1. A
Ricardo George∗
A Dimensão Cooriginária
entre Política e Liberdade em
Hannah Arendt
RESUMO
Pensar as categorias da política e da liberdade como cooriginárias constitui o maior objetivo
deste artigo. Para isso, tomamos como referência as reflexões de Hannah Arendt no tocante a tal
questão. Partindo da concepção arendtiana, entendemos que o sentido da política é a liberdade.
Tais categorias necessitam de um espaço público para aparecer, de tal modo que esse locus é a
pedra de toque, pois sem ele a política e a liberdade tornam-se abstratas, sem expressão no mundo
dos negócios humanos.
Palavras - chave: Política, Liberdade, Espaço Púbico, Ação, Linguagem
ABSTRACT
Our main objective is to think the categories of Politics and Freedom as co-originaries. In this
way, we take as reference, Hannah Arendt’s reflections about that question. Following the arendtian
conception, we understand that freedom is the meaning of politics. In our comprehension, such cat-
egories need of a public space to appear itselves. This space is essential, a time that without it, even
the politics and freedom became abstract, without an expression in the world of human business.
Key words: Politics, Freedom, Public Space, Action, Language
∗
Mestre em Filosofia e Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 97
2. Política e Liberdade: Dimensões político onde ocorrem os negócios humanos,
de modo que uma liberdade apenas teórica
Co-Originárias
não é capaz de habitar a ação, pois esta se dá
no mundo fenomênico, especialmente no seu
O artigo aborda as categorias centrais do “campo original, o âmbito da política.” (ARENDT,
nosso objeto de estudo, examinando-as com su- 1988, p. 191).
porte em duas obras que consideramos basilares Ao identificarmos o campo original da
para nosso trabalho: A condição humana, de liberdade como sendo a política, o fazemos com
1958, e Entre o passado e futuro, de 1961. fundamento no fato de que os homens vivem
Hannah Arendt entende a liberdade como em um espaço público, que é político na sua
manifestação do homem no espaço público, constituição, já que não temos como conceber
mediado pela ação e pela linguagem. Política o espaço público sem a pluralidade, condição
sem liberdade é uma compreensão distorcida sine qua non para a liberdade, de tal modo que,
de política, tanto quanto o é conceber liberda- no espaço público, se experimentam o discurso
de sem política. Esse espaço público é o local e a ação, e estes só existem onde houver a liber-
onde uma significa a outra. Há nessas esferas dade. Disso concluímos que política e liberdade
uma cooriginalidade, onde uma dá suporte a se autoidentificam, não podendo se conceber
outra no tocante á seu significado. Para isso, uma sem a outra, a não ser que admitamos o
Arendt chama atenção da seguinte forma: “Para equívoco da tradição separando um do outro.
a pergunta sobre o sentido da política existe uma Só nesse equívoco, se poderia admitir a política
resposta tão simples e tão concludente em si que como negadora do espaço público e, conse-
se poderia achar outras respostas dispensáveis quentemente, da pluralidade, da ação e do
por completo. Tal resposta seria: o sentido da discurso; só assim poderíamos encontrar política
política é a liberdade.” (ARENDT, 2002, p. 38). e liberdade destoando. Fora disso uma identifica
Não há como conceber a ação privada da a outra, já que a política é o espaço acolhedor
liberdade, pois ela aufere vigor tanto quanto é da liberdade, e a liberdade, seu sentido. Assim
livre para se manifestar. É disto que é composto nos diz Hannah Arendt:
o espaço público: elementos plurais e livres. “A
O campo em que a liberdade sempre foi
política baseia-se na pluralidade dos homens.
conhecida, não como um problema, é
Deus criou o homem, os homens são um pro- claro, mas como um fato da vida cotidia-
duto humano mundano, e produto da natureza na, é o âmbito da política. E mesmo hoje
humana.” (ARENDT, 2002, p. 21). Nesse sentido, em dia, quer o saibamos ou não, devemos
podemos asseverar que a política trata do conví- ter sempre isso em mente, ao falarmos do
vio entre os diferentes, isto é, a pluralidade traz problema da liberdade, o problema da
em si o sentido da liberdade, manifesta o direito política e o fato de o homem ser dotado
de todos aparecerem e atuarem. A política é de ação; pois ação e política, entre todas
plural, porque a liberdade exige a pluralidade as capacidade e potencialidade da vida
como condição sine qua non. Não há liberdade humana, são as únicas coisas que não
quando um só é dono da verdade e os outros poderíamos sequer conceber sem ao
menos admitir a existência da liberdade.
não têm o direito de exprimir posições. Para
(ARENDT, 1988, p. 191).
Hannah Arendt, o campo da política é o campo
de ação, que só é possível quando em uso da Tudo isso fundamenta nossa afirmação
liberdade e não uma liberdade teórica, mas uma de que a liberdade é o motivo que possibilita
que aparece no mundo fenomênico. aos homens conviverem politicamente e sem
Sendo assim, o campo da política não é o da a qual a vida política como tal seria destituída
razão pura, como queria Platão – nem o da razão de significado: “a raison d’être da política é a
prática – como aparentemente, segundo Arendt, liberdade e seu domínio de experiência é a
se pensa que teria sido a posição de Kant, de tal ação.” (ARENDT, 1988, p. 192).
modo que podemos afirmar que a política está em A ação que expressa a liberdade é, para
outro campo: o do pensamento plural. Hannah Arendt, aquela que traz em si a condi-
A liberdade, que encontra na pluralida- ção da pluralidade e a necessidade do espaço
de sua expressão, tem constituição no mundo público para aparecer; é a ação que busca ma-
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3. nifestar o outro. Nesse sentido, o mundo artificial O ponto que queremos expressar é o se-
tem de ser cenário da ação e do discurso, sob guinte: a constituição da liberdade só é possível
pena de se perder o sentido da política e de a onde for possível a esta aparecer pelo discurso
liberdade não ter realidade concreta. “Sem um e pela ação, de forma concreta. É evidente que
âmbito público politicamente assegurado, falta isso traz as fragilidades do próprio uso da ação,
a liberdade, o espaço concreto onde aparecer.” como a mentira que pode aparecer no discurso
(ARENDT, 1988, p. 195), de tal modo que, sem para maquiar uma realidade, contudo, a ação e
esse espaço, se pode encontrar a liberdade o discurso necessitam do espaço público para
em qualquer outro lugar menos onde ela faz a sua manifestação e trazem consigo a novidade.
diferença para o existir plural dos homens, me- Assim,
nos onde ela pode significar suas ações e lhes [...] toda ação política é como um segundo
garantir a possibilidade do novo. Sendo assim, nascimento, ou seja, se com o nascimento
encontraremos a liberdade nos pensamentos e físico original os homens aparecem no
produções teóricas ou nos corações, contudo, mundo que precede sua chegada, com
nem estes nem aquelas são capazes de mani- a atuação política os homens aparecem
festar aquilo que realmente importa no espaço para o mundo introduzindo nele sua
público, os assuntos humanos fenomenicamente marca inconfundível. Se em cada novo
manifestados. nascimento está contida a promessa do
Por fim, podemos concluir que ação, começo, cada fundação ou constituição
pluralidade e espaço público são categorias do corpo político contém a promessa
do respeito às leis [que é a garantia da
centrais para a compreensão da cooriginalidade
política]. (XARÃO, 2000, p. 170).
existente entre liberdade e política, sendo possí-
vel afirmar: “a liberdade como fato demonstrável Na busca de compreender a liberdade,
e a política coincidem e são relacionadas uma a tradição caminhou por trilhas outras que
à outra como dois lados da mesma matéria.” não a dos negócios humanos. Talvez apenas
(ARENDT, 1988, p.195). Duns Scotus tenha ousado entender a liber-
dade como algo posto no mundo concreto
A Constituição da Liberdade e contingente. (ARENDT, 1991, p. 332). A
liberdade é constituída desde a da teia de re-
A constituição da liberdade só pode acon- lações humanas, no âmbito do espaço público,
tecer onde for possível esta aparecer. Portanto, situação não privilegiada pela tradição que
o espaço público é o palco da liberdade. Nesse por muito não manifestou preocupação para
contexto, a formação da liberdade aparece com a liberdade e, quando o fez, a situou no
sempre que for possível ao novo se manifestar. mundo da contemplação. A Filosofia deslocou
Hannah Arendt entende que o mundo da li- a liberdade do espaço do bios politikos para
berdade é o mundo passível de ser cristalizado o espaço da bios theorétikos, isto é, o que
por meio de uma história narrável, mas, para entrou em cena foi o eu pensante e não o eu
essa história existir, é preciso um mundo para agente. A liberdade foi, nesse sentido, confi-
se viver, fabricado por homens que permitem a nada a pressuposições racionais, totalmente
vida de outros, isto é, permitem um principium fora do mundo concreto, do mundo produ-
que favorece o aparecer, o nascer, de tal modo zido e habitado pelos homens. Tal liberdade
que a curta existência entre o nascer e morrer de sentido interior é contemplativa, aparece
se cristalize, por intermédio da narração. A ação sem manifestações externas e, portanto, sem
livre confere aos indivíduos a possibilidade de significação política. Ela surge de forma tardia
produzir algo que possa ser imortalizado pela e se manifesta como expressão de estranha-
memória. É evidente que nem todo ato fica mento do mundo com as experiências do eu,
guardado na narração, mas apenas aquilo que o que conduz a uma fuga do mundo, a uma
é relevante. É preciso garantir, no entanto, a busca do que é eterno e imutável, próximo,
existência de um espaço onde o que é relevante portanto, de uma segurança conceitual onde
para os negócios humanos possa ser preservado a contemplação seja capaz de proteger o
na sua teia de relações. A ação e o discurso homem dos riscos da ação no concreto da
serão a garantia disso. vida. Sendo assim, a preocupação primeira
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4. foi divorciar a liberdade da política, situação liberdade. Ao contrário, transformou a liberdade
bem desenvolvida por Agostinho. Assim nos em um problema filosófico, em um problema
diz Hannah Arendt: para o pensamento, elevou-o à contemplação
É interessante notar que, historicamente, e o retirou da base fenomênica original, local
o aparecimento do problema da liberda- onde a liberdade apareceu pela primeira vez.
de na filosofia de Agostinho foi, assim, Para desgaste ainda maior do significado
precedido da tentativa consciente de di- da liberdade, o cristianismo consolidava a noção
vorciar da política a noção de liberdade, de que a liberdade é exercida em completa
de chegar a uma formulação através da solidão, por meio das escolhas efetuadas pelo
qual fosse possível ser escravo no mundo indivíduo em face das alternativas que se põem
e ainda assim ser livre. (ARENDT, 1988, diante dele, perdendo assim qualquer relação
p.193). para com a pluralidade humana que constitui
A conclusão de Agostinho esclarece-nos o âmbito político. A partir de Paulo e de Agos-
em que âmbito estava situada a liberdade e tinho, a liberdade passou a ser tematizada em
como a contemplação tinha valor em detrimento termos dos conflitos internos à vontade de uma
da ação. Contudo, fica claro que essa compre- faculdade que os gregos não conheciam e que
ensão de liberdade não é capaz de instaurar só foi “descoberta” no instante em que ambos
um mundo plural, onde possam aparecer os testemunharam a sua “impotência” constitutiva,
negócios humanos. isto é, a cisão da vontade entre querer e não
A confusão feita em torno da liberdade foi querer, entre querer e poder. Essa canalização
tamanha que a tradição só foi capaz de pensar da liberdade para dentro da vontade e para o
a liberdade na medida em que fosse possível se conflito interno ao “eu” que a caracteriza teve
libertar das necessidades. A solução para isso inúmeras consequências para a teoria política,
foi, então, subjugar a alguns para que outros pu- dentre as quais a reprodução da ideia de que
dessem exercer a liberdade. A má compreensão o poder é idêntico à “opressão ou pelo menos
aqui expressa levou homens a escravizar outros, ao domínio sobre os outros” e de que a vontade
isto é, negar-lhes o direito à ação para que uma e a vontade de poder são o mesmo. (DUARTE,
pretensa liberdade aparecesse. O problema é 2000, p. 206).
que, aí, elementos centrais da constituição da Hannah Arendt alerta para o perigo da
liberdade estavam negados, como a pluralidade política que se assenta unicamente na facul-
e o espaço público. dade da vontade, em vista de suas implicações
A tirania subjacente a essa compreensão é antipolíticas. Assim, cabe esclarecer, a liberdade
demasiadamente mutiladora do real sentido da só encontra espaço de existência no “eu posso”
liberdade. Só em um mundo contemplativo, é e não no “eu quero”, pois o eu quero aparece
possível se conceber tal conceito, haja vista que como obliteração da liberdade, na medida em
que se acentuam o uso da força e o exercício da
A liberdade necessitava além da mera tirania, quando o “eu posso” caminha na dire-
liberação da companhia de outros ho- ção da comunidade, onde muitos têm o direito
mens que estivessem no mesmo estado e, garantido de falar e agir. Em outras palavras,
também, de um espaço público comum a liberdade política só é possível na esfera da
para encontrá-los num mundo politica- pluralidade humana.
mente organizado. Em outras palavras,
Arendt critica também o liberalismo1,
no qual cada homem livre poderia
que passa a compreender a liberdade em uma
inserir-se por palavras e feitos. (ARENDT,
1988, p. 194). dimensão negativa, isto é, desde a concepção
de quanto menor for o espaço destinado à
A tradição não considerou esse mundo política, tanto maior será o da liberdade. Aqui
politicamente organizado para o surgimento da temos, novamente, o divórcio entre política
1
O liberalismo surge como modelo de organização onde a liberdade é importante, na medida em que o Estado político é substituído
pelo Estado assistencial, onde o fator econômico tem primazia em relação à política. Outra questão que merece atenção é a equivalên-
cia entre liberdade e poder, do que se conclui que, se a liberdade coincide com o poder, quem tem maior quantidade de poder será
mais livre: paradoxalmente, o homem verdadeiramente livre é o déspota (BOBBIO et al., 2004, p. 691). Isso se afasta da compreensão
de Arendt, que visa a abolir, da liberdade como ação no mundo plural, a força e a violência da compreensão.
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5. e liberdade. O liberalismo, nesse contexto, A citação torna claro o papel da liberdade
privilegia o fator econômico, aquilo que é da desenvolvida pelo liberalismo, como aquele
ordem da produção e distribuição de riqueza, reduzido ao nível do animal laborans, ou seja,
enxergando na política um elemento antagônico da pura preocupação com o ato de subsistir.
a isso. Portanto, para o liberalismo, ser livre é Ser livre no liberalismo é sobreviver pelo que se
garantir a paz e tranqüilidade interna do País, produz, o que reduz ao nível anulador da ação
para o melhor desenvolvimento das atividades dos indivíduos como corpo político organizado.
privadas dos indivíduos, isto é, das atividades Dispensando a pluralidade como categoria
econômicas. O homem livre nesse contexto é central, a concepção liberal traz à tona o in-
aquele preocupado com as questões da ordem dividualismo, elemento central da constituição
do privado e não interessado pelo público. das massas no esquema dos regimes totalitários,
O que for da ordem do oikos – da casa e do o que nos leva a identificar o liberalismo como
interesse particular – é que lhe diz respeito. O momento protototalitário, na medida em que
liberalismo produz uma liberdade aniquiladora traz em si, de forma pujante, as sementes do
do espaço público – de um mundo politicamente domínio total, cristalizado no individualismo, no
organizado – onde os homens possam agir, pois menosprezo do espaço público e na negação
funda o individualismo que, por constituição, da pluralidade como corpo político organizado,
para aparecer, tem de negar a pluralidade. além de divorciar política e liberdade, pondo
A liberdade, nesse contexto, é tão importante a primeira como reguladora da segunda, só
quanto os indivíduos possam maximizar suas sendo possível uma quando a outra encerra
necessidades e minimizar as de outros. seu papel. Para Hannah Arendt, no liberalismo,
O liberalismo de fato põe a política a seu o homem deixou de ser interpretado como um
serviço, por isso o fenômeno político se torna agente político ou como fabricante de objetos
definitivamente secundário. Isso fica bem ob- duráveis, para ser definido como um trabalhador
servado nas sociedades totalitárias, que visavam constantemente empenhado na manutenção do
à liberdade política apenas como garantia de ciclo vital que garante a sobrevivência da espé-
segurança, ou seja, é permitido ser livre tanto cie, mediante da produção de bens destinados
quanto isso não interfira nos negócios do Estado ao consumo imediato. Para Arendt, do ponto de
totalitário. Assim faz o liberalismo com a liber- vista do mundo e de sua estabilidade, isto é, da
dade: esta se torna importante, tanto quanto não perspectiva da conservação da morada comum
desarticule os interesses privados. Portanto, o e estável dos humanos, a consequência mais
que é público fica maquiado no liberalismo pelo imediata desse privilégio moderno e contempo-
direito de expressar-se. A liberdade, contudo, râneo concedido ao trabalho é uma verdadeira
desaparece onde se inicia a política, ou seja, “perda do mundo”.
o divórcio aqui realizado põe a política como Para entendermos o porquê dessas consi-
reguladora da liberdade e não como idêntica derações, vejamos primeiramente qual é o con-
a ela. Isto nos leva a entender que o liberalismo ceito arendtiano de mundo. Para ela, o mundo
propõe uma “liberdade” com origem na satisfa- em nada se relaciona com a soma de todos os
ção do autointeresse, mas maquia-se de inter- entes, mas refere-se àquele conjunto de arte-
relacionamento e por isso acredita fomentar fatos e de instituições criadas pelos homens, as
um ser livre, mas isso não passa de um engano. quais permitem que eles estejam relacionados
Vejamos o que nos diz Hannah Arendt: entre si, sem que deixem de estar simultanea-
mente separados. O mundo não se confunde
Obviamente, nem toda forma de inter-
com a terra ou com a natureza concebida
relacionamento humano e nem toda
espécie de comunidade se caracteriza
como o terreno em que os homens se movem
pela liberdade. Onde os homens convi- e do qual extraem a matéria com que fabricam
vem, mas não constituem um organismo coisas, mas diz respeito às barreiras artificiais
político – como por exemplo – o fator que que os homens interpõem a si, entre eles e a
rege suas ações e sua conduta não é a própria natureza, referindo-se, também, àqueles
liberdade, mas as necessidades da vida assuntos que aparecem e interessam aos huma-
e a preocupação com a sua preservação. nos quando eles entram em relações políticas
(ARENDT, 1988, p. 194-195). uns com os outros. Em um sentido político mais
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6. restrito, o mundo é também aquele conjunto por Robespierre e que, em nome da vontade
de instituições e leis que é comum e aparece a geral, ceifou vidas, tornando o evento conheci-
todos e que, por ser um artefato humano, está do como fase do terror. A soberania traz em si o
sujeito ao desaparecimento em determinadas mecanismo da violência, ou seja, apresenta mais
situações-limite nas quais se abala o caráter de um elemento que, para Hannah Arendt, é con-
permanência e estabilidade associado à esfera traditório em relação à prática da política, que
pública e aos objetos e instituições políticas. vise à permanência da pluralidade, do espaço
Trata-se, portanto, daquele espaço institucional público e da liberdade. Assim nos esclarece
que deve sobreviver ao ciclo natural da natalida- Hannah Arendt:
de e mortalidade das gerações e que distingue Essa identificação de liberdade com sobe-
os interesses privados e vitais do homem que aí rania é talvez a conseqüência política mais
habitam, a fim de que se garanta a possibilida- perniciosa e perigosa da equação filosófica
de da transcendência da mortalidade humana de liberdade com livre-arbítrio. Pois ela
por meio da memória e da narração da histó- conduz à negação de liberdade humana
ria humana. (MACEDO, In: CORREIA, 2002, quando se percebe que os homens, façam
p. 63-64). Situação não favorável ao liberalismo, o que fizerem, jamais serão soberanos, ou à
que prega a produção e o consumo de forma compreensão de que a liberdade de um só
desenfreada. Isso fragiliza o mundo, pois, desde homem, de um grupo ou de um organismo
as modernas sociedades do trabalho e do con- político só pode ser adquirida ao preço da
liberdade, isto é, da soberania, de todos os
sumo, em que predominam as atividades que
demais. Dentro do quadro conceitual da
exigem constante repetição e concentração em
filosofia tradicional, é de fato muito difícil
si mesmas, o mundo tem sido frágil e instável, entender como podem coexistir liberdade
pois as barreiras que deveriam garantir sua e não-soberania. Na verdade, é tão pou-
estabilidade vão sendo aniquiladas, em nome co realista negar a liberdade pelo fato da
dos ideais do crescimento e da acumulação de não-soberania humana como é perigoso
riquezas. Isso quer dizer que a vida social passa crer que somente se pode ser livre – como
a imitar o ciclo vital, segundo o qual sobreviver indivíduo ou grupo – sendo soberano. A
é o que importa; passa a haver um domínio do famosa soberania nos organismos políticos
econômico sobre o político, anulando a toda sempre foi uma ilusão, a qual, além do mais,
concepção de liberdade. só pode ser mantida pelos instrumentos de
Outro equívoco da tradição foi conju- violência, isto é, com meios essencialmente
não políticos. Sob condições humanas,
gar liberdade com soberania, sem levar em
que são determinadas pelo fato de que
consideração a idéia de que os elementos
não é o homem, mas são os homens que
motivadores de uma são antagônicos aos da vivem sobre a terra, liberdade e soberania
outra. A elucidação mais forte que temos desse conservam tão pouca identidade que nem
binômio liberdade-soberania talvez esteja nas mesmo podem existir simultaneamente.
teses rousseaunianas que exaltam a soberania Onde os homens aspiram a ser soberanos,
a partir do princípio da vontade geral una e como indivíduos ou como grupos organi-
indivisa. A questão se torna perigosa na medida zados, devem se submeter à opressão da
em que Rousseau pensa tal vontade geral fora vontade, seja esta a vontade individual com
de uma comunicação intersubjetiva, o que nos a qual abrigo a mim mesmo, seja “a vontade
leva a crer que tal concepção é antipluralista geral” de um grupo organizado. Se os ho-
e, portanto, negadora da política, já que, para mens desejam ser livres, é precisamente à
soberania que devem renunciar. (ARENDT,
Arendt, a pluralidade aparece como condição
1988, p. 212-213)
sine qua non para a existência da política. Negar
a pluralidade é renegar a política, de tal forma
que essa maneira dos modernos de enxergar A Liberdade no Contexto da
a política, ou seja, situando a soberania como Vida Ativa
categoria central, traz sérias consequências
para a história política europeia. Um exemplo A expressão “vida ativa” foi cunhada por
é a Revolução Francesa, cuja fase popular foi Hannah Arendt para determinar as três ativida-
organizada pelos radicais jacobinos e dirigida des básicas que articulam a condição humana:
102 Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010
7. trabalho, labor e ação. Essas três atividades história.” (ARENDT, 2001, p. 16-17). A garantia
que compõem aquilo que Arendt chamou de da memória só é possível onde for possível a
vida ativa expressam o modo de o homem se liberdade para agir e agir concretamente de
manifestar, tendo cada atividade uma condição forma atuante, ocupando firmemente o espaço
humana correspondente. público. É, portanto, o espaço da palavra e da
O labor como atividade inerente ao pro- ação – constituinte do mundo público – que nos
cesso biológico do corpo humano tem como sua faz entender o significado da categoria da ação
condição humana a própria vida. O trabalho, como aquela que abre espaço para a memória
por sua vez, corresponde ao artificialismo, isto é, e para a liberdade constituidora de um mundo
à produção de um mundo artificial, e tem como político. A garantia desse mundo político está
condição humana a mundanidade. Por fim, a expressa, de modo mais forte, na ação quando
ação, categoria que por excelência se exerce vemos o novo acontecer, o que nos assegura afir-
diretamente, sem a mediação de coisas ou ma- mar que a categoria da ação está intimamente
teriais, e entre homens, encontra na pluralidade ligada à categoria da natalidade, na medida
sua condição humana. Tal maneira de pensar em que garante o aparecimento do novo, a
o homem é uma análise da atividade humana, categoria central do pensamento político, em
que Hannah Arendt identificou e analisou. É contraposição ao pensamento metafísico. O
bom observar, entretanto, que condição humana novo que surge traz a certeza da pluralidade,
não se relaciona com natureza humana. A pre- condição humana da ação.
ocupação de Hannah Arendt não era encontrar A pluralidade revela o ser da política, isto é,
um princípio essencialista para determinar o manifesta o diálogo com os outros em detrimento
agir humano; ao contrário, era demonstrar a da postura metafísica do dialogo com o “eu”. A li-
ação como categoria política, e política porque berdade aparece na pluralidade que traz consigo
está inserida nos negócios humanos, terrenos e o resgate da léxis e da práxis. Só em um mundo
contingentes, jamais eternos e essenciais. Assim plural é possível a constituição de um mundo
nos diz Hannah Arendt: público, politicamente organizado. A relação
política é, portanto, dialógica na medida em que
Para evitar erros de interpretação, a
necessita do outro como contraponto, capaz de
condição humana não é o mesmo que
a natureza humana e a soma total das
opinar livremente sobre a vida pública.
atividades e capacidades humanas A pluralidade é a condição da ação
que correspondem à condição humana humana pelo fato se sermos os mesmos,
não constituem algo que se assemelhe isto é, humanos, sem que ninguém seja
à natureza humana. (ARENDT, 2001, exatamente igual a qualquer pessoa que
p. 17-18). tenha existido, exista ou venha a existir.
(ARENDT, 2001, p. 16).
Posto isso, fica evidente que a preocupa- O existir é uma condição fundamental no
ção de Hannah Arendt é o recobro da atividade contexto político pensado por Hannah Arendt,
política como liberdade que se manifesta tam- contudo existir não significa apenas aparecer,
bém na expressão dessa vida ativa que permeia mas é, sobretudo, aparecer para o outro, que
o existir dos homens sobre a terra. signifique o meu existir com arrimo em um
Uma questão central a ser suscitada é mundo politicamente organizado. A natalidade
sobre o quanto o fenômeno da liberdade se que surge é importante porque traz em si po-
enquadra no esquema da vida ativa à medida tencialmente a possibilidade do novo.
que se admite no indivíduo a existência de
momentos que o condicionam constantemente,
como o labor e até o mundo criado pelo tra- Política e Memória: a Busca Pela
balho. Admite-se, todavia, o momento da ação Imortalidade
que abre espaço e manifesta a possibilidade
da liberdade e da política. Na compreensão Aqui temos três importantes categorias
arendtiana, a “ação, na medida em que se em- para compreender o esquema compreensivo
penha em fundar e preservar corpos políticos, com o qual Hannah Arendt apresenta a política,
cria a condição para lembrança, ou seja, para a quais sejam: a memória, que tem a ver com a his-
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8. tória; a narração, vinculada com a possibilidade tirou da pólis e os pôs em dúvida em relação a
de reaver os eventos; e a imortalidade, situando ela. Estes optaram pelo confinamento no mundo
a ação no mundo concreto, tornando os homens da theoria, da contemplação, em detrimento da
seres capazes de continuidade no tempo. Se vida política e imortal da pólis.
bem observarmos, perceberemos que há uma A opção de Hannah Arendt por narrar
ligação entre as categorias, pois uma possibilita os fatos, isto é, contar “histórias” ocorre na
a outra. Isso parece evidenciar-se quando no- proporção em que ela percebe não mais ser
tamos que, para a narração ocorrer, temos de possível explicar o novo que passou a aconte-
fazer uso da memória. Assim, a imortalidade se cer no contexto político de então. O totalitaris-
impõe como aquilo que está sendo perpetuado mo aparece, e a tradição não tem categorias
no tempo pela memória e pela narração. suficientes para explicá-lo, visto que ele não
A noção que teria de ser superada, nesse é fruto de evento político do passado, nem,
contexto, é a de eternidade, considerando que muito menos, uma nova versão da tirania ou
esta lança fora dos negócios humanos toda e do absolutismo, mas é uma novidade política
qualquer ação, isto é, o que vale para o princípio que, nas palavras de Bruehl, provocou ver-
da eternidade é aquilo que se vai conquistar dadeira “diáspora mental”, ou seja, conduziu
em outra dimensão, como, por exemplo, na todos a uma encruzilhada que não tinha mais
contemplação, não sendo preciso deixar nada a direção conceitual segura para se trilhar, mas
aos pósteros, não importando legar nenhuma colocou em crise a tradição, seus conceitos,
forma de permanência e de imortalidade. Em suas doutrinas e sua verdade. Para Hannah
outras palavras, a experiência do eterno conduz Arendt, a saída foi contar “histórias” e narrar os
os indivíduos a uma experiência singular, por- fatos. Não há espaço no presente contexto para
tanto, diretamente antagônica à pluralidade.2 uma explicação essencialista ou universalista.
Esta não teria maior significado no esquema O filósofo, nesse contexto, tem de se tornar
que se estruturasse no eterno. um storyteller, pois não adianta mais partir de
Tudo isso mostra a clara distinção entre uma universalidade dada aprioristicamente,
vida ativa e vida contemplativa, ou seja, entre uma vez que o sentido só emergirá na medi-
um modus vivendi encarnado na vida concreta, da em que o pensamento se debruçar sobre
na teia de relações humanas, e um outro situado os acontecimentos. (AGUIAR, In: BIGNOTTO;
fora disso: JARDIM, 2003, p. 216.). A narração aqui surge
O fator decisivo é que a experiência do como protagonista da compreensão dos even-
eterno, diferentemente da experiência do tos, na busca de entender o que foi vivido, e
imortal, não corresponde a qualquer tipo isso é mais forte do que a busca por conceitos
de atividade nem pode nela ser conver- prontos, aprioristicamente dados.
tida, visto que até mesmo a atividade do Por fim, parece-nos evidente a harmonia
pensamento, que ocorre dentro de uma na conjugação das categorias aqui expostas: a
pessoa através de palavras, é obviamente memória, a narração e a imortalidade. E essa
não apenas inadequada para propiciar harmonia é possível por garantir o espaço público,
tal experiência, mas interromperia e poria isto é, um mundo politicamente organizado. Sendo
a perder a própria experiência. (ARENDT, assim, as ações dos indivíduos podem ser imorta-
2001, p. 29).
lizadas nos seus feitos e garantidas pela narração
Concluímos que a contemplação é a gran- de memórias, em que ser imortal é, sobretudo,
de estrutura de demonstração da experiência possibilitar a vida plural no espaço público. Des-
do eterno, indo de encontro à imortalidade, à se modo, a delimitação do público e do privado
medida que a teoria se apresenta contrária à vem à tona como reforço da ação garantida pela
ação. A descoberta do eterno pelos filósofos os equivalência entre o discurso e a ação.
2
A posição de Hannah Arendt visa a demonstrar o quanto a eternidade é uma categoria alheia aos negócios humanos. O exemplo dado
por Arendt é o da alegoria da caverna onde o Filosofo, tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge
da caverna. Põe-se, assim, em perfeita “singularidade”, nem acompanhado nem seguido de outros. Politicamente falando, se morrer é
o mesmo que “deixar de estar entre os homens”, a experiência do eterno é uma espécie de morte. (ARENDT, 2001, p. 29).
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9. Conclusão _____. Entre o passado e o futuro. 2. ed. Tra-
dução de Mauro W. Barbosa de Almeida. São
Pensar a política é certamente refletir a Paulo: Perspectiva, 1988.
vida humana em seu sentido comum, ou seja, é _____. A dignidade da política.Ensaios e
reflexionar o homem como ser de convívio plu- conferências. 2. ed. Tradução de Helena
ral, onde estar na presença de outros se torna a Martins et aI. Rio de Janeiro: Relume-Du-
pedra de toque para construção do espaço pú- mará, 1993.
blico onde temos garantido o desenvolvimento
da ação e do discurso. _____. Sobre a violência. Tradução de André
O trabalho de Arendt, como teórica e ci- Duarte. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,1994.
dadã, foi o de discutir a respeito da política com _____. Le concept d’amour chez Augustin. Tra-
base na sua própria experiência, mas, sobretudo dução de Anne Sophie Astrup. Paris: Deuxtemps
ensejar a discussão sobre a vida dos homens Tierce, 1991.
como vida a ser formada no cotidiano de cada
local, de cada comunidade, procurando, assim, _____. O que é política. Rio de Janeiro: Bertrand
romper com concepções deterministas e histori- Brasil, 2002.
cistas que não permitem ao homem a ação, de
BIGNOTTO, Newton; JARDIM, Eduardo (Org.).
tal modo que, se não há determinismo histórico,
Diálogos, reflexões e memórias. Belo Horizonte.
providência, “mão invisível” ou sujeito oculto que
Editora UFMG, 2003.
manipule os bastidores, tudo pode ser diferente.
As ações e as palavras podem mudar os rumos da BOBBIO, Norberto et al. Dicionário de política.
história, transformando o mundo em morada dos Brasília: Ed. UnB, 2004.
homens. Aí está o sentido último da dignidade
CORREIA, Adriano (Org.). Transpondo abismos.
humana, a construção e a coparticipação num
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
mundo que seja abrigo e morada para todos.
Este mundo que acolhe o homem como ser MACEDO, André D. O Pensamento à sombra da
plural admite sua singularidade, de modo a assentir ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt.
não ter existindo alguém semelhante antes nem vir São Paulo: Paz e Terra, 2000.
a existir depois. Assim, cada nascimento traz consi-
_____. Hannah Arendt e a modernidade: esque-
go o novo como possibilidade de autoconstrução.
cimento e redescoberta da política. In: COR-
O que há de permanente neste contexto é o espaço
REIA, Adriano (Org.). Transpondo abismos. Rio
público, local da aparência e livre manifestação
de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
dos homens. Aqui emