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HISTÓRIA
MEDIEVAL
Caroline Silveira Bauer
Invasões e migrações
germânicas
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
 Relacionar o enfraquecimento do Império Romano com a expansão
dos povos bárbaros.
 Definir os povos bárbaros e suas principais rotas migratórias pelo
continente europeu.
 Sintetizar as características culturais dos povos germânicos do período.
Introdução
As crises no Império Romano e os movimentos dos povos germânicos,
ocorridos nos primeiros séculos da Era Cristã, representaram mudanças
significativas na Europa Ocidental. A partir de então, houve uma nova
organização econômica, política e social, com a fusão entre elementos
da cultura romana e aspectos culturais dos germanos, originando um
novo mapa no Ocidente europeu.
Neste capítulo, você vai estudar o fim do Império Romano do Oci-
dente, ocorrido em 476, e conhecer algumas características dos povos
germânicos. Para começar, você vai conhecer as crises internas e ex-
ternas que o Império Romano atravessou desde o século III. Tais crises
levaram à sua divisão, no ano de 395, em Império Romano do Oriente e
Império Romano do Ocidente, que se desfez em 476. Além disso, você
vai conhecer melhor os povos germânicos, chamados de “bárbaros” por
alguns historiadores da Antiguidade, e o seu estabelecimento no território
europeu. Por fim, você vai se familiarizar com alguns aspectos culturais
dos germanos e ver de que forma eles se organizavam socialmente.
Enfraquecimento do Império Romano
e expansão dos povos bárbaros
Os estudos dedicados às condições que levaram à dissolução do Império Ro-
mano são muito variados. A historiografia contemporânea enfatiza aspectos
tanto internos quanto externos a esse processo. Além disso, procura romper
com antigas expressões, tais como “declínio”, “decadência” ou “queda”, que
transmitem uma ideia de progresso à trajetória das sociedades.
O importante é você ter em conta que, durante a crise do século III, os
romanos não se imaginavam vivendo o fim do Império: essa é uma visão
retrospectiva dos historiadores. Percebe-se, sim, uma série de transformações
que configuraram algumas das características das sociedades medievais, em
um processo bastante lento. Na Figura 1, a seguir, você pode ver o Império
Romano antes das grandes migrações.
Figura 1. O Império Romano antes das grandes migrações.
Fonte: Duby (2007, p. 52).
Invasões e migrações germânicas
2
Como você já viu, os historiadores procuram respostas para a dissolução
do Império em diferentes aspectos. Alguns pesquisadores, enfatizando o viés
político, afirmam que o problema residia na falta de regras para a sucessão
dos imperadores, o que gerou um desequilíbrio de poder e uma crise estrutu-
ral. Outros, por sua vez, assentam suas explicações nos fatores econômicos,
ressaltando as mudanças na organização do trabalho (da escravidão para a
servidão) como um indício de transformação social.
Há ainda aqueles que assinalam os problemas entre a administração central
e as províncias, do ponto de vista econômico e político (principalmente com a
incorporação de alguns povos germânicos). Além disso, há os pesquisadores
que afirmam que a difusão da cultura e das práticas cristãs foram responsáveis
pelo enfraquecimento do Império, devido à assimilação que a população fez
de valores tais como a humildade e a resignação. Por fim, existe uma corrente
que interpreta o fim do Império a partir de aspectos militares, como a perda
da capacidade de conquista e a incorporação dos “bárbaros” ao Exército.
Emboraaspossibilidadesinterpretativassejamvárias,oshistoriadoresparecem
concordar que o período que se estende de 193 a 284, chamado de “crise do século
III”, representa um ponto de inflexão na história do Império Romano. Essa “crise”
foi, na verdade, um conjunto de crises estruturais e problemas inter-relacionados
quelevaramatransformaçõesprofundasegeneralizadas:umacrescenteinfluência
da cultura germânica, uma tendência valorativa positiva à monarquia autocrática
em detrimento da autoridade imperial e do Senado, um processo de ruralização, a
expansão da cristandade, etc. Como afirma Machado (2015, p. 90–91), o século III
foi “[...] um período caracterizado por problemas políticos (especialmente relativos
à sucessão imperial), mas principalmente por guerras (civis e contra invasores)
e a peste. Estes não são processos idênticos, mas que foram combinados e que
levaram à formação de uma nova sociedade e ordenamento políticos [...]”.
Aqui, você vai ver como se deu a pressão das tribos germânicas sobre as
fronteiras do Império Romano. Contudo, lembre-se de que esse é apenas um
dos aspectos de uma sociedade que estava em profunda transformação. A
movimentação das tribos germânicas nas fronteiras romanas ocorria desde o
período dos antoninos, ou seja, não era uma novidade no século III. Contudo,
nesse período, houve um agravamento dessa relação. Isso ocorreu primeira-
mente pela morte de Alexandre Severo, em 235, assassinado após a notícia
de um possível acordo com os persas (o Império Sassânida, de origem persa,
representava uma ameaça às províncias orientais).
Outra causa foi a assimilação, por parte das tribos germânicas, de certos conhe-
cimentos,práticasevaloresromanos.Taistribospassaramaseestabelecerpróximo
às fronteiras do Império para saqueá-lo ou por sobrevivência; assim, as invasões
3
Invasões e migrações germânicas
não eram mais circunstanciais ou esporádicas, mas frequentes, com liderança e
motivações. Por fim, havia movimentos internos dos germanos, principalmente
os orientais, que pressionavam territorialmente os ocidentais e, por consequência,
as fronteiras do Império. Portanto, no século III, o império sofria pressões em sua
fronteira com os germanos no norte e com o Império Sassânida ao leste.
O Império Romano tinha sob seu controle um dos mais extensos domínios
territoriais já conquistados, motivo pelo qual o exército ficava em primeiro plano,
tendo peso decisivo na manutenção do poder instituído. “A partir do século III,
assiste-se a um progressivo e inexorável processo de crise das estruturas imperiais,
responsável pela fragmentação da unidade política romana, pelo desmembramento
e desaparecimento definitivo do Império [...]” (MACEDO, 2006, p. 78–79).
Para Macedo (2006), uma das causas está nas transformações ocorridas no
recrutamento para o Exército e na possibilidade de germanos serem utilizados
como guardiões de fronteiras. Veja:
No princípio do século IV, as antigas formações militares (legiões e guarda preto-
riana) foram praticamente dissolvidas e em seu lugar apareceram duas unidades
militares específicas: as tropas de fronteira, colocadas em fortificações perma-
nentes nos limes, isto é, nos limites do mundo romano, com a incumbência de
protegê-los de eventuais invasões; e uma força tática móvel, colocada em posições
estratégicas no interior do território imperial. A tais reformas corresponderam
novas formas de recrutamento. As consequências econômico-financeiras da
crise afetaram a estabilidade militar devido à dificuldade de remuneração dos
soldados. No século IV, uma das formas de pagamento do serviço militar consistia
na concessão de lotes de terra de fronteira a soldados regularmente recrutados
e incorporados aos quadros do exército quando cumpriam seu tempo regular de
serviço ao fim de 25 anos. Era uma maneira de assegurar a presença de pessoas
capacitadas a defender as fronteiras em caso de ataque (MACEDO, 2006, p. 79).
Portanto, as invasões que ocorrem no século V não são uma novidade para
os romanos, mas se tornam um fator de enfraquecimento do poder imperial em
função da crise do século III. Nesse sentido, é importante lembrar que, para
um dos maiores especialistas em Idade Média, Le Goff (2016), as causas do
fim do Império Romano são internas, não têm a ver com as invasões:
A causa da catástrofe é interna. Foram os pecados dos romanos — inclusive
cristãos — que destruíram o Império que seus vícios entregaram aos bárba-
ros. Os romanos eram, de si mesmos, inimigos piores do que seus inimigos
de fora, pois, embora os bárbaros já os tivessem arrasado, eles se destruíam
ainda mais por si mesmos (LE GOFF, 2016, p. 21).
Invasões e migrações germânicas
4
Em outro trecho, o historiador reforça a questão da crise como maior fator
explicativo: “A verdade é que os bárbaros foram favorecidos pela cumplicidade
ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império
Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais esmagadas por
uma minoria de ricos e poderosos, explica o sucesso das invasões bárbaras
[...]” (LE GOFF, 2016, p. 22).
Os povos bárbaros
Quem eram esses “invasores”? No tópico anterior, você estudou o fim do
Império Romano do Ocidente a partir da presença dos povos germanos em
seu território e em suas fronteiras. Contudo, também deve considerar a falsa
dicotomia étnica existente entre romanos e não romanos. Veja:
Os romanos e seus vizinhos, que viviam próximos ao limes, não possuíam di-
ferenças muito consistentes em termos de identidade ou etnia, que a existência
dicotômica entre romanos e bárbaros é uma criação moderna e que esta só se
consolidara no discurso político, na tentativa de enaltecer a tradição clássica
face ao constante crescimento do poder provinciano e estrangeiro. [...] Nesta
óptica, as populações germânicas da antiguidade já não poderiam mais ser
vistas como racialmente homogêneas, organizadas a partir de características
étnicas de “matriz” germânica ou ariana, mas por tradições culturais — a
crença em um determinado deus, um antepassado em comum, semelhanças
linguísticas —, o que permitiria que estes grupos tivessem uma configuração
poliétnica (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 347).
Os povos genericamente chamados de “germanos” são originários de um processo
de imigração de tribos indo-europeias, provenientes da Europa Centro-Oriental, que
atingem as penínsulas da Dinamarca e da Escandinávia entre 3000 a 2500 a.C. A partir
do ano 2000 a.C., já haviam se expandido para a costa do mar Báltico e para o mar
do Norte. Por volta do século VI a.C., ocupam a região do rio Reno e, quatro séculos
depois, o rio Danúbio, tornando-se suas principais fronteiras políticas.
5
Invasões e migrações germânicas
A seguir, você vai conhecer melhor os reinos germânicos, formados a
partir da política dos foederati (domínios relativamente independentes do
Império). Você vai ver que a organização política, religiosa e social desses
reinos em nada se assemelhava à condição de “barbárie”, termo pejorativo
utilizado para lhes referenciar. O termo “bárbaros” é encontrado em crônicas
romanas desde o século I a.C. e era utilizado para fazer referência a todos os
povos que não falavam o latim, sem distinção entre celtas, eslavos, gauleses
ou germanos. Considere o seguinte:
[...] a denominação de “bárbaros”, no sentido moderno do termo, não era
absolutamente justificada, porque os germanos, os persas, os árabes e os
outros numerosos povos vizinhos do Império não podiam ser absolutamente
reduzidos a hordas desorganizadas, selvagens e incontroláveis. Por outro lado,
eles nunca haviam formado uma coalizão devotada a uma tarefa deliberada
de destruição do Império Romano, como se isso fosse desejado por Deus. A
diversidade geográfica das fronteiras era acompanhada por povoamentos
variados, e ambições muito diferentes eram expressas pelos externi, “aqueles
do mundo exterior” (LE ROUX, p. 2013, p. 86).
Os primeiros contatos entre Roma e aqueles que foram chamados de “germa-
nos” ocorreram no final do século II a.C. Pressionados por questões ambientais
e pelo excesso populacional, os povos teutões e cimbros migraram para o sul
e pressionaram as fronteiras de Roma no norte da Itália. Veja:
Certamente aqueles tempos foram principalmente de confusão. Confusão sur-
gida antes de tudo da própria mistura de invasores. Ao longo de seu trajeto, as
tribos e os povos haviam se combatido, submetido uns aos outros, misturado.
[...] Confusão acrescida pelo terror. Mesmo levando em conta os exageros, os
relatos de massacres, de devastações, que abundam na literatura do século V,
não deixam dúvida quanto às atrocidades e destruições que acompanharam
os “passeios” dos povos bárbaros (LE GOFF, 2016, p. 26).
Durante muito tempo, predominou a visão historiográfica segundo a qual
as relações entre os romanos e germanos ocorrera apenas nos séculos IV e V,
sendo marcadas por ataques e invasões violentas, já que o objetivo principal
desses povos que viviam fora das fronteiras do Império era destruir e saquear.
Contudo, há registros de relações comerciais e diplomáticas entre romanos e
Invasões e migrações germânicas
6
não romanos. Assim, novas abordagens têm procurado desconstruir a visão
das “[...] invasões bárbaras enquanto um fluxo de populações que irrompem
violentamente no seio do Império de um momento para outro — e por momento
entendemos o último quarto do século V — e que seriam responsáveis pelo
esfacelamento da coesão imperial [...]” (SILVA, 2011, p. 4–5).
Por exemplo, após a crise do século III, o Império Romano estabeleceu
acordos para que os francos repovoassem a Gália e para que os ostrogodos se
fixassem na Península Ibérica, em uma política chamada hospitalias (“hospita-
lidade”). Tratou-se de uma estratégia para manter a integridade dos territórios
e a soberania do Imperador nas províncias do Mediterrâneo. Ao mesmo tempo,
tal estratégia possibilitou a fixação de alguns povos nômades no território.
Posteriormente, alguns desses reinos foram elevados à condição de federados
ao Império. Porém, a preocupação com as fronteiras e as possíveis invasões
do território antecede e muito o século III:
Durante o período republicano (509–27 a.C.), Roma sofreu uma série de ame-
aças, sendo a mais famosa imposta por Breno, chefe gaulês da costa adriática
da Itália, que em 387 a.C., invadiu e saqueou a cidade. No Principado, Augusto
(63 a.C.–14 d.C.) manteve um interesse particular pela conquista da Germânia
(atual Alemanha). Porém, a expansão é finalizada quando Armínio (16 ou 17
a.C.–21 d.C.), germano de nascimento, porém cidadão romano e treinado na arte
da guerra pelos mesmos, aniquilou o exército comandado pelo cônsul Públio
Varo (46 a.C.–9 d.C.), na Batalha da Floresta de Teutoburg. No segundo século
da Era Cristã, o imperador Adriano (76–138) mandou erguer na Bretanha a
Muralha de Adriano, com a intenção de deter os constantes invasores pictos
(originários da Escócia) (CARLAN, 2010, p. 169).
A historiografia contemporânea tem demonstrado a necessidade de se superar
a dicotomia aliados versus inimigos para se considerarem as relações entre os
povos romanos e não romanos. Nesse sentido, afirma-se que, em diferentes
situações, essas relações poderiam ser “[...] de opositores militares, de refugiados,
de povos assimilados, de povos assimilados que se rebelam, de contingentes
militares integrados ao Império, de contingentes integrados ao exército imperial
que novamente se insurgem [...]” (BARROS, 2009, p. 556–557).
Na Figura 2, veja as migrações dos povos bárbaros. A seguir, veja uma
descrição das principais rotas.
7
Invasões e migrações germânicas
Figura 2. Migrações dos povos bárbaros.
Fonte: Mackay e Ditchburn (1997, p. 8).
 Anglo-saxões: compreendiam os anglos, os saxões, os jutos, os frísios
e outros povos que se instalaram na foz do rio Reno. Alguns grupos,
posteriormente, migraram para a ilha da Grã-Bretanha, no século V,
dominando as populações celtas e criando reinos que perduraram até
a invasão dos normandos (vikings) em 1066.
 Burgúndios: formaram um reino no início do século V, que foi destruído
pelos hunos. Posteriormente, fundaram um novo reino, em 443, que foi
destruído pelos francos aproximadamente um século depois.
 Francos: constituíram um dos mais poderosos reinos. Em 481, dominaram
grande parte da Europa Central, na margem esquerda do rio Reno. Nessa
mesma região, os hunos fizeram incursões contra o Império Romano.
 Ostrogodos: criaram na Itália um reino que congregou romanos e
germanos. Em 553, foram conquistados pelo Império Bizantino.
 Suevos: estabeleceram, em 410, um reino na região da Galícia (norte
de Portugal e noroeste da Espanha), tendo sido conquistados em 585
pelos visigodos.
 Vândalos: invadiram a Península Ibérica entre 407 e 409, tendo sido
expulsos primeiramente pelos romanos, depois pelos visigodos. Ocu-
param o norte da África em 429, fundando um poderoso reino.
Invasões e migrações germânicas
8
 Visigodos: instalaram-se primeiramente na Gália e, em 409, partiram
para a Península Ibérica, estabelecendo-se em 418. Foram conquistados
pelos muçulmanos no século VII, migrando para a região dos Pirineus
e colaborando com os francos.
Novamente, note a diversidade de povos abarcados pelos termos “bárba-
ros” e “germânicos”. Os caracteres que costumeiramente foram utilizados
para distinguir os povos uns dos outros talvez não sejam suficientes para se
estabelecer uma etnia e, por consequência, criar uma diferenciação tão grande
dos romanos. Veja:
Tal como os relatos dos gregos/romanos sobre as gentes barbarorum, língua,
armas, roupas ou cabelos (cortes ou penteados) também não são sinais confi-
áveis para identificar identidades étnicas estáveis. Isso não significa que não
houvesse diferenças marcantes nos povos antigos, ou que essas projeções cul-
turais — cabelo, língua, roupas, armas — não fossem relevantes, mas sim que
elas eram muito fluidas e dinâmicas, e a supervalorização destas atende mais
aos estereótipos do que à História (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 352).
Após o intenso movimento migratório ocorrido no século V, aos poucos as
tribos germânicas foram se fixando num determinado local. Seus membros,
por sua vez, foram se misturando aos romanos, ocorrendo uma fusão das duas
culturas. Você vai estudar mais sobre isso no próximo tópico.
A cultura dos povos germânicos
Como você viu nos tópicos anteriores, diferentes povos foram reunidos por meio
do termo “germânicos”. Hoje, há diferentes níveis de informações sobre tais
povos. Como lembram Silva e Albuquerque (2015, p. 347), grande parte do que
se sabe a respeito do mundo germânico deriva de “[...] uma construção ideológica
alemã [...]”. Tal construção tem início com a “redescoberta dos escritos de Tácito
no século XV, atingindo seu ápice no século XIX, quando as tendências políticas
e intelectuais da época (romantismo, pan-germanismo, filologia, teoria da raça
ariana, dentre outras) buscavam legitimar uma unificação do mundo nórdico”.
A seguir, você vai ver algumas características desses povos, mas lembre-se
de que é preciso estudá-los em suas singularidades e nas variações que ocorrem
ao longo do tempo. Veja o que afirma Le Goff (2016, p. 25):
9
Invasões e migrações germânicas
Os bárbaros que se instalaram no Império Romano no século V não eram aqueles
povos jovens, mas selvagens, recém-saídos de suas florestas ou de suas estepes,
descritos por seus detratores da época ou seus admiradores modernos. Tinham
evoluído muito com seus deslocamentos, muitas vezes seculares, que acabaram
por lançá-los no mundo romano. Tinham visto muito, aprendido muito e incorpo-
rado bastante. Seus caminhos os levaram a contatos com culturas e civilizações
das quais absorveram costumes, artes e técnicas. Direta ou indiretamente, a
maioria deles havia sofrido influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano
e do próprio mundo greco-romano, principalmente em sua parte oriental, que,
em vias de tornar-se bizantina, continuava sendo a mais rica e mais brilhante.
Aqueles povos que viviam mais próximos aos limes estabeleceram cons-
tantes trocas com os romanos, apropriando-se de alguns de seus hábitos e
práticas culturais. Esse estabelecimento dos povos nas fronteiras do Império
deveu-se a um processo de assentamento de culturas que eram anteriormente
nômades e viviam nas estepes e florestas. Tais povos dominavam técnicas de
trabalho com o couro e a madeira, além da fundição de metais.
Em seu processo de sedentarização, alguns desses povos permaneceram
com suas práticas religiosas, com rituais animistas e de adoração à natureza,
enquanto outros se converteram ao cristianismo ariano. Veja:
Por um curioso acaso, que acarretou pesadas consequências, esses bárbaros
convertidos — ostrogodos, visigodos, burgúndios, vândalos e, mais tarde,
lombardos — o foram ao arianismo, que, depois do Concílio de Niceia, tornara-
-se heresia. [...]. Assim, o que deveria ter sido um vínculo religioso foi, ao
contrário, objeto de discórdia e gerou lutas acirradas entre bárbaros arianos
e romanos católicos (LE GOFF, 2016, p. 24).
Quanto ao culto pagão, provavelmente havia cultos a rochas, bosques, árvo-
res, fontes, etc. Não há indícios de grandes construções. Nos poucos locais de
culto com edificações, estas eram utilizadas para “[..] alojar ex-votos, imagens
de divindades (provavelmente muito singelas, a julgar pelos poucos exemplares
indubitáveis achados) e objetos sagrados [...]” (CARDOSO, 2012, p. 10–11).
Além disso, eram realizadas visitas individuais, não cerimônias coletivas.
Em decorrência do processo de ruralização ocorrido durante o Medievo,
há um predomínio da vida privada em detrimento da vida pública:
Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos;
agora se refugia nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis,
o Império se honrara em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora,
com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da
vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é de domínio
privado (ROUCHE, 1900, p. 403).
Invasões e migrações germânicas
10
A cultura dos germanos era essencialmente rural, com atividades agrárias,
mas com forte ênfase no pastoreiro. Dessa forma, a organização familiar tornou-
-se muito importante para esses povos. As famílias agrupavam-se em tribos a
partir de laços de solidariedade e, assim, criavam uma estabilidade. Daí decorre
um traço importante da cultura germânica, a ideia de linhagem, formada pela
herança dos antepassados, o que dá aceitação social e prestígio perante o grupo.
As sociedades germânicas eram patriarcais, sendo o papel masculino
decisivo para a organização familiar e matrimonial, bem como para a educa-
ção dos filhos e as decisões políticas e militares, que ocorriam por meio dos
comitatus. Alguns desses povos estruturaram formas de Estado com poder
monárquico. Assim, o militarismo e a participação em guerras faziam parte
da cultura dos povos germânicos.
BARROS, J. D. Passagens de antiguidade Romana ao ocidente medieval: leituras his-
toriográficas de um período limítrofe. História, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 547–574, 2009.
CARDOSO, C. F. A interpenetração da cosmogonia religiosa com a história entre os
escandinavos. Nearco, Rio de Janeiro, v. 1, ano v, n. 1, p. 8–19, 2012.
CARLAN, C. U. História, cidades e fronteiras: o império romano e as Invasões. Mosaico,
Goiânia, v. 3, n. 2, p. 169–177, 2010.
DUBY, G. Atlas histórico mundial. Barcelona: Larousse, 2007.
LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. E-book.
LE ROUX, P. Império Romano. Porto Alegre: L&PM, 2013.
MACEDO, J. R. Conquistas bárbaras. In: MAGNOLI, D. (org.). História das guerras. São
Paulo: Contexto, 2006.
MACHADO, C. A. R. A antiguidade tardia, a queda do Império Romano e o debate
sobre o “fim do mundo antigo”. Revista de História, São Paulo, n. 173, p. 81–114, 2015.
MACKAY, A.; DITCHBURN, D. Atlas of medieval Europe. New York: Routledge, 1997.
ROUCHE, M. Alta idade média ocidental. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. História da vida privada.
São Paulo: Schwarcz, 1990. v. 1.
SILVA, D. G. G.; ALBUQUERQUE, M. C. Bárbaros ou/vs Romanos? Sobre Identidades e
Categorias Discursivas. Revistes Catalanes amb Accés Obert, [s. l.], n. 21, p. 345–359, 2015.
SILVA,T.J.R.S.Porentreaantiguidadeeaidademédia:umaperspectivahistoriográfica. In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais[...]. São Paulo: ANPUH, 2011.
11
Invasões e migrações germânicas
Leituras recomendadas
BONNASSIE, P. Vocabulario básico de la historia medieval. Barcelona: Crítica, 1988.
CARLAN, C. U. As invasões germânicas e o império romano: conflitos e identidades
no Baixo Império. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 137–146, 2008.
CARVALHO, M. M. et al. Barbarização do exército romano e renovação historiográfica:
novas perspectivas sobre o tema. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p.
147–163, 2008.
FUNARI, P. P.; CARLAN, C. U. Romanos e germânicos: lutas, guerras, rivalidades na
antiguidade tardia. Brathair, São Luís, v. 7, n. 1, p. 17–24, 2007.
PEDRERO-SANCHEZ, M. G. História da idade média: textos e testemunhas. São Paulo:
UNESP, 2000.
PONTESILLI, M. As migrações dos bárbaros e o fim do Império Romano do Ocidente.
In: ECO, U. (org.). Idade média: bárbaros, cristãos e muçulmanos. Lisboa: Dom Quixote,
2010. E-book.
Invasões e migrações germânicas
12
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  • 2. Invasões e migrações germânicas Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:  Relacionar o enfraquecimento do Império Romano com a expansão dos povos bárbaros.  Definir os povos bárbaros e suas principais rotas migratórias pelo continente europeu.  Sintetizar as características culturais dos povos germânicos do período. Introdução As crises no Império Romano e os movimentos dos povos germânicos, ocorridos nos primeiros séculos da Era Cristã, representaram mudanças significativas na Europa Ocidental. A partir de então, houve uma nova organização econômica, política e social, com a fusão entre elementos da cultura romana e aspectos culturais dos germanos, originando um novo mapa no Ocidente europeu. Neste capítulo, você vai estudar o fim do Império Romano do Oci- dente, ocorrido em 476, e conhecer algumas características dos povos germânicos. Para começar, você vai conhecer as crises internas e ex- ternas que o Império Romano atravessou desde o século III. Tais crises levaram à sua divisão, no ano de 395, em Império Romano do Oriente e Império Romano do Ocidente, que se desfez em 476. Além disso, você vai conhecer melhor os povos germânicos, chamados de “bárbaros” por alguns historiadores da Antiguidade, e o seu estabelecimento no território europeu. Por fim, você vai se familiarizar com alguns aspectos culturais dos germanos e ver de que forma eles se organizavam socialmente.
  • 3. Enfraquecimento do Império Romano e expansão dos povos bárbaros Os estudos dedicados às condições que levaram à dissolução do Império Ro- mano são muito variados. A historiografia contemporânea enfatiza aspectos tanto internos quanto externos a esse processo. Além disso, procura romper com antigas expressões, tais como “declínio”, “decadência” ou “queda”, que transmitem uma ideia de progresso à trajetória das sociedades. O importante é você ter em conta que, durante a crise do século III, os romanos não se imaginavam vivendo o fim do Império: essa é uma visão retrospectiva dos historiadores. Percebe-se, sim, uma série de transformações que configuraram algumas das características das sociedades medievais, em um processo bastante lento. Na Figura 1, a seguir, você pode ver o Império Romano antes das grandes migrações. Figura 1. O Império Romano antes das grandes migrações. Fonte: Duby (2007, p. 52). Invasões e migrações germânicas 2
  • 4. Como você já viu, os historiadores procuram respostas para a dissolução do Império em diferentes aspectos. Alguns pesquisadores, enfatizando o viés político, afirmam que o problema residia na falta de regras para a sucessão dos imperadores, o que gerou um desequilíbrio de poder e uma crise estrutu- ral. Outros, por sua vez, assentam suas explicações nos fatores econômicos, ressaltando as mudanças na organização do trabalho (da escravidão para a servidão) como um indício de transformação social. Há ainda aqueles que assinalam os problemas entre a administração central e as províncias, do ponto de vista econômico e político (principalmente com a incorporação de alguns povos germânicos). Além disso, há os pesquisadores que afirmam que a difusão da cultura e das práticas cristãs foram responsáveis pelo enfraquecimento do Império, devido à assimilação que a população fez de valores tais como a humildade e a resignação. Por fim, existe uma corrente que interpreta o fim do Império a partir de aspectos militares, como a perda da capacidade de conquista e a incorporação dos “bárbaros” ao Exército. Emboraaspossibilidadesinterpretativassejamvárias,oshistoriadoresparecem concordar que o período que se estende de 193 a 284, chamado de “crise do século III”, representa um ponto de inflexão na história do Império Romano. Essa “crise” foi, na verdade, um conjunto de crises estruturais e problemas inter-relacionados quelevaramatransformaçõesprofundasegeneralizadas:umacrescenteinfluência da cultura germânica, uma tendência valorativa positiva à monarquia autocrática em detrimento da autoridade imperial e do Senado, um processo de ruralização, a expansão da cristandade, etc. Como afirma Machado (2015, p. 90–91), o século III foi “[...] um período caracterizado por problemas políticos (especialmente relativos à sucessão imperial), mas principalmente por guerras (civis e contra invasores) e a peste. Estes não são processos idênticos, mas que foram combinados e que levaram à formação de uma nova sociedade e ordenamento políticos [...]”. Aqui, você vai ver como se deu a pressão das tribos germânicas sobre as fronteiras do Império Romano. Contudo, lembre-se de que esse é apenas um dos aspectos de uma sociedade que estava em profunda transformação. A movimentação das tribos germânicas nas fronteiras romanas ocorria desde o período dos antoninos, ou seja, não era uma novidade no século III. Contudo, nesse período, houve um agravamento dessa relação. Isso ocorreu primeira- mente pela morte de Alexandre Severo, em 235, assassinado após a notícia de um possível acordo com os persas (o Império Sassânida, de origem persa, representava uma ameaça às províncias orientais). Outra causa foi a assimilação, por parte das tribos germânicas, de certos conhe- cimentos,práticasevaloresromanos.Taistribospassaramaseestabelecerpróximo às fronteiras do Império para saqueá-lo ou por sobrevivência; assim, as invasões 3 Invasões e migrações germânicas
  • 5. não eram mais circunstanciais ou esporádicas, mas frequentes, com liderança e motivações. Por fim, havia movimentos internos dos germanos, principalmente os orientais, que pressionavam territorialmente os ocidentais e, por consequência, as fronteiras do Império. Portanto, no século III, o império sofria pressões em sua fronteira com os germanos no norte e com o Império Sassânida ao leste. O Império Romano tinha sob seu controle um dos mais extensos domínios territoriais já conquistados, motivo pelo qual o exército ficava em primeiro plano, tendo peso decisivo na manutenção do poder instituído. “A partir do século III, assiste-se a um progressivo e inexorável processo de crise das estruturas imperiais, responsável pela fragmentação da unidade política romana, pelo desmembramento e desaparecimento definitivo do Império [...]” (MACEDO, 2006, p. 78–79). Para Macedo (2006), uma das causas está nas transformações ocorridas no recrutamento para o Exército e na possibilidade de germanos serem utilizados como guardiões de fronteiras. Veja: No princípio do século IV, as antigas formações militares (legiões e guarda preto- riana) foram praticamente dissolvidas e em seu lugar apareceram duas unidades militares específicas: as tropas de fronteira, colocadas em fortificações perma- nentes nos limes, isto é, nos limites do mundo romano, com a incumbência de protegê-los de eventuais invasões; e uma força tática móvel, colocada em posições estratégicas no interior do território imperial. A tais reformas corresponderam novas formas de recrutamento. As consequências econômico-financeiras da crise afetaram a estabilidade militar devido à dificuldade de remuneração dos soldados. No século IV, uma das formas de pagamento do serviço militar consistia na concessão de lotes de terra de fronteira a soldados regularmente recrutados e incorporados aos quadros do exército quando cumpriam seu tempo regular de serviço ao fim de 25 anos. Era uma maneira de assegurar a presença de pessoas capacitadas a defender as fronteiras em caso de ataque (MACEDO, 2006, p. 79). Portanto, as invasões que ocorrem no século V não são uma novidade para os romanos, mas se tornam um fator de enfraquecimento do poder imperial em função da crise do século III. Nesse sentido, é importante lembrar que, para um dos maiores especialistas em Idade Média, Le Goff (2016), as causas do fim do Império Romano são internas, não têm a ver com as invasões: A causa da catástrofe é interna. Foram os pecados dos romanos — inclusive cristãos — que destruíram o Império que seus vícios entregaram aos bárba- ros. Os romanos eram, de si mesmos, inimigos piores do que seus inimigos de fora, pois, embora os bárbaros já os tivessem arrasado, eles se destruíam ainda mais por si mesmos (LE GOFF, 2016, p. 21). Invasões e migrações germânicas 4
  • 6. Em outro trecho, o historiador reforça a questão da crise como maior fator explicativo: “A verdade é que os bárbaros foram favorecidos pela cumplicidade ativa ou passiva da massa da população romana. A estrutura social do Império Romano, em que as camadas populares eram cada vez mais esmagadas por uma minoria de ricos e poderosos, explica o sucesso das invasões bárbaras [...]” (LE GOFF, 2016, p. 22). Os povos bárbaros Quem eram esses “invasores”? No tópico anterior, você estudou o fim do Império Romano do Ocidente a partir da presença dos povos germanos em seu território e em suas fronteiras. Contudo, também deve considerar a falsa dicotomia étnica existente entre romanos e não romanos. Veja: Os romanos e seus vizinhos, que viviam próximos ao limes, não possuíam di- ferenças muito consistentes em termos de identidade ou etnia, que a existência dicotômica entre romanos e bárbaros é uma criação moderna e que esta só se consolidara no discurso político, na tentativa de enaltecer a tradição clássica face ao constante crescimento do poder provinciano e estrangeiro. [...] Nesta óptica, as populações germânicas da antiguidade já não poderiam mais ser vistas como racialmente homogêneas, organizadas a partir de características étnicas de “matriz” germânica ou ariana, mas por tradições culturais — a crença em um determinado deus, um antepassado em comum, semelhanças linguísticas —, o que permitiria que estes grupos tivessem uma configuração poliétnica (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 347). Os povos genericamente chamados de “germanos” são originários de um processo de imigração de tribos indo-europeias, provenientes da Europa Centro-Oriental, que atingem as penínsulas da Dinamarca e da Escandinávia entre 3000 a 2500 a.C. A partir do ano 2000 a.C., já haviam se expandido para a costa do mar Báltico e para o mar do Norte. Por volta do século VI a.C., ocupam a região do rio Reno e, quatro séculos depois, o rio Danúbio, tornando-se suas principais fronteiras políticas. 5 Invasões e migrações germânicas
  • 7. A seguir, você vai conhecer melhor os reinos germânicos, formados a partir da política dos foederati (domínios relativamente independentes do Império). Você vai ver que a organização política, religiosa e social desses reinos em nada se assemelhava à condição de “barbárie”, termo pejorativo utilizado para lhes referenciar. O termo “bárbaros” é encontrado em crônicas romanas desde o século I a.C. e era utilizado para fazer referência a todos os povos que não falavam o latim, sem distinção entre celtas, eslavos, gauleses ou germanos. Considere o seguinte: [...] a denominação de “bárbaros”, no sentido moderno do termo, não era absolutamente justificada, porque os germanos, os persas, os árabes e os outros numerosos povos vizinhos do Império não podiam ser absolutamente reduzidos a hordas desorganizadas, selvagens e incontroláveis. Por outro lado, eles nunca haviam formado uma coalizão devotada a uma tarefa deliberada de destruição do Império Romano, como se isso fosse desejado por Deus. A diversidade geográfica das fronteiras era acompanhada por povoamentos variados, e ambições muito diferentes eram expressas pelos externi, “aqueles do mundo exterior” (LE ROUX, p. 2013, p. 86). Os primeiros contatos entre Roma e aqueles que foram chamados de “germa- nos” ocorreram no final do século II a.C. Pressionados por questões ambientais e pelo excesso populacional, os povos teutões e cimbros migraram para o sul e pressionaram as fronteiras de Roma no norte da Itália. Veja: Certamente aqueles tempos foram principalmente de confusão. Confusão sur- gida antes de tudo da própria mistura de invasores. Ao longo de seu trajeto, as tribos e os povos haviam se combatido, submetido uns aos outros, misturado. [...] Confusão acrescida pelo terror. Mesmo levando em conta os exageros, os relatos de massacres, de devastações, que abundam na literatura do século V, não deixam dúvida quanto às atrocidades e destruições que acompanharam os “passeios” dos povos bárbaros (LE GOFF, 2016, p. 26). Durante muito tempo, predominou a visão historiográfica segundo a qual as relações entre os romanos e germanos ocorrera apenas nos séculos IV e V, sendo marcadas por ataques e invasões violentas, já que o objetivo principal desses povos que viviam fora das fronteiras do Império era destruir e saquear. Contudo, há registros de relações comerciais e diplomáticas entre romanos e Invasões e migrações germânicas 6
  • 8. não romanos. Assim, novas abordagens têm procurado desconstruir a visão das “[...] invasões bárbaras enquanto um fluxo de populações que irrompem violentamente no seio do Império de um momento para outro — e por momento entendemos o último quarto do século V — e que seriam responsáveis pelo esfacelamento da coesão imperial [...]” (SILVA, 2011, p. 4–5). Por exemplo, após a crise do século III, o Império Romano estabeleceu acordos para que os francos repovoassem a Gália e para que os ostrogodos se fixassem na Península Ibérica, em uma política chamada hospitalias (“hospita- lidade”). Tratou-se de uma estratégia para manter a integridade dos territórios e a soberania do Imperador nas províncias do Mediterrâneo. Ao mesmo tempo, tal estratégia possibilitou a fixação de alguns povos nômades no território. Posteriormente, alguns desses reinos foram elevados à condição de federados ao Império. Porém, a preocupação com as fronteiras e as possíveis invasões do território antecede e muito o século III: Durante o período republicano (509–27 a.C.), Roma sofreu uma série de ame- aças, sendo a mais famosa imposta por Breno, chefe gaulês da costa adriática da Itália, que em 387 a.C., invadiu e saqueou a cidade. No Principado, Augusto (63 a.C.–14 d.C.) manteve um interesse particular pela conquista da Germânia (atual Alemanha). Porém, a expansão é finalizada quando Armínio (16 ou 17 a.C.–21 d.C.), germano de nascimento, porém cidadão romano e treinado na arte da guerra pelos mesmos, aniquilou o exército comandado pelo cônsul Públio Varo (46 a.C.–9 d.C.), na Batalha da Floresta de Teutoburg. No segundo século da Era Cristã, o imperador Adriano (76–138) mandou erguer na Bretanha a Muralha de Adriano, com a intenção de deter os constantes invasores pictos (originários da Escócia) (CARLAN, 2010, p. 169). A historiografia contemporânea tem demonstrado a necessidade de se superar a dicotomia aliados versus inimigos para se considerarem as relações entre os povos romanos e não romanos. Nesse sentido, afirma-se que, em diferentes situações, essas relações poderiam ser “[...] de opositores militares, de refugiados, de povos assimilados, de povos assimilados que se rebelam, de contingentes militares integrados ao Império, de contingentes integrados ao exército imperial que novamente se insurgem [...]” (BARROS, 2009, p. 556–557). Na Figura 2, veja as migrações dos povos bárbaros. A seguir, veja uma descrição das principais rotas. 7 Invasões e migrações germânicas
  • 9. Figura 2. Migrações dos povos bárbaros. Fonte: Mackay e Ditchburn (1997, p. 8).  Anglo-saxões: compreendiam os anglos, os saxões, os jutos, os frísios e outros povos que se instalaram na foz do rio Reno. Alguns grupos, posteriormente, migraram para a ilha da Grã-Bretanha, no século V, dominando as populações celtas e criando reinos que perduraram até a invasão dos normandos (vikings) em 1066.  Burgúndios: formaram um reino no início do século V, que foi destruído pelos hunos. Posteriormente, fundaram um novo reino, em 443, que foi destruído pelos francos aproximadamente um século depois.  Francos: constituíram um dos mais poderosos reinos. Em 481, dominaram grande parte da Europa Central, na margem esquerda do rio Reno. Nessa mesma região, os hunos fizeram incursões contra o Império Romano.  Ostrogodos: criaram na Itália um reino que congregou romanos e germanos. Em 553, foram conquistados pelo Império Bizantino.  Suevos: estabeleceram, em 410, um reino na região da Galícia (norte de Portugal e noroeste da Espanha), tendo sido conquistados em 585 pelos visigodos.  Vândalos: invadiram a Península Ibérica entre 407 e 409, tendo sido expulsos primeiramente pelos romanos, depois pelos visigodos. Ocu- param o norte da África em 429, fundando um poderoso reino. Invasões e migrações germânicas 8
  • 10.  Visigodos: instalaram-se primeiramente na Gália e, em 409, partiram para a Península Ibérica, estabelecendo-se em 418. Foram conquistados pelos muçulmanos no século VII, migrando para a região dos Pirineus e colaborando com os francos. Novamente, note a diversidade de povos abarcados pelos termos “bárba- ros” e “germânicos”. Os caracteres que costumeiramente foram utilizados para distinguir os povos uns dos outros talvez não sejam suficientes para se estabelecer uma etnia e, por consequência, criar uma diferenciação tão grande dos romanos. Veja: Tal como os relatos dos gregos/romanos sobre as gentes barbarorum, língua, armas, roupas ou cabelos (cortes ou penteados) também não são sinais confi- áveis para identificar identidades étnicas estáveis. Isso não significa que não houvesse diferenças marcantes nos povos antigos, ou que essas projeções cul- turais — cabelo, língua, roupas, armas — não fossem relevantes, mas sim que elas eram muito fluidas e dinâmicas, e a supervalorização destas atende mais aos estereótipos do que à História (SILVA; ALBUQUERQUE, 2015, p. 352). Após o intenso movimento migratório ocorrido no século V, aos poucos as tribos germânicas foram se fixando num determinado local. Seus membros, por sua vez, foram se misturando aos romanos, ocorrendo uma fusão das duas culturas. Você vai estudar mais sobre isso no próximo tópico. A cultura dos povos germânicos Como você viu nos tópicos anteriores, diferentes povos foram reunidos por meio do termo “germânicos”. Hoje, há diferentes níveis de informações sobre tais povos. Como lembram Silva e Albuquerque (2015, p. 347), grande parte do que se sabe a respeito do mundo germânico deriva de “[...] uma construção ideológica alemã [...]”. Tal construção tem início com a “redescoberta dos escritos de Tácito no século XV, atingindo seu ápice no século XIX, quando as tendências políticas e intelectuais da época (romantismo, pan-germanismo, filologia, teoria da raça ariana, dentre outras) buscavam legitimar uma unificação do mundo nórdico”. A seguir, você vai ver algumas características desses povos, mas lembre-se de que é preciso estudá-los em suas singularidades e nas variações que ocorrem ao longo do tempo. Veja o que afirma Le Goff (2016, p. 25): 9 Invasões e migrações germânicas
