deus. Não é do mundo, embora viva nele (Jo 15.19; 17.14-15). Seu referencial é Deus acima de todas
as coisas, razão pela qual resiste (ou deveria resistir) a submeter-se ao mundo e aos interesses humanos
que o governam. A santidade da igreja é uma das principais fontes da sua liberdade.
       b) Igreja como corpo de Cristo (sw/ma Cristou/ /soma christou ): Esta é uma das imagens mais
expressivas sobre a igreja no Novo Testamento. Ela aparece em textos como Rm 12.3-8; 1 Co 12.12-31;
Ef 1.22-23; Cl 1.18-20. A igreja é vista aqui como um organismo com muitos membros. Estes membros
são e devem ser diferentes. Caso contrário, não poderiam servir-se uns aos outros. Cada qual é chamado
a cooperar para o bem comum com os dons que recebeu, renunciando à pretensão de representar o corpo
em seu todo. Membro é humilde. Sabe que precisa dos outros. Ao mesmo tempo, porém, precisa ter
consciência da sua importância, pois cada membro é necessário. Se um membro deixa de funcionar, o
corpo adoece ou outros membros são sobrecarregados. A saúde do corpo precisa da interação de seus
órgãos. Assim também a comunidade cristã.
       A igreja, porém, não é um corpo qualquer. Ela é o corpo de Cristo, ou seja, o corpo do qual Cristo
é a cabeça (Cl 1.18). Ele une os membros, comanda o que devem fazer, faz o corpo viver. A comunidade
cristã não é dona de si mesma. Está comprometida com os interesses de Jesus Cristo, com a sua vontade e
a sua causa. Essa é a diferença entre a comunidade de Jesus Cristo e outras associações humanas: a
suprema autoridade não é eleita pelo voto democrático de seus sócios, mas instituída por Deus para ser o
bom pastor de seu rebanho. Isso não anula a necessidade de liderança humana. Mas indica que ninguém
pode aproveitar-se da comunidade para fins alheios à sua vocação. Ela tem a nobre vocação de fazer
valer os direitos de Deus neste mundo.
       c) Igreja como santuário do Espírito Santo (nao.j tou/ a`gi,ou pneu,matoj/ naos tou hagiou
pneumatos): O Credo Apostólico fala da igreja no contexto da obra do Espírito Santo. É ele, o Espírito,
quem constrói o templo de Deus, a casa em que se rende culto a Deus. Conforme Lutero, o Espírito
chama, congrega, ilumina, santifica toda a cristandade na terra e em Jesus Cristo a conserva na
verdadeira e única fé. A igreja cristã tem sua origem e seu norte na ação do Espírito Santo. Ela é fruto de
Pentecoste, e desde então existe onde se anuncia e vive o evangelho.
        Mas o que é o Espírito Santo? É fenômeno abstrato, difícil de imaginar. Por isso a Bíblia usa
símbolos para descrevê-lo. O principal é o vento. É este, inclusive, o significado original da palavra grega
pneu/ma/pneuma. Quando o Espírito sopra, ele põe em movimento, inspira vida (Gn 2.7), mobiliza.
Outros símbolos são o fogo (At 2.3) e a pomba (Mt 3.16). O Espírito Santo aquece os corações, cria
comunhão, fomenta a paz. Ele é, assim podemos dizer, um poder (du,namij/dynamis) que age sobre o
raciocínio das pessoas, seu sentimento, sua vontade. Não usa violência (Zc 4.6). Atua como força de
persuasão. Prefere a palavra para comunicar-se, mas não despreza gestos, sinais, ações concretas.
       Segundo o testemunho bíblico há muitos espíritos, entre eles espíritos imundos, demoníacos (Mt
10.1; Mc 1.26; 5.1). Por isso a comunidade necessita do dom de discernir os espíritos (1 Co 12.10).
Desses se distingue o Espírito de Deus e de Jesus Cristo (2 Co 3.17). Como tal tem identidade
inconfundível. Diz o Novo Testamento que o Espírito Santo é o Espírito da verdade (Jo 16.13), da vida,
do amor, da sabedoria. Ele lembra tudo o que Jesus disse (Jo 14.16), liberta da ilusão, assiste na aflição,
pois é para,klhtoj/parakletos, ou seja, chamado para estar junto àqueles que necessitam de assistência
(Jo 14.16,26; 15.26). Com certeza ele não está onde reina o ódio, o crime, a mentira. Ele é o contrário de
mal, pecado e morte, assim como o próprio Deus é. O que conflita com Jesus e Deus Pai traz outras
marcas que as do Espírito Santo.
       Em sua história, a comunidade cristã por demais vezes traiu o Espírito de Deus e seguiu outros
espíritos, supostamente mais atrativos. É longo o catálogo de seus pecados, infelizmente. Também a
igreja necessita de perdão, assim como todos os seus membros. Da mesma forma, porém, a história da
igreja registra os milagres que o Espírito Santo é capaz de operar. Ela celebra os dons que ele desperta
repetidamente e que dão dinâmica ao corpo. Nenhuma outra religião desenvolveu semelhante obra
diaconal como a cristã. Isto porque o primeiro fruto do Espírito é o amor (Gl 5.22). Também coisas
extraordinárias, a exemplo do falar em língua, não estão excluídas. Mas o Espírito não costuma projetar-
se através de sensações. Seu principal distintivo é a construção do amor, bem como da fé e da esperança
que o acompanham.
       Finalmente, é claro que o Espírito não é prisioneiro da igreja. Sopra onde quer (Jo 3.8). E, no
entanto, ele tem na comunidade de Jesus Cristo seu privilegiado “campo de trabalho”.


                                      5. A TAREFA DA IGREJA
       Como povo de Deus, corpo de Cristo, santuário do Espírito, a igreja é chamada a realizar sua
tarefa em fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo. Algumas dessas tarefas fundamentais serão destacadas
a seguir.
a) Testemunhar o evangelho: “O que temos visto e ouvido, anunciamos também a vós outros,
para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco”. Nestes termos a primeira carta de João
descreve a incumbência da igreja (1 Jo 1.3). Cabe-lhe, em termos amplos, a marturi,a/martyria, ou seja,
o testemunho de Jesus Cristo e o anúncio do evangelho, inclusive o convite para dele participar e integrar
a comunidade dos discípulos e das discípulas (Mt 28.18-19). A fé vem por pregação, ensino,
evangelização (Rm 10.17). Todas as outras tarefas, de certa forma, são expressão dessa tarefa
fundamental.
       b) Promover culto a Deus: Essa fé vai necessariamente expressar-se em culto, em liturgia
(leitourgi,a/leiturgia). Através dele a comunidade desafia o mundo, documentando que adoração
compete exclusivamente a Deus. “Ao Senhor teu Deus adorarás, e somente a ele darás culto” (Dt 6.13;
Mt 4.10). Através do culto a comunidade reafirma a validade do primeiro mandamento e aponta para a
fonte de onde lhe advém o alimento em sua jornada. O amor a Deus, do qual fala a primeira parte da
síntese da lei feita por Jesus, se expressa, sobretudo, como adoração exclusiva a ele. Deus não precisa de
nossa caridade. Ele requer, isto sim, a nossa exclusiva adoração. Culto a pessoas humanas ou coisas é
sinônimo de idolatria. Por isso, a comunidade cristã celebra culto apenas a Deus, atestando assim o amor
a ele e a gratidão pelos benefícios recebidos. Esse culto é documentação de liberdade, pois mostra que a
comunidade não possui outros senhores. Cultuar a Deus é prevenir-se contra a idolatria e contra as
dependências que os falsos deuses criam.
       c) Promover comunhão: Não menos importante é a construção da koinoni,a/koinonia, da
comunhão. Ninguém pode ser cristão vivendo no isolamento. Também não existem cristãos “virtuais”,
por mais importante que seja aproveitar os modernos meios de comunicação para testemunhar o
evangelho. Ser igreja é viver na fraternidade peculiar e na comunhão concreta dos membros de um só
corpo. “Assim já não sois estrangeiros, mas concidadãos dos santos e sois da família de Deus (Ef 2.19).
A convivência em Cristo reverte rupturas, reconcilia inimigos, ensina as pessoas a servirem umas às
outras com seus respectivos dons.
       d) Estimular a diaconia: Enquanto o culto cabe a Deus, a diakoni,a/diakonia cabe à pessoa
necessitada. O amor ao próximo, do qual fala a outra parte da síntese da lei feita por Jesus, é isto: seguir
o exemplo do bom samaritano (Lc 10.36-37). Melhor, seguir o exemplo do próprio Jesus. É ele o diácono
por excelência. Teve olhos e ouvidos para o sofrimento humano (Mt 10.35-36). Saciou famintos, curou
doentes, buscou perdidos. Deu a sua companhia a gente desprezada, perdoou pecados, restabeleceu
comunhão. Não veio para ser servido, e sim, para servir (Mc 10.45). Miséria humana nem sempre tem a
mesma cara, razão pela qual também a diaconia deverá ser multiforme. Inicia com os membros da família
da fé (Gl 6.10), pois eles são os próximos mais próximos. Mas vai além. Dirige-se a todas as pessoas,
sem acepção de raça, credo ou etnia. Às vezes, exige não assistência, mas sim, defesa de direitos
legítimos. Assim o vemos em Jesus. Ele denunciou as injustiças de seu tempo, exigindo a reformulação
de leis discriminatórias (cf. Mc 7.9-10). Diaconia quer o bem do próximo e a remoção das causas de
sofrimento.
       É privilégio da comunidade ser protagonista do amor na sociedade. Ela o é porque deve sua
existência à misericórdia de Deus. É fruto da mesma. Simultaneamente sabe que a sociedade humana
sem amor se inviabiliza. Conclama, pois, a um grande mutirão, sabendo que não lhe cabe o monopólio na
ação diaconal. Amor não é só compromisso cristão, mas humano. A sociedade toda, juntamente com suas
instituições políticas, está comprometida com a ação social. Pobreza é escândalo. Sofrimento necessita de
socorro. Comunidade cristã, ao dar o exemplo de diaconia, não pode deixar de apontar para os Lázaros
de hoje e lembrar publicamente o dever da misericórdia.


                            6. REAVIVAR UMA IGREJA A SERVIÇO DA VIDA


       No ínterim entre a vinda de Jesus à terra e a consumação de todas as coisas, cabe à igreja a tarefa
de rogar pela vinda do reino de Deus, preparar o caminho do Senhor (Is 40.3; Mt 3.3) e reunir o povo de
Deus para o testemunho de Jesus (At 1.8). Mesmo que o futuro da igreja esteja nas mãos de seu Senhor,
ela também deve encontrar meios de responder adequadamente aos desafios de sua época e de seu
ambiente. Como despertar os membros para uma participação comunitária mais ativa? Como atrair outras
pessoas de modo que as comunidades possam cumprir a sua missão?
       a) A igreja deve atender a necessidades: Seja dito, de início, que a igreja não vai atrair pessoas
se não atender a necessidades humanas. As pessoas querem ter algum proveito da igreja. Se ela cumprir
expectativas, não faltarão participação, procura, identificação e recursos. Não é difícil comprovar esta
tese. Basta observar as igrejas entre nós de maior “sucesso”. Quais as necessidades que elas atendem?
       - Em especial nas grandes metrópoles, as pessoas sofrem sob o anonimato, sob a falta de
valorização pessoal e a ausência de diretrizes claras de conduta e concepção de vida. É o que explica, ao
menos em parte, o “milagre da multiplicação” das igrejas pentecostais. Oferecem comunhão, transmitem
a seus membros a sensação de serem alguém, devolvendo-lhes, portanto, identidade humana. Além disso,
possuem um código moral muito simples e rígido, que eleva o crente acima do nível normal das pessoas.
Logicamente não são apenas as igrejas pentecostais que vão ao encontro dessas necessidades, mas fazem-
no de modo especialmente hábil.
       - Outra necessidade das pessoas de hoje é ter sucesso e vencer na vida. Isto é aproveitado por
algumas igrejas, que prometem o segredo de como se tornar uma pessoa bem sucedida em todas as
esferas da vida. Elas trabalham o sentimento de frustração tão comum em nossa época, oferecendo
receitas para a vitória e a ascensão social.
       - Grande procura tem aquelas igrejas que prometem cura. Nossa sociedade cria enfermos em
grande proporção em virtude do ritmo de trabalho, das condições de vida precárias e desumanas, ao
mesmo tempo em que viabiliza a apenas uma parcela da população o acesso aos benefícios da medicina.
Quem, em tal contexto, oferece perspectiva de cura a preços acessíveis, com certeza encontrará grande
afluência. É o que explica também o sucesso de curandeiros, benzedeiras, espíritas, santos milagreiros.
Aliás, também os psicólogos e psiquiatras são, de certa forma, favorecidos por essa busca. Pois jamais
houve outra época em que proliferassem tantas doenças psíquicas como na nossa.
       - Outra necessidade humana, muitas vezes esquecida, é a de ter certeza. É preciso saber em que se
agarrar e orientar. É preciso saber, afinal de contas, o que está certo. No mundo de hoje há muita
informação, mas pouca orientação. Em meio a tantas opiniões diferentes, as coisas parecem tornar-se
relativas. Mas as pessoas precisam saber no que podem crer, querem saber a verdade em meio a tanta
mentira e incerteza. É por isso que grupos autoritários e sectaristas exercem fascínio sobre certas pessoas.
É por isso também que o fundamentalismo atrai a muitos. Aqui a Bíblia é declarada infalível em termos
literais. Ela não é parceira de diálogo, mas somente mestra que decreta e ensina, dando a certeza que as
pessoas tanto procuram.
       b) A igreja deve ajudar a discernir as necessidades vitais: Outros tantos exemplos poderiam
ser acrescentados, como a capacidade de lidar com os enigmas da vida, a exemplo do nascimento, da
morte e dos golpes do destino. Reafirmamos que nenhuma igreja vai atrair pessoas se não souber
responder a necessidades humanas. Mas seria essa mesmo a tarefa da igreja? Seria a igreja uma espécie
de supermercado que existe para atender as necessidades humanas? Além disso, é impossível atender
simultaneamente a todas as expectativas. Não se pode agradar a gregos e troianos. Por isso a pergunta:
quais as necessidades que a igreja pode, sim, deve atender? Uma observação atenta dos evangelhos
certamente vai nos ajudar a definir critérios para lidar com essa questão.
       Também Jesus veio para atender a necessidades humanas. Curou enfermos, saciou famintos,
educou e orientou as pessoas. Aliás, é esta a necessidade básica que Jesus atendeu: o anseio por vida. O
ser humano quer viver, e não morrer. Esse é um anseio legítimo, que está de acordo com os propósitos de
Deus. Pois é isto o que Deus também quer: a vida de suas criaturas. Consequentemente, Jesus diz: “Eu
vim para que vocês tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10.10). E ainda: “Eu sou a ressurreição
e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11.25).
       Não se trata de vida qualquer, mas sim de vida plena, feliz, bem sucedida. Ninguém quer apenas
vegetar e ver a sua vida constantemente ameaçada por doença, frustração, pobreza, medo, violência,
dependência. Na verdade, há muitas coisas que ameaçam nossa vida, prejudicando-lhe a qualidade e
tirando-lhe o valor. Há muitos agentes da morte. Jesus, ao falar da vida, não tem em vista tal vida
ameaçada. Ele tem em vista uma vida com conteúdo e sentido, uma vida que inclusive supera a morte. O
Novo Testamento chama esta vida de “vida eterna”, capaz de ser vivida já agora e em toda a eternidade.
Pertencem a esta vida o pão de cada dia, a liberdade, o amor, a justiça, a fé, a saúde, a alegria, a adoração
a Deus.
Jesus veio, portanto, para oferecer aquilo que todos buscam. Ele veio para atender aos anseios e às
necessidades mais prementes e importantes. Consequentemente, ele deveria ter sido uma pessoa de
extraordinário sucesso. Mas quem conhece a história de Jesus sabe que não foi assim. Ele acabou na
cruz. É bem verdade que ele chamou a atenção, que multidões o seguiam e que muita gente depositava
nele as suas esperanças. Mas isto não impediu que ele fosse morto na cruz., abandonado por todos. O
sumo sacerdote, as autoridades judaicas, o procurador romano Pôncio Pilatos e outros grupos, a exemplo
dos escribas e saduceus, promoveram a sua morte. Os discípulos abandonaram o seu mestre, traíram-no
ou negaram a ele. O povo, que à entrada de Jerusalém o saudara com “Hosana, bendito o que vem em
nome do Senhor”, mais adiante exige a sua crucificação, ou se mantém distante, assistindo passivamente
ao desenrolar dos acontecimentos.
       Como se explica esse flagrante “fracasso” de Jesus? Se ele veio para atender a necessidades
humanas e para dar a vida que todos querem, como explicar o escândalo da cruz? Aparentemente Jesus
decepcionou. Decepcionou, em primeiro lugar, os fariseus, escribas, saduceus, sacerdotes, as autoridades
romanas, que julgavam este homem perigoso, uma ameaça à segurança pública e a seus próprios
privilégios. Jesus decepcionou os seus discípulos que sonhavam com postos de poder e destaque no reino
de Deus (cf. Mc 10.35-45). Decepcionou também o povo que queria um Israel livre da dominação
romana e um sistema político justo. Queriam um Messias poderoso, capaz de esmagar os opressores e
inimigos, para inaugurar um reino de liberdade e fartura. Jesus, em última análise, decepcionou a todos:
pobres, poderosos, judeus, romanos. Caso contrário ele não teria morrido tão solitariamente, tão
abandonado na cruz.
       Isso nos faz perguntar: por acaso a vida que Jesus oferece não é a vida que o mundo quer? E as
necessidades que ele vem atender porventura são outras do que as sentidas pelas pessoas? Certo é que
houve um desencontro entre a oferta de Jesus e a procura do mundo, desencontro esse que deve merecer
nossa atenção. Exemplifiquemos isso com o texto da multiplicação dos pães, que introduz um discurso de
Jesus no qual ele se apresenta como o pão da vida (Jo 6.1-15, 22-71). Propomos que você leia esse texto
antes de prosseguir.
       Pão, no sentido de alimento, é uma das necessidades essenciais do ser humano. Sem o pão de
cada dia não é possível viver, razão pela qual Jesus manda rogar pelo pão no Pai-Nosso. Que as
necessidades materiais e físicas do ser humano não são menos importante do que as espirituais, isso é
preciso relembrar às igrejas justamente em nosso contexto social, marcado por privação e fome de boa
parte da população. É tarefa da igreja insistir e colaborar na criação de condições que garantam a todos a
sobrevivência física.
       Constatado isso, no entanto, fazemos uma observação curiosa: embora Jesus considere essencial o
pão de cada dia como condição de vida, ele nega categoricamente que este mesmo pão possa satisfazer
plenamente as pessoas. O pão de cada dia, sozinho, não é capaz de dar vida em sentido pleno. O maior
glutão, o maior consumidor permanece insatisfeito, frustrado. Através do excesso, inclusive, ele se mata.
       Reside aí uma das principais desgraças do ser humano: ele confunde o pão de cada dia com o pão
da vida. Ele presume poder satisfazer sua fome por vida mediante comida e bebida, ou seja, pelo
consumo do que o mundo de melhor tem a oferecer (sexo, divertimento, poder, luxo), quando nada disso
pode garantir plenitude de vida. Esta confusão entre o pão de cada dia e o pão da vida está claramente em
evidência em João 6: Jesus multiplica os pães, dá pão aos que têm fome. Mas logo surge o mal
entendido: as pessoas querem fazer dele um rei (Jo 6.15). Quem enche as bocas, este é grande, aplaudido
e terá sucesso. Jesus, porém, se retira e, mais tarde, tenta esclarecer à multidão que este pão, embora
necessário, não é o pão da vida. O pão da vida é ele, respectivamente Deus (Jo 6.35). Mas eles não
querem crer, querem apenas comer. Ouvir Deus e sua palavra, isto não! É impressionante constatar o
resultado a que isso conduz: “À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam
com ele” (Jo 6.66). No início queriam fazer de Jesus um rei, depois a maioria já nem quer mais ouvi-lo.
       Reside aí o escândalo do evangelho: ele desmascara ilusões. É ilusão esperar do pão, e de tudo o
que ele implica, a vida. Esta ilusão conduz não apenas à frustração. Conduz também ao desnível social
em nosso mundo. Pois na ânsia de garantir sua vida, alguns monopolizam o pão, acumulam-no
indevidamente e se tornam assim responsáveis pela miséria dos famintos. Quem pode negar que a
pobreza material de uns é produzida em grande parte pela pobreza espiritual de outros?
       O evangelho, portanto, não atende a toda e qualquer necessidade. Sim, conforme o Novo
Testamento a calamidade humana consiste, não por último, em que as pessoas perderam a noção das suas
necessidades verdadeiras; que elas confundem necessidades humanas com interesses pessoais; que elas,
com gula, procuram vida lá onde não a podem encontrar; que não estão dispostas a se submeter ao juízo
de Deus. O ser humano quer vida a um preço muito barato: quer adquiri-la em troca de dinheiro e
prestígio, quando na verdade a vida plena exige aprendizagem, arrependimento, confissão de pecados,
conversão.
       Esta é a dificuldade de ser igreja cristã e evangélica: dizer que Deus dá vida abundante, plena,
eterna - mas não sem fazê-la passar pelo seu juízo. Não haverá pão em quantidade suficiente sem que
Deus seja reconhecido como sendo o pão da vida. “Não só de pão viverá o ser humano, mas de toda
palavra que procede da boca de Deus” (Dt 8.3; Mt 4.4). É necessário, pois, aprender a distinguir entre
necessidades falsas e verdadeiras, primárias e secundárias, imediatas e de longo prazo. Sobretudo, porém,
é preciso aprender que não ganha a vida quem não sabe dá-la. Uma das dificuldades de ser igreja cristã é
que ela deve destruir ilusões. Isto escandaliza, muitas vezes, as pessoas ou as deixa indiferentes.
       Mas justamente aí reside a sublimidade da missão cristã. Porventura existe algo mais salutar,
necessário, urgente do que destruir ilusões? As ilusões nos matam. Mata-nos a ilusão de que as armas
podem assegurar a paz no mundo. Mata-nos a ilusão de que o ser humano se realiza no consumo. Mata-
nos a ilusão de que Deus está sobrando no mundo. Mata-nos a ilusão de que podemos conter a violência
na sociedade através da polícia e da repressão. Mata-nos a ilusão de que a sociedade tem condições de
sobreviver com a corrupção e a injustiça. São muitas as ilusões na atualidade. Jesus diz: “Eu sou o pão da
vida. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Eu sou a luz do mundo”. São palavras muito críticas a tudo
que se oferece como pão, caminho, verdade, vida e luz neste mundo.
       É tarefa da igreja mostrar que a destruição de ilusões, que o cumprimento do primeiro
mandamento, que o trilhar do caminho de Jesus, muito embora passe por cruz e dificuldades, é, em
última instância, a verdadeira sabedoria. Para falar com o apóstolo Paulo: a palavra da cruz é loucura
para o mundo e, ainda assim, é mais sábia do que toda a sabedoria humana (1 Co 1.18-25). Por quê?
Porque Deus amou. E amar é mais sábio do que acumular. Crer é mais sábio do que ser descrente.
Colocar isso em prática é edificar a casa sobre a rocha. Tempestade alguma será capaz de derrubá-la (Mt
7.24-27). A igreja tem uma sabedoria a anunciar, uma sabedoria, porém, que contém um escândalo. Sem
aguentar este escândalo não há vida eterna, nem sobrevivência humana, nem real atendimento de
necessidades.
       c) Reavivar comunidades a serviço da vida: Para concluir, algumas reflexões programáticas
sobre como reavivar as comunidades a partir de uma perspectiva evangélica.
       - Devemos aprender na igreja a argumentar mais e julgar menos. Argumentar na prédica, no
ensino, na evangelização, na conversa em família, enfim, em todas as oportunidades. Por que nós cremos
em Deus? Por que somos discípulos de Jesus? Por que Jesus foi crucificado? Nossa tarefa não é julgar,
rotular, condenar, e sim, convencer. Não existe igreja viva sem membros convictos. E para convencer
precisamos de argumentos, do diálogo, da aprendizagem. Naturalmente não é possível “demonstrar” o
evangelho. Mas também a fé tem as suas razões e devemos estar preparados para responder às razões da
esperança que há em nós (1 Pe 3.15).
       - Para convencer, no entanto, não basta apenas o argumento. É necessário o exemplo, uma
conduta condizente com aquilo que professamos. Jamais conseguiremos convencer alguém enquanto
dizemos uma coisa e praticamos outra. Aliás, pessoas exemplares não significa pessoas perfeitas, sempre
certas, sempre por cima. Tais pessoas são, inclusive, suspeitas. Pessoas exemplares são pessoas que não
escondem suas fraquezas, que têm coragem de confessar seus pecados, que vivem na luta consigo
mesmas e na tentativa sempre renovada de seguir a Cristo. Precisamos dessas pessoas – pessoas que
sabem orar, ser humildes e, por isto, misericordiosas. Jamais seremos igreja viva se não tentarmos
vivenciar o evangelho, ainda que de forma imperfeita.
       - Para convencer as pessoas é necessário, igualmente, disposição para assumir sofrimento,
respectivamente, ter sensibilidade para ele. O sofrimento humano em nosso país e no mundo é imenso.
Doença, pobreza, solidão, frustração, depressão, desemprego, desorientação e outros sofrimentos nos
cercam e marcam também a nós, de uma ou de outra forma, como experiência de vida. Nós proclamamos
alguém que tomou sobre si as nossas enfermidades, que disse:”Vinde a mim todos os que estais cansados
e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Até que ponto, de fato, estaremos em condições de
ajudar, é outra pergunta. Importante é, em primeiro lugar, aprender a compreender pessoas em
dificuldade, ouvir os abafados gritos de socorro, estar ao lado dos que sofrem, fazê-los sentir
proximidade humana. Isto começa na família, em casa. Até que ponto os pais estão antenados para os
problemas dos filhos, e vice-versa? Isto se aplica à escola, isto deve acontecer, sobretudo, na
comunidade. Ela deve buscar os membros que sofrem. A sensibilidade para o sofrimento deve nortear,
finalmente, também a política. Amor, em todo caso, não passa de largo pelo sofrimento, como o
sacerdote e o levita na parábola do bom samaritano.
        - Com isto já está dito também que, como comunidade cristã, não podemos enxergar apenas um
tipo de necessidade humana e nele concentrar toda a nossa atenção. É constrangedora, por exemplo, a
pobreza teológica que se observa nos programas midiáticos. A pregação e a prática eclesiástica sempre
giram em torno das mesmas coisas. Por outro lado, não podemos cair no erro oposto de abarcar todas as
frentes. As necessidades devem ser analisadas criticamente a partir do evangelho para podermos
distinguir o que é realmente necessidade e o que não passa de interesse individual. Não podemos
concentrar nossa atenção unicamente nas necessidades espirituais, sob desconsideração das materiais, e
vice-versa. A vida que Deus destinou à sua criatura não se limita nem à salvação da alma nem à mera
sobrevivência física. O ser humano vive de pão, mas também de toda palavra que procede da boca de
Deus.
        - Para estar a serviço da vida, em síntese, a igreja deve atuar em diversas áreas: na área pastoral,
isto é, deve cuidar de seus membros, pregar-lhes a palavra, oferecer-lhes os sacramentos; na área
profética, isto é, deve ser a voz de Deus no mundo, anunciando a sua vontade e denunciando o pecado;
na área catequética, isto é, aprofundar a solidificar a fé e ensinar aos povos tudo o que Jesus ordenou; na
área diaconal, isto é, estimular a vivência da fé no serviço aos mais necessitados; na área missionária, isto
é, anunciar o evangelho a pessoas que não o conhecem, integrá-las na comunidade, ser um sinal do reino
proclamamos e aguardamos na sua plenitude.
        ___________________________________________________________________
   * Texto didático elaborado a partir de três artigos do Dr. Gottfried Brakemeier:
   - Na santa igreja cristã, a comunhão dos santos. In: ALTMANN, Walter. Nossa fé e suas razões. São
   Leopoldo: Editora Sinodal, 2004,147-155.
   - Dez boas razões para viver em comunidade. In: Por que ser cristão? São Leopoldo: Editora
   Sinodal, p.47-66.
   - Reavivamento comunitário. In: Testemunho da fé em tempos difíceis. São Leopoldo: Editora
   Sinodal, 1990, p.81-91.
   Responsável pela elaboração: Prof. Verner Hoefelmann

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A natureza e_a_tarefa_da_igreja

  • 1. A NATUREZA E A TAREFA DA IGREJA * INTRODUÇÃO O ser humano é um ser social. Necessita da companhia de outras pessoas. Ninguém é tão completo a ponto de poder dispensar o contato com outros ou prescindir da ajuda deles. Exemplo mais flagrante disso é a interdependência de homem e mulher. Conforme a Bíblia, somente juntos eles formam um todo e constituem “uma só carne” (Gn 2.24). Mas há outros exemplos: a família, o clube, o sindicato, o partido político, a nação são outros paradigmas de organização social que mostram a necessidade humana de convivência. Também a comunidade cristã, a igreja se insere nesse universo social. Primeiro tópico da disciplina vai enfocar justamente o tema da eclesiologia. O tema será abordado em perspectiva bíblica, mas com os olhos voltados igualmente para a realidade eclesiológica em nosso país. Perguntaremos pela natureza da igreja, por sua razão de ser, pelos traços que a distinguem de outras formas de convivência, pela sua tarefa em nosso mundo. O tema se justifica por si mesmo. Lutero dizia em seu tempo: “Graças a Deus, uma criança de sete anos sabe o que é a igreja, a saber, os santos crentes e os cordeirinhos que ouvem a voz de seu pastor”. Hoje já não temos tanta certeza assim. Quando se fala em igreja, algumas pessoas pensam numa construção com torre e sinos ou em organizações liderada por pastores ou bispos. Em termos práticos se enxerga nelas entidades religiosas que se caracterizam por acirrada disputa de clientela. Para outros, ela se tornou um fenômeno suspeito, com um discurso antiquado, que acumulou pecados ao longo de sua história, tornando-se, não raro, cúmplice de crimes. Outros, ainda, enxergam na igreja uma organização que explora a boa fé e a carência das pessoas, “mercadejando a palavra de Deus”, para usar palavras do apóstolo Paulo (2 Co 2.17), e transformando-a em negócio lucrativo. Por outro lado, há sinais evidentes de que a igreja também merece respeito. Solidariedade com os empobrecidos, doentes e injustiçados, consolo para os aflitos, oposição aos males da época, compromisso com a ética e a verdade – onde se pode encontrar isso senão na igreja de Jesus Cristo? No período das ditaduras na América Latina, muitos cristãos sofreram perseguição em fidelidade a Deus, ao preço do sofrimento, da renúncia e até da vida. A igreja foi e continua sendo defensora da justiça. Não se dobrou diante do arbítrio. Manteve acesa a chama da fé, da esperança e do amor. Sem esta igreja, corajosa e cumpridora de seu mandato, provavelmente a situação de nosso continente estaria muito pior. Ainda assim, o quadro é confuso. Assusta o número de “cristãos” indiferentes ou distantes do evangelho. Observa-se a estagnação de igrejas tradicionais, sinal evidente de que necessitam repensar suas ênfases e formas de atuação. Chama a atenção, igualmente, a proliferação e o crescimento de igrejas novas. Junto com sinais legítimos de renovação, porém, preocupa a constrangedora concorrência
  • 2. existente entre elas, fruto das ambições pessoais de suas lideranças. Afinal, o que é igreja, quais os sinais que identificam a igreja de Jesus Cristo e qual é o seu mandato? 1. IGREJA, COMUNIDADE, DENOMINAÇÃO Procuremos clarear, de início, alguns conceitos. Costumamos distinguir atualmente entre “comunidade” e “igreja”: enquanto a primeira é a congregação local, a segunda designa um conjunto de comunidades. A distinção faz sentido, pois é necessário diferenciar o organismo das células que o compõem. De acordo com o Novo Testamento, porém, igreja e comunidade são sinônimos. A diferença é apenas de ordem etimológica: a palavra igreja provém do grego (evkklhsi,a/ekklesia) e designa pessoas convocadas para uma assembléia. O termo comunidade provém do latim e designa um grupo que se une por interesses comuns. Ainda assim, o Novo Testamento não nivela a dimensão local e universal da comunidade de Jesus Cristo. O apóstolo Paulo escreve à igreja que está em Corinto (1 Co 1.2) ou às igrejas da Galácia (Gl 1.2). Trata-se de comunidades locais. Mas todas pertencem à mesma igreja. Por isso não elas podem isolar-se uma das outras, mas devem entender-se como parte do mesmo corpo (Cl 1.18; Ef 1.22-23). É com base nisso que Paulo estimula a solidariedade entre elas, exortando as comunidades gentílicas a levantar uma coleta em favor das comunidades da Judéia, em gratidão pelos bens espirituais recebidos através delas (Rm 15.25-33). Ao mesmo tempo, a formulação de Paulo deixa entrever que a igreja não é simplesmente a soma das comunidades. Ao contrário: cada comunidade local, seja em Corinto, Roma ou na Galácia, é reflexo e concretização peculiar da única igreja de Deus no mundo. Assim como em cada célula está contido o mapa cromossômico do corpo, assim também na comunidade: em cada uma delas, desde que fiel ao evangelho, está contida integralmente a igreja de Deus. Isso não impede que as comunidades locais se apresentem com variedade de formas e coloridos culturais. A diferença entre elas é legítima. Já nos primeiros tempos conviviam cristãos de fala hebraica e grega, portanto, oriundos de diferentes ambientes (At 6.1). Divergiam as tradições, os costumes, as etnias. Nem sempre a pluralidade cabia numa só organização comunitária. A igreja de Jesus Cristo não pode pretender a uniformidade. Ela precisa adequar-se ao contexto em que vive, articular o evangelho a partir da respectiva cultura, falar a linguagem do povo. Destaque-se que a comunidade cristã não está atrelada a nenhuma cultura específica (cf. 1 Co 9.19-20). Ela pode vestir os “trajes típicos” da respectiva localidade e região. Ela deve abrir-se para a diversidade de culturas. Ela congrega gente concreta, de todas as nações (Mt 28.19). Algo semelhante vale para as tradições confessionais e denominacionais. Também elas tornam diferentes as comunidades, imprimindo-lhes marcas específicas. Desde o início isso foi assim. A piedade judaica e helenística não se expressava exatamente nos mesmos moldes. Assim também hoje. Existem
  • 3. comunidades católicas, luteranas, presbiterianas, anglicanas, metodistas, batistas, pentecostais e outras tantas. Elas diferem em assuntos litúrgicos, de doutrina e de práxis. Divergem em suas eclesiologias. Também isso é legítimo, embora somente até certo ponto, pois essa variedade precisa caber num denominador comum. Caso contrário, seria impossível evitar o caos, o conflito, a perda de identidade. Comunidade, para ser cristã, precisa alicerçar-se em fundamento evangélico. Por isso, na variedade de formas, é preciso poder distinguir um núcleo comum que identifica as diversas confissões como igreja de Jesus Cristo. 2. COMO NASCE A IGREJA Igreja nasce de modo sempre igual, ou seja, pela palavra de Deus e pelos sacramentos. Podemos observar isto claramente em Atos 2. Propomos que você releia este texto sob esta perspectiva. Em síntese, o texto afirma que no dia de Pentecostes, por ação do Espírito Santo que acabara de ser derramado, Pedro se levanta e anuncia que Jesus de Nazaré, o crucificado que Deus levantou da morte, é Senhor e Messias. Este testemunho criou fé, conduziu ao batismo de quase três mil pessoas, à comunhão de mesa e à partilha dos bens, distribuídos à medida que alguém tinha necessidade. Nesse dia nasceu a igreja de Jerusalém. Não tardou que fossem fundadas outras comunidades. Os apóstolos se lançaram à missão, atendendo à grande comissão de Jesus. Fizeram discípulos de todas as nações e ensinaram o evangelho (Mt 28.18-19). A igreja tem a sua origem na missão e na evangelização. A eclesiologia da Reforma diz a mesma coisa. Define a igreja como sendo “a congregação dos santos na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente” (Confissão de Augsburgo, cap. IV). Lutero insistia que a igreja é criatura do evangelho. O próprio Espírito Santo, por palavra e Sacramento, “chama, reúne, ilumina e santifica toda a Igreja” (Catecismo Menor). Portanto, igreja não é invenção ou fundação humana. É fruto do agir de Deus. Igreja também é fruto da fé das pessoas, pois a palavra de Deus, que exige e julga e, por outro lado, também perdoa, justifica e liberta, quer ser acolhida e convertida em vivência. O mesmo vale para os sacramentos, cujo significado de modo algum se restringe ao perdão dos pecados. O batismo é o sinal visível de nossa vocação ao discipulado e à novidade de vida (Rm 6.1-14). É inserção na comunidade (1 Co 12.13). Na santa ceia, por sua vez, Jesus concede comunhão consigo mesmo e, simultaneamente, une os comungantes num só corpo (1 Co 10.16-17). A ceia é, assim podemos concluir, a contínua renovação e reconstituição da comunidade. No entanto, isso não acontece de forma mágica: o dom do sacramento quer ser recebido pela fé. Fé significa uma resposta afirmativa ao chamado do evangelho, uma reação agradecida à ação de Deus, confiança nas promessas divinas. Esta fé é fundamental, mas possível somente porque Deus agiu e falou primeiro. A igreja, embora constituída por pessoas que crêem, tem
  • 4. Cristo por fundamento (1 Co 3.11). Sem o evangelho, ela não existe. Nasce da misericórdia de Deus, bem como da fé que lhe responde. 3. SINAIS DA IGREJA Somente Deus sabe quem realmente crê. O ser humano é incapaz de identificar, sem margem de erro, o lobo disfarçado de ovelha (cf. Mt 7.15). Por isso, a verdadeira igreja está oculta. Como não se pode separar já agora o joio do trigo (Mt 13.24-30), a igreja antiga incluiu a igreja entre os objetos de fé: “Creio... na santa igreja cristã”. Aliás, esta fé na igreja não se compara à fé no Espírito Santo, que introduz o terceiro artigo do Credo Apostólico. Pois a confiança integral nós a depositamos não na igreja, e sim, no Deus triúno. A igreja não possui poder salvador por si mesma. Por isso, na verdade, não cremos na igreja, e sim, a igreja. É este o sentido do Credo, ou seja: nós cremos que a comunhão dos santos e verdadeiramente crentes existe, em meio e através de todas as denominações. A santa igreja cristã não é ilusão. É realidade, a despeito de possíveis evidências em contrário. Portanto, há uma diferença entre a igreja que cremos e a igreja que vemos. Nenhuma instituição eclesiástica tem o direito de se igualar à primeira. Somente o juízo final vai revelar o verdadeiro rebanho do bom pastor (cf. Mt 7.21; 13.30). Todavia, isto não permite o desprezo às igrejas concretas que procuram trilhar a senda do discipulado. Pois a igreja verdadeira não existe à parte das instituições eclesiásticas. Está oculta em meio a elas. Mesmo assim, existem critérios de autenticidade eclesial. Há sinais que constantemente fazem aparecer a igreja verdadeira. A eles pertencem, com absoluta primazia, a pregação da palavra e a celebração dos sacramentos, que outra coisa não são do que palavras visíveis. O culto da comunidade, o estudo bíblico, a propagação do evangelho, a celebração do batismo e da santa ceia é que identificam a igreja de Deus. Isto desde que haja preocupação com a coerência evangélica, pois a igreja que cremos é igreja apostólica, alicerçada na tradição das primeiras testemunhas, bem como na dos profetas que as precederam. Esta tradição original do evangelho nós a temos na Bíblia, na Sagrada Escritura, razão pela qual ela possui função normativa na igreja. Apostólico é sinal de evangélico, e vice-versa. Está aí o alerta: toda igreja que se diz evangélica deve zelar também pela sua apostolicidade. Mas há outros sinais da igreja, além destes. Lutero aponta para ofício das chaves (=a confissão dos pecados), a convocação de servidores eclesiásticos, a oração pública de louvor e agradecimento a Deus, a cruz imposta à comunidade em razão de sua obediência a Deus. Particularmente este último distintivo se tornou relevante na América Latina. Pode haver uma igreja autêntica que seja insensível ao clamor dos oprimidos? Injustiça, violência, corrupção desafiam a voz profética da igreja. Põem à prova a fidelidade a Jesus, o profeta por excelência, o profeta crucificado (cf. Lc 1.76; Mc 8.34-38). É o que vale em sentido geral: Jesus Cristo mesmo identifica sua igreja. Quanto mais ele aparece falando e atuando,
  • 5. tanto mais a igreja corresponde à sua vocação. Pois ela é parte do reino de Cristo, a esfera em que ele é Senhor e Mestre, e nós, os irmãos e as irmãs (Mt 23.8). 4. IMAGENS DA IGREJA NO NOVO TESTAMENTO Essa relação orgânica entre Jesus Cristo e a Igreja se evidencia através de várias imagens no Novo Testamento. Jesus é a videira, nós os ramos, que precisam permanecer unidos a ela para produzir frutos (Jo 15). Jesus é o bom pastor, que conhece as suas ovelhas e as chama pelo nome, que as conduz, protege e dá a vida por elas, para que tenham vida em abundância (Jo 10). Nós somos a família de Deus, edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, sendo Cristo Jesus a pedra angular, que faz com que o edifício cresça como um santuário dedicado ao Senhor (Ef 2. 19-21). Jesus é o sumo-sacerdote que se sacrificou a si mesmo pelos pecados do mundo (Hb 9.15-16). Vale destacar que a salvação que temos em Jesus Cristo jamais deixa a pessoa na solidão. Reconcilia com Deus, sim. Dá novo ânimo e desperta a fé. Simultaneamente, porém, remete ao próximo, a quem cumpre amar como a si mesmo. Jesus Cristo cria comunidade como campo preferencial para a prática do amor. A pessoa cristã não é um acionista de uma empresa em busca do lucro particular, e sim, membro de uma cooperativa a serviço da mutualidade (Gl 6.2). Aprofundemos em seguida algumas dessas imagens, explorando o significado delas para a natureza e a missão da igreja. a) Igreja como povo de Deus (lao.j qeou/ /laos theou): “Vós sois raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1 Pe 2.9). Essas palavras foram dirigidas a comunidades cristãs do primeiro século, na Ásia Menor. Mas são válidas para a igreja em todos os tempos. Elas dizem que a igreja reúne pessoas eleitas para ser povo de Deus, chamadas para exercer a função sacerdotal no mundo. São nobres os seus atributos. Igreja é, em primeiro lugar, raça eleita. Essa afirmação necessita ser corretamente compreendida, pois poderia induzir à arrogância, a atitudes elitistas, à discriminação de outros povos. Várias vezes ao longo da história o povo de Deus efetivamente sucumbiu a essa tentação, seja o povo da antiga ou da nova aliança. Por isso seja enfatizado que a eleição não dá, em absoluto, razões para a vanglória. Tanto Israel quanto a igreja sabem que a sua eleição aconteceu sem nenhum mérito de sua parte (Dt 7.6-8; 1 Co 1.26-29). A eleição não se volta contra as nações, mas tem em vista a sua bênção, como se prefigura no chamado de Abraão para ser o pai do povo de Israel: “...eu te abençoarei e te engrandecerei o nome. Sê te uma bênção...em ti serão benditas todas as nações da terra”(Gn 12.2-3). Essa realidade ficou definitivamente clara em Jesus Cristo. Conforme o testemunho de João Batista, através dele “toda a carne verá a salvação de Deus” (Lc 3.6). Através de Jesus, Deus abriu as portas para o ingresso de todas as pessoas. O povo de Deus passa a reunir agora “judeus e gregos” (Rm 1.16), reconciliados pela cruz (Ef 2.11-22). Possíveis diferenças entre eles já não fazem mais sentido, porque eles se tornam um em Cristo Jesus (Gl 3.27-28).
  • 6. Igreja é, além disso, sacerdócio real. Os sacerdotes designavam, na antiga aliança, um grupo especial de pessoas que podia aproximar-se do altar para oferecer sacrifícios e mediar a relação entre Deus e o povo. Na igreja todos podem apresentar-se diante de Deus como sacerdotes, sem a mediação de pessoas especiais. Há apenas um mediador entre Deus e os seres humanos, e este é Cristo Jesus (1 Tm 2.5). A realeza desse sacerdócio tem em vista a dignidade e a liberdade, pois reis não têm senhores acima de si, a não ser Deus. Igreja também é, finalmente, nação santa. É santa não porque fosse moralmente perfeita, e sim, porque foi requisitada por Deus para ser sua propriedade, porque Deus perdoou as suas iniquidades e a elegeu como parceira. O chamado à santidade é contínuo, porque Deus mesmo é santo (1 Pe 1.13-21). A igreja continua sendo pecadora, mas é santa mesmo assim. Seus membros são santificados em Cristo (1 Co 1.2), sempre em profunda dependência da misericórdia de seu Senhor. Como santa, a igreja pertence a Deus. Não é do mundo, embora viva nele (Jo 15.19; 17.14-15). Seu referencial é Deus acima de todas as coisas, razão pela qual resiste (ou deveria resistir) a submeter-se ao mundo e aos interesses humanos que o governam. A santidade da igreja é uma das principais fontes da sua liberdade. b) Igreja como corpo de Cristo (sw/ma Cristou/ /soma christou ): Esta é uma das imagens mais expressivas sobre a igreja no Novo Testamento. Ela aparece em textos como Rm 12.3-8; 1 Co 12.12-31; Ef 1.22-23; Cl 1.18-20. A igreja é vista aqui como um organismo com muitos membros. Estes membros são e devem ser diferentes. Caso contrário, não poderiam servir-se uns aos outros. Cada qual é chamado a cooperar para o bem comum com os dons que recebeu, renunciando à pretensão de representar o corpo em seu todo. Membro é humilde. Sabe que precisa dos outros. Ao mesmo tempo, porém, precisa ter consciência da sua importância, pois cada membro é necessário. Se um membro deixa de funcionar, o corpo adoece ou outros membros são sobrecarregados. A saúde do corpo precisa da interação de seus órgãos. Assim também a comunidade cristã. A igreja, porém, não é um corpo qualquer. Ela é o corpo de Cristo, ou seja, o corpo do qual Cristo é a cabeça (Cl 1.18). Ele une os membros, comanda o que devem fazer, faz o corpo viver. A comunidade cristã não é dona de si mesma. Está comprometida com os interesses de Jesus Cristo, com a sua vontade e a sua causa. Essa é a diferença entre a comunidade de Jesus Cristo e outras associações humanas: a suprema autoridade não é eleita pelo voto democrático de seus sócios, mas instituída por Deus para ser o bom pastor de seu rebanho. Isso não anula a necessidade de liderança humana. Mas indica que ninguém pode aproveitar-se da comunidade para fins alheios à sua vocação. Ela tem a nobre vocação de fazer valer os direitos de Deus neste mundo. c) Igreja como santuário do Espírito Santo (nao.j tou/ a`gi,ou pneu,matoj/ naos tou hagiou pneumatos): O Credo Apostólico fala da igreja no contexto da obra do Espírito Santo. É ele, o Espírito, quem constrói o templo de Deus, a casa em que se rende culto a Deus. Conforme Lutero, o Espírito chama, congrega, ilumina, santifica toda a cristandade na terra e em Jesus Cristo a conserva na
  • 7. verdadeira e única fé. A igreja cristã tem sua origem e seu norte na ação do Espírito Santo. Ela é fruto de Pentecoste, e desde então existe onde se anuncia e vive o evangelho. Mas o que é o Espírito Santo? É fenômeno abstrato, difícil de imaginar. Por isso a Bíblia usa símbolos para descrevê-lo. O principal é o vento. É este, inclusive, o significado original da palavra grega pneu/ma/pneuma. Quando o Espírito sopra, ele põe em movimento, inspira vida (Gn 2.7), mobiliza. Outros símbolos são o fogo (At 2.3) e a pomba (Mt 3.16). O Espírito Santo aquece os corações, cria comunhão, fomenta a paz. Ele é, assim podemos dizer, um poder (du,namij/dynamis) que age sobre o raciocínio das pessoas, seu sentimento, sua vontade. Não usa violência (Zc 4.6). Atua como força de persuasão. Prefere a palavra para comunicar-se, mas não despreza gestos, sinais, ações concretas. Segundo o testemunho bíblico há muitos espíritos, entre eles espíritos imundos, demoníacos (Mt 10.1; Mc 1.26; 5.1). Por isso a comunidade necessita do dom de discernir os espíritos (1 Co 12.10). Desses se distingue o Espírito de Deus e de Jesus Cristo (2 Co 3.17). Como tal tem identidade inconfundível. Diz o Novo Testamento que o Espírito Santo é o Espírito da verdade (Jo 16.13), da vida, do amor, da sabedoria. Ele lembra tudo o que Jesus disse (Jo 14.16), liberta da ilusão, assiste na aflição, pois é para,klhtoj/parakletos, ou seja, chamado para estar junto àqueles que necessitam de assistência (Jo 14.16,26; 15.26). Com certeza ele não está onde reina o ódio, o crime, a mentira. Ele é o contrário de mal, pecado e morte, assim como o próprio Deus é. O que conflita com Jesus e Deus Pai traz outras marcas que as do Espírito Santo. Em sua história, a comunidade cristã por demais vezes traiu o Espírito de Deus e seguiu outros espíritos, supostamente mais atrativos. É longo o catálogo de seus pecados, infelizmente. Também a igreja necessita de perdão, assim como todos os seus membros. Da mesma forma, porém, a história da igreja registra os milagres que o Espírito Santo é capaz de operar. Ela celebra os dons que ele desperta repetidamente e que dão dinâmica ao corpo. Nenhuma outra religião desenvolveu semelhante obra diaconal como a cristã. Isto porque o primeiro fruto do Espírito é o amor (Gl 5.22). Também coisas extraordinárias, a exemplo do falar em língua, não estão excluídas. Mas o Espírito não costuma projetar- se através de sensações. Seu principal distintivo é a construção do amor, bem como da fé e da esperança que o acompanham. Finalmente, é claro que o Espírito não é prisioneiro da igreja. Sopra onde quer (Jo 3.8). E, no entanto, ele tem na comunidade de Jesus Cristo seu privilegiado “campo de trabalho”. 5. A TAREFA DA IGREJA Como povo de Deus, corpo de Cristo, santuário do Espírito, a igreja é chamada a realizar sua tarefa em fidelidade ao evangelho de Jesus Cristo. Algumas dessas tarefas fundamentais serão destacadas a seguir.
  • 8. a) Testemunhar o evangelho: “O que temos visto e ouvido, anunciamos também a vós outros, para que vós igualmente mantenhais comunhão conosco”. Nestes termos a primeira carta de João descreve a incumbência da igreja (1 Jo 1.3). Cabe-lhe, em termos amplos, a marturi,a/martyria, ou seja, o testemunho de Jesus Cristo e o anúncio do evangelho, inclusive o convite para dele participar e integrar a comunidade dos discípulos e das discípulas (Mt 28.18-19). A fé vem por pregação, ensino, evangelização (Rm 10.17). Todas as outras tarefas, de certa forma, são expressão dessa tarefa fundamental. b) Promover culto a Deus: Essa fé vai necessariamente expressar-se em culto, em liturgia (leitourgi,a/leiturgia). Através dele a comunidade desafia o mundo, documentando que adoração compete exclusivamente a Deus. “Ao Senhor teu Deus adorarás, e somente a ele darás culto” (Dt 6.13; Mt 4.10). Através do culto a comunidade reafirma a validade do primeiro mandamento e aponta para a fonte de onde lhe advém o alimento em sua jornada. O amor a Deus, do qual fala a primeira parte da síntese da lei feita por Jesus, se expressa, sobretudo, como adoração exclusiva a ele. Deus não precisa de nossa caridade. Ele requer, isto sim, a nossa exclusiva adoração. Culto a pessoas humanas ou coisas é sinônimo de idolatria. Por isso, a comunidade cristã celebra culto apenas a Deus, atestando assim o amor a ele e a gratidão pelos benefícios recebidos. Esse culto é documentação de liberdade, pois mostra que a comunidade não possui outros senhores. Cultuar a Deus é prevenir-se contra a idolatria e contra as dependências que os falsos deuses criam. c) Promover comunhão: Não menos importante é a construção da koinoni,a/koinonia, da comunhão. Ninguém pode ser cristão vivendo no isolamento. Também não existem cristãos “virtuais”, por mais importante que seja aproveitar os modernos meios de comunicação para testemunhar o evangelho. Ser igreja é viver na fraternidade peculiar e na comunhão concreta dos membros de um só corpo. “Assim já não sois estrangeiros, mas concidadãos dos santos e sois da família de Deus (Ef 2.19). A convivência em Cristo reverte rupturas, reconcilia inimigos, ensina as pessoas a servirem umas às outras com seus respectivos dons. d) Estimular a diaconia: Enquanto o culto cabe a Deus, a diakoni,a/diakonia cabe à pessoa necessitada. O amor ao próximo, do qual fala a outra parte da síntese da lei feita por Jesus, é isto: seguir o exemplo do bom samaritano (Lc 10.36-37). Melhor, seguir o exemplo do próprio Jesus. É ele o diácono por excelência. Teve olhos e ouvidos para o sofrimento humano (Mt 10.35-36). Saciou famintos, curou doentes, buscou perdidos. Deu a sua companhia a gente desprezada, perdoou pecados, restabeleceu comunhão. Não veio para ser servido, e sim, para servir (Mc 10.45). Miséria humana nem sempre tem a mesma cara, razão pela qual também a diaconia deverá ser multiforme. Inicia com os membros da família da fé (Gl 6.10), pois eles são os próximos mais próximos. Mas vai além. Dirige-se a todas as pessoas, sem acepção de raça, credo ou etnia. Às vezes, exige não assistência, mas sim, defesa de direitos legítimos. Assim o vemos em Jesus. Ele denunciou as injustiças de seu tempo, exigindo a reformulação
  • 9. de leis discriminatórias (cf. Mc 7.9-10). Diaconia quer o bem do próximo e a remoção das causas de sofrimento. É privilégio da comunidade ser protagonista do amor na sociedade. Ela o é porque deve sua existência à misericórdia de Deus. É fruto da mesma. Simultaneamente sabe que a sociedade humana sem amor se inviabiliza. Conclama, pois, a um grande mutirão, sabendo que não lhe cabe o monopólio na ação diaconal. Amor não é só compromisso cristão, mas humano. A sociedade toda, juntamente com suas instituições políticas, está comprometida com a ação social. Pobreza é escândalo. Sofrimento necessita de socorro. Comunidade cristã, ao dar o exemplo de diaconia, não pode deixar de apontar para os Lázaros de hoje e lembrar publicamente o dever da misericórdia. 6. REAVIVAR UMA IGREJA A SERVIÇO DA VIDA No ínterim entre a vinda de Jesus à terra e a consumação de todas as coisas, cabe à igreja a tarefa de rogar pela vinda do reino de Deus, preparar o caminho do Senhor (Is 40.3; Mt 3.3) e reunir o povo de Deus para o testemunho de Jesus (At 1.8). Mesmo que o futuro da igreja esteja nas mãos de seu Senhor, ela também deve encontrar meios de responder adequadamente aos desafios de sua época e de seu ambiente. Como despertar os membros para uma participação comunitária mais ativa? Como atrair outras pessoas de modo que as comunidades possam cumprir a sua missão? a) A igreja deve atender a necessidades: Seja dito, de início, que a igreja não vai atrair pessoas se não atender a necessidades humanas. As pessoas querem ter algum proveito da igreja. Se ela cumprir expectativas, não faltarão participação, procura, identificação e recursos. Não é difícil comprovar esta tese. Basta observar as igrejas entre nós de maior “sucesso”. Quais as necessidades que elas atendem? - Em especial nas grandes metrópoles, as pessoas sofrem sob o anonimato, sob a falta de valorização pessoal e a ausência de diretrizes claras de conduta e concepção de vida. É o que explica, ao menos em parte, o “milagre da multiplicação” das igrejas pentecostais. Oferecem comunhão, transmitem a seus membros a sensação de serem alguém, devolvendo-lhes, portanto, identidade humana. Além disso, possuem um código moral muito simples e rígido, que eleva o crente acima do nível normal das pessoas. Logicamente não são apenas as igrejas pentecostais que vão ao encontro dessas necessidades, mas fazem- no de modo especialmente hábil. - Outra necessidade das pessoas de hoje é ter sucesso e vencer na vida. Isto é aproveitado por algumas igrejas, que prometem o segredo de como se tornar uma pessoa bem sucedida em todas as esferas da vida. Elas trabalham o sentimento de frustração tão comum em nossa época, oferecendo receitas para a vitória e a ascensão social. - Grande procura tem aquelas igrejas que prometem cura. Nossa sociedade cria enfermos em grande proporção em virtude do ritmo de trabalho, das condições de vida precárias e desumanas, ao
  • 10. mesmo tempo em que viabiliza a apenas uma parcela da população o acesso aos benefícios da medicina. Quem, em tal contexto, oferece perspectiva de cura a preços acessíveis, com certeza encontrará grande afluência. É o que explica também o sucesso de curandeiros, benzedeiras, espíritas, santos milagreiros. Aliás, também os psicólogos e psiquiatras são, de certa forma, favorecidos por essa busca. Pois jamais houve outra época em que proliferassem tantas doenças psíquicas como na nossa. - Outra necessidade humana, muitas vezes esquecida, é a de ter certeza. É preciso saber em que se agarrar e orientar. É preciso saber, afinal de contas, o que está certo. No mundo de hoje há muita informação, mas pouca orientação. Em meio a tantas opiniões diferentes, as coisas parecem tornar-se relativas. Mas as pessoas precisam saber no que podem crer, querem saber a verdade em meio a tanta mentira e incerteza. É por isso que grupos autoritários e sectaristas exercem fascínio sobre certas pessoas. É por isso também que o fundamentalismo atrai a muitos. Aqui a Bíblia é declarada infalível em termos literais. Ela não é parceira de diálogo, mas somente mestra que decreta e ensina, dando a certeza que as pessoas tanto procuram. b) A igreja deve ajudar a discernir as necessidades vitais: Outros tantos exemplos poderiam ser acrescentados, como a capacidade de lidar com os enigmas da vida, a exemplo do nascimento, da morte e dos golpes do destino. Reafirmamos que nenhuma igreja vai atrair pessoas se não souber responder a necessidades humanas. Mas seria essa mesmo a tarefa da igreja? Seria a igreja uma espécie de supermercado que existe para atender as necessidades humanas? Além disso, é impossível atender simultaneamente a todas as expectativas. Não se pode agradar a gregos e troianos. Por isso a pergunta: quais as necessidades que a igreja pode, sim, deve atender? Uma observação atenta dos evangelhos certamente vai nos ajudar a definir critérios para lidar com essa questão. Também Jesus veio para atender a necessidades humanas. Curou enfermos, saciou famintos, educou e orientou as pessoas. Aliás, é esta a necessidade básica que Jesus atendeu: o anseio por vida. O ser humano quer viver, e não morrer. Esse é um anseio legítimo, que está de acordo com os propósitos de Deus. Pois é isto o que Deus também quer: a vida de suas criaturas. Consequentemente, Jesus diz: “Eu vim para que vocês tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10.10). E ainda: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá” (Jo 11.25). Não se trata de vida qualquer, mas sim de vida plena, feliz, bem sucedida. Ninguém quer apenas vegetar e ver a sua vida constantemente ameaçada por doença, frustração, pobreza, medo, violência, dependência. Na verdade, há muitas coisas que ameaçam nossa vida, prejudicando-lhe a qualidade e tirando-lhe o valor. Há muitos agentes da morte. Jesus, ao falar da vida, não tem em vista tal vida ameaçada. Ele tem em vista uma vida com conteúdo e sentido, uma vida que inclusive supera a morte. O Novo Testamento chama esta vida de “vida eterna”, capaz de ser vivida já agora e em toda a eternidade. Pertencem a esta vida o pão de cada dia, a liberdade, o amor, a justiça, a fé, a saúde, a alegria, a adoração a Deus.
  • 11. Jesus veio, portanto, para oferecer aquilo que todos buscam. Ele veio para atender aos anseios e às necessidades mais prementes e importantes. Consequentemente, ele deveria ter sido uma pessoa de extraordinário sucesso. Mas quem conhece a história de Jesus sabe que não foi assim. Ele acabou na cruz. É bem verdade que ele chamou a atenção, que multidões o seguiam e que muita gente depositava nele as suas esperanças. Mas isto não impediu que ele fosse morto na cruz., abandonado por todos. O sumo sacerdote, as autoridades judaicas, o procurador romano Pôncio Pilatos e outros grupos, a exemplo dos escribas e saduceus, promoveram a sua morte. Os discípulos abandonaram o seu mestre, traíram-no ou negaram a ele. O povo, que à entrada de Jerusalém o saudara com “Hosana, bendito o que vem em nome do Senhor”, mais adiante exige a sua crucificação, ou se mantém distante, assistindo passivamente ao desenrolar dos acontecimentos. Como se explica esse flagrante “fracasso” de Jesus? Se ele veio para atender a necessidades humanas e para dar a vida que todos querem, como explicar o escândalo da cruz? Aparentemente Jesus decepcionou. Decepcionou, em primeiro lugar, os fariseus, escribas, saduceus, sacerdotes, as autoridades romanas, que julgavam este homem perigoso, uma ameaça à segurança pública e a seus próprios privilégios. Jesus decepcionou os seus discípulos que sonhavam com postos de poder e destaque no reino de Deus (cf. Mc 10.35-45). Decepcionou também o povo que queria um Israel livre da dominação romana e um sistema político justo. Queriam um Messias poderoso, capaz de esmagar os opressores e inimigos, para inaugurar um reino de liberdade e fartura. Jesus, em última análise, decepcionou a todos: pobres, poderosos, judeus, romanos. Caso contrário ele não teria morrido tão solitariamente, tão abandonado na cruz. Isso nos faz perguntar: por acaso a vida que Jesus oferece não é a vida que o mundo quer? E as necessidades que ele vem atender porventura são outras do que as sentidas pelas pessoas? Certo é que houve um desencontro entre a oferta de Jesus e a procura do mundo, desencontro esse que deve merecer nossa atenção. Exemplifiquemos isso com o texto da multiplicação dos pães, que introduz um discurso de Jesus no qual ele se apresenta como o pão da vida (Jo 6.1-15, 22-71). Propomos que você leia esse texto antes de prosseguir. Pão, no sentido de alimento, é uma das necessidades essenciais do ser humano. Sem o pão de cada dia não é possível viver, razão pela qual Jesus manda rogar pelo pão no Pai-Nosso. Que as necessidades materiais e físicas do ser humano não são menos importante do que as espirituais, isso é preciso relembrar às igrejas justamente em nosso contexto social, marcado por privação e fome de boa parte da população. É tarefa da igreja insistir e colaborar na criação de condições que garantam a todos a sobrevivência física. Constatado isso, no entanto, fazemos uma observação curiosa: embora Jesus considere essencial o pão de cada dia como condição de vida, ele nega categoricamente que este mesmo pão possa satisfazer
  • 12. plenamente as pessoas. O pão de cada dia, sozinho, não é capaz de dar vida em sentido pleno. O maior glutão, o maior consumidor permanece insatisfeito, frustrado. Através do excesso, inclusive, ele se mata. Reside aí uma das principais desgraças do ser humano: ele confunde o pão de cada dia com o pão da vida. Ele presume poder satisfazer sua fome por vida mediante comida e bebida, ou seja, pelo consumo do que o mundo de melhor tem a oferecer (sexo, divertimento, poder, luxo), quando nada disso pode garantir plenitude de vida. Esta confusão entre o pão de cada dia e o pão da vida está claramente em evidência em João 6: Jesus multiplica os pães, dá pão aos que têm fome. Mas logo surge o mal entendido: as pessoas querem fazer dele um rei (Jo 6.15). Quem enche as bocas, este é grande, aplaudido e terá sucesso. Jesus, porém, se retira e, mais tarde, tenta esclarecer à multidão que este pão, embora necessário, não é o pão da vida. O pão da vida é ele, respectivamente Deus (Jo 6.35). Mas eles não querem crer, querem apenas comer. Ouvir Deus e sua palavra, isto não! É impressionante constatar o resultado a que isso conduz: “À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele” (Jo 6.66). No início queriam fazer de Jesus um rei, depois a maioria já nem quer mais ouvi-lo. Reside aí o escândalo do evangelho: ele desmascara ilusões. É ilusão esperar do pão, e de tudo o que ele implica, a vida. Esta ilusão conduz não apenas à frustração. Conduz também ao desnível social em nosso mundo. Pois na ânsia de garantir sua vida, alguns monopolizam o pão, acumulam-no indevidamente e se tornam assim responsáveis pela miséria dos famintos. Quem pode negar que a pobreza material de uns é produzida em grande parte pela pobreza espiritual de outros? O evangelho, portanto, não atende a toda e qualquer necessidade. Sim, conforme o Novo Testamento a calamidade humana consiste, não por último, em que as pessoas perderam a noção das suas necessidades verdadeiras; que elas confundem necessidades humanas com interesses pessoais; que elas, com gula, procuram vida lá onde não a podem encontrar; que não estão dispostas a se submeter ao juízo de Deus. O ser humano quer vida a um preço muito barato: quer adquiri-la em troca de dinheiro e prestígio, quando na verdade a vida plena exige aprendizagem, arrependimento, confissão de pecados, conversão. Esta é a dificuldade de ser igreja cristã e evangélica: dizer que Deus dá vida abundante, plena, eterna - mas não sem fazê-la passar pelo seu juízo. Não haverá pão em quantidade suficiente sem que Deus seja reconhecido como sendo o pão da vida. “Não só de pão viverá o ser humano, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Dt 8.3; Mt 4.4). É necessário, pois, aprender a distinguir entre necessidades falsas e verdadeiras, primárias e secundárias, imediatas e de longo prazo. Sobretudo, porém, é preciso aprender que não ganha a vida quem não sabe dá-la. Uma das dificuldades de ser igreja cristã é que ela deve destruir ilusões. Isto escandaliza, muitas vezes, as pessoas ou as deixa indiferentes. Mas justamente aí reside a sublimidade da missão cristã. Porventura existe algo mais salutar, necessário, urgente do que destruir ilusões? As ilusões nos matam. Mata-nos a ilusão de que as armas podem assegurar a paz no mundo. Mata-nos a ilusão de que o ser humano se realiza no consumo. Mata-
  • 13. nos a ilusão de que Deus está sobrando no mundo. Mata-nos a ilusão de que podemos conter a violência na sociedade através da polícia e da repressão. Mata-nos a ilusão de que a sociedade tem condições de sobreviver com a corrupção e a injustiça. São muitas as ilusões na atualidade. Jesus diz: “Eu sou o pão da vida. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Eu sou a luz do mundo”. São palavras muito críticas a tudo que se oferece como pão, caminho, verdade, vida e luz neste mundo. É tarefa da igreja mostrar que a destruição de ilusões, que o cumprimento do primeiro mandamento, que o trilhar do caminho de Jesus, muito embora passe por cruz e dificuldades, é, em última instância, a verdadeira sabedoria. Para falar com o apóstolo Paulo: a palavra da cruz é loucura para o mundo e, ainda assim, é mais sábia do que toda a sabedoria humana (1 Co 1.18-25). Por quê? Porque Deus amou. E amar é mais sábio do que acumular. Crer é mais sábio do que ser descrente. Colocar isso em prática é edificar a casa sobre a rocha. Tempestade alguma será capaz de derrubá-la (Mt 7.24-27). A igreja tem uma sabedoria a anunciar, uma sabedoria, porém, que contém um escândalo. Sem aguentar este escândalo não há vida eterna, nem sobrevivência humana, nem real atendimento de necessidades. c) Reavivar comunidades a serviço da vida: Para concluir, algumas reflexões programáticas sobre como reavivar as comunidades a partir de uma perspectiva evangélica. - Devemos aprender na igreja a argumentar mais e julgar menos. Argumentar na prédica, no ensino, na evangelização, na conversa em família, enfim, em todas as oportunidades. Por que nós cremos em Deus? Por que somos discípulos de Jesus? Por que Jesus foi crucificado? Nossa tarefa não é julgar, rotular, condenar, e sim, convencer. Não existe igreja viva sem membros convictos. E para convencer precisamos de argumentos, do diálogo, da aprendizagem. Naturalmente não é possível “demonstrar” o evangelho. Mas também a fé tem as suas razões e devemos estar preparados para responder às razões da esperança que há em nós (1 Pe 3.15). - Para convencer, no entanto, não basta apenas o argumento. É necessário o exemplo, uma conduta condizente com aquilo que professamos. Jamais conseguiremos convencer alguém enquanto dizemos uma coisa e praticamos outra. Aliás, pessoas exemplares não significa pessoas perfeitas, sempre certas, sempre por cima. Tais pessoas são, inclusive, suspeitas. Pessoas exemplares são pessoas que não escondem suas fraquezas, que têm coragem de confessar seus pecados, que vivem na luta consigo mesmas e na tentativa sempre renovada de seguir a Cristo. Precisamos dessas pessoas – pessoas que sabem orar, ser humildes e, por isto, misericordiosas. Jamais seremos igreja viva se não tentarmos vivenciar o evangelho, ainda que de forma imperfeita. - Para convencer as pessoas é necessário, igualmente, disposição para assumir sofrimento, respectivamente, ter sensibilidade para ele. O sofrimento humano em nosso país e no mundo é imenso. Doença, pobreza, solidão, frustração, depressão, desemprego, desorientação e outros sofrimentos nos cercam e marcam também a nós, de uma ou de outra forma, como experiência de vida. Nós proclamamos
  • 14. alguém que tomou sobre si as nossas enfermidades, que disse:”Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Até que ponto, de fato, estaremos em condições de ajudar, é outra pergunta. Importante é, em primeiro lugar, aprender a compreender pessoas em dificuldade, ouvir os abafados gritos de socorro, estar ao lado dos que sofrem, fazê-los sentir proximidade humana. Isto começa na família, em casa. Até que ponto os pais estão antenados para os problemas dos filhos, e vice-versa? Isto se aplica à escola, isto deve acontecer, sobretudo, na comunidade. Ela deve buscar os membros que sofrem. A sensibilidade para o sofrimento deve nortear, finalmente, também a política. Amor, em todo caso, não passa de largo pelo sofrimento, como o sacerdote e o levita na parábola do bom samaritano. - Com isto já está dito também que, como comunidade cristã, não podemos enxergar apenas um tipo de necessidade humana e nele concentrar toda a nossa atenção. É constrangedora, por exemplo, a pobreza teológica que se observa nos programas midiáticos. A pregação e a prática eclesiástica sempre giram em torno das mesmas coisas. Por outro lado, não podemos cair no erro oposto de abarcar todas as frentes. As necessidades devem ser analisadas criticamente a partir do evangelho para podermos distinguir o que é realmente necessidade e o que não passa de interesse individual. Não podemos concentrar nossa atenção unicamente nas necessidades espirituais, sob desconsideração das materiais, e vice-versa. A vida que Deus destinou à sua criatura não se limita nem à salvação da alma nem à mera sobrevivência física. O ser humano vive de pão, mas também de toda palavra que procede da boca de Deus. - Para estar a serviço da vida, em síntese, a igreja deve atuar em diversas áreas: na área pastoral, isto é, deve cuidar de seus membros, pregar-lhes a palavra, oferecer-lhes os sacramentos; na área profética, isto é, deve ser a voz de Deus no mundo, anunciando a sua vontade e denunciando o pecado; na área catequética, isto é, aprofundar a solidificar a fé e ensinar aos povos tudo o que Jesus ordenou; na área diaconal, isto é, estimular a vivência da fé no serviço aos mais necessitados; na área missionária, isto é, anunciar o evangelho a pessoas que não o conhecem, integrá-las na comunidade, ser um sinal do reino proclamamos e aguardamos na sua plenitude. ___________________________________________________________________ * Texto didático elaborado a partir de três artigos do Dr. Gottfried Brakemeier: - Na santa igreja cristã, a comunhão dos santos. In: ALTMANN, Walter. Nossa fé e suas razões. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2004,147-155. - Dez boas razões para viver em comunidade. In: Por que ser cristão? São Leopoldo: Editora Sinodal, p.47-66. - Reavivamento comunitário. In: Testemunho da fé em tempos difíceis. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1990, p.81-91. Responsável pela elaboração: Prof. Verner Hoefelmann