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                  A revolução, 1917-1921


     Nenhum acontecimento desde a Revolução Francesa ocasionou tama-
nha efusão de estudos históricos e tanto debate apaixonado como a Revo-
lução Russa. O interesse e o empenho são compreensíveis, porque as
questões são complexas e a parada elevada. A revolução não foi apenas
um acontecimento importante na história da Rússia, transformando uma
sociedade antiquada e alterando o modo de vida de milhões de pessoas,
foi também um catalizador no desenvolvimento do nosso mundo. Para o
bem ou para o mal, a interpretação da revolução não ficou confinada aos
historiadores; pessoas de todos os segmentos do espectro político sempre
tiveram consciência da importância política da historiografia.
     Todos os aspectos da revolução já foram bem analisados pelos histo-
riadores, mas nenhum recebeu tanta atenção como a história do movi-
mento revolucionário. Isso é compreensível: os revolucionários que
lutaram contra o repressivo regime czarista mostraram-se com frequência
dispostos a sacrificar a vida por uma causa em que acreditavam profunda-
mente. Muitos foram homens e mulheres extraordinários, e as suas histó-
rias são fascinantes. No entanto, talvez seja um erro procurar uma expli-
cação para a revolução no trabalho de subversivos clandestinos; porque
nem o governo czarista nem o governo provisório foram derrubados

                                   29
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


por revolucionários, nem mesmo por operários e camponeses insa-
tisfeitos.
     Talvez seja mais útil pensar nos acontecimentos de 1917 como o
colapso de dois sistemas de governo diferentes, primeiro o autocrático e
depois o liberal. As questões decisivas não eram saber por que razão os
trabalhadores estavam descontentes e exactamente o que queriam, mas
como e por que razão diferentes formas de governo se desintegraram.
Segundo esta perspectiva os acontecimentos revolucionários foram a
manifestação de uma crise de autoridade. A questão fundamental era
política: de que forma podia a Rússia ser governada? Conclui-se desta
interpretação da revolução que o sucesso bolchevique em Outubro não foi
nem o apogeu nem o termo da revolução, mas o ponto mais baixo da crise.
A questão de se saber que forma de governo era necessária para a Rússia
em circunstâncias excepcionalmente difíceis só seria verdadeiramente
resolvida pela guerra civil.




               A REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO

    Os acontecimentos que vieram a ser chamados «revolução de Feve-
reiro» podem ser brevemente resumidos. A 23 de Fevereiro de 1917 – Dia
Internacional da Mulher – os operários das fábricas de têxteis, na sua
maioria mulheres, entraram em greve e fizeram uma manifestação exi-
gindo pão. Eles sabiam que a cidade tinha uma reserva de farinha que
duraria apenas dez dias. Aos primeiros manifestantes depressa se junta-
ram os trabalhadores das metalurgias, incluindo os das enormes oficinas
de Putilov, a mais importante fábrica de armamento de Petrogrado. Nada
havia de particularmente novo ou extraordinário nas greves e mani-
festações, que eram cada vez mais frequentes; e a princípio as autoridades
não se mostraram excessivamente preocupadas. Acreditavam que os
distúrbios tinham sido causados apenas por preocupações relativamente
ao fornecimento de víveres e que seriam capazes de reprimir qualquer
possível sublevação. As manifestações, contudo, não só continuaram
como atraíram cada vez mais participantes, e os seus slogans adquiriram
um cunho cada vez mais político.
    A 24 de Fevereiro, segundo os registos policiais, existiam entre
150.000 e 200.000 manifestantes, a maior acção do género na cidade


                                    30
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


desde o início da guerra. No dia seguinte havia ainda mais gente nas ruas,
e os observadores notaram uma relutância crescente entre os cossacos,
defensores tradicionais da autocracia, em dispersar as multidões. Então as
autoridades ficaram alarmadas. O czar, do quartel-general do seu exército
em Mogilev, telegrafou ao infeliz comandante militar da cidade, o general
Sergei Khabalov, ordenando-o «a pôr fim às desordens a partir de
amanhã».
    O dia 26 de Fevereiro, um domingo, foi o momento decisivo: os
soldados, que durante dias se haviam misturado livremente com as
multidões, tinham agora ordens para atirar a matar. Embora dezenas de
líderes dos trabalhadores fossem presos e, pelo menos durante um breve
período, a cidade ficasse mais calma, sobreveio uma quebra fatal na von-
tade dos soldados de obedecer à ordem do czar. Durante os dias seguintes
Petrogrado mergulhou na anarquia. Um número ainda maior de soldados
juntou-se aos revolucionários e em dois dias quase nada restava da
guarnição militar da cidade. A ausência de autoridade levou a tiroteios e
matanças indiscriminadas.
    A 27 de Fevereiro, o último governo czarista, chefiado pelo príncipe
Nikolai Golitsyn, demitiu-se. No dia seguinte o czar demitiu o general
Khabalov, que perdera o sangue-frio e não fora capaz de pacificar a
cidade, e nomeou um general idoso, Nikolai Ivanov, ditador militar da
Petrogrado. Mas era obviamente demasiado tarde: Ivanov não tinha quais-
quer forças leais à sua disposição, e o destino da ordem czarista estava
traçado. Ao perceber que não podia esperar qualquer apoio do exército,
Nicolau abdicou a 2 de Março a favor do seu irmão Miguel, que, temendo
pela vida, não aceitou. No dia 3 de Março, o domínio de três séculos da
dinastia Romanov chegava ao fim.
    O descontentamento que culminou em greves e manifestações não foi
inesperado. Afinal, a Rússia já conhecera uma vaga revolucionária entre
1905 e 1907, e os outros países beligerantes também sofriam as conse-
quências do conflito civil, à medida que o custo da guerra se tornava cada
vez mais evidente. No entanto, o momento e a facilidade com que o sis-
tema imperial se desmoronou foram surpreendentes. Leon Trotsky, exce-
lente cronista da revolução, colocou a questão, «Quem chefiou a revolu-
ção?». Concluiu que um punhado de bolcheviques lhe haviam fornecido
o necessário espírito orientador. Na sua versão da história, os trabalhado-
res anónimos que tinham saído para as ruas agiam em nome dos bolche-
viques. Mesmo um exame superficial mostra que esta ideia é insusten-


                                    31
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


tável, pois seria absurdo supor que os trabalhadores precisassem dos
bolcheviques para lhes dizer que estavam com fome e cansados da guerra.
Não existem quaisquer provas que demonstrem que revolucionários com
consciência de classe tivessem desempenhado um papel importante
durante aqueles dias caóticos. Mas mesmo que concedêssemos esse ponto
a Trotsky, pouca diferença faria. O acontecimento importante em Feve-
reiro não foi a manifestação dos trabalhadores; foi a recusa dos soldados
de obedecer às ordens. Quando a cadeia de comando e os vínculos de
autoridade se quebraram, a ordem imperial desmoronou-se com uma velo-
cidade espantosa.
     Os soldados desafiaram os seus oficiais devido a ódios pessoais, a um
sentimento de opressão e ao descontentamento com a condução da guerra.
Aos seus olhos, os oficiais, o exército e, no fundo, todo o sistema czarista,
tinham perdido prestígio em consequência da péssima gestão da guerra.
Os regimentos mais desmoralizados tinham sido colocados na capital, e
esses soldados eram os que mais animosidade sentiam contra os seus ofi-
ciais. Esses regimentos, o elo fraco no exército, foram compreensivel-
mente os primeiros a revoltar-se.
     É mais fácil perceber o comportamento dos soldados do que o dos
oficiais. A facilidade com que também estes abandonaram o seu monarca
é impressionante. O general Mikhail Alekseev, chefe do Estado-maior do
czar e comandante de facto dos exércitos russos, ajudou a convencer o seu
soberano a abdicar; e os generais mais poderosos, os comandantes das
cinco «frentes», todos manifestaram o seu apoio aos argumentos de
Alekseev. Entre as dezenas de milhar de oficiais, apenas dois comandan-
tes ofereceram os seus serviços ao czar, e apenas dois homens preferiram
demitir-se a jurar lealdade ao governo provisório. Este comportamento
precisa de uma explicação. Com toda a certeza, a maioria dos oficiais, se
tivesse opinião política, era monárquica. Na Primavera de 1917, contudo,
pareceu-lhes que ir em auxílio do czar conduziria à guerra civil, e que isso
comprometeria seriamente o esforço nacional para resistir ao inimigo
estrangeiro. A guerra afigurava-se decisivamente importante para os ofi-
ciais. Afinal, em três anos de combates tinham sacrificado milhões dos
seus compatriotas – tinham de acreditar na importância daquela guerra
para preservar a sua sanidade mental.




                                     32
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


                         O DUPLO PODER

    Os Russos receberam o fim do czarismo com entusiasmo. Embora a
revolução não resolvesse os problemas controversos que a nação enfren-
tava, pelo menos durante algum tempo ela criou uma aparência de
unidade. Grupos diferentes podiam interpretar os acontecimentos à sua
maneira e, por um tempo, expectativas e objectivos contraditórios
puderam coexistir pacificamente: alguns esperavam que a revolução
apressasse o fim da guerra; outros tinham a esperança de que um exército
«democrático» combatesse melhor.
    O governo do czar enfrentara dois inimigos: os operários e os sol-
dados – camponeses de uniforme – revoltando-se contra a opressão, e os
liberais, que tinham perdido a confiança na capacidade do governo para
defender os interesses da nação. Os que queriam uma revolução social e
aqueles cujos objectivos se circunscreviam à reforma política tinham
colaborado durante algum tempo numa aliança difícil. Com o desapareci-
mento do czarismo, estas duas forças sociais, socialistas e liberais, esta-
beleceram instituições independentes.
    A Duma, o parlamento russo, tinha sido eleita pela última vez em
1912 com base num sufrágio restritivo. Embora os seus membros repre-
sentassem quase exclusivamente a Rússia privilegiada, a Duma tornou-se
apesar disso o melhor fórum para criticar as políticas do czar e do seu
governo. Eminentes políticos tinham exigido repetidas vezes um governo
responsável perante a assembleia e uma democratização geral (embora
limitada) do sistema político. Antes de se demitir, o último governo
czarista interrompeu os trabalhos parlamentares, e os deputados não se
opuseram às autoridades. Uma assembleia não oficial de deputados reali-
zou-se a 27 de Fevereiro, na qual os representantes da direita se recusaram
a participar. Esta assembleia elegeu uma comissão provisória que viria a
dar origem ao futuro governo provisório. Criou-se assim uma situação
paradoxal: a burguesia liberal, cujo ponto de vista estava representado no
novo governo, não só não fez a revolução, como na verdade temia-a. A
maioria dos políticos liberais esperava que a monarquia pudesse ser
poupada, de uma maneira ou de outra. Como cidadãos respeitáveis, não
toleravam a revolução social, nessa altura uma ameaça cada vez mais
palpável.
    Contrariamente ao desejo da maioria dos liberais, o czar abdicou a 2
de Março, e a comissão provisória constituiu-se em governo para impedir

                                    33
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


a anarquia. Os liberais consideravam-se sucessores naturais do defunto
governo, e esperavam permanecer no poder até que uma Assembleia
Constituinte pudesse ser convocada. Uma vez que a assembleia que ele-
gera a comissão provisória não tinha sido oficial, e os ministros se haviam
mais ou menos nomeado a si mesmos, a legitimidade do governo provi-
sório era posta em causa. Para os políticos liberais, que acreditavam no
domínio da lei, isso era uma desvantagem significativa.
    O novo governo da Rússia era dominado por pessoas que tinham
criado as suas reputações na Duma durante e antes da guerra, exigindo
reformas liberais. Os políticos dos dois principais partidos liberais, os
Kadets e os Outubristas, que se situavam um tanto à direita, receberam as
pastas mais importantes. O príncipe Georgi Lvov, político independente
algo apagado e ex-presidente da União de Zemstva, tornou-se primeiro-
-ministro; como outubrista, Aleksandr Guchkov, o principal porta-voz na
Duma de assuntos de defesa, tornou-se ministro da Defesa; e Pavel
Miliukov, eminente historiador e líder dos Kadets, assumiu a pasta dos
Negócios Estrangeiros.
    O outro centro de poder que viria a dominar a paisagem política
durante os meses seguintes era o Soviete dos Deputados dos Trabalha-
dores de Petrogrado. O soviete foi constituído quase ao mesmo tempo que
a comissão provisória da Duma. Embora no início, em 1905, os sovietes,
incluindo o mais importante em Sampetersburgo, fossem organizações
genuinamente operárias, os intelectuais socialistas radicais tinham aos
poucos vindo a desempenhar um papel dominante nas mesmas. O mesmo
fenómeno ocorreu em 1917. A princípio, os líderes Socialistas Revolucio-
nários e Mencheviques eram os mais influentes. A importância do Soviete
de Petrogrado era desproporcional ao número de soldados e operários que
representava, porque tinha a capacidade de fazer pressão sobre o governo.
Era uma organização livre, que a dada altura tivera mais de 3500 repre-
sentantes. A sua actuação era fortuita. Devido ao grande número de dele-
gados e aos procedimentos desorganizados, o comité executivo adquiriu
uma influência preponderante. Mas dentro de pouco tempo até mesmo
este comité atingiu um tamanho incomportável de mais de 50 pessoas. Era
através do comité executivo que os políticos socialistas exerciam a sua
influência sobre os genuínos representantes dos operários e dos soldados.
    Aleksandr Kerenski, político Socialista Revolucionário moderado e
deputado da Duma, foi eleito um dos dois vice-presidentes do Soviete de
Petrogrado. Sem autorização explícita do Soviete, aceitou também a pasta


                                    34
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


da justiça no governo, tornando-se assim a única pessoa com um pé em
ambos os campos, facto que o levou a adquirir importância e poder
durante os meses seguintes. Kerenski, orador competente e carismático,
conquistou rapidamente um séquito de seguidores nas circunstâncias
revolucionárias.
     No dia 1 de Março, o Soviete de Petrogrado emitiu a sua famosa
«Ordem n.º 1», segundo Trotsky, o documento mais valioso da revolução
de Fevereiro. Embora a ordem se dirigisse apenas à guarnição militar de
Petrogrado, o seu impacto depressa se fez sentir no exército inteiro.
Apelava aos soldados para formar sovietes em todas as unidades militares
até ao nível das companhias; pedia aos soldados para obedecer às ordens
da Comissão Militar da Duma (o governo provisório ainda não tinha sido
constituído) apenas se as mesmas não contrariassem as ordens do Soviete
de Petrogrado; aboliu as antigas formas de tratamento dos oficiais; e
conferiu aos soldados todos os direitos de cidadania, incluindo a partici-
pação plena na política, quando não estavam de serviço.
     Embora esta ordem tivesse sido sem dúvida redigida num espírito
hostil aos oficiais; o seu alcance não deve ser exagerado. Exprimia a hos-
tilidade que os soldados sentiam, não a criou. Em Fevereiro de 1917, os
oficiais perderam o domínio dos seus soldados, e nunca conseguiram
restabelecer a sua autoridade. A maioria dos oficiais acreditava que tinha
sido a Ordem n.º 1 a maior responsável pela destruição da capacidade de
combate do exército. Em vez de avaliarem a situação com realismo, pre-
feriram culpar os socialistas pelas suas frustrações.
     Assim, da revolução de Fevereiro surgiu uma singular ordem cons-
titucional. O país tinha agora um governo que foi rápida e entusiastica-
mente reconhecido por todas as potências aliadas estrangeiras. Esse
governo tomou conta da velha máquina administrativa do Estado czarista
sem dificuldade e tinha, pelo menos por enquanto, o apoio do alto
comando do exército. O governo, contudo, tinha menos poder efectivo do
que o Soviete dos Deputados dos Trabalhadores e Soldados de Petro-
grado. Embora os políticos socialistas do soviete não dirigissem de modo
nenhum a revolução, ainda assim a maior parte dos trabalhadores e solda-
dos de Petrogrado, e pouco depois o país inteiro, reconhecia aquela insti-
tuição como sua. O soviete de Petrogrado, ao contrário do governo provi-
sório, podia apelar aos trabalhadores e soldados para se manifestarem e
levaram a cabo acções revolucionárias. Os ministros compreendiam bem
que detinham os seus cargos com a tolerância dos socialistas do soviete.


                                   35
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


    A questão põe-se: porque é que os socialistas moderados não toma-
ram todo o poder quando os seus opositores não se encontravam em boas
condições de resistir? Lenine tinha sem dúvida razão quando pouco
depois os acusou de timidez. Os socialistas, muitos acabados de sair da
prisão, tinham dificuldade em imaginar-se como ministros; para eles
parecia natural que se devesse confiar o poder aos liberais. Faltava-lhes
aquele desejo de poder que Lenine tão claramente possuía. Além disso, os
mencheviques, pelo menos, eram influenciados por crenças marxistas
fortemente arraigadas, segundo as quais a Rússia estava pronta para se
libertar dos restos do feudalismo e tomar o caminho do desenvolvimento
capitalista mas não ainda para uma revolução socialista.
    A discórdia não podia deixar de surgir entre os que detinham autori-
dade mas nenhum poder, enquanto os que podiam comandar os operários
e os soldados mas não tinham qualquer responsabilidade formal.




      OS PROBLEMAS DO GOVERNO PROVISÓRIO

    Os liberais encontraram-se numa situação irónica: as forças que os
colocaram no poder acabaram por os destruir. O governo czarista falhou
porque a Rússia não podia ser governada durante uma guerra moderna
com base nos princípios em que a elite czarista acreditava. No entanto, em
1917, era também impossível criar instituições governamentais com base
em princípios liberais. Os problemas que o país enfrentava eram dema-
siado grandes, e não havia qualquer consenso sobre como abordá-los; a
experiência liberal estava por isso condenada ao fracasso. Embora os
membros do governo provisório possam ser criticados por cometer erros
e hostilizar desnecessariamente vários grupos políticos importantes, é
impossível imaginar, mesmo retrospectivamente, que políticas, coerentes
com as suas crenças profundas, lhes teriam permitido conservar o poder.
O governo provisório caiu porque foi incapaz de resolver as questões
urgentes do momento; a guerra, a reforma agrária e a autonomia para as
minorias nacionais.
    De entre estas questões, a da participação na guerra era a mais ime-
diata e difícil. As classes instruídas e privilegiadas da Rússia e as grandes
massas tinham conceitos diferentes de patriotismo. Os soldados campo-
neses estavam cansados de combater numa guerra que se arrastava havia


                                     36
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


três anos, sem fim à vista. A ideia do interesse nacional, cara aos corações
dos liberais, fazia pouco sentido para os soldados. Eles pouco se inte-
ressavam em tornar Constantinopla russa, ou no carácter sagrado dos tra-
tados internacionais. Por outro lado, os membros do governo provisório,
que representavam as classes privilegiadas, acreditavam firmemente que
a Rússia tinha de permanecer fiel aos seus aliados. Os oficiais no exército
e os políticos não foram capazes de perceber o grau de descontentamento
entre os soldados camponeses, como antes o governo czarista não fora
capaz de reconhecer o estado de espírito do povo.
     Durante 1917 as crises políticas sucederam-se umas às outras, e em
todas a questão fundamental era o esforço de guerra da nação. Os mem-
bros do primeiro governo provisório estavam tão decididos quanto o
governo czarista a levar a guerra a uma conclusão vitoriosa. Entre a
posição dos soldados e trabalhadores cansados da guerra e a do governo
provisório encontrava-se o Soviete de Petrogrado. As principais figuras
do soviete reconheciam que a guerra não podia acabar com o abandono
puro e simples do campo de batalha por parte dos soldados Russos. Eles
assumiam uma posição «defensiva»: concordavam com a continuação da
guerra enquanto o solo russo estivesse ocupado, mas opunham-se a uma
política de anexar territórios estrangeiros e exigir indemnizações aos
derrotados.
     O governo provisório e os líderes soviéticos têm sido responsabiliza-
dos pelos historiadores por não terem posto fim à guerra. É verdade que
todos os políticos liberais e muitos socialistas acreditavam na importância
da guerra e nada fizeram para acabar com ela. Por outro lado, mesmo que
quisessem, é muito pouco provável que o tivessem conseguido. Como
demonstrou a experiência dos bolcheviques em 1917, os Russos não
poderiam ter obtido dos Alemães condições de paz aceitáveis para os poli-
ticamente poderosos. Os Alemães julgavam-se vitoriosos e não estavam
dispostos a negociar.
     A primeira crise política surgiu em Abril. O ministro dos Negócios
Estrangeiros, Miliukov, escreveu aos governos aliados informando-lhes
que a Rússia cumpriria todos os seus compromissos e lutaria até uma
«vitória decisiva». A publicação desta nota nos jornais provocou uma
onda de indignação. A política do governo contradizia os princípios anun-
ciados pelos líderes do soviete, que consideraram a publicação da nota
uma provocação. Os manifestantes nas ruas e o Soviete de Petrogrado
obrigaram Miliukov a demitir-se, e o ministro da Defesa, Guchkov,


                                    37
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


seguiu-o pouco depois. Um novo governo de coligação teve de ser for-
mado, com uma composição diferente: incluía seis membros socialistas,
entre eles Kerenski, que passou a assumir a importante pasta da Defesa.
Os acontecimentos de Abril mostraram que o governo provisório não
podia agir sem o apoio explícito do Soviete de Petrogrado.
    A crise seguinte ocorreu em Junho, quando Kerenski deu início a uma
grande e precipitada ofensiva. Ele tinha dois móbeis: em primeiro lugar,
o Alto Comando russo antes da revolução de Fevereiro prometera aos
aliados que empreenderia operações militares activas para facilitar um
avanço há muito esperado na frente Ocidental. Em segundo lugar,
Kerenski evocou a experiência da Revolução Francesa, quando as tropas
da França democrática combateram com êxito a coligação de Estados
autocráticos; ele acreditava que uma ofensiva bem sucedida contribuiria
para reacender o espírito de combate no exército. A ofensiva redundou
num desastre. Após alguns êxitos iniciais e locais dos Russos, os Ale-
mães, que tinham sido avisados, fizeram recuar os atacantes com facili-
dade, infligindo-lhes pesadas baixas. Manifestamente, as desmoralizadas
tropas russas não estavam em condições de levar a cabo operações
ofensivas com sucesso. Kerenski, que esperara colher vantagens políticas
do êxito militar, teve na realidade de pagar um elevado preço pelo
fracasso.
    No início de Julho ocorreram graves distúrbios em Petrogrado. Pela
primeira vez, os soldados e os trabalhadores da cidade revelaram-se mais
radicais do que a chefia socialista do Soviete. Os problemas começaram
quando um regimento, temendo ser enviado para a frente, se amotinou.
Depressa os trabalhadores se juntaram aos soldados, e durante algum
tempo a sobrevivência de todo o duplo sistema de governo esteve em
dúvida. O governo, apoiado pela liderança do soviete, conseguiu enviar
tropas frescas para Petrogrado e restabelecer a ordem. Em consequência
deste incidente, o príncipe Lvov demitiu-se e Kerenski tornou-se final-
mente primeiro-ministro.
    Algumas semanas depois foi a vez da direita tentar alterar a ordem
política vigente na Rússia através da força. Em Julho, Kerenski nomeou
Lavr Kornilov comandante-chefe das forças armadas russas, em grande
parte porque o general prometeu restabelecer a ordem entre as tropas des-
moralizadas. Os militares estavam cada vez mais descontentes com o
rumo dos acontecimentos. Acusavam o governo de não ter tomado medi-
das enérgicas contra os «agitadores» e suspeitavam de traição entre os


                                   38
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


líderes do soviete. O novo comandante-chefe decidiu resolver pessoal-
mente o assunto. Enviou tropas para Petrogrado para dispersar o soviete.
Quando o primeiro-ministro lhe pediu para renunciar ao comando, ele
recusou-se. O erro do general Kornilov não foi só amotinar-se – pior do
que isso, ele geriu mal a sua revolta. Sobrestimou as suas forças; não con-
duziu pessoalmente as tropas e não se preparou devidamente assegurando
o apoio dos grupos conservadores. O fracasso da sua empresa foi rápido e
completo: os soldados não obedeceram às ordens e os trabalhadores dos
caminhos-de-ferro impediram os comboios de transportar as suas tropas
para a capital. Kornilov e os seus colegas amotinados foram presos.
     O resultado conjunto das «jornadas de Julho» em Petrogrado e do
caso Kornilov foi desastroso para o governo provisório. Os liberais e os
socialistas moderados desagradaram primeiro à esquerda e depois à
direita. Numa altura em que era evidente a ameaça de ambos os extremos
políticos, a tentativa do governo de se interpor entre forças cada vez mais
hostis estava condenada. A direita achava que o governo existente não era
capaz de prosseguir com êxito a guerra, e a esquerda percebeu que o
mesmo não conseguia ou não queria pôr fim aos combates.
     Embora a incapacidade dos políticos de resolver o problema da
reforma agrária não tivesse provocado crises tão espectaculares como a
questão da participação na guerra, ainda assim prejudicou a capacidade de
actuação do governo. É muito mais difícil descrever a agitação camponesa
de 1917 do que o movimento dos operários e soldados revolucionários,
porque os camponeses não possuíam uma liderança nacional que arti-
culasse os seus objectivos e coordenasse acções revolucionárias. No
entanto, o papel dos camponeses em impedir a consolidação do domínio
liberal foi tão importante como o dos operários.
     Os camponeses há muito que se preocupavam com o desejo de terras.
Quando os servos foram alforriados em 1861, receberam aproximada-
mente metade da terra que tinham cultivado antes; mas esse foi um arranjo
que a maioria considerou injusto – eles queriam tudo. À medida que a
população crescia nas décadas anteriores à I Guerra Mundial, a procura de
terra aumentava. Em 1917, quando a autoridade central se desmoronou, os
camponeses quiseram fazer a sua própria revolução, o que para eles signi-
ficava sobretudo uma redistribuição das terras. Poucos compreendiam que
mesmo a ocupação de todas as terras da nobreza não era uma solução de
longo prazo: considerando os métodos de cultivo na Rússia, não havia
simplesmente terra suficiente para toda a gente que desejava cultivá-la. Os


                                    39
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


membros do governo, evidentemente, tinham plena consciência da impor-
tância da questão da reforma agrária, e em princípio não se opunham à
ideia. Na prática, contudo, nada fizeram. Em primeiro lugar, levar a cabo
a reforma agrária em tempo de guerra, quando milhões de camponeses
integravam o exército, teria acabado com a eficiência das tropas. Os sol-
dados camponeses teriam abandonado os seus regimentos para voltar às
suas aldeias e reclamar a sua parte. Em segundo lugar, o governo não
possuía os mecanismos para empreender um processo inevitavelmente
complexo. Em terceiro lugar, os ministros liberais partiam do princípio
que os latifundiários tinham de ser compensados pela sua propriedade.
Em 1917, o governo carecia obviamente dos recursos necessários para
indemnizar os que seriam expropriados. Dadas estas dificuldades, o
governo foi defendendo que a resolução da questão agrária tinha de
esperar pela convocação da Assembleia Constituinte.
     Por causa desta falta de acção os camponeses voltaram-se decidida e
progressivamente contra o governo provisório. A posição do governo nas
aldeias nunca tinha sido forte, mesmo no início. No tempo dos czares, os
principais representantes do poder governamental eram os supervisores de
terras – funcionários públicos nomeados que controlavam as estruturas
judiciais e policiais. Os supervisores tinham sido impopulares, e o
governo provisório abolira o cargo. Segundo o plano de reformas, as
funções dos supervisores passariam a ser desempenhadas por comités
regionais eleitos. Estes comités, e a antiga comuna, tornaram-se os verda-
deiros governantes da aldeia. Os camponeses passaram a deter um grau de
autonomia sem precedentes. Infelizmente para o governo, a autonomia
camponesa não se revelou um bastião de estabilidade. Pelo contrário, as
instituições camponesas foram utilizadas para atacar a propriedade
privada.
     Existe alguma ironia em tudo isto. Durante décadas o governo czarista
tinha apoiado as comunas dos camponeses na esperança de que elas
fomentassem a estabilidade. Na altura da revolução, contudo, foram preci-
samente as comunas camponesas que organizaram violentas ocupações de
terras. As comunas eram os equivalentes dos sovietes nas cidades; sem
elas a revolução camponesa não teria sido bem sucedida. Antes da revo-
lução, os intelectuais socialistas e liberais achavam que a comuna era um
remanescente do passado em vias de extinção. Mas agora que os campo-
neses detinham algum poder sobre as suas próprias vidas, estas institui-
ções ganhavam um novo alento. A confiscação das terras dos grandes


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A REVOLUÇÃO, 1917-1921


proprietários não foi feita por indivíduos, mas pelas comunas de cam-
poneses, que depois dividia a terra entre os seus membros. As confisca-
ções ilícitas de terras e os assaltos às propriedades dos latifundiários
começaram em Maio e tornaram-se cada vez mais ameaçadoras durante o
Verão. O governo não conseguia satisfazer os camponeses nem conter as
suas acções revolucionárias. Não conseguia conquistar nem a fidelidade
nem o respeito dos camponeses.
     A terceira fonte de conflito durante o período do governo provisório
foi o crescente desejo de autonomia das minorias nacionais. A Rússia tem
sido um Estado multi-étnico desde a sua fundação. As minorias, que cons-
tituíam metade da população do império, eram muito diferentes entre si no
que dizia respeito ao desenvolvimento económico e cultural e ao grau de
consciência nacional. Enquanto o império fosse forte, o nacionalismo das
minorias não ameaçava a estabilidade do Estado. Com a excepção dos
Polacos e talvez dos Finlandeses, as aspirações nacionalistas circunscre-
viam-se a pequenos grupos de pessoas interessadas sobretudo em auto-
nomia cultural. Em 1917, a questão das nacionalidades ainda não tinha a
mesma importância urgente que as questões da paz e da terra; no entanto,
prefigurava já uma grande fonte de instabilidade durante a guerra civil. O
governo provisório não conseguia satisfazer as crescentes aspirações
nacionalistas de um grande número de pessoas, nem podia reprimi-las. A
Rússia imperial era um domínio multinacional; os Russos constituíam
apenas metade da população. Quando o Estado era forte, o desejo de
autonomia das minorias raramente era ouvido. Apenas os Polacos, que
tinham uma longa história de independência nacional, foram um incó-
modo permanente para o governo russófilo do regime imperial. Quando o
Estado começou a desintegrar-se a seguir à revolução de Fevereiro, deu-
se rapidamente um aumento da consciência nacional. A maior parte da
Polónia estava ocupada pelos Alemães no Verão de 1917, e por isso os
Polacos não constituíam para o governo um problema imediato. Em 1917,
o desafio mais difícil vinha dos Ucranianos.
     Os Ucranianos criaram o seu próprio parlamento, o Rada. Os mem-
bros socialistas do governo provisório mostravam-se dispostos a outorgar
autonomia efectiva à Ucrânia, mas os Kadets no seio da coligação opu-
nham-se, acreditando que ceder aos Ucranianos seria o primeiro passo
para a desintegração do império. Foi esta divergência que levou à queda
do governo de Lvov mesmo antes das jornadas de Julho, e à ascensão de
Kerenski ao cargo de primeiro-ministro. A questão do lugar da Ucrânia no


                                   41
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


espaço do futuro Estado russo democrático estava longe de se encontrar
resolvida quando o governo provisório deixou de existir.




           OS BOLCHEVIQUES E OS OPERÁRIOS

     Em Fevereiro de 1917 existiam menos de 25 000 bolcheviques no
país inteiro; apenas cerca de 3000 actuavam na capital. Os líderes mais
importantes encontravam-se no exílio. Os bolcheviques, obedecendo a
Lenine, haviam-se oposto à participação da Rússia na I Guerra Mundial,
denunciando-a como imperialista. Eles apelavam à transformação do
conflito internacional numa guerra civil, incitando os explorados de todo
o mundo a voltar as suas armas contra os exploradores. Nessas circuns-
tâncias, é compreensível que o governo czarista os tivesse perseguido de
forma mais resoluta do que aos outros socialistas.
     Na altura da revolução de Fevereiro, Lenine estava exilado na Suíça.
Iosif Estaline e Lev Kamenev foram os primeiros líderes a regressar a
Petrogrado do seu exílio siberiano e a dirigir a política do Partido. A sua
orientação era moderada. Reconhecendo a fraqueza da sua posição, não
viram outra alternativa senão trabalhar com os mencheviques e os socia-
listas revolucionários no Soviete de Petrogrado e desse modo aceitar
implicitamente colaborar com o governo provisório.
     Essa orientação era impensável para Lenine. Nem por um momento
ele se deixou seduzir pela ideia da unidade socialista. Aceitou a oferta
alemã de o ajudar a regressar ao seu país através de território alemão,
apesar de saber que essa aparente colaboração com o inimigo em tempo
de guerra implicava riscos políticos. Os Alemães deixaram-no regressar a
casa, acreditando que a presença dele na Rússia contribuiria para a
desintegração do governo. O partido de Lenine receberia mais tarde apoio
financeiro da Alemanha. Os antibolcheviques da altura e desde então
atribuíram grande importância a esse facto, chegando mesmo a descrever
a revolução como produto da subversão estrangeira. Estas acusações não
têm fundamento. O facto de os interesses dos bolcheviques e dos Alemães
terem coincidido temporariamente não transformou nenhuma das partes
em fantoche da outra. Em primeiro lugar, a quantia de dinheiro que os
leninistas receberam não podia fazer grande diferença. No que diz res-
peito a recursos financeiros, os bolcheviques estavam muito pior do que


                                    42
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


os seus inimigos. Em todo o caso, os revolucionários acreditavam que o
império alemão se desmoronaria dentro de pouco tempo em consequência
da vitória da revolução mundial. Os leninistas não se preocupavam com a
moralidade de aceitar dinheiro dos inimigos do seu país. Acreditavam que
os interesses da revolução social se sobrepunham aos interesses nacionais,
e que nessas circunstâncias pouco importava qual dos campos imperia-
listas beneficiaria a curto prazo das acções bolcheviques. Ironicamente,
muitas das pessoas que mais clamorosamente denunciaram Lenine como
traidor não hesitaram em aceitar a ajuda dos Alemães depois da revolução
bolchevique, comprovando desse modo a ideia: os interesses da luta de
classes em certas circunstâncias sobrepõem-se aos interesses da luta
nacional.
     Na singular carreira de Lenine um dos momentos mais extraordiná-
rios foi o seu regresso a Petrogrado após anos de exílio. Ele não se deixou
contagiar pelo entusiasmo generalizado criado pela vitória sobre o
czarismo. Não estava disposto a parar, mas ansioso por seguir em frente.
Logo na estação de comboio anunciou as suas famosas Teses de Abril. O
essencial era que os bolcheviques não deviam apoiar a ordem política
existente, mas começar imediatamente a trabalhar para derrubar o
governo, que Lenine considerava porta-voz da burguesia. Todas as suas
exigências concretas – todo o poder aos sovietes, a nacionalização da
terra, o controlo operário da indústria, o fim imediato da guerra – basea-
vam-se no pressuposto de que, contrariamente à análise marxista, o país
não precisava de um período prolongado de desenvolvimento capi-
talista mas que estava pronto para passar imediatamente à revolução
socialista.
     Em Abril de 1917, o radicalismo deste programa era assombroso. Os
sovietes, aos quais Lenine queria dar o poder, pertenciam aos seus inimi-
gos políticos: os bolcheviques constituíam apenas pequenas minorias nos
importantes sovietes do país. No que dizia respeito à guerra, embora a
ideia da continuação dos combates fosse cada vez mais impopular, é
pouco provável que a maioria estivesse disposta a aceitar a paz a qualquer
preço. A animosidade contra os Alemães era ainda profunda. Não obs-
tante, em poucas semanas Lenine conseguiu ganhar o apoio do seu par-
tido. No final de Abril, o Comité Central aprovou uma série de resoluções
no espírito do seu novo radicalismo. A seguir, Lenine conquistou o apoio
de importantes líderes socialistas até então não identificados com os
bolcheviques. Entre estes, o mais importante era Leon Trotsky, que aca-


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HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


bara também de regressar do exílio. No final de Maio, a política leninista
já conquistara também o importante apoio da classe operária.
    Os bolcheviques exprimiram as opiniões e sentimentos dos operários
e camponeses revolucionários, agindo no interesse destes, ou, pelo
contrário, manipularam-nos para seu próprio benefício político? De entre
todos os aspectos da história da revolução, o papel dos bolcheviques, o
carácter do seu partido e a sua relação com os trabalhadores, são os mais
controversos. Durante os primeiros tempos da guerra-fria a maioria dos
historiadores ocidentais descrevia os bolcheviques como um grupo muito
unido e bem organizado que durante a desordem da revolução logrou
impor a sua vontade aos trabalhadores. Segundo esta interpretação, o
partido de Lenine foi essencialmente uma organização manipuladora que
realizou um golpe de Estado em Outubro, sem o apoio da maioria do povo
russo ou dos trabalhadores. Os historiadores Russos pós-soviéticos tam-
bém se inclinam para este ponto de vista (1).
    Outros estudiosos mais recentes, muitos inspirados pela teoria mar-
xista, adoptaram uma abordagem diferente. Eles salientam o radicalismo
inato das classes trabalhadoras. Segundo a sua opinião, durante o combate
revolucionário os trabalhadores adquiriram consciência de classe e
passaram a apoiar o Partido Bolchevique porque este representava os seus
interesses. Os acontecimentos de Outubro, portanto, devem ser vistos
como uma genuína revolução proletária (2).
    É evidente que durante 1917 as classes trabalhadoras se radicaliza-
ram. Esta radicalização ocorreu em grande parte devido à deterioração da
economia. Os trabalhadores começaram a perceber, com cada vez mais
clareza, que o governo provisório não os podia ajudar nem resolver os
problemas do país. Achando que o governo existente não defenderia os
seus interesses, começaram a procurar orientação nas suas próprias orga-
nizações e nos bolcheviques, que haviam sempre representado o ponto de
vista mais radical. As organizações de trabalhadores mais importantes
eram os comités de fábrica estabelecidos pouco depois da revolução de
Fevereiro. Os comités eram mais populares e poderosos do que os sind-
catos porque representavam um tipo de democracia directa que se ade-
quava às circunstâncias caóticas. Podiam rapidamente mudar de política
ao sabor das circunstâncias. Quando Lenine falava da necessidade de os
operários assumirem a direcção das indústrias, estava a pensar no comité
de fábrica como instrumento dessa direcção. Na verdade, os comités
tinham começado a intervir em todos os aspectos da gestão das fábricas


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A REVOLUÇÃO, 1917-1921


muito antes da revolução de Outubro. Na época do governo provisório, os
bolcheviques já tinham assumido o comando desses comités.
     Os historiadores soviéticos encontraram a explicação para o êxito de
Lenine na sua «consistente análise de classes». Mas é possível que Lenine
tivesse apenas sorte. Ele opusera-se à guerra por razões de princípio.
Ansiava pela revolução e insistia numa política radical em grande parte
por uma questão de temperamento. Entretanto o povo russo, sobretudo os
operários e os soldados dos escalões mais baixos, chegava a posições
ideológicas que Lenine já havia defendido. Faz pouco sentido achar que
os trabalhadores tivessem aderido à política leninista graças a uma inteli-
gente propaganda bolchevique. Na realidade, os partidos não-socialistas
tinham muito mais meios do que os socialistas, e os bolcheviques estavam
em desvantagem mesmo no seio do campo socialista. É evidente que os
bolcheviques não se esquivaram à demagogia, como aliás os seus adver-
sários. Os antibolcheviques usaram também todos os meios ao seu
alcance. Por exemplo, foram bastante bem sucedidos em manter os jornais
bolcheviques fora das unidades militares. Manifestamente, o apelo
bolchevique triunfou porque havia um público ansioso por posições
radicais. Não existem motivos para supor que no que diz respeito à técnica
propagandista os bolcheviques fossem superiores.
     O apoio às posições bolcheviques cresceu regularmente durante 1917,
excepto durante um curto período a seguir às jornadas de Julho, em que
os radicais sofreram um pequeno revés. Embora muitos bolcheviques das
bases estivessem decerto envolvidos em organizar manifestações e criar a
desordem, os principais chefes do partido, incluindo Lenine, não acredita-
vam que uma tomada de controlo bolchevique pudesse ser bem sucedida
naquela altura. Por outro lado, uma vez iniciados os distúrbios e após a
morte de várias pessoas, os bolcheviques não podiam abandonar os mani-
festantes sem sofrer grandes prejuízos políticos. Quando o governo conse-
guiu restabelecer a ordem, prendeu alguns dos dirigentes bolcheviques.
Lenine e o seu camarada próximo, Grigori Zinoviev, foram obrigados a
esconder-se, e um grupo de soldados destruiu a redacção do Pravda, o
jornal do partido. Parecia que Lenine tinha sofrido uma séria derrota.
     Os bolcheviques foram também prejudicados pela publicação de
documentos destinados a mostrar que Lenine e os seus camaradas eram
agentes Alemães. Embora os documentos fossem falsos, a alegação de
base de que os leninistas tinham recebido ajuda da Alemanha era verda-
deira. Os soldados e os operários podiam estar cansados da guerra, mas


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HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


semelhante acusação tinha ainda um peso político considerável, e com
certeza fez diminuir o apoio aos bolcheviques nas fábricas e nos regi-
mentos. O revés, contudo, foi apenas temporário. A anarquia – que afinal
era a principal fonte da força bolchevique – continuou a alastrar-se. O
acontecimento que mais ajudou os bolcheviques foi a malfadada revolta
de Kornilov. O incidente vinha aparentemente comprovar que a direita
política ameaçava a revolução, como haviam sempre defendido os bolche-
viques, e que os leninistas eram os únicos não comprometidos pela cola-
boração com a burguesia. Eles tinham apelado aos trabalhadores e aos
soldados para tomar o poder e, durante a revolta de Kornilov, os trabalha-
dores e os soldados mostraram que tinham de facto uma força consi-
derável. O apoio aos bolcheviques aumentou repentinamente. Pela
primeira vez conseguiram maiorias nos sovietes de Petrogrado e
Moscovo. Estas vitórias tiveram uma importância decisiva para o futuro
do governo provisório. Os bolcheviques e os trabalhadores radicais
haviam censurado o Soviete de Petrogrado por não ter ousado conquistar
o poder. Agora que os bolcheviques dominavam os sovietes, a decisão de
quando atacar estava nas suas mãos.




                A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO

    Os historiadores interrogam-se se a tomada de poder bolchevique em
Outubro de 1917 foi um golpe de Estado, levada a cabo pelos impetuosos
bolcheviques, ou uma verdadeira revolução, obra dos operários e soldados
radicais de Petrogrado. Mas talvez o aspecto mais notável dos aconte-
cimentos não fosse nem a ousadia dos bolcheviques, nem o comporta-
mento dos trabalhadores, mas a completa desintegração da autoridade
governamental.
    Lenine instou resolutamente os seus apoiantes a agir, alegando que
esperar podia ser fatal. Conseguiu por fim conquistar o apoio do Comité
Central do partido, com a excepção de dois importantes dissidentes,
Zinoviev e Kamenev. Os antigos camaradas de Lenine opunham-se de tal
maneira ao que lhes parecia uma decisão precipitada que decidiram publi-
car a data da planeada insurreição num jornal não-comunista. Escolheram
o Novyi Mir, jornal dirigido por Máximo Gorki, o célebre escritor extre-
mista. Nessa altura o governo provisório já havia perdido todo o poder e


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A REVOLUÇÃO, 1917-1921


autoridade: todas as pessoas politicamente conscientes de Petrogrado
sabiam que os bolcheviques estavam prestes a agir, mas o governo não era
capaz de se defender. Nestas circunstâncias, dificilmente se pode falar de
um golpe de Estado, e muito menos de uma conspiração. Os bolcheviques
tomaram o poder porque o país se encontrava à beira da anarquia.
    A revolução bolchevique é um momento tão importante na história do
mundo que o estudioso olhando para trás sente-se muitas vezes surpreen-
dido e até mesmo decepcionado ao descobrir que os acontecimentos de
24-25 de Outubro de 1917 não foram afinal especialmente dramáticos. Os
restaurantes e os teatros estiveram abertos nessa noite. Na perspectiva dos
estafados habitantes da altura, o país passava apenas por outra crise. Os
bolcheviques, que dominavam então o Soviete de Petrogrado, usaram o
seu comité revolucionário militar para organizar e levar a cabo uma acção
revolucionária. Ocuparam os edifícios públicos mais importantes, as
redacções dos principais jornais e as estações de caminho-de-ferro. O
último reduto era o Palácio de Inverno, onde estava reunido o governo
provisório – sem Kerenski, que tinha conseguido fugir da cidade. O
assalto ao Palácio de Inverno, tão conhecido da posteridade através do
filme Outubro de Eisenstein, não ocorreu como retratado pelo grande
realizador. Os assaltantes eram poucos e desorganizados, mas isso pouco
importava, uma vez que o governo nos últimos minutos da sua existência
não podia contar com praticamente nenhum apoio armado. Os bolche-
viques programaram o momento da sua acção para coincidir com o
II Congresso dos Sovietes. Ao alegar que estavam a agir em nome dos
sovietes, esperavam conseguir um certo grau de legitimidade. Na verdade,
apresentaram ao Congresso um facto consumado. Embora alguns líderes
socialistas moderados tivessem abandonado a reunião em sinal de pro-
testo, a maioria bolchevique aprovou uma resolução confirmando as
medidas revolucionárias.
    Foram as questões da terra e da paz que derrubaram o governo pro-
visório, e Lenine estava decidido a resolvê-las tão decisiva e rapidamente
quanto possível. Um dia após a vitória, apresentou os seus decretos da paz
e da terra ao Congresso dos Sovietes. O primeiro desses decretos era um
apelo a todos os países beligerantes para encetar negociações para uma
paz justa e democrática sem indemnizações nem anexações. O segundo
declarava a terra propriedade nacional, permitindo no entanto os cam-
poneses a cultivá-la como sua. Na prática isso significava que os bolche-
viques reconheciam oficialmente as confiscações de terras levadas a cabo


                                    47
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA




                               V. I. Lenine



pelos camponeses. A criação de uma classe de camponeses com terras
parecia colidir com a imagem marxista do futuro defendida pelos bolche-
viques. Como marxistas, eles acreditavam que a posse de terras pela
grande maioria do povo russo tornaria mais difícil a construção de uma
sociedade socialista. Lenine, contudo, percebeu que era essencial deixar
os camponeses concluir a sua revolução para conquistar o seu apoio, ou
pelo menos torná-los neutros. Depois de Outubro a principal tarefa dos
agitadores bolcheviques nas aldeias foi divulgar o decreto da terra: era o
principal argumento dos agitadores na sua tentativa de convencer os
camponeses de que os bolcheviques estavam do seu lado.
    O novo governo, chamado Conselho dos Comissários do Povo e
chefiado por Lenine, era um órgão exclusivamente bolchevista. A lista
dos comissários foi uma desilusão para a maioria dos soldados e operários
extremistas que havia ajudado os bolcheviques a chegar ao poder, porque
tinha esperado um governo de coligação de socialistas. Uma parte bas-
tante significativa dos principais dirigentes do partido teria também
preferido uma coligação. Alguns dos líderes que defendiam a coligação
preferiram mesmo demitir-se a participar num governo de partido único,

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A REVOLUÇÃO, 1917-1921


mas Lenine e Trotsky mostraram-se inflexíveis. A sua concepção do novo
regime não permitia cedências aos que se haviam oposto à tomada de
poder. Um mês depois os bolcheviques admitiram de facto alguns socia-
listas revolucionários de esquerda no seu governo. No entanto, os novos
comissários aceitaram as pastas nas condições dos bolcheviques, e como
não tinham uma base de poder organizada não podiam combater eficaz-
mente as políticas dos bolcheviques. De qualquer maneira, os socialistas
revolucionários de esquerda permaneceram no governo durante apenas
um breve período. Abandonaram o governo em protesto contra a decisão
de Lenine de fazer a paz com os Alemães em Março de 1918.
     Tendo em conta a violência da guerra civil que começaria poucos
meses depois, impõe-se a pergunta: que estavam os futuros e fervorosos
inimigos dos bolcheviques a fazer nos momentos decisivos? Porque
deixaram os seus adversários tomar o poder tão facilmente? Como já
vimos, os bolcheviques não os surpreenderam: todas as pessoas politica-
mente conscientes da Rússia sabiam das intenções bem anunciadas dos
revolucionários.
     A paralisia teve vários motivos. Os militares, apoiantes de Kornilov
que pouco depois viriam a constituir o comando do movimento Branco
antibolchevique, tinham sido derrotados havia pouco tempo e sentiam-se
desiludidos com o povo russo. Por um lado, odiavam o regime liberal de
Kerenski com tanto fervor que não o defenderiam em circunstância
alguma. Por outro, subestimaram os bolcheviques. Não imaginavam que
um bando de extremistas com ideias extravagantes pudesse ter êxito no
que os ministros czaristas e estadistas instruídos e experientes tinham
falhado: isto é, em governar o país. Além disso, estavam tão preocupados
com a necessidade de lutar contra o inimigo estrangeiro que se recusaram
a abandonar as suas posições na frente. Entraram em oposição aberta
apenas quando se lhes tornou impossível continuar a combater os
Alemães.
     Os mencheviques e os socialistas revolucionários não agiram porque
subestimaram as divergências entre eles próprios e o novo governo. Aos
seus olhos os bolcheviques eram camaradas socialistas. O país preparara-
-se para as eleições para a Assembleia Constituinte, e os socialistas mode-
rados temiam comprometer a sua posição junto dos eleitores. O facto de
os bolcheviques terem conseguido manter uma aparência de legitimidade
ao conquistar o apoio da maioria do II Congresso dos Sovietes também os
ajudou consideravelmente. Em certo sentido, os antibolcheviques tinham


                                    49
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


razão: a conquista do poder era uma questão relativamente menor. A
tarefa verdadeiramente difícil, dar ao país um governo eficiente e vencer
a anarquia, estava ainda pela frente.
     Os bolcheviques chegaram ao poder com um programa extraordina-
riamente ambicioso que visava não só reorganizar a sociedade e a política,
mas também reformar a humanidade. O seu programa baseava-se em
princípios abstractos derivados da sua leitura de Marx. Inevitavelmente,
os preceitos da teoria e as necessidades concretas do momento colidiram
quase imediatamente, e os bolcheviques foram obrigados a improvisar.
Nesse processo de improvisação tornaram-se os grandes inovadores da
política do século XX. Criaram instituições, métodos de mobilização e até
mesmo um vocabulário que seria não só imitado mas repetidamente
redescoberto. O jogo entre as exigências criadas por uma inesperada e
difícil realidade e uma ideologia com a qual os revolucionários estavam
profundamente comprometidos é um assunto complexo e fascinante.
     Seria um erro imaginar que todos os aspectos pouco atraentes das
políticas bolchevistas foram consequência das exigências cruéis e ines-
peradas da época. Os bolcheviques não eram democratas ou liberais con-
vertidos a um método político diferente pelo seu desejo de sobrevivência.
Traziam obviamente em si as atitudes mentais que lhes permitiram trans-
formar-se rapidamente de revolucionários em administradores, de com-
batentes da liberdade em opressores.
     Chegaram ao poder em circunstâncias totalmente imprevistas pela sua
ideologia. Em vez de uma sociedade industrial completamente desenvol-
vida, a sua herança foi o analfabetismo, a anarquia, a ruína industrial e a
fome. Em vez de participarem numa revolução internacional, após a qual
poderiam ter beneficiado da ajuda de nações mais avançadas, tiveram de
enfrentar mais ataques do poderoso exército alemão. Os Alemães pare-
ciam imparáveis porque o exército russo tinha perdido a sua capacidade
de resistir – pelo menos em parte devido à anterior propaganda antiguerra
dos bolcheviques.
     O internacionalismo estava profundamente arraigado na mentalidade
dos bolcheviques, que se consideravam um regimento avançado do
exército proletário internacional. Inquietava-os o facto de, contrariamente
à teoria marxista, a revolução não ter primeiro ocorrido nos países econo-
micamente mais avançados. Explicavam essa anomalia alegando que o
proletariado russo estava em condições de quebrar a corrente do capita-
lismo mundial no seu elo mais fraco. Segundo este raciocínio, o objectivo


                                    50
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


principal da revolução russa era quebrar essa corrente e assim iniciar a
revolução mundial. Na sua perspectiva, a revolução russa só poderia ter
êxito a longo prazo se fosse ajudada por nações solidárias, mais avançadas
e, sobretudo, socialistas. A expectativa de uma revolução socialista a
seguir à insana devastação da I Guerra Mundial não era de modo nenhum
absurda. Hoje sabemos que a revolução não ocorreu, que a velha ordem
voltou a afirmar-se. Na altura, porém, toda a gente, amigos e inimigos,
esperavam ou temiam essa transformação cataclísmica.
     Esta expectativa de uma revolução mundial não era uma questão
teórica para os leninistas, mas matéria que afectava o seu comportamento
quotidiano. Os bolcheviques vitoriosos enfrentavam uma falange de
governos hostis. Essa hostilidade era esperada e até mesmo necessária
para os bolcheviques. Os que acreditavam no internacionalismo do prole-
tariado também tinham de acreditar no internacionalismo do capital. Os
bolcheviques esperavam que as potências capitalistas, percebendo que os
seus inimigos mais perigosos não eram outros capitalistas mas os socia-
listas, se esqueceriam da guerra e se uniriam contra os revolucionários.
Esse desenvolvimento, na visão dos bolcheviques, muito provavelmente
conduziria à revolta de todos os povos explorados, e talvez fosse por isso
desejável.
     O problema imediato, contudo, não era uma coligação hostil mas o
exército alemão. Os bolcheviques encetaram negociações de paz com o
inimigo e acabaram por aceitar as condições severas dos Alemães. A 3 de
Março, assinaram o Tratado de Brest-Litovsk. A aceitação das condições
desse tratado gerou o primeiro grande debate da história soviética, quase
dividindo o partido.
     A negociação com um inimigo imperialista podia ser considerada o
ponto de partida da política externa soviética. Quando assumiram o
poder, os bolcheviques acreditavam que o seu regime não precisava de
uma política externa. Os governos do mundo seriam implacavel-
mente hostis mas o proletariado mundial estaria do seu lado; as rela-
ções externas podiam ser reduzidas a apelos revolucionários. Os bolche-
viques viam a solução para as suas dificuldades na iminente revolução
mundial. O facto de essa revolução nunca ter ocorrido foi a sua maior
decepção.
     Um segmento considerável e influente da chefia do partido conti-
nuava a achar que era um erro firmar qualquer tratado ou mesmo manter
relações diplomáticas com as potências capitalistas. Estas pessoas, lidera-


                                    51
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


das por Nikolai Bukarine e apelidadas comunistas de esquerda, queriam
continuar a guerra não tanto para defender os interesses nacionais da
Rússia mas porque acreditavam que os soldados Alemães se recusariam a
lutar contra os seus camaradas Russos e que essa recusa despoletaria a
muito esperada revolução alemã. Se entretanto o novo regime soviético
fosse eliminado, isso, na opinião dos comunistas de esquerda, seria um
preço que valeria a pena pagar pelo avanço da causa internacional. Este
argumento era convincente para aqueles que tinham a certeza de que o
novo regime revolucionário não poderia sobreviver durante muito tempo
sem a ajuda do proletariado mundial.
    Lenine, o grande realista, não se deixava seduzir por sonhos revolu-
cionários. Com uma energia, determinação e perspicácia espantosas ele
impôs os seus pontos de vista aos seus colegas recalcitrantes. Ao assinar
o Tratado de Brest-Litovsk assegurou a sobrevivência imediata do seu
regime; afinal, os Alemães podiam facilmente ter vencido os bolchevi-
ques, que não possuíam uma grande força militar. Os Alemães travaram o
seu avanço porque perceberam que qualquer regime que impusessem aos
Russos derrotados exigiria um investimento considerável de tropas
alemãs; preferiam usar os seus soldados na frente ocidental.
    A segunda grande decepção para os bolcheviques foi o comporta-
mento do povo russo. Segundo o seu raciocínio, o partido dirigia a revolu-
ção das classes trabalhadoras. Essa revolução era levada a cabo para
beneficiar a grande maioria do povo russo, os operários e os camponeses.
Durante 1917 falou-se muito da convocação da Assembleia Constituinte,
que iria resolver os principais problemas nacionais. As eleições para a
Assembleia tinham sido marcadas para Novembro, antes de ocorrer a
revolução de Outubro, e os bolcheviques decidiram realizá-las. Não é de
todo claro o que os bolcheviques esperavam, porque os resultados não
foram surpreendentes. Os Socialistas Revolucionários, que tinham apoio
nas zonas rurais, conseguiram eleger a maioria dos deputados, enquanto
os bolcheviques puderam contar com cerca de um quarto dos represen-
tantes.
    A Assembleia reuniu-se na altura devida em Janeiro de 1918,
expressou sentimentos antibolcheviques e depois foi dissolvida pelos
bolcheviques. Foi uma medida radical, porque ao desrespeitar a vontade
claramente expressa do eleitorado os bolcheviques repudiavam de uma
vez por todas qualquer pretensão de agir com base nos princípios da
democracia «burguesa». A sua legitimidade não se basearia na soberania


                                    52
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


popular, mas na convicção de que compreendiam o movimento da
história. Eles defendiam um futuro melhor e socialista para toda a huma-
nidade. É difícil ver, contudo, como os bolcheviques poderiam ter agido
de outra forma, uma vez que aceitar a autoridade da Assembleia Cons-
tituinte teria implicado invalidar a revolução de Outubro. Ao contrário das
negociações de Brest-Litovsk, que tinham provocado uma grande crise no
seio do Partido, desta vez não houve divergências de opinião entre os
líderes. Tudo na sua experiência e concepção teórica dispunha os leninis-
tas para tomar precisamente essas medidas.
     Se a rejeição da democracia eleitoral não lhes provocou grandes pro-
blemas de consciência, a suspensão da liberdade de expressão conduziu
efectivamente a acesos debates entre os bolcheviques. A 4 de Novembro,
no comité executivo central dos sovietes, alguns eminentes líderes bolche-
viques defenderam com eloquência a liberdade de imprensa. Eles acre-
ditavam confiadamente – embora decerto erradamente – que se o povo
russo fosse presenteado com diferentes pontos de vista, seria capaz de
perceber a correcção da posição bolchevique. Lenine opunha-se veemen-
temente a esta teoria e falava com desdém do princípio da liberdade de
imprensa. Mais uma vez, ele levou a melhor. Os novos governantes não
podiam eliminar imediatamente todas as publicações não-bolcheviques.
No entanto, nos primeiros oito meses do seu governo, foi precisamente
isso que fizeram. Quando a guerra civil começou e os revolucionários
acharam necessário empregar métodos cada vez mais duros, todos os
jornais não-bolcheviques desapareceram dos territórios sob o seu
controlo.
     A suspensão da liberdade de imprensa vinha a par com a suspensão
da liberdade de associação: nas zonas sob o seu domínio os bolcheviques
proibiram primeiro os partidos não-socialistas e depois todos os partidos.
Para fazer cumprir essas políticas, os novos governantes precisavam de
uma força coerciva. Os que haviam sofrido às mãos da polícia política
czarista, a Okhrana, pouco depois da sua vitória criaram a sua própria
polícia política, a Comissão Extraordinária de toda a Rússia para o Com-
bate à Contra-Revolução, Sabotagem e Especulação, conhecida simples-
mente por Cheka (abreviatura russa para comissão extraordinária).




                                    53
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


                 O RUMO DA GUERRA CIVIL

     A velha ordem deixara de funcionar e o país enfrentava problemas
extraordinários. Os socialistas e os não-socialistas tinham divergências
profundas sobre como resolver esses problemas. No entanto, passado
pouco tempo, das dezenas de pontos de vista concorrentes, apenas dois
– o dos bolcheviques e o dos contra-revolucionários – continuaram sérios
adversários. Os Socialistas Revolucionários, que gozavam sem dúvida do
apoio da maioria do povo russo, nunca tiveram uma oportunidade. Os
políticos socialistas moderados não tinham forma de transformar o apoio
eleitoral em regimentos. Não possuíam uma ideologia, nem uma menta-
lidade, que lhes permitisse tomar as necessárias medidas rigorosas para
resolver a crise nacional.
     A guerra civil, por consequência, depressa se viu reduzida a um con-
flito entre Brancos e Vermelhos. De um lado estavam os intelectuais e
semi-intelectuais revolucionários, reprimidos durante o regime czarista e
empenhados na mudança com base nas suas profundas crenças marxistas.
Eram uma nova classe de políticos, que percebia claramente a necessidade
da mobilização de massas e da propaganda. Do outro lado, o comando era
composto exclusivamente por oficiais do exército, homens que se haviam
sentido perfeitamente à vontade na Rússia czarista, que desprezavam a
política, e que propunham soluções militares para a maioria dos proble-
mas. Não tinham qualquer visão para o futuro da Rússia mas sentiam que
era necessário combater os bolcheviques, porque acreditavam que o domí-
nio comunista só poderia trazer a desgraça à pátria. Por mais diferentes
que fossem os dois grupos, enfrentavam os mesmos problemas: como
prover o país de uma administração eficiente, fornecer alimentos aos
famintos, pôr os caminhos-de-ferro a funcionar; em suma, como vencer a
anarquia.
     Os antibolcheviques demoraram muito tempo a organizar-se. Os anti-
gos líderes da revolta Kornilov, que subsequentemente tinham sido
presos, aproveitaram a confusão gerada pela insurreição bolchevique para
fugir da sua reclusão e refugiar-se na província cossaca do Don. A eles
depressa se juntou o general Alekseev, antigo chefe do Estado-maior do
czar. Este pequeno grupo de oficiais incluía muitos, mas não todos, dos
mais eminentes chefes das forças russas durante a guerra. Juntaram-se na
província cossaca do Don porque não havia outra região na Rússia onde
pudessem encontrar segurança. No início do século XX, os cossacos,

                                   54
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


descendentes de piratas, já se haviam tornado lavradores ricos; recebiam
direitos de tributação e propriedade do governo czarista em troca de obri-
gações militares mais pesadas. Ao contrário de outros camponeses
Russos, tinham uma tradição de autonomia. Agora viam os seus privilé-
gios ameaçados pelos habitantes menos afortunados das suas regiões, os
camponeses Russos. Estes eram muito mais pobres e possuíam muito
menos terras, que com frequência tinham de tomar de arrendamento dos
cossacos. Desprezavam os seus exploradores cossacos e eram ouvintes
solícitos dos apelos dos bolcheviques. As províncias do Don e de Kuban
estavam a iniciar a sua própria guerra civil, uma luta pelo poder que coin-
cidia em parte com o conflito nacional. Os cossacos viriam a desempenhar
um papel decisivamente importante no movimento Branco, em grande
parte porque os generais Brancos não tinham outra força a que recorrer;
nunca conseguiram conquistar a simpatia da maioria do povo russo, os
camponeses.
    Durante os primeiros meses de 1918, os generais atraíram apenas um
número lastimavelmente pequeno de seguidores. Após vários meses de
organização, a incipiente força militar do movimento Branco, o exército
voluntário, tinha apenas uns 3000 combatentes, na sua maioria oficiais. O
facto de o novo governo bolchevique não ter tido sequer a força para
dispersar um exército tão minúsculo, reflecte a sua fraqueza; uma guerra
civil é sempre uma luta entre o fraco e o mais fraco. Mais tarde, durante
a Primavera, foram os Alemães, ironicamente, que permitiram aos
Brancos sobreviver. A política alemã era apoiar os antibolcheviques nas
periferias do país e tolerar os bolcheviques no centro. Um país dividido
pela guerra civil servia melhor os interesses alemães. Uma das consequên-
cias desta política foi o apoio que deram a um governo cossaco conser-
vador no Don. Assim, os generais Brancos, que pouco antes haviam
denunciado os bolcheviques como agentes Alemães e jurado fidelidade
aos seus aliados, tornaram-se os principais beneficiários da política dos
inimigos da sua pátria.
    Um dos momentos decisivos na história da guerra civil, e segura-
mente um dos seus episódios mais curiosos, foi a rebelião das tropas
checas. A monarquia dos Habsburgos, inimiga da Rússia na I Guerra
Mundial, era, como a Rússia czarista, um império multinacional. A grande
minoria eslava no seu seio sentia-se oprimida e, na altura da guerra,
mostrou pouca lealdade aos Habsburgos. Um grande número de soldados
checos, por exemplo, deixou-se facilmente capturar pelos Russos. O


                                    55
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


governo czarista hesitou em jogar a cartada das nacionalidades. Recusou-
-se a formar um exército com esses prisioneiros de guerra e permitir-lhes
que combatessem do seu lado. A situação alterou-se em 1917: Kerenski
não tinha quaisquer escrúpulos a esse respeito e incentivou os checos a
formar um corpo independente e a combater os Alemães. Os checos eram
soldados entusiásticos, pois acreditavam e com razão que apenas a derrota
das potências centrais, a Alemanha e a monarquia austro-húngara, lhes
permitiria formar um Estado independente. Quando o exército russo se
desintegrou, só esta pequena força queria continuar a combater, mas o
tratado de Brest-Litovsk impedia-a de prosseguir. Após longas negocia-
ções com o governo soviético, foi decidido autorizá-los a viajar para a
frente ocidental através da Sibéria, do Pacífico e dos Estados Unidos. Os
checos, porém, nunca chegaram ao seu destino, porque enquanto viaja-
vam pela Sibéria começaram a combater os bolcheviques. Em Maio de
1918, o domínio bolchevique na Sibéria era ainda tão fraco que cinquenta
mil checos puderam vencê-lo. Este acontecimento totalmente inesperado
permitiu aos antibolcheviques estabelecerem-se e organizarem-se. Após
muita discussão, os Brancos instauraram um regime liberal em que os
Socialistas Revolucionários desempenhavam um importante papel. No
entanto, este governo durou pouco tempo. Em Novembro de 1918, os
militares derrubaram o governo socialista e nomearam o almirante
Aleksandr Kolchak, antigo comandante da esquadra do Mar Negro, chefe
supremo.
     O fim da guerra na Europa teve consequências de grande alcance para
o rumo da guerra civil na Rússia. Enquanto combatiam entre si, os aliados
e as potências centrais consideravam o seu envolvimento na Rússia muito
menos importante. Embora os governos aliados encarassem os bolchevi-
ques e tudo o que eles representavam com receio e aversão, se estes
tivessem continuado a guerra contra os Alemães, podiam ter recebido o
apoio dos aliados. Os aliados começaram por ajudar os Brancos na espe-
rança ilusória de que a frente antigermânica pudesse ser reconstruída. Os
Britânicos e os Americanos, que no início de 1918 enviaram pequenos
destacamentos para Murmansk e Archangel, no Extremo Norte, e para
Vladivostok, no Extremo Oriente, justificaram a sua ingerência nos assun-
tos russos em termos da sua necessidade de combater os Alemães.
     Com o fim da Guerra Mundial desaparecia qualquer fundamentação
lógica para a intervenção, ao passo que as oportunidades para uma ajuda
prática aos antibolcheviques aumentavam consideravelmente. Imediata-


                                   56
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


mente a seguir à derrota dos Alemães, tropas francesas aterraram em
Odessa, e pouco depois na Crimeia. Os Britânicos enviaram pequenos
destacamentos para o Cáucaso e para a Ásia Central, e pouco depois
iniciou-se a distribuição de valioso equipamento militar a Kolchak e
Anton Denikin, comandante do exército voluntário.
     Os bolcheviques, evidentemente, nessa altura e desde então, tinham
grandes motivos para acreditar, ou pelo menos fingir acreditar, que esta-
vam a combater não inimigos internos mas as forças conjuntas do impe-
rialismo mundial. Tornou-se ponto de doutrina da historiografia soviética
que o jovem Estado soviético lutou contra as forças conjuntas do imperia-
lismo mundial. Na verdade, a contribuição dos estrangeiros para o resul-
tado da guerra civil foi insignificante. Os governos estrangeiros tinham
apenas uma vaga percepção dos assuntos russos; baseavam as suas políti-
cas e opiniões em falsas premissas. Mas por mais que os aliados tivessem
querido derrubar os bolcheviques, dada a política da Europa do pós-guerra
não estavam em condições de o fazer. As tropas francesas foram as
únicas que efectivamente entraram em combate, e o seu desempenho foi
lamentável. Em vez de ajudar, prejudicaram a causa dos Brancos. A ajuda
militar britânica, e em menor grau a americana, foi certamente útil
para Denikin e Kolchak; mas esse tipo de ajuda só podia prolongar a
guerra.
     A retirada alemã alargou o âmbito dos combates. Os bolcheviques e
os antibolcheviques precipitaram-se para o vazio, esperando aproveitar a
oportunidade. A maior ameaça ao governo bolchevique nos primeiros
meses de 1919 veio do Oriente. À medida que Kolchak avançava para o
Ocidente, tornava-se cada vez mais claro que ele talvez pudesse unir-se a
Denikin no Sul. O exército Vermelho conseguiu inverter a situação na
frente oriental em Junho de 1919, mas os bolcheviques ainda assim não
puderam descansar. Nesse Verão, Denikin ocupou a Ucrânia, e em Outu-
bro chegou a Orel, a cerca de 400 quilómetros de Moscovo. Ao mesmo
tempo o regime de Lenine enfrentava um novo perigo. O general Nikolai
Iudenitch tinha organizado mais um exército antibolchevique na Estónia
que ameaçava então Petrogrado. O mês de Outubro de 1919 foi um
momento decisivo na guerra civil. Os Vermelhos, nessa altura crítica, con-
seguiram mobilizar novas forças e travar tanto Iudenitch como Denikin.
As linhas de Denikin haviam-se dispersado demais e foram implacavel-
mente perseguidas por guerrilheiros anarquistas ucranianos, em especial
Nestor Makhno.


                                   57
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


    Em 1920 era já quase certo que os Vermelhos acabariam por ganhar.
Na Primavera de 1920, Denikin estava de novo confinado ao Kuban. Ele
conseguiu fazer chegar as suas tropas à Crimeia, mas depois foi para o
exílio. Petr Wrangel, o último comandante, figura competente e caris-
mática, só podia contar com as circunstâncias externas. A Polónia, que se
tornou um Estado independente no final da guerra, tinha grandes ambi-
ções territoriais à custa da Rússia. O líder polaco, Joseph Pilsudski,
achando que conseguiria obter um melhor acordo dos bolcheviques do
que dos Brancos vitoriosos, esperou até à derrota das principais forças
Brancas para começar a sua campanha. A guerra russo-polaca, que esti-
mulou paixões nacionalistas de ambos os lados, assistiu a várias revira-
voltas militares; a determinada altura, o vitorioso exército Vermelho che-
gou a ameaçar a capital polaca. A guerra terminou com o acordo de paz
de Riga em Março de 1921. A seguir à fase decisiva da campanha polaca,
o exército Vermelho derrotou Wrangel e obrigou-o e ao que restava do seu
exército a ir para o exílio. No final de 1920, os bolcheviques tinham já
vencido todos os seus inimigos, com a excepção de alguns bandos disper-
sos de camponeses.




        AS RAZÕES DA VITÓRIA BOLCHEVIQUE

    Embora os bolcheviques acabassem por ganhar a guerra civil, no iní-
cio a sua vitória não estava de modo nenhum assegurada, nem mesmo aos
olhos cansados dos seus contemporâneos. A sobrevivência do governo
revolucionário esteve várias vezes em causa. Na Primavera de 1918, por
exemplo, o regime foi quase derrubado pela pura anarquia; na Primavera
seguinte, Kolchak parecia imparável; e no Outono de 1919, as forças con-
juntas de Denikin e Iudenitch representavam tamanha ameaça militar que
muitos esperavam que o regime de Lenine caísse pouco depois.
    Os Brancos gozavam de muitas e significativas vantagens. Tinham o
apoio da igreja, os seus exércitos eram quase sempre melhor comandados,
e não receavam a traição dos seus oficiais. Nas circunstâncias vigentes,
em que a linha da frente se deslocava rapidamente, a cavalaria cossaca era
uma força extremamente valiosa. Os Brancos ocupavam as terras agrí-
colas mais férteis, as populações que tinham de alimentar eram de cidades
menores. Estes factores, juntamente com a ajuda dos aliados, tornavam


                                    58
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


superiores as condições de vida nos territórios ocupados pelos Brancos.
Quando os Brancos ocupavam uma cidade, o preço do pão quase sempre
descia. Naturalmente, numa época de fome, os preços de alimentos mais
baixos tinham grande significado político.
     Não obstante, os bolcheviques ganharam pelo menos em parte devido à
fraqueza dos seus inimigos. Os Brancos não tinham uma ideologia atraente
nem o estado de espírito certo para levar a cabo a sua mais importante tarefa:
impor a ordem a uma população relutante. Como consideravam a sua tarefa
essencialmente militar, não fizeram qualquer esforço sério para conquistar o
apoio da população com uma atraente visão do futuro. Na verdade, eles
próprios careciam dessa visão. Os generais tinham vivido confortavelmente
na Rússia imperial, e embora os mais esclarecidos tivessem consciência de
que algumas reformas seriam necessárias, desejavam todos ardentemente
que as revoluções de 1917 nunca tivessem ocorrido.
     Quando eram obrigados a explicar os seus objectivos, os Brancos
tinham de recorrer a um sentido de nacionalismo recentemente formado e
exagerado. Afirmavam estar a lutar pela «Rússia». O problema era que
semelhante ideologia pouco comovia os que politicamente mais impor-
tavam, os camponeses. Talvez pior do que isso, desagradava fatalmente às
minorias nacionais, que se poderiam ter tornado aliados úteis numa
cruzada antibolchevique. Como os Brancos combatiam forçosamente em
zonas habitadas em grande parte por não-russos, a hostilidade das mino-
rias tinha consequências fatais.
     A desintegração do império outrora poderoso e a manifesta fraqueza
das autoridades centrais resultaram num aumento extraordinariamente
rápido da consciência nacional entre as minorias. Políticos que se haviam
declarado internacionalistas e socialistas assumiam então o poder em
Estados independentes e passavam a adoptar a causa nacionalista com
paixão. Os bolcheviques e os antibolcheviques adoptaram políticas dife-
rentes para os novos Estados nas periferias. A atitude bolchevique foi
muito mais inteligente: enquanto não tivessem poder para impedir o esta-
belecimento desses Estados, não se lhes opunham abertamente. Davam a
entender ter aceite o princípio da auto-determinação, acrescentando
porém que isso se aplicava desde que servisse o interesse do proletariado.
Os Brancos não fariam semelhante concessão.
     Os camponeses Russos não se deixavam convencer por uma ideologia
nacionalista; estavam mais interessados em ficar com as terras dos
grandes proprietários. Os políticos Brancos esforçaram-se durante meses


                                     59
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


por engendrar um plano de reforma agrária. Levaram muito tempo, pois
não compreendiam plenamente a importância política de ganhar o apoio
dos camponeses ávidos de terras. Quando publicaram um projecto de
reforma agrária, no Verão de 1920, era já demasiado tarde. Mas mesmo
esse plano oferecia muito pouco. Afinal, os Brancos iam buscar o seu
apoio social à direita, e não podiam desagradar aos seus apoiantes. Os
camponeses perceberam que na esteira dos exércitos Brancos voltariam a
aparecer os grandes proprietários rurais e os oficiais ex-czaristas para
exigir a restituição da sua riqueza e do seu poder. Dissessem o que
dissessem os políticos Brancos nos seus manifestos, os camponeses per-
cebiam muito bem que os Brancos defendiam a restauração.
     Mas os bolcheviques não ganharam a guerra civil só por causa da
fraqueza e dos erros dos seus adversários. A sua percepção das necessi-
dades do momento e os princípios de política revolucionária também os
ajudaram. O programa político com que haviam chegado ao poder não
podia ser cumprido, e por isso os revolucionários tiveram de improvisar
constantemente. Mas, felizmente para eles, a sua formação e ideologia
permitiram-lhes improvisar com êxito.
     Os bolcheviques, como marxistas-leninistas, percebiam instintivamente
a importância da organização e da mobilização de massas. Esforçaram-se
incansável e incessantemente por levar o seu programa aos trabalhadores e
aos camponeses e por criar formas de organização que pudessem restaurar
a ordem. A vitória na guerra civil deveu-se em grande parte ao partido. A
princípio uma organização de revolucionários, transformou-se rapidamente
num instrumento de governo. Nas circunstâncias existentes, seria errado
imaginar o partido como uma organização muito unida, disciplinada e
hierárquica. Os principais líderes discutiam frequentemente, e o poder
central muitas vezes tinha apenas um controlo nominal sobre as cidades
distantes. No entanto, como base organizacional, conferia aos bolcheviques
uma vantagem incalculável. O partido interferia em todos os aspectos da
vida nacional: era responsável por desenvolver uma estratégia para ganhar
a guerra; era uma agência de recrutamento que apresentava quadros
competentes e ambiciosos; era o principal órgão de doutrinação; nos
territórios ocupados pelo inimigo organizava movimentos clandestinos de
resistência; e, talvez mais importante do que tudo, tentava fiscalizar o
trabalho de outras instituições sociais e governamentais.
     As capacidades e princípios de organização dos bolcheviques mani-
festaram-se exemplarmente na criação e construção do Exército Ver-


                                    60
A REVOLUÇÃO, 1917-1921


melho, a grande proeza de Trotsky. Tanto Trotsky como Lenine depressa
perceberam que, contrariamente às noções utópicas em que eles próprios
haviam acreditado, os serviços de especialistas eram essenciais para gerir
um Estado moderno. No caso das forças militares, isso significava que o
jovem Estado soviético precisava dos conhecimentos dos oficiais do
antigo exército imperial. Estes homens tinham de ser obrigados ou con-
vencidos a servir uma ideologia que em quase todos os aspectos achavam
desagradável. Além disso, essa política implicava riscos: gerava indigna-
ção entre alguns velhos comunistas, e os oficiais não eram de modo
nenhum de confiança. A traição era um perigo constante. No entanto,
Trotsky tinha razão: só uma força disciplinada, comandada por profissio-
nais, podia derrotar o inimigo.
     No final da guerra civil, os bolcheviques, através de uma vasta pro-
paganda, além do recrutamento, tinham já construído um exército de cinco
milhões – incomparavelmente maior do que as forças conjuntas dos seus
inimigos. Apenas uma pequena percentagem deste exército participava nos
combates; a maioria fornecia apoio e serviços administrativos. Numa época
de anarquia, o novo Estado precisava de todo o apoio que podia obter.
     A Cheka também contribuiu para a vitória bolchevique. O terror foi
igualmente sanguinário de ambos os lados; tanto os Vermelhos como os
Brancos praticaram actos de extraordinária brutalidade. No entanto, a
repressão política exercida pelos dois lados tinha um carácter diferente.
Os Brancos, cujas opiniões eram mais adequadas ao século XIX do que ao
século XX, tinham pouca percepção do papel das ideias na política e
toleravam uma maior diversidade de pontos de vista políticos. A Cheka,
pelo contrário, admitia apenas uma organização política e um ponto de
vista político, o dos leninistas.
     Os bolcheviques moldaram com êxito as suas políticas sociais e eco-
nómicas à necessidade de ganhar a guerra. Lenine apresentou o seu
famoso decreto da terra no dia seguinte ao da sua vitória. Como cedência
aos camponeses, o decreto legalizava anteriores ocupações de terras e per-
mitia aos camponeses cultivar como suas as antigas terras dos latifundiá-
rios. Lenine, o grande realista, percebeu claramente as vantagens desta
política. Contudo, apesar de os Vermelhos lhes terem dado terras e os
Brancos nada, os bolcheviques só conseguiram ganhar um pequeno
número de partidários activos entre os camponeses. A grande fragilidade
da posição dos bolcheviques era que eles precisavam de alimentar as
cidades mas nada tinham para dar aos camponeses em troca dos cereais.


                                   61
HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA


Nessas circunstâncias, os princípios do mercado livre não podiam obvia-
mente funcionar, e os bolcheviques impunham o fornecimento de cereais
pela força. Esta política acabaria por afastar os camponeses, mas é difícil
imaginar que mais os revolucionários poderiam ter feito.
     As políticas económicas introduzidas pelos bolcheviques em meados
de 1918, sobretudo a suspensão do mecanismo de mercado para os
cereais, foram designadas «comunismo de guerra». Este sistema mobili-
zava a economia através da coacção com o fim de ganhar a guerra. Os
bolcheviques nacionalizaram o comércio e a indústria. Embora estas
medidas fossem claramente resultado da improvisação, na altura os
teóricos afirmavam ver no desaparecimento da iniciativa privada e até
mesmo do dinheiro um avanço em direcção à sociedade comunista. O
sistema provocou muito sofrimento e privações à população e a longo
prazo conduziu à dilapidação da economia nacional. No entanto, a curto
prazo foi eficaz: as fábricas produziram efectivamente armas suficientes
para combater o inimigo, e as pessoas das cidades foram alimentadas,
mesmo que de modo insuficiente.
     A revolução bolchevique, como todas as grandes revoluções, foi tra-
vada pela igualdade social. Os revolucionários fizeram um grande esforço
para recrutar uma nova elite política. Camponeses e operários jovens e
ambiciosos, através de uma mistura de convicção e arrivismo, dedicaram-se
à causa dos bolcheviques. Conseguiram aproximar-se dos seus camaradas
operários e camponeses com muito mais sucesso do que qualquer propa-
gandista Branco. Ao mobilizar esta fonte de talento até então inexplorada,
os bolcheviques ganharam muito. As conscientes políticas bolcheviques,
assim como a miséria imposta pela guerra e pelo comunismo de guerra,
contribuiriam de facto para uma grande diminuição das desigualdades.



CAPÍTULO 2: A REVOLUÇÃO, 1917-1921


     (1) Por exemplo, D. Volkogonov, Lenin: A New Biography (Nova Iorque,
1994).
     (2) Entre o primeiro grupo de historiadores, os mais conhecidos são George
Katkov, Russia, 1917: The Kornilov Affair (Londres, 1980); Leonard Schapiro,
The Communist Party of the Soviet Union (Nova Iorque, 1960); e Richard Pipes,
A Concise History of the Russian Revolution (Nova Iorque, 1995). Representante
típico do segundo grupo é o estudo de William G. Rosenberg e Dianne Koenker,
Strikes and Revolutions in Russia, 1917 (Princeton, 1989).


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A Revolução Russa de 1917

  • 1. 2 A revolução, 1917-1921 Nenhum acontecimento desde a Revolução Francesa ocasionou tama- nha efusão de estudos históricos e tanto debate apaixonado como a Revo- lução Russa. O interesse e o empenho são compreensíveis, porque as questões são complexas e a parada elevada. A revolução não foi apenas um acontecimento importante na história da Rússia, transformando uma sociedade antiquada e alterando o modo de vida de milhões de pessoas, foi também um catalizador no desenvolvimento do nosso mundo. Para o bem ou para o mal, a interpretação da revolução não ficou confinada aos historiadores; pessoas de todos os segmentos do espectro político sempre tiveram consciência da importância política da historiografia. Todos os aspectos da revolução já foram bem analisados pelos histo- riadores, mas nenhum recebeu tanta atenção como a história do movi- mento revolucionário. Isso é compreensível: os revolucionários que lutaram contra o repressivo regime czarista mostraram-se com frequência dispostos a sacrificar a vida por uma causa em que acreditavam profunda- mente. Muitos foram homens e mulheres extraordinários, e as suas histó- rias são fascinantes. No entanto, talvez seja um erro procurar uma expli- cação para a revolução no trabalho de subversivos clandestinos; porque nem o governo czarista nem o governo provisório foram derrubados 29
  • 2. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA por revolucionários, nem mesmo por operários e camponeses insa- tisfeitos. Talvez seja mais útil pensar nos acontecimentos de 1917 como o colapso de dois sistemas de governo diferentes, primeiro o autocrático e depois o liberal. As questões decisivas não eram saber por que razão os trabalhadores estavam descontentes e exactamente o que queriam, mas como e por que razão diferentes formas de governo se desintegraram. Segundo esta perspectiva os acontecimentos revolucionários foram a manifestação de uma crise de autoridade. A questão fundamental era política: de que forma podia a Rússia ser governada? Conclui-se desta interpretação da revolução que o sucesso bolchevique em Outubro não foi nem o apogeu nem o termo da revolução, mas o ponto mais baixo da crise. A questão de se saber que forma de governo era necessária para a Rússia em circunstâncias excepcionalmente difíceis só seria verdadeiramente resolvida pela guerra civil. A REVOLUÇÃO DE FEVEREIRO Os acontecimentos que vieram a ser chamados «revolução de Feve- reiro» podem ser brevemente resumidos. A 23 de Fevereiro de 1917 – Dia Internacional da Mulher – os operários das fábricas de têxteis, na sua maioria mulheres, entraram em greve e fizeram uma manifestação exi- gindo pão. Eles sabiam que a cidade tinha uma reserva de farinha que duraria apenas dez dias. Aos primeiros manifestantes depressa se junta- ram os trabalhadores das metalurgias, incluindo os das enormes oficinas de Putilov, a mais importante fábrica de armamento de Petrogrado. Nada havia de particularmente novo ou extraordinário nas greves e mani- festações, que eram cada vez mais frequentes; e a princípio as autoridades não se mostraram excessivamente preocupadas. Acreditavam que os distúrbios tinham sido causados apenas por preocupações relativamente ao fornecimento de víveres e que seriam capazes de reprimir qualquer possível sublevação. As manifestações, contudo, não só continuaram como atraíram cada vez mais participantes, e os seus slogans adquiriram um cunho cada vez mais político. A 24 de Fevereiro, segundo os registos policiais, existiam entre 150.000 e 200.000 manifestantes, a maior acção do género na cidade 30
  • 3. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 desde o início da guerra. No dia seguinte havia ainda mais gente nas ruas, e os observadores notaram uma relutância crescente entre os cossacos, defensores tradicionais da autocracia, em dispersar as multidões. Então as autoridades ficaram alarmadas. O czar, do quartel-general do seu exército em Mogilev, telegrafou ao infeliz comandante militar da cidade, o general Sergei Khabalov, ordenando-o «a pôr fim às desordens a partir de amanhã». O dia 26 de Fevereiro, um domingo, foi o momento decisivo: os soldados, que durante dias se haviam misturado livremente com as multidões, tinham agora ordens para atirar a matar. Embora dezenas de líderes dos trabalhadores fossem presos e, pelo menos durante um breve período, a cidade ficasse mais calma, sobreveio uma quebra fatal na von- tade dos soldados de obedecer à ordem do czar. Durante os dias seguintes Petrogrado mergulhou na anarquia. Um número ainda maior de soldados juntou-se aos revolucionários e em dois dias quase nada restava da guarnição militar da cidade. A ausência de autoridade levou a tiroteios e matanças indiscriminadas. A 27 de Fevereiro, o último governo czarista, chefiado pelo príncipe Nikolai Golitsyn, demitiu-se. No dia seguinte o czar demitiu o general Khabalov, que perdera o sangue-frio e não fora capaz de pacificar a cidade, e nomeou um general idoso, Nikolai Ivanov, ditador militar da Petrogrado. Mas era obviamente demasiado tarde: Ivanov não tinha quais- quer forças leais à sua disposição, e o destino da ordem czarista estava traçado. Ao perceber que não podia esperar qualquer apoio do exército, Nicolau abdicou a 2 de Março a favor do seu irmão Miguel, que, temendo pela vida, não aceitou. No dia 3 de Março, o domínio de três séculos da dinastia Romanov chegava ao fim. O descontentamento que culminou em greves e manifestações não foi inesperado. Afinal, a Rússia já conhecera uma vaga revolucionária entre 1905 e 1907, e os outros países beligerantes também sofriam as conse- quências do conflito civil, à medida que o custo da guerra se tornava cada vez mais evidente. No entanto, o momento e a facilidade com que o sis- tema imperial se desmoronou foram surpreendentes. Leon Trotsky, exce- lente cronista da revolução, colocou a questão, «Quem chefiou a revolu- ção?». Concluiu que um punhado de bolcheviques lhe haviam fornecido o necessário espírito orientador. Na sua versão da história, os trabalhado- res anónimos que tinham saído para as ruas agiam em nome dos bolche- viques. Mesmo um exame superficial mostra que esta ideia é insusten- 31
  • 4. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA tável, pois seria absurdo supor que os trabalhadores precisassem dos bolcheviques para lhes dizer que estavam com fome e cansados da guerra. Não existem quaisquer provas que demonstrem que revolucionários com consciência de classe tivessem desempenhado um papel importante durante aqueles dias caóticos. Mas mesmo que concedêssemos esse ponto a Trotsky, pouca diferença faria. O acontecimento importante em Feve- reiro não foi a manifestação dos trabalhadores; foi a recusa dos soldados de obedecer às ordens. Quando a cadeia de comando e os vínculos de autoridade se quebraram, a ordem imperial desmoronou-se com uma velo- cidade espantosa. Os soldados desafiaram os seus oficiais devido a ódios pessoais, a um sentimento de opressão e ao descontentamento com a condução da guerra. Aos seus olhos, os oficiais, o exército e, no fundo, todo o sistema czarista, tinham perdido prestígio em consequência da péssima gestão da guerra. Os regimentos mais desmoralizados tinham sido colocados na capital, e esses soldados eram os que mais animosidade sentiam contra os seus ofi- ciais. Esses regimentos, o elo fraco no exército, foram compreensivel- mente os primeiros a revoltar-se. É mais fácil perceber o comportamento dos soldados do que o dos oficiais. A facilidade com que também estes abandonaram o seu monarca é impressionante. O general Mikhail Alekseev, chefe do Estado-maior do czar e comandante de facto dos exércitos russos, ajudou a convencer o seu soberano a abdicar; e os generais mais poderosos, os comandantes das cinco «frentes», todos manifestaram o seu apoio aos argumentos de Alekseev. Entre as dezenas de milhar de oficiais, apenas dois comandan- tes ofereceram os seus serviços ao czar, e apenas dois homens preferiram demitir-se a jurar lealdade ao governo provisório. Este comportamento precisa de uma explicação. Com toda a certeza, a maioria dos oficiais, se tivesse opinião política, era monárquica. Na Primavera de 1917, contudo, pareceu-lhes que ir em auxílio do czar conduziria à guerra civil, e que isso comprometeria seriamente o esforço nacional para resistir ao inimigo estrangeiro. A guerra afigurava-se decisivamente importante para os ofi- ciais. Afinal, em três anos de combates tinham sacrificado milhões dos seus compatriotas – tinham de acreditar na importância daquela guerra para preservar a sua sanidade mental. 32
  • 5. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 O DUPLO PODER Os Russos receberam o fim do czarismo com entusiasmo. Embora a revolução não resolvesse os problemas controversos que a nação enfren- tava, pelo menos durante algum tempo ela criou uma aparência de unidade. Grupos diferentes podiam interpretar os acontecimentos à sua maneira e, por um tempo, expectativas e objectivos contraditórios puderam coexistir pacificamente: alguns esperavam que a revolução apressasse o fim da guerra; outros tinham a esperança de que um exército «democrático» combatesse melhor. O governo do czar enfrentara dois inimigos: os operários e os sol- dados – camponeses de uniforme – revoltando-se contra a opressão, e os liberais, que tinham perdido a confiança na capacidade do governo para defender os interesses da nação. Os que queriam uma revolução social e aqueles cujos objectivos se circunscreviam à reforma política tinham colaborado durante algum tempo numa aliança difícil. Com o desapareci- mento do czarismo, estas duas forças sociais, socialistas e liberais, esta- beleceram instituições independentes. A Duma, o parlamento russo, tinha sido eleita pela última vez em 1912 com base num sufrágio restritivo. Embora os seus membros repre- sentassem quase exclusivamente a Rússia privilegiada, a Duma tornou-se apesar disso o melhor fórum para criticar as políticas do czar e do seu governo. Eminentes políticos tinham exigido repetidas vezes um governo responsável perante a assembleia e uma democratização geral (embora limitada) do sistema político. Antes de se demitir, o último governo czarista interrompeu os trabalhos parlamentares, e os deputados não se opuseram às autoridades. Uma assembleia não oficial de deputados reali- zou-se a 27 de Fevereiro, na qual os representantes da direita se recusaram a participar. Esta assembleia elegeu uma comissão provisória que viria a dar origem ao futuro governo provisório. Criou-se assim uma situação paradoxal: a burguesia liberal, cujo ponto de vista estava representado no novo governo, não só não fez a revolução, como na verdade temia-a. A maioria dos políticos liberais esperava que a monarquia pudesse ser poupada, de uma maneira ou de outra. Como cidadãos respeitáveis, não toleravam a revolução social, nessa altura uma ameaça cada vez mais palpável. Contrariamente ao desejo da maioria dos liberais, o czar abdicou a 2 de Março, e a comissão provisória constituiu-se em governo para impedir 33
  • 6. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA a anarquia. Os liberais consideravam-se sucessores naturais do defunto governo, e esperavam permanecer no poder até que uma Assembleia Constituinte pudesse ser convocada. Uma vez que a assembleia que ele- gera a comissão provisória não tinha sido oficial, e os ministros se haviam mais ou menos nomeado a si mesmos, a legitimidade do governo provi- sório era posta em causa. Para os políticos liberais, que acreditavam no domínio da lei, isso era uma desvantagem significativa. O novo governo da Rússia era dominado por pessoas que tinham criado as suas reputações na Duma durante e antes da guerra, exigindo reformas liberais. Os políticos dos dois principais partidos liberais, os Kadets e os Outubristas, que se situavam um tanto à direita, receberam as pastas mais importantes. O príncipe Georgi Lvov, político independente algo apagado e ex-presidente da União de Zemstva, tornou-se primeiro- -ministro; como outubrista, Aleksandr Guchkov, o principal porta-voz na Duma de assuntos de defesa, tornou-se ministro da Defesa; e Pavel Miliukov, eminente historiador e líder dos Kadets, assumiu a pasta dos Negócios Estrangeiros. O outro centro de poder que viria a dominar a paisagem política durante os meses seguintes era o Soviete dos Deputados dos Trabalha- dores de Petrogrado. O soviete foi constituído quase ao mesmo tempo que a comissão provisória da Duma. Embora no início, em 1905, os sovietes, incluindo o mais importante em Sampetersburgo, fossem organizações genuinamente operárias, os intelectuais socialistas radicais tinham aos poucos vindo a desempenhar um papel dominante nas mesmas. O mesmo fenómeno ocorreu em 1917. A princípio, os líderes Socialistas Revolucio- nários e Mencheviques eram os mais influentes. A importância do Soviete de Petrogrado era desproporcional ao número de soldados e operários que representava, porque tinha a capacidade de fazer pressão sobre o governo. Era uma organização livre, que a dada altura tivera mais de 3500 repre- sentantes. A sua actuação era fortuita. Devido ao grande número de dele- gados e aos procedimentos desorganizados, o comité executivo adquiriu uma influência preponderante. Mas dentro de pouco tempo até mesmo este comité atingiu um tamanho incomportável de mais de 50 pessoas. Era através do comité executivo que os políticos socialistas exerciam a sua influência sobre os genuínos representantes dos operários e dos soldados. Aleksandr Kerenski, político Socialista Revolucionário moderado e deputado da Duma, foi eleito um dos dois vice-presidentes do Soviete de Petrogrado. Sem autorização explícita do Soviete, aceitou também a pasta 34
  • 7. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 da justiça no governo, tornando-se assim a única pessoa com um pé em ambos os campos, facto que o levou a adquirir importância e poder durante os meses seguintes. Kerenski, orador competente e carismático, conquistou rapidamente um séquito de seguidores nas circunstâncias revolucionárias. No dia 1 de Março, o Soviete de Petrogrado emitiu a sua famosa «Ordem n.º 1», segundo Trotsky, o documento mais valioso da revolução de Fevereiro. Embora a ordem se dirigisse apenas à guarnição militar de Petrogrado, o seu impacto depressa se fez sentir no exército inteiro. Apelava aos soldados para formar sovietes em todas as unidades militares até ao nível das companhias; pedia aos soldados para obedecer às ordens da Comissão Militar da Duma (o governo provisório ainda não tinha sido constituído) apenas se as mesmas não contrariassem as ordens do Soviete de Petrogrado; aboliu as antigas formas de tratamento dos oficiais; e conferiu aos soldados todos os direitos de cidadania, incluindo a partici- pação plena na política, quando não estavam de serviço. Embora esta ordem tivesse sido sem dúvida redigida num espírito hostil aos oficiais; o seu alcance não deve ser exagerado. Exprimia a hos- tilidade que os soldados sentiam, não a criou. Em Fevereiro de 1917, os oficiais perderam o domínio dos seus soldados, e nunca conseguiram restabelecer a sua autoridade. A maioria dos oficiais acreditava que tinha sido a Ordem n.º 1 a maior responsável pela destruição da capacidade de combate do exército. Em vez de avaliarem a situação com realismo, pre- feriram culpar os socialistas pelas suas frustrações. Assim, da revolução de Fevereiro surgiu uma singular ordem cons- titucional. O país tinha agora um governo que foi rápida e entusiastica- mente reconhecido por todas as potências aliadas estrangeiras. Esse governo tomou conta da velha máquina administrativa do Estado czarista sem dificuldade e tinha, pelo menos por enquanto, o apoio do alto comando do exército. O governo, contudo, tinha menos poder efectivo do que o Soviete dos Deputados dos Trabalhadores e Soldados de Petro- grado. Embora os políticos socialistas do soviete não dirigissem de modo nenhum a revolução, ainda assim a maior parte dos trabalhadores e solda- dos de Petrogrado, e pouco depois o país inteiro, reconhecia aquela insti- tuição como sua. O soviete de Petrogrado, ao contrário do governo provi- sório, podia apelar aos trabalhadores e soldados para se manifestarem e levaram a cabo acções revolucionárias. Os ministros compreendiam bem que detinham os seus cargos com a tolerância dos socialistas do soviete. 35
  • 8. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA A questão põe-se: porque é que os socialistas moderados não toma- ram todo o poder quando os seus opositores não se encontravam em boas condições de resistir? Lenine tinha sem dúvida razão quando pouco depois os acusou de timidez. Os socialistas, muitos acabados de sair da prisão, tinham dificuldade em imaginar-se como ministros; para eles parecia natural que se devesse confiar o poder aos liberais. Faltava-lhes aquele desejo de poder que Lenine tão claramente possuía. Além disso, os mencheviques, pelo menos, eram influenciados por crenças marxistas fortemente arraigadas, segundo as quais a Rússia estava pronta para se libertar dos restos do feudalismo e tomar o caminho do desenvolvimento capitalista mas não ainda para uma revolução socialista. A discórdia não podia deixar de surgir entre os que detinham autori- dade mas nenhum poder, enquanto os que podiam comandar os operários e os soldados mas não tinham qualquer responsabilidade formal. OS PROBLEMAS DO GOVERNO PROVISÓRIO Os liberais encontraram-se numa situação irónica: as forças que os colocaram no poder acabaram por os destruir. O governo czarista falhou porque a Rússia não podia ser governada durante uma guerra moderna com base nos princípios em que a elite czarista acreditava. No entanto, em 1917, era também impossível criar instituições governamentais com base em princípios liberais. Os problemas que o país enfrentava eram dema- siado grandes, e não havia qualquer consenso sobre como abordá-los; a experiência liberal estava por isso condenada ao fracasso. Embora os membros do governo provisório possam ser criticados por cometer erros e hostilizar desnecessariamente vários grupos políticos importantes, é impossível imaginar, mesmo retrospectivamente, que políticas, coerentes com as suas crenças profundas, lhes teriam permitido conservar o poder. O governo provisório caiu porque foi incapaz de resolver as questões urgentes do momento; a guerra, a reforma agrária e a autonomia para as minorias nacionais. De entre estas questões, a da participação na guerra era a mais ime- diata e difícil. As classes instruídas e privilegiadas da Rússia e as grandes massas tinham conceitos diferentes de patriotismo. Os soldados campo- neses estavam cansados de combater numa guerra que se arrastava havia 36
  • 9. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 três anos, sem fim à vista. A ideia do interesse nacional, cara aos corações dos liberais, fazia pouco sentido para os soldados. Eles pouco se inte- ressavam em tornar Constantinopla russa, ou no carácter sagrado dos tra- tados internacionais. Por outro lado, os membros do governo provisório, que representavam as classes privilegiadas, acreditavam firmemente que a Rússia tinha de permanecer fiel aos seus aliados. Os oficiais no exército e os políticos não foram capazes de perceber o grau de descontentamento entre os soldados camponeses, como antes o governo czarista não fora capaz de reconhecer o estado de espírito do povo. Durante 1917 as crises políticas sucederam-se umas às outras, e em todas a questão fundamental era o esforço de guerra da nação. Os mem- bros do primeiro governo provisório estavam tão decididos quanto o governo czarista a levar a guerra a uma conclusão vitoriosa. Entre a posição dos soldados e trabalhadores cansados da guerra e a do governo provisório encontrava-se o Soviete de Petrogrado. As principais figuras do soviete reconheciam que a guerra não podia acabar com o abandono puro e simples do campo de batalha por parte dos soldados Russos. Eles assumiam uma posição «defensiva»: concordavam com a continuação da guerra enquanto o solo russo estivesse ocupado, mas opunham-se a uma política de anexar territórios estrangeiros e exigir indemnizações aos derrotados. O governo provisório e os líderes soviéticos têm sido responsabiliza- dos pelos historiadores por não terem posto fim à guerra. É verdade que todos os políticos liberais e muitos socialistas acreditavam na importância da guerra e nada fizeram para acabar com ela. Por outro lado, mesmo que quisessem, é muito pouco provável que o tivessem conseguido. Como demonstrou a experiência dos bolcheviques em 1917, os Russos não poderiam ter obtido dos Alemães condições de paz aceitáveis para os poli- ticamente poderosos. Os Alemães julgavam-se vitoriosos e não estavam dispostos a negociar. A primeira crise política surgiu em Abril. O ministro dos Negócios Estrangeiros, Miliukov, escreveu aos governos aliados informando-lhes que a Rússia cumpriria todos os seus compromissos e lutaria até uma «vitória decisiva». A publicação desta nota nos jornais provocou uma onda de indignação. A política do governo contradizia os princípios anun- ciados pelos líderes do soviete, que consideraram a publicação da nota uma provocação. Os manifestantes nas ruas e o Soviete de Petrogrado obrigaram Miliukov a demitir-se, e o ministro da Defesa, Guchkov, 37
  • 10. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA seguiu-o pouco depois. Um novo governo de coligação teve de ser for- mado, com uma composição diferente: incluía seis membros socialistas, entre eles Kerenski, que passou a assumir a importante pasta da Defesa. Os acontecimentos de Abril mostraram que o governo provisório não podia agir sem o apoio explícito do Soviete de Petrogrado. A crise seguinte ocorreu em Junho, quando Kerenski deu início a uma grande e precipitada ofensiva. Ele tinha dois móbeis: em primeiro lugar, o Alto Comando russo antes da revolução de Fevereiro prometera aos aliados que empreenderia operações militares activas para facilitar um avanço há muito esperado na frente Ocidental. Em segundo lugar, Kerenski evocou a experiência da Revolução Francesa, quando as tropas da França democrática combateram com êxito a coligação de Estados autocráticos; ele acreditava que uma ofensiva bem sucedida contribuiria para reacender o espírito de combate no exército. A ofensiva redundou num desastre. Após alguns êxitos iniciais e locais dos Russos, os Ale- mães, que tinham sido avisados, fizeram recuar os atacantes com facili- dade, infligindo-lhes pesadas baixas. Manifestamente, as desmoralizadas tropas russas não estavam em condições de levar a cabo operações ofensivas com sucesso. Kerenski, que esperara colher vantagens políticas do êxito militar, teve na realidade de pagar um elevado preço pelo fracasso. No início de Julho ocorreram graves distúrbios em Petrogrado. Pela primeira vez, os soldados e os trabalhadores da cidade revelaram-se mais radicais do que a chefia socialista do Soviete. Os problemas começaram quando um regimento, temendo ser enviado para a frente, se amotinou. Depressa os trabalhadores se juntaram aos soldados, e durante algum tempo a sobrevivência de todo o duplo sistema de governo esteve em dúvida. O governo, apoiado pela liderança do soviete, conseguiu enviar tropas frescas para Petrogrado e restabelecer a ordem. Em consequência deste incidente, o príncipe Lvov demitiu-se e Kerenski tornou-se final- mente primeiro-ministro. Algumas semanas depois foi a vez da direita tentar alterar a ordem política vigente na Rússia através da força. Em Julho, Kerenski nomeou Lavr Kornilov comandante-chefe das forças armadas russas, em grande parte porque o general prometeu restabelecer a ordem entre as tropas des- moralizadas. Os militares estavam cada vez mais descontentes com o rumo dos acontecimentos. Acusavam o governo de não ter tomado medi- das enérgicas contra os «agitadores» e suspeitavam de traição entre os 38
  • 11. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 líderes do soviete. O novo comandante-chefe decidiu resolver pessoal- mente o assunto. Enviou tropas para Petrogrado para dispersar o soviete. Quando o primeiro-ministro lhe pediu para renunciar ao comando, ele recusou-se. O erro do general Kornilov não foi só amotinar-se – pior do que isso, ele geriu mal a sua revolta. Sobrestimou as suas forças; não con- duziu pessoalmente as tropas e não se preparou devidamente assegurando o apoio dos grupos conservadores. O fracasso da sua empresa foi rápido e completo: os soldados não obedeceram às ordens e os trabalhadores dos caminhos-de-ferro impediram os comboios de transportar as suas tropas para a capital. Kornilov e os seus colegas amotinados foram presos. O resultado conjunto das «jornadas de Julho» em Petrogrado e do caso Kornilov foi desastroso para o governo provisório. Os liberais e os socialistas moderados desagradaram primeiro à esquerda e depois à direita. Numa altura em que era evidente a ameaça de ambos os extremos políticos, a tentativa do governo de se interpor entre forças cada vez mais hostis estava condenada. A direita achava que o governo existente não era capaz de prosseguir com êxito a guerra, e a esquerda percebeu que o mesmo não conseguia ou não queria pôr fim aos combates. Embora a incapacidade dos políticos de resolver o problema da reforma agrária não tivesse provocado crises tão espectaculares como a questão da participação na guerra, ainda assim prejudicou a capacidade de actuação do governo. É muito mais difícil descrever a agitação camponesa de 1917 do que o movimento dos operários e soldados revolucionários, porque os camponeses não possuíam uma liderança nacional que arti- culasse os seus objectivos e coordenasse acções revolucionárias. No entanto, o papel dos camponeses em impedir a consolidação do domínio liberal foi tão importante como o dos operários. Os camponeses há muito que se preocupavam com o desejo de terras. Quando os servos foram alforriados em 1861, receberam aproximada- mente metade da terra que tinham cultivado antes; mas esse foi um arranjo que a maioria considerou injusto – eles queriam tudo. À medida que a população crescia nas décadas anteriores à I Guerra Mundial, a procura de terra aumentava. Em 1917, quando a autoridade central se desmoronou, os camponeses quiseram fazer a sua própria revolução, o que para eles signi- ficava sobretudo uma redistribuição das terras. Poucos compreendiam que mesmo a ocupação de todas as terras da nobreza não era uma solução de longo prazo: considerando os métodos de cultivo na Rússia, não havia simplesmente terra suficiente para toda a gente que desejava cultivá-la. Os 39
  • 12. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA membros do governo, evidentemente, tinham plena consciência da impor- tância da questão da reforma agrária, e em princípio não se opunham à ideia. Na prática, contudo, nada fizeram. Em primeiro lugar, levar a cabo a reforma agrária em tempo de guerra, quando milhões de camponeses integravam o exército, teria acabado com a eficiência das tropas. Os sol- dados camponeses teriam abandonado os seus regimentos para voltar às suas aldeias e reclamar a sua parte. Em segundo lugar, o governo não possuía os mecanismos para empreender um processo inevitavelmente complexo. Em terceiro lugar, os ministros liberais partiam do princípio que os latifundiários tinham de ser compensados pela sua propriedade. Em 1917, o governo carecia obviamente dos recursos necessários para indemnizar os que seriam expropriados. Dadas estas dificuldades, o governo foi defendendo que a resolução da questão agrária tinha de esperar pela convocação da Assembleia Constituinte. Por causa desta falta de acção os camponeses voltaram-se decidida e progressivamente contra o governo provisório. A posição do governo nas aldeias nunca tinha sido forte, mesmo no início. No tempo dos czares, os principais representantes do poder governamental eram os supervisores de terras – funcionários públicos nomeados que controlavam as estruturas judiciais e policiais. Os supervisores tinham sido impopulares, e o governo provisório abolira o cargo. Segundo o plano de reformas, as funções dos supervisores passariam a ser desempenhadas por comités regionais eleitos. Estes comités, e a antiga comuna, tornaram-se os verda- deiros governantes da aldeia. Os camponeses passaram a deter um grau de autonomia sem precedentes. Infelizmente para o governo, a autonomia camponesa não se revelou um bastião de estabilidade. Pelo contrário, as instituições camponesas foram utilizadas para atacar a propriedade privada. Existe alguma ironia em tudo isto. Durante décadas o governo czarista tinha apoiado as comunas dos camponeses na esperança de que elas fomentassem a estabilidade. Na altura da revolução, contudo, foram preci- samente as comunas camponesas que organizaram violentas ocupações de terras. As comunas eram os equivalentes dos sovietes nas cidades; sem elas a revolução camponesa não teria sido bem sucedida. Antes da revo- lução, os intelectuais socialistas e liberais achavam que a comuna era um remanescente do passado em vias de extinção. Mas agora que os campo- neses detinham algum poder sobre as suas próprias vidas, estas institui- ções ganhavam um novo alento. A confiscação das terras dos grandes 40
  • 13. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 proprietários não foi feita por indivíduos, mas pelas comunas de cam- poneses, que depois dividia a terra entre os seus membros. As confisca- ções ilícitas de terras e os assaltos às propriedades dos latifundiários começaram em Maio e tornaram-se cada vez mais ameaçadoras durante o Verão. O governo não conseguia satisfazer os camponeses nem conter as suas acções revolucionárias. Não conseguia conquistar nem a fidelidade nem o respeito dos camponeses. A terceira fonte de conflito durante o período do governo provisório foi o crescente desejo de autonomia das minorias nacionais. A Rússia tem sido um Estado multi-étnico desde a sua fundação. As minorias, que cons- tituíam metade da população do império, eram muito diferentes entre si no que dizia respeito ao desenvolvimento económico e cultural e ao grau de consciência nacional. Enquanto o império fosse forte, o nacionalismo das minorias não ameaçava a estabilidade do Estado. Com a excepção dos Polacos e talvez dos Finlandeses, as aspirações nacionalistas circunscre- viam-se a pequenos grupos de pessoas interessadas sobretudo em auto- nomia cultural. Em 1917, a questão das nacionalidades ainda não tinha a mesma importância urgente que as questões da paz e da terra; no entanto, prefigurava já uma grande fonte de instabilidade durante a guerra civil. O governo provisório não conseguia satisfazer as crescentes aspirações nacionalistas de um grande número de pessoas, nem podia reprimi-las. A Rússia imperial era um domínio multinacional; os Russos constituíam apenas metade da população. Quando o Estado era forte, o desejo de autonomia das minorias raramente era ouvido. Apenas os Polacos, que tinham uma longa história de independência nacional, foram um incó- modo permanente para o governo russófilo do regime imperial. Quando o Estado começou a desintegrar-se a seguir à revolução de Fevereiro, deu- se rapidamente um aumento da consciência nacional. A maior parte da Polónia estava ocupada pelos Alemães no Verão de 1917, e por isso os Polacos não constituíam para o governo um problema imediato. Em 1917, o desafio mais difícil vinha dos Ucranianos. Os Ucranianos criaram o seu próprio parlamento, o Rada. Os mem- bros socialistas do governo provisório mostravam-se dispostos a outorgar autonomia efectiva à Ucrânia, mas os Kadets no seio da coligação opu- nham-se, acreditando que ceder aos Ucranianos seria o primeiro passo para a desintegração do império. Foi esta divergência que levou à queda do governo de Lvov mesmo antes das jornadas de Julho, e à ascensão de Kerenski ao cargo de primeiro-ministro. A questão do lugar da Ucrânia no 41
  • 14. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA espaço do futuro Estado russo democrático estava longe de se encontrar resolvida quando o governo provisório deixou de existir. OS BOLCHEVIQUES E OS OPERÁRIOS Em Fevereiro de 1917 existiam menos de 25 000 bolcheviques no país inteiro; apenas cerca de 3000 actuavam na capital. Os líderes mais importantes encontravam-se no exílio. Os bolcheviques, obedecendo a Lenine, haviam-se oposto à participação da Rússia na I Guerra Mundial, denunciando-a como imperialista. Eles apelavam à transformação do conflito internacional numa guerra civil, incitando os explorados de todo o mundo a voltar as suas armas contra os exploradores. Nessas circuns- tâncias, é compreensível que o governo czarista os tivesse perseguido de forma mais resoluta do que aos outros socialistas. Na altura da revolução de Fevereiro, Lenine estava exilado na Suíça. Iosif Estaline e Lev Kamenev foram os primeiros líderes a regressar a Petrogrado do seu exílio siberiano e a dirigir a política do Partido. A sua orientação era moderada. Reconhecendo a fraqueza da sua posição, não viram outra alternativa senão trabalhar com os mencheviques e os socia- listas revolucionários no Soviete de Petrogrado e desse modo aceitar implicitamente colaborar com o governo provisório. Essa orientação era impensável para Lenine. Nem por um momento ele se deixou seduzir pela ideia da unidade socialista. Aceitou a oferta alemã de o ajudar a regressar ao seu país através de território alemão, apesar de saber que essa aparente colaboração com o inimigo em tempo de guerra implicava riscos políticos. Os Alemães deixaram-no regressar a casa, acreditando que a presença dele na Rússia contribuiria para a desintegração do governo. O partido de Lenine receberia mais tarde apoio financeiro da Alemanha. Os antibolcheviques da altura e desde então atribuíram grande importância a esse facto, chegando mesmo a descrever a revolução como produto da subversão estrangeira. Estas acusações não têm fundamento. O facto de os interesses dos bolcheviques e dos Alemães terem coincidido temporariamente não transformou nenhuma das partes em fantoche da outra. Em primeiro lugar, a quantia de dinheiro que os leninistas receberam não podia fazer grande diferença. No que diz res- peito a recursos financeiros, os bolcheviques estavam muito pior do que 42
  • 15. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 os seus inimigos. Em todo o caso, os revolucionários acreditavam que o império alemão se desmoronaria dentro de pouco tempo em consequência da vitória da revolução mundial. Os leninistas não se preocupavam com a moralidade de aceitar dinheiro dos inimigos do seu país. Acreditavam que os interesses da revolução social se sobrepunham aos interesses nacionais, e que nessas circunstâncias pouco importava qual dos campos imperia- listas beneficiaria a curto prazo das acções bolcheviques. Ironicamente, muitas das pessoas que mais clamorosamente denunciaram Lenine como traidor não hesitaram em aceitar a ajuda dos Alemães depois da revolução bolchevique, comprovando desse modo a ideia: os interesses da luta de classes em certas circunstâncias sobrepõem-se aos interesses da luta nacional. Na singular carreira de Lenine um dos momentos mais extraordiná- rios foi o seu regresso a Petrogrado após anos de exílio. Ele não se deixou contagiar pelo entusiasmo generalizado criado pela vitória sobre o czarismo. Não estava disposto a parar, mas ansioso por seguir em frente. Logo na estação de comboio anunciou as suas famosas Teses de Abril. O essencial era que os bolcheviques não deviam apoiar a ordem política existente, mas começar imediatamente a trabalhar para derrubar o governo, que Lenine considerava porta-voz da burguesia. Todas as suas exigências concretas – todo o poder aos sovietes, a nacionalização da terra, o controlo operário da indústria, o fim imediato da guerra – basea- vam-se no pressuposto de que, contrariamente à análise marxista, o país não precisava de um período prolongado de desenvolvimento capi- talista mas que estava pronto para passar imediatamente à revolução socialista. Em Abril de 1917, o radicalismo deste programa era assombroso. Os sovietes, aos quais Lenine queria dar o poder, pertenciam aos seus inimi- gos políticos: os bolcheviques constituíam apenas pequenas minorias nos importantes sovietes do país. No que dizia respeito à guerra, embora a ideia da continuação dos combates fosse cada vez mais impopular, é pouco provável que a maioria estivesse disposta a aceitar a paz a qualquer preço. A animosidade contra os Alemães era ainda profunda. Não obs- tante, em poucas semanas Lenine conseguiu ganhar o apoio do seu par- tido. No final de Abril, o Comité Central aprovou uma série de resoluções no espírito do seu novo radicalismo. A seguir, Lenine conquistou o apoio de importantes líderes socialistas até então não identificados com os bolcheviques. Entre estes, o mais importante era Leon Trotsky, que aca- 43
  • 16. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA bara também de regressar do exílio. No final de Maio, a política leninista já conquistara também o importante apoio da classe operária. Os bolcheviques exprimiram as opiniões e sentimentos dos operários e camponeses revolucionários, agindo no interesse destes, ou, pelo contrário, manipularam-nos para seu próprio benefício político? De entre todos os aspectos da história da revolução, o papel dos bolcheviques, o carácter do seu partido e a sua relação com os trabalhadores, são os mais controversos. Durante os primeiros tempos da guerra-fria a maioria dos historiadores ocidentais descrevia os bolcheviques como um grupo muito unido e bem organizado que durante a desordem da revolução logrou impor a sua vontade aos trabalhadores. Segundo esta interpretação, o partido de Lenine foi essencialmente uma organização manipuladora que realizou um golpe de Estado em Outubro, sem o apoio da maioria do povo russo ou dos trabalhadores. Os historiadores Russos pós-soviéticos tam- bém se inclinam para este ponto de vista (1). Outros estudiosos mais recentes, muitos inspirados pela teoria mar- xista, adoptaram uma abordagem diferente. Eles salientam o radicalismo inato das classes trabalhadoras. Segundo a sua opinião, durante o combate revolucionário os trabalhadores adquiriram consciência de classe e passaram a apoiar o Partido Bolchevique porque este representava os seus interesses. Os acontecimentos de Outubro, portanto, devem ser vistos como uma genuína revolução proletária (2). É evidente que durante 1917 as classes trabalhadoras se radicaliza- ram. Esta radicalização ocorreu em grande parte devido à deterioração da economia. Os trabalhadores começaram a perceber, com cada vez mais clareza, que o governo provisório não os podia ajudar nem resolver os problemas do país. Achando que o governo existente não defenderia os seus interesses, começaram a procurar orientação nas suas próprias orga- nizações e nos bolcheviques, que haviam sempre representado o ponto de vista mais radical. As organizações de trabalhadores mais importantes eram os comités de fábrica estabelecidos pouco depois da revolução de Fevereiro. Os comités eram mais populares e poderosos do que os sind- catos porque representavam um tipo de democracia directa que se ade- quava às circunstâncias caóticas. Podiam rapidamente mudar de política ao sabor das circunstâncias. Quando Lenine falava da necessidade de os operários assumirem a direcção das indústrias, estava a pensar no comité de fábrica como instrumento dessa direcção. Na verdade, os comités tinham começado a intervir em todos os aspectos da gestão das fábricas 44
  • 17. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 muito antes da revolução de Outubro. Na época do governo provisório, os bolcheviques já tinham assumido o comando desses comités. Os historiadores soviéticos encontraram a explicação para o êxito de Lenine na sua «consistente análise de classes». Mas é possível que Lenine tivesse apenas sorte. Ele opusera-se à guerra por razões de princípio. Ansiava pela revolução e insistia numa política radical em grande parte por uma questão de temperamento. Entretanto o povo russo, sobretudo os operários e os soldados dos escalões mais baixos, chegava a posições ideológicas que Lenine já havia defendido. Faz pouco sentido achar que os trabalhadores tivessem aderido à política leninista graças a uma inteli- gente propaganda bolchevique. Na realidade, os partidos não-socialistas tinham muito mais meios do que os socialistas, e os bolcheviques estavam em desvantagem mesmo no seio do campo socialista. É evidente que os bolcheviques não se esquivaram à demagogia, como aliás os seus adver- sários. Os antibolcheviques usaram também todos os meios ao seu alcance. Por exemplo, foram bastante bem sucedidos em manter os jornais bolcheviques fora das unidades militares. Manifestamente, o apelo bolchevique triunfou porque havia um público ansioso por posições radicais. Não existem motivos para supor que no que diz respeito à técnica propagandista os bolcheviques fossem superiores. O apoio às posições bolcheviques cresceu regularmente durante 1917, excepto durante um curto período a seguir às jornadas de Julho, em que os radicais sofreram um pequeno revés. Embora muitos bolcheviques das bases estivessem decerto envolvidos em organizar manifestações e criar a desordem, os principais chefes do partido, incluindo Lenine, não acredita- vam que uma tomada de controlo bolchevique pudesse ser bem sucedida naquela altura. Por outro lado, uma vez iniciados os distúrbios e após a morte de várias pessoas, os bolcheviques não podiam abandonar os mani- festantes sem sofrer grandes prejuízos políticos. Quando o governo conse- guiu restabelecer a ordem, prendeu alguns dos dirigentes bolcheviques. Lenine e o seu camarada próximo, Grigori Zinoviev, foram obrigados a esconder-se, e um grupo de soldados destruiu a redacção do Pravda, o jornal do partido. Parecia que Lenine tinha sofrido uma séria derrota. Os bolcheviques foram também prejudicados pela publicação de documentos destinados a mostrar que Lenine e os seus camaradas eram agentes Alemães. Embora os documentos fossem falsos, a alegação de base de que os leninistas tinham recebido ajuda da Alemanha era verda- deira. Os soldados e os operários podiam estar cansados da guerra, mas 45