  • 11. Os bárbaros que se instalaram no Império Romano no século V não eram aqueles povos jovens, mas selvagens, recém-saídos de suas florestas ou de suas estepes, descritos por seus detratores da época ou seus admiradores modernos. Tinham evoluído muito com seus deslocamentos, muitas vezes seculares, que acabaram por lançá-los no mundo romano. Tinham visto muito, aprendido muito e incorpo- rado bastante. Seus caminhos os levaram a contatos com culturas e civilizações das quais absorveram costumes, artes e técnicas. Direta ou indiretamente, a maioria deles havia sofrido influência das culturas asiáticas, do mundo iraniano e do próprio mundo greco-romano, principalmente em sua parte oriental, que, em vias de tornar-se bizantina, continuava sendo a mais rica e mais brilhante. Aqueles povos que viviam mais próximos aos limes estabeleceram cons- tantes trocas com os romanos, apropriando-se de alguns de seus hábitos e práticas culturais. Esse estabelecimento dos povos nas fronteiras do Império deveu-se a um processo de assentamento de culturas que eram anteriormente nômades e viviam nas estepes e florestas. Tais povos dominavam técnicas de trabalho com o couro e a madeira, além da fundição de metais. Em seu processo de sedentarização, alguns desses povos permaneceram com suas práticas religiosas, com rituais animistas e de adoração à natureza, enquanto outros se converteram ao cristianismo ariano. Veja: Por um curioso acaso, que acarretou pesadas consequências, esses bárbaros convertidos — ostrogodos, visigodos, burgúndios, vândalos e, mais tarde, lombardos — o foram ao arianismo, que, depois do Concílio de Niceia, tornara- -se heresia. [...]. Assim, o que deveria ter sido um vínculo religioso foi, ao contrário, objeto de discórdia e gerou lutas acirradas entre bárbaros arianos e romanos católicos (LE GOFF, 2016, p. 24). Quanto ao culto pagão, provavelmente havia cultos a rochas, bosques, árvo- res, fontes, etc. Não há indícios de grandes construções. Nos poucos locais de culto com edificações, estas eram utilizadas para “[..] alojar ex-votos, imagens de divindades (provavelmente muito singelas, a julgar pelos poucos exemplares indubitáveis achados) e objetos sagrados [...]” (CARDOSO, 2012, p. 10–11). Além disso, eram realizadas visitas individuais, não cerimônias coletivas. Em decorrência do processo de ruralização ocorrido durante o Medievo, há um predomínio da vida privada em detrimento da vida pública: Antes a alegria de viver estava nas ruas e nos grandes monumentos urbanos; agora se refugia nas casas e nas cabanas. Antes, com suas leis, tropas e edis, o Império se honrara em facilitar a vida pública como ideal de vida; agora, com os reinos germânicos, dilui-se o culto da urbanidade em proveito da vida privada. Para os recém-chegados, os germanos, quase tudo é de domínio privado (ROUCHE, 1900, p. 403). Invasões e migrações germânicas 10
  • 12. A cultura dos germanos era essencialmente rural, com atividades agrárias, mas com forte ênfase no pastoreiro. Dessa forma, a organização familiar tornou- -se muito importante para esses povos. As famílias agrupavam-se em tribos a partir de laços de solidariedade e, assim, criavam uma estabilidade. Daí decorre um traço importante da cultura germânica, a ideia de linhagem, formada pela herança dos antepassados, o que dá aceitação social e prestígio perante o grupo. As sociedades germânicas eram patriarcais, sendo o papel masculino decisivo para a organização familiar e matrimonial, bem como para a educa- ção dos filhos e as decisões políticas e militares, que ocorriam por meio dos comitatus. Alguns desses povos estruturaram formas de Estado com poder monárquico. Assim, o militarismo e a participação em guerras faziam parte da cultura dos povos germânicos. BARROS, J. D. Passagens de antiguidade Romana ao ocidente medieval: leituras his- toriográficas de um período limítrofe. História, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 547–574, 2009. CARDOSO, C. F. A interpenetração da cosmogonia religiosa com a história entre os escandinavos. Nearco, Rio de Janeiro, v. 1, ano v, n. 1, p. 8–19, 2012. CARLAN, C. U. História, cidades e fronteiras: o império romano e as Invasões. Mosaico, Goiânia, v. 3, n. 2, p. 169–177, 2010. DUBY, G. Atlas histórico mundial. Barcelona: Larousse, 2007. LE GOFF, J. A civilização do ocidente medieval. Petrópolis: Vozes, 2016. E-book. LE ROUX, P. Império Romano. Porto Alegre: L&PM, 2013. MACEDO, J. R. Conquistas bárbaras. In: MAGNOLI, D. (org.). História das guerras. São Paulo: Contexto, 2006. MACHADO, C. A. R. A antiguidade tardia, a queda do Império Romano e o debate sobre o “fim do mundo antigo”. Revista de História, São Paulo, n. 173, p. 81–114, 2015. MACKAY, A.; DITCHBURN, D. Atlas of medieval Europe. New York: Routledge, 1997. ROUCHE, M. Alta idade média ocidental. In: ARIÈS, P.; DUBY, G. História da vida privada. São Paulo: Schwarcz, 1990. v. 1. SILVA, D. G. G.; ALBUQUERQUE, M. C. Bárbaros ou/vs Romanos? Sobre Identidades e Categorias Discursivas. Revistes Catalanes amb Accés Obert, [s. l.], n. 21, p. 345–359, 2015. SILVA,T.J.R.S.Porentreaantiguidadeeaidademédia:umaperspectivahistoriográfica. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 26., 2011, São Paulo. Anais[...]. São Paulo: ANPUH, 2011. 11 Invasões e migrações germânicas
  • 13. Leituras recomendadas BONNASSIE, P. Vocabulario básico de la historia medieval. Barcelona: Crítica, 1988. CARLAN, C. U. As invasões germânicas e o império romano: conflitos e identidades no Baixo Império. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 137–146, 2008. CARVALHO, M. M. et al. Barbarização do exército romano e renovação historiográfica: novas perspectivas sobre o tema. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 147–163, 2008. FUNARI, P. P.; CARLAN, C. U. Romanos e germânicos: lutas, guerras, rivalidades na antiguidade tardia. Brathair, São Luís, v. 7, n. 1, p. 17–24, 2007. PEDRERO-SANCHEZ, M. G. História da idade média: textos e testemunhas. São Paulo: UNESP, 2000. PONTESILLI, M. As migrações dos bárbaros e o fim do Império Romano do Ocidente. In: ECO, U. (org.). Idade média: bárbaros, cristãos e muçulmanos. Lisboa: Dom Quixote, 2010. E-book. Invasões e migrações germânicas 12