  • 18. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA semelhante acusação tinha ainda um peso político considerável, e com certeza fez diminuir o apoio aos bolcheviques nas fábricas e nos regi- mentos. O revés, contudo, foi apenas temporário. A anarquia – que afinal era a principal fonte da força bolchevique – continuou a alastrar-se. O acontecimento que mais ajudou os bolcheviques foi a malfadada revolta de Kornilov. O incidente vinha aparentemente comprovar que a direita política ameaçava a revolução, como haviam sempre defendido os bolche- viques, e que os leninistas eram os únicos não comprometidos pela cola- boração com a burguesia. Eles tinham apelado aos trabalhadores e aos soldados para tomar o poder e, durante a revolta de Kornilov, os trabalha- dores e os soldados mostraram que tinham de facto uma força consi- derável. O apoio aos bolcheviques aumentou repentinamente. Pela primeira vez conseguiram maiorias nos sovietes de Petrogrado e Moscovo. Estas vitórias tiveram uma importância decisiva para o futuro do governo provisório. Os bolcheviques e os trabalhadores radicais haviam censurado o Soviete de Petrogrado por não ter ousado conquistar o poder. Agora que os bolcheviques dominavam os sovietes, a decisão de quando atacar estava nas suas mãos. A REVOLUÇÃO DE OUTUBRO Os historiadores interrogam-se se a tomada de poder bolchevique em Outubro de 1917 foi um golpe de Estado, levada a cabo pelos impetuosos bolcheviques, ou uma verdadeira revolução, obra dos operários e soldados radicais de Petrogrado. Mas talvez o aspecto mais notável dos aconte- cimentos não fosse nem a ousadia dos bolcheviques, nem o comporta- mento dos trabalhadores, mas a completa desintegração da autoridade governamental. Lenine instou resolutamente os seus apoiantes a agir, alegando que esperar podia ser fatal. Conseguiu por fim conquistar o apoio do Comité Central do partido, com a excepção de dois importantes dissidentes, Zinoviev e Kamenev. Os antigos camaradas de Lenine opunham-se de tal maneira ao que lhes parecia uma decisão precipitada que decidiram publi- car a data da planeada insurreição num jornal não-comunista. Escolheram o Novyi Mir, jornal dirigido por Máximo Gorki, o célebre escritor extre- mista. Nessa altura o governo provisório já havia perdido todo o poder e 46
  • 19. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 autoridade: todas as pessoas politicamente conscientes de Petrogrado sabiam que os bolcheviques estavam prestes a agir, mas o governo não era capaz de se defender. Nestas circunstâncias, dificilmente se pode falar de um golpe de Estado, e muito menos de uma conspiração. Os bolcheviques tomaram o poder porque o país se encontrava à beira da anarquia. A revolução bolchevique é um momento tão importante na história do mundo que o estudioso olhando para trás sente-se muitas vezes surpreen- dido e até mesmo decepcionado ao descobrir que os acontecimentos de 24-25 de Outubro de 1917 não foram afinal especialmente dramáticos. Os restaurantes e os teatros estiveram abertos nessa noite. Na perspectiva dos estafados habitantes da altura, o país passava apenas por outra crise. Os bolcheviques, que dominavam então o Soviete de Petrogrado, usaram o seu comité revolucionário militar para organizar e levar a cabo uma acção revolucionária. Ocuparam os edifícios públicos mais importantes, as redacções dos principais jornais e as estações de caminho-de-ferro. O último reduto era o Palácio de Inverno, onde estava reunido o governo provisório – sem Kerenski, que tinha conseguido fugir da cidade. O assalto ao Palácio de Inverno, tão conhecido da posteridade através do filme Outubro de Eisenstein, não ocorreu como retratado pelo grande realizador. Os assaltantes eram poucos e desorganizados, mas isso pouco importava, uma vez que o governo nos últimos minutos da sua existência não podia contar com praticamente nenhum apoio armado. Os bolche- viques programaram o momento da sua acção para coincidir com o II Congresso dos Sovietes. Ao alegar que estavam a agir em nome dos sovietes, esperavam conseguir um certo grau de legitimidade. Na verdade, apresentaram ao Congresso um facto consumado. Embora alguns líderes socialistas moderados tivessem abandonado a reunião em sinal de pro- testo, a maioria bolchevique aprovou uma resolução confirmando as medidas revolucionárias. Foram as questões da terra e da paz que derrubaram o governo pro- visório, e Lenine estava decidido a resolvê-las tão decisiva e rapidamente quanto possível. Um dia após a vitória, apresentou os seus decretos da paz e da terra ao Congresso dos Sovietes. O primeiro desses decretos era um apelo a todos os países beligerantes para encetar negociações para uma paz justa e democrática sem indemnizações nem anexações. O segundo declarava a terra propriedade nacional, permitindo no entanto os cam- poneses a cultivá-la como sua. Na prática isso significava que os bolche- viques reconheciam oficialmente as confiscações de terras levadas a cabo 47
  • 20. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA V. I. Lenine pelos camponeses. A criação de uma classe de camponeses com terras parecia colidir com a imagem marxista do futuro defendida pelos bolche- viques. Como marxistas, eles acreditavam que a posse de terras pela grande maioria do povo russo tornaria mais difícil a construção de uma sociedade socialista. Lenine, contudo, percebeu que era essencial deixar os camponeses concluir a sua revolução para conquistar o seu apoio, ou pelo menos torná-los neutros. Depois de Outubro a principal tarefa dos agitadores bolcheviques nas aldeias foi divulgar o decreto da terra: era o principal argumento dos agitadores na sua tentativa de convencer os camponeses de que os bolcheviques estavam do seu lado. O novo governo, chamado Conselho dos Comissários do Povo e chefiado por Lenine, era um órgão exclusivamente bolchevista. A lista dos comissários foi uma desilusão para a maioria dos soldados e operários extremistas que havia ajudado os bolcheviques a chegar ao poder, porque tinha esperado um governo de coligação de socialistas. Uma parte bas- tante significativa dos principais dirigentes do partido teria também preferido uma coligação. Alguns dos líderes que defendiam a coligação preferiram mesmo demitir-se a participar num governo de partido único, 48
  • 21. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 mas Lenine e Trotsky mostraram-se inflexíveis. A sua concepção do novo regime não permitia cedências aos que se haviam oposto à tomada de poder. Um mês depois os bolcheviques admitiram de facto alguns socia- listas revolucionários de esquerda no seu governo. No entanto, os novos comissários aceitaram as pastas nas condições dos bolcheviques, e como não tinham uma base de poder organizada não podiam combater eficaz- mente as políticas dos bolcheviques. De qualquer maneira, os socialistas revolucionários de esquerda permaneceram no governo durante apenas um breve período. Abandonaram o governo em protesto contra a decisão de Lenine de fazer a paz com os Alemães em Março de 1918. Tendo em conta a violência da guerra civil que começaria poucos meses depois, impõe-se a pergunta: que estavam os futuros e fervorosos inimigos dos bolcheviques a fazer nos momentos decisivos? Porque deixaram os seus adversários tomar o poder tão facilmente? Como já vimos, os bolcheviques não os surpreenderam: todas as pessoas politica- mente conscientes da Rússia sabiam das intenções bem anunciadas dos revolucionários. A paralisia teve vários motivos. Os militares, apoiantes de Kornilov que pouco depois viriam a constituir o comando do movimento Branco antibolchevique, tinham sido derrotados havia pouco tempo e sentiam-se desiludidos com o povo russo. Por um lado, odiavam o regime liberal de Kerenski com tanto fervor que não o defenderiam em circunstância alguma. Por outro, subestimaram os bolcheviques. Não imaginavam que um bando de extremistas com ideias extravagantes pudesse ter êxito no que os ministros czaristas e estadistas instruídos e experientes tinham falhado: isto é, em governar o país. Além disso, estavam tão preocupados com a necessidade de lutar contra o inimigo estrangeiro que se recusaram a abandonar as suas posições na frente. Entraram em oposição aberta apenas quando se lhes tornou impossível continuar a combater os Alemães. Os mencheviques e os socialistas revolucionários não agiram porque subestimaram as divergências entre eles próprios e o novo governo. Aos seus olhos os bolcheviques eram camaradas socialistas. O país preparara- -se para as eleições para a Assembleia Constituinte, e os socialistas mode- rados temiam comprometer a sua posição junto dos eleitores. O facto de os bolcheviques terem conseguido manter uma aparência de legitimidade ao conquistar o apoio da maioria do II Congresso dos Sovietes também os ajudou consideravelmente. Em certo sentido, os antibolcheviques tinham 49
  • 22. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA razão: a conquista do poder era uma questão relativamente menor. A tarefa verdadeiramente difícil, dar ao país um governo eficiente e vencer a anarquia, estava ainda pela frente. Os bolcheviques chegaram ao poder com um programa extraordina- riamente ambicioso que visava não só reorganizar a sociedade e a política, mas também reformar a humanidade. O seu programa baseava-se em princípios abstractos derivados da sua leitura de Marx. Inevitavelmente, os preceitos da teoria e as necessidades concretas do momento colidiram quase imediatamente, e os bolcheviques foram obrigados a improvisar. Nesse processo de improvisação tornaram-se os grandes inovadores da política do século XX. Criaram instituições, métodos de mobilização e até mesmo um vocabulário que seria não só imitado mas repetidamente redescoberto. O jogo entre as exigências criadas por uma inesperada e difícil realidade e uma ideologia com a qual os revolucionários estavam profundamente comprometidos é um assunto complexo e fascinante. Seria um erro imaginar que todos os aspectos pouco atraentes das políticas bolchevistas foram consequência das exigências cruéis e ines- peradas da época. Os bolcheviques não eram democratas ou liberais con- vertidos a um método político diferente pelo seu desejo de sobrevivência. Traziam obviamente em si as atitudes mentais que lhes permitiram trans- formar-se rapidamente de revolucionários em administradores, de com- batentes da liberdade em opressores. Chegaram ao poder em circunstâncias totalmente imprevistas pela sua ideologia. Em vez de uma sociedade industrial completamente desenvol- vida, a sua herança foi o analfabetismo, a anarquia, a ruína industrial e a fome. Em vez de participarem numa revolução internacional, após a qual poderiam ter beneficiado da ajuda de nações mais avançadas, tiveram de enfrentar mais ataques do poderoso exército alemão. Os Alemães pare- ciam imparáveis porque o exército russo tinha perdido a sua capacidade de resistir – pelo menos em parte devido à anterior propaganda antiguerra dos bolcheviques. O internacionalismo estava profundamente arraigado na mentalidade dos bolcheviques, que se consideravam um regimento avançado do exército proletário internacional. Inquietava-os o facto de, contrariamente à teoria marxista, a revolução não ter primeiro ocorrido nos países econo- micamente mais avançados. Explicavam essa anomalia alegando que o proletariado russo estava em condições de quebrar a corrente do capita- lismo mundial no seu elo mais fraco. Segundo este raciocínio, o objectivo 50
  • 23. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 principal da revolução russa era quebrar essa corrente e assim iniciar a revolução mundial. Na sua perspectiva, a revolução russa só poderia ter êxito a longo prazo se fosse ajudada por nações solidárias, mais avançadas e, sobretudo, socialistas. A expectativa de uma revolução socialista a seguir à insana devastação da I Guerra Mundial não era de modo nenhum absurda. Hoje sabemos que a revolução não ocorreu, que a velha ordem voltou a afirmar-se. Na altura, porém, toda a gente, amigos e inimigos, esperavam ou temiam essa transformação cataclísmica. Esta expectativa de uma revolução mundial não era uma questão teórica para os leninistas, mas matéria que afectava o seu comportamento quotidiano. Os bolcheviques vitoriosos enfrentavam uma falange de governos hostis. Essa hostilidade era esperada e até mesmo necessária para os bolcheviques. Os que acreditavam no internacionalismo do prole- tariado também tinham de acreditar no internacionalismo do capital. Os bolcheviques esperavam que as potências capitalistas, percebendo que os seus inimigos mais perigosos não eram outros capitalistas mas os socia- listas, se esqueceriam da guerra e se uniriam contra os revolucionários. Esse desenvolvimento, na visão dos bolcheviques, muito provavelmente conduziria à revolta de todos os povos explorados, e talvez fosse por isso desejável. O problema imediato, contudo, não era uma coligação hostil mas o exército alemão. Os bolcheviques encetaram negociações de paz com o inimigo e acabaram por aceitar as condições severas dos Alemães. A 3 de Março, assinaram o Tratado de Brest-Litovsk. A aceitação das condições desse tratado gerou o primeiro grande debate da história soviética, quase dividindo o partido. A negociação com um inimigo imperialista podia ser considerada o ponto de partida da política externa soviética. Quando assumiram o poder, os bolcheviques acreditavam que o seu regime não precisava de uma política externa. Os governos do mundo seriam implacavel- mente hostis mas o proletariado mundial estaria do seu lado; as rela- ções externas podiam ser reduzidas a apelos revolucionários. Os bolche- viques viam a solução para as suas dificuldades na iminente revolução mundial. O facto de essa revolução nunca ter ocorrido foi a sua maior decepção. Um segmento considerável e influente da chefia do partido conti- nuava a achar que era um erro firmar qualquer tratado ou mesmo manter relações diplomáticas com as potências capitalistas. Estas pessoas, lidera- 51
  • 24. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA das por Nikolai Bukarine e apelidadas comunistas de esquerda, queriam continuar a guerra não tanto para defender os interesses nacionais da Rússia mas porque acreditavam que os soldados Alemães se recusariam a lutar contra os seus camaradas Russos e que essa recusa despoletaria a muito esperada revolução alemã. Se entretanto o novo regime soviético fosse eliminado, isso, na opinião dos comunistas de esquerda, seria um preço que valeria a pena pagar pelo avanço da causa internacional. Este argumento era convincente para aqueles que tinham a certeza de que o novo regime revolucionário não poderia sobreviver durante muito tempo sem a ajuda do proletariado mundial. Lenine, o grande realista, não se deixava seduzir por sonhos revolu- cionários. Com uma energia, determinação e perspicácia espantosas ele impôs os seus pontos de vista aos seus colegas recalcitrantes. Ao assinar o Tratado de Brest-Litovsk assegurou a sobrevivência imediata do seu regime; afinal, os Alemães podiam facilmente ter vencido os bolchevi- ques, que não possuíam uma grande força militar. Os Alemães travaram o seu avanço porque perceberam que qualquer regime que impusessem aos Russos derrotados exigiria um investimento considerável de tropas alemãs; preferiam usar os seus soldados na frente ocidental. A segunda grande decepção para os bolcheviques foi o comporta- mento do povo russo. Segundo o seu raciocínio, o partido dirigia a revolu- ção das classes trabalhadoras. Essa revolução era levada a cabo para beneficiar a grande maioria do povo russo, os operários e os camponeses. Durante 1917 falou-se muito da convocação da Assembleia Constituinte, que iria resolver os principais problemas nacionais. As eleições para a Assembleia tinham sido marcadas para Novembro, antes de ocorrer a revolução de Outubro, e os bolcheviques decidiram realizá-las. Não é de todo claro o que os bolcheviques esperavam, porque os resultados não foram surpreendentes. Os Socialistas Revolucionários, que tinham apoio nas zonas rurais, conseguiram eleger a maioria dos deputados, enquanto os bolcheviques puderam contar com cerca de um quarto dos represen- tantes. A Assembleia reuniu-se na altura devida em Janeiro de 1918, expressou sentimentos antibolcheviques e depois foi dissolvida pelos bolcheviques. Foi uma medida radical, porque ao desrespeitar a vontade claramente expressa do eleitorado os bolcheviques repudiavam de uma vez por todas qualquer pretensão de agir com base nos princípios da democracia «burguesa». A sua legitimidade não se basearia na soberania 52
  • 25. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 popular, mas na convicção de que compreendiam o movimento da história. Eles defendiam um futuro melhor e socialista para toda a huma- nidade. É difícil ver, contudo, como os bolcheviques poderiam ter agido de outra forma, uma vez que aceitar a autoridade da Assembleia Cons- tituinte teria implicado invalidar a revolução de Outubro. Ao contrário das negociações de Brest-Litovsk, que tinham provocado uma grande crise no seio do Partido, desta vez não houve divergências de opinião entre os líderes. Tudo na sua experiência e concepção teórica dispunha os leninis- tas para tomar precisamente essas medidas. Se a rejeição da democracia eleitoral não lhes provocou grandes pro- blemas de consciência, a suspensão da liberdade de expressão conduziu efectivamente a acesos debates entre os bolcheviques. A 4 de Novembro, no comité executivo central dos sovietes, alguns eminentes líderes bolche- viques defenderam com eloquência a liberdade de imprensa. Eles acre- ditavam confiadamente – embora decerto erradamente – que se o povo russo fosse presenteado com diferentes pontos de vista, seria capaz de perceber a correcção da posição bolchevique. Lenine opunha-se veemen- temente a esta teoria e falava com desdém do princípio da liberdade de imprensa. Mais uma vez, ele levou a melhor. Os novos governantes não podiam eliminar imediatamente todas as publicações não-bolcheviques. No entanto, nos primeiros oito meses do seu governo, foi precisamente isso que fizeram. Quando a guerra civil começou e os revolucionários acharam necessário empregar métodos cada vez mais duros, todos os jornais não-bolcheviques desapareceram dos territórios sob o seu controlo. A suspensão da liberdade de imprensa vinha a par com a suspensão da liberdade de associação: nas zonas sob o seu domínio os bolcheviques proibiram primeiro os partidos não-socialistas e depois todos os partidos. Para fazer cumprir essas políticas, os novos governantes precisavam de uma força coerciva. Os que haviam sofrido às mãos da polícia política czarista, a Okhrana, pouco depois da sua vitória criaram a sua própria polícia política, a Comissão Extraordinária de toda a Rússia para o Com- bate à Contra-Revolução, Sabotagem e Especulação, conhecida simples- mente por Cheka (abreviatura russa para comissão extraordinária). 53
  • 26. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA O RUMO DA GUERRA CIVIL A velha ordem deixara de funcionar e o país enfrentava problemas extraordinários. Os socialistas e os não-socialistas tinham divergências profundas sobre como resolver esses problemas. No entanto, passado pouco tempo, das dezenas de pontos de vista concorrentes, apenas dois – o dos bolcheviques e o dos contra-revolucionários – continuaram sérios adversários. Os Socialistas Revolucionários, que gozavam sem dúvida do apoio da maioria do povo russo, nunca tiveram uma oportunidade. Os políticos socialistas moderados não tinham forma de transformar o apoio eleitoral em regimentos. Não possuíam uma ideologia, nem uma menta- lidade, que lhes permitisse tomar as necessárias medidas rigorosas para resolver a crise nacional. A guerra civil, por consequência, depressa se viu reduzida a um con- flito entre Brancos e Vermelhos. De um lado estavam os intelectuais e semi-intelectuais revolucionários, reprimidos durante o regime czarista e empenhados na mudança com base nas suas profundas crenças marxistas. Eram uma nova classe de políticos, que percebia claramente a necessidade da mobilização de massas e da propaganda. Do outro lado, o comando era composto exclusivamente por oficiais do exército, homens que se haviam sentido perfeitamente à vontade na Rússia czarista, que desprezavam a política, e que propunham soluções militares para a maioria dos proble- mas. Não tinham qualquer visão para o futuro da Rússia mas sentiam que era necessário combater os bolcheviques, porque acreditavam que o domí- nio comunista só poderia trazer a desgraça à pátria. Por mais diferentes que fossem os dois grupos, enfrentavam os mesmos problemas: como prover o país de uma administração eficiente, fornecer alimentos aos famintos, pôr os caminhos-de-ferro a funcionar; em suma, como vencer a anarquia. Os antibolcheviques demoraram muito tempo a organizar-se. Os anti- gos líderes da revolta Kornilov, que subsequentemente tinham sido presos, aproveitaram a confusão gerada pela insurreição bolchevique para fugir da sua reclusão e refugiar-se na província cossaca do Don. A eles depressa se juntou o general Alekseev, antigo chefe do Estado-maior do czar. Este pequeno grupo de oficiais incluía muitos, mas não todos, dos mais eminentes chefes das forças russas durante a guerra. Juntaram-se na província cossaca do Don porque não havia outra região na Rússia onde pudessem encontrar segurança. No início do século XX, os cossacos, 54
  • 27. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 descendentes de piratas, já se haviam tornado lavradores ricos; recebiam direitos de tributação e propriedade do governo czarista em troca de obri- gações militares mais pesadas. Ao contrário de outros camponeses Russos, tinham uma tradição de autonomia. Agora viam os seus privilé- gios ameaçados pelos habitantes menos afortunados das suas regiões, os camponeses Russos. Estes eram muito mais pobres e possuíam muito menos terras, que com frequência tinham de tomar de arrendamento dos cossacos. Desprezavam os seus exploradores cossacos e eram ouvintes solícitos dos apelos dos bolcheviques. As províncias do Don e de Kuban estavam a iniciar a sua própria guerra civil, uma luta pelo poder que coin- cidia em parte com o conflito nacional. Os cossacos viriam a desempenhar um papel decisivamente importante no movimento Branco, em grande parte porque os generais Brancos não tinham outra força a que recorrer; nunca conseguiram conquistar a simpatia da maioria do povo russo, os camponeses. Durante os primeiros meses de 1918, os generais atraíram apenas um número lastimavelmente pequeno de seguidores. Após vários meses de organização, a incipiente força militar do movimento Branco, o exército voluntário, tinha apenas uns 3000 combatentes, na sua maioria oficiais. O facto de o novo governo bolchevique não ter tido sequer a força para dispersar um exército tão minúsculo, reflecte a sua fraqueza; uma guerra civil é sempre uma luta entre o fraco e o mais fraco. Mais tarde, durante a Primavera, foram os Alemães, ironicamente, que permitiram aos Brancos sobreviver. A política alemã era apoiar os antibolcheviques nas periferias do país e tolerar os bolcheviques no centro. Um país dividido pela guerra civil servia melhor os interesses alemães. Uma das consequên- cias desta política foi o apoio que deram a um governo cossaco conser- vador no Don. Assim, os generais Brancos, que pouco antes haviam denunciado os bolcheviques como agentes Alemães e jurado fidelidade aos seus aliados, tornaram-se os principais beneficiários da política dos inimigos da sua pátria. Um dos momentos decisivos na história da guerra civil, e segura- mente um dos seus episódios mais curiosos, foi a rebelião das tropas checas. A monarquia dos Habsburgos, inimiga da Rússia na I Guerra Mundial, era, como a Rússia czarista, um império multinacional. A grande minoria eslava no seu seio sentia-se oprimida e, na altura da guerra, mostrou pouca lealdade aos Habsburgos. Um grande número de soldados checos, por exemplo, deixou-se facilmente capturar pelos Russos. O 55
  • 28. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA governo czarista hesitou em jogar a cartada das nacionalidades. Recusou- -se a formar um exército com esses prisioneiros de guerra e permitir-lhes que combatessem do seu lado. A situação alterou-se em 1917: Kerenski não tinha quaisquer escrúpulos a esse respeito e incentivou os checos a formar um corpo independente e a combater os Alemães. Os checos eram soldados entusiásticos, pois acreditavam e com razão que apenas a derrota das potências centrais, a Alemanha e a monarquia austro-húngara, lhes permitiria formar um Estado independente. Quando o exército russo se desintegrou, só esta pequena força queria continuar a combater, mas o tratado de Brest-Litovsk impedia-a de prosseguir. Após longas negocia- ções com o governo soviético, foi decidido autorizá-los a viajar para a frente ocidental através da Sibéria, do Pacífico e dos Estados Unidos. Os checos, porém, nunca chegaram ao seu destino, porque enquanto viaja- vam pela Sibéria começaram a combater os bolcheviques. Em Maio de 1918, o domínio bolchevique na Sibéria era ainda tão fraco que cinquenta mil checos puderam vencê-lo. Este acontecimento totalmente inesperado permitiu aos antibolcheviques estabelecerem-se e organizarem-se. Após muita discussão, os Brancos instauraram um regime liberal em que os Socialistas Revolucionários desempenhavam um importante papel. No entanto, este governo durou pouco tempo. Em Novembro de 1918, os militares derrubaram o governo socialista e nomearam o almirante Aleksandr Kolchak, antigo comandante da esquadra do Mar Negro, chefe supremo. O fim da guerra na Europa teve consequências de grande alcance para o rumo da guerra civil na Rússia. Enquanto combatiam entre si, os aliados e as potências centrais consideravam o seu envolvimento na Rússia muito menos importante. Embora os governos aliados encarassem os bolchevi- ques e tudo o que eles representavam com receio e aversão, se estes tivessem continuado a guerra contra os Alemães, podiam ter recebido o apoio dos aliados. Os aliados começaram por ajudar os Brancos na espe- rança ilusória de que a frente antigermânica pudesse ser reconstruída. Os Britânicos e os Americanos, que no início de 1918 enviaram pequenos destacamentos para Murmansk e Archangel, no Extremo Norte, e para Vladivostok, no Extremo Oriente, justificaram a sua ingerência nos assun- tos russos em termos da sua necessidade de combater os Alemães. Com o fim da Guerra Mundial desaparecia qualquer fundamentação lógica para a intervenção, ao passo que as oportunidades para uma ajuda prática aos antibolcheviques aumentavam consideravelmente. Imediata- 56
  • 29. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 mente a seguir à derrota dos Alemães, tropas francesas aterraram em Odessa, e pouco depois na Crimeia. Os Britânicos enviaram pequenos destacamentos para o Cáucaso e para a Ásia Central, e pouco depois iniciou-se a distribuição de valioso equipamento militar a Kolchak e Anton Denikin, comandante do exército voluntário. Os bolcheviques, evidentemente, nessa altura e desde então, tinham grandes motivos para acreditar, ou pelo menos fingir acreditar, que esta- vam a combater não inimigos internos mas as forças conjuntas do impe- rialismo mundial. Tornou-se ponto de doutrina da historiografia soviética que o jovem Estado soviético lutou contra as forças conjuntas do imperia- lismo mundial. Na verdade, a contribuição dos estrangeiros para o resul- tado da guerra civil foi insignificante. Os governos estrangeiros tinham apenas uma vaga percepção dos assuntos russos; baseavam as suas políti- cas e opiniões em falsas premissas. Mas por mais que os aliados tivessem querido derrubar os bolcheviques, dada a política da Europa do pós-guerra não estavam em condições de o fazer. As tropas francesas foram as únicas que efectivamente entraram em combate, e o seu desempenho foi lamentável. Em vez de ajudar, prejudicaram a causa dos Brancos. A ajuda militar britânica, e em menor grau a americana, foi certamente útil para Denikin e Kolchak; mas esse tipo de ajuda só podia prolongar a guerra. A retirada alemã alargou o âmbito dos combates. Os bolcheviques e os antibolcheviques precipitaram-se para o vazio, esperando aproveitar a oportunidade. A maior ameaça ao governo bolchevique nos primeiros meses de 1919 veio do Oriente. À medida que Kolchak avançava para o Ocidente, tornava-se cada vez mais claro que ele talvez pudesse unir-se a Denikin no Sul. O exército Vermelho conseguiu inverter a situação na frente oriental em Junho de 1919, mas os bolcheviques ainda assim não puderam descansar. Nesse Verão, Denikin ocupou a Ucrânia, e em Outu- bro chegou a Orel, a cerca de 400 quilómetros de Moscovo. Ao mesmo tempo o regime de Lenine enfrentava um novo perigo. O general Nikolai Iudenitch tinha organizado mais um exército antibolchevique na Estónia que ameaçava então Petrogrado. O mês de Outubro de 1919 foi um momento decisivo na guerra civil. Os Vermelhos, nessa altura crítica, con- seguiram mobilizar novas forças e travar tanto Iudenitch como Denikin. As linhas de Denikin haviam-se dispersado demais e foram implacavel- mente perseguidas por guerrilheiros anarquistas ucranianos, em especial Nestor Makhno. 57
  • 30. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA Em 1920 era já quase certo que os Vermelhos acabariam por ganhar. Na Primavera de 1920, Denikin estava de novo confinado ao Kuban. Ele conseguiu fazer chegar as suas tropas à Crimeia, mas depois foi para o exílio. Petr Wrangel, o último comandante, figura competente e caris- mática, só podia contar com as circunstâncias externas. A Polónia, que se tornou um Estado independente no final da guerra, tinha grandes ambi- ções territoriais à custa da Rússia. O líder polaco, Joseph Pilsudski, achando que conseguiria obter um melhor acordo dos bolcheviques do que dos Brancos vitoriosos, esperou até à derrota das principais forças Brancas para começar a sua campanha. A guerra russo-polaca, que esti- mulou paixões nacionalistas de ambos os lados, assistiu a várias revira- voltas militares; a determinada altura, o vitorioso exército Vermelho che- gou a ameaçar a capital polaca. A guerra terminou com o acordo de paz de Riga em Março de 1921. A seguir à fase decisiva da campanha polaca, o exército Vermelho derrotou Wrangel e obrigou-o e ao que restava do seu exército a ir para o exílio. No final de 1920, os bolcheviques tinham já vencido todos os seus inimigos, com a excepção de alguns bandos disper- sos de camponeses. AS RAZÕES DA VITÓRIA BOLCHEVIQUE Embora os bolcheviques acabassem por ganhar a guerra civil, no iní- cio a sua vitória não estava de modo nenhum assegurada, nem mesmo aos olhos cansados dos seus contemporâneos. A sobrevivência do governo revolucionário esteve várias vezes em causa. Na Primavera de 1918, por exemplo, o regime foi quase derrubado pela pura anarquia; na Primavera seguinte, Kolchak parecia imparável; e no Outono de 1919, as forças con- juntas de Denikin e Iudenitch representavam tamanha ameaça militar que muitos esperavam que o regime de Lenine caísse pouco depois. Os Brancos gozavam de muitas e significativas vantagens. Tinham o apoio da igreja, os seus exércitos eram quase sempre melhor comandados, e não receavam a traição dos seus oficiais. Nas circunstâncias vigentes, em que a linha da frente se deslocava rapidamente, a cavalaria cossaca era uma força extremamente valiosa. Os Brancos ocupavam as terras agrí- colas mais férteis, as populações que tinham de alimentar eram de cidades menores. Estes factores, juntamente com a ajuda dos aliados, tornavam 58
  • 31. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 superiores as condições de vida nos territórios ocupados pelos Brancos. Quando os Brancos ocupavam uma cidade, o preço do pão quase sempre descia. Naturalmente, numa época de fome, os preços de alimentos mais baixos tinham grande significado político. Não obstante, os bolcheviques ganharam pelo menos em parte devido à fraqueza dos seus inimigos. Os Brancos não tinham uma ideologia atraente nem o estado de espírito certo para levar a cabo a sua mais importante tarefa: impor a ordem a uma população relutante. Como consideravam a sua tarefa essencialmente militar, não fizeram qualquer esforço sério para conquistar o apoio da população com uma atraente visão do futuro. Na verdade, eles próprios careciam dessa visão. Os generais tinham vivido confortavelmente na Rússia imperial, e embora os mais esclarecidos tivessem consciência de que algumas reformas seriam necessárias, desejavam todos ardentemente que as revoluções de 1917 nunca tivessem ocorrido. Quando eram obrigados a explicar os seus objectivos, os Brancos tinham de recorrer a um sentido de nacionalismo recentemente formado e exagerado. Afirmavam estar a lutar pela «Rússia». O problema era que semelhante ideologia pouco comovia os que politicamente mais impor- tavam, os camponeses. Talvez pior do que isso, desagradava fatalmente às minorias nacionais, que se poderiam ter tornado aliados úteis numa cruzada antibolchevique. Como os Brancos combatiam forçosamente em zonas habitadas em grande parte por não-russos, a hostilidade das mino- rias tinha consequências fatais. A desintegração do império outrora poderoso e a manifesta fraqueza das autoridades centrais resultaram num aumento extraordinariamente rápido da consciência nacional entre as minorias. Políticos que se haviam declarado internacionalistas e socialistas assumiam então o poder em Estados independentes e passavam a adoptar a causa nacionalista com paixão. Os bolcheviques e os antibolcheviques adoptaram políticas dife- rentes para os novos Estados nas periferias. A atitude bolchevique foi muito mais inteligente: enquanto não tivessem poder para impedir o esta- belecimento desses Estados, não se lhes opunham abertamente. Davam a entender ter aceite o princípio da auto-determinação, acrescentando porém que isso se aplicava desde que servisse o interesse do proletariado. Os Brancos não fariam semelhante concessão. Os camponeses Russos não se deixavam convencer por uma ideologia nacionalista; estavam mais interessados em ficar com as terras dos grandes proprietários. Os políticos Brancos esforçaram-se durante meses 59
  • 32. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA por engendrar um plano de reforma agrária. Levaram muito tempo, pois não compreendiam plenamente a importância política de ganhar o apoio dos camponeses ávidos de terras. Quando publicaram um projecto de reforma agrária, no Verão de 1920, era já demasiado tarde. Mas mesmo esse plano oferecia muito pouco. Afinal, os Brancos iam buscar o seu apoio social à direita, e não podiam desagradar aos seus apoiantes. Os camponeses perceberam que na esteira dos exércitos Brancos voltariam a aparecer os grandes proprietários rurais e os oficiais ex-czaristas para exigir a restituição da sua riqueza e do seu poder. Dissessem o que dissessem os políticos Brancos nos seus manifestos, os camponeses per- cebiam muito bem que os Brancos defendiam a restauração. Mas os bolcheviques não ganharam a guerra civil só por causa da fraqueza e dos erros dos seus adversários. A sua percepção das necessi- dades do momento e os princípios de política revolucionária também os ajudaram. O programa político com que haviam chegado ao poder não podia ser cumprido, e por isso os revolucionários tiveram de improvisar constantemente. Mas, felizmente para eles, a sua formação e ideologia permitiram-lhes improvisar com êxito. Os bolcheviques, como marxistas-leninistas, percebiam instintivamente a importância da organização e da mobilização de massas. Esforçaram-se incansável e incessantemente por levar o seu programa aos trabalhadores e aos camponeses e por criar formas de organização que pudessem restaurar a ordem. A vitória na guerra civil deveu-se em grande parte ao partido. A princípio uma organização de revolucionários, transformou-se rapidamente num instrumento de governo. Nas circunstâncias existentes, seria errado imaginar o partido como uma organização muito unida, disciplinada e hierárquica. Os principais líderes discutiam frequentemente, e o poder central muitas vezes tinha apenas um controlo nominal sobre as cidades distantes. No entanto, como base organizacional, conferia aos bolcheviques uma vantagem incalculável. O partido interferia em todos os aspectos da vida nacional: era responsável por desenvolver uma estratégia para ganhar a guerra; era uma agência de recrutamento que apresentava quadros competentes e ambiciosos; era o principal órgão de doutrinação; nos territórios ocupados pelo inimigo organizava movimentos clandestinos de resistência; e, talvez mais importante do que tudo, tentava fiscalizar o trabalho de outras instituições sociais e governamentais. As capacidades e princípios de organização dos bolcheviques mani- festaram-se exemplarmente na criação e construção do Exército Ver- 60
  • 33. A REVOLUÇÃO, 1917-1921 melho, a grande proeza de Trotsky. Tanto Trotsky como Lenine depressa perceberam que, contrariamente às noções utópicas em que eles próprios haviam acreditado, os serviços de especialistas eram essenciais para gerir um Estado moderno. No caso das forças militares, isso significava que o jovem Estado soviético precisava dos conhecimentos dos oficiais do antigo exército imperial. Estes homens tinham de ser obrigados ou con- vencidos a servir uma ideologia que em quase todos os aspectos achavam desagradável. Além disso, essa política implicava riscos: gerava indigna- ção entre alguns velhos comunistas, e os oficiais não eram de modo nenhum de confiança. A traição era um perigo constante. No entanto, Trotsky tinha razão: só uma força disciplinada, comandada por profissio- nais, podia derrotar o inimigo. No final da guerra civil, os bolcheviques, através de uma vasta pro- paganda, além do recrutamento, tinham já construído um exército de cinco milhões – incomparavelmente maior do que as forças conjuntas dos seus inimigos. Apenas uma pequena percentagem deste exército participava nos combates; a maioria fornecia apoio e serviços administrativos. Numa época de anarquia, o novo Estado precisava de todo o apoio que podia obter. A Cheka também contribuiu para a vitória bolchevique. O terror foi igualmente sanguinário de ambos os lados; tanto os Vermelhos como os Brancos praticaram actos de extraordinária brutalidade. No entanto, a repressão política exercida pelos dois lados tinha um carácter diferente. Os Brancos, cujas opiniões eram mais adequadas ao século XIX do que ao século XX, tinham pouca percepção do papel das ideias na política e toleravam uma maior diversidade de pontos de vista políticos. A Cheka, pelo contrário, admitia apenas uma organização política e um ponto de vista político, o dos leninistas. Os bolcheviques moldaram com êxito as suas políticas sociais e eco- nómicas à necessidade de ganhar a guerra. Lenine apresentou o seu famoso decreto da terra no dia seguinte ao da sua vitória. Como cedência aos camponeses, o decreto legalizava anteriores ocupações de terras e per- mitia aos camponeses cultivar como suas as antigas terras dos latifundiá- rios. Lenine, o grande realista, percebeu claramente as vantagens desta política. Contudo, apesar de os Vermelhos lhes terem dado terras e os Brancos nada, os bolcheviques só conseguiram ganhar um pequeno número de partidários activos entre os camponeses. A grande fragilidade da posição dos bolcheviques era que eles precisavam de alimentar as cidades mas nada tinham para dar aos camponeses em troca dos cereais. 61
  • 34. HISTÓRIA DA UNIÃO SOVIÉTICA Nessas circunstâncias, os princípios do mercado livre não podiam obvia- mente funcionar, e os bolcheviques impunham o fornecimento de cereais pela força. Esta política acabaria por afastar os camponeses, mas é difícil imaginar que mais os revolucionários poderiam ter feito. As políticas económicas introduzidas pelos bolcheviques em meados de 1918, sobretudo a suspensão do mecanismo de mercado para os cereais, foram designadas «comunismo de guerra». Este sistema mobili- zava a economia através da coacção com o fim de ganhar a guerra. Os bolcheviques nacionalizaram o comércio e a indústria. Embora estas medidas fossem claramente resultado da improvisação, na altura os teóricos afirmavam ver no desaparecimento da iniciativa privada e até mesmo do dinheiro um avanço em direcção à sociedade comunista. O sistema provocou muito sofrimento e privações à população e a longo prazo conduziu à dilapidação da economia nacional. No entanto, a curto prazo foi eficaz: as fábricas produziram efectivamente armas suficientes para combater o inimigo, e as pessoas das cidades foram alimentadas, mesmo que de modo insuficiente. A revolução bolchevique, como todas as grandes revoluções, foi tra- vada pela igualdade social. Os revolucionários fizeram um grande esforço para recrutar uma nova elite política. Camponeses e operários jovens e ambiciosos, através de uma mistura de convicção e arrivismo, dedicaram-se à causa dos bolcheviques. Conseguiram aproximar-se dos seus camaradas operários e camponeses com muito mais sucesso do que qualquer propa- gandista Branco. Ao mobilizar esta fonte de talento até então inexplorada, os bolcheviques ganharam muito. As conscientes políticas bolcheviques, assim como a miséria imposta pela guerra e pelo comunismo de guerra, contribuiriam de facto para uma grande diminuição das desigualdades. CAPÍTULO 2: A REVOLUÇÃO, 1917-1921 (1) Por exemplo, D. Volkogonov, Lenin: A New Biography (Nova Iorque, 1994). (2) Entre o primeiro grupo de historiadores, os mais conhecidos são George Katkov, Russia, 1917: The Kornilov Affair (Londres, 1980); Leonard Schapiro, The Communist Party of the Soviet Union (Nova Iorque, 1960); e Richard Pipes, A Concise History of the Russian Revolution (Nova Iorque, 1995). Representante típico do segundo grupo é o estudo de William G. Rosenberg e Dianne Koenker, Strikes and Revolutions in Russia, 1917 (Princeton, 1989). 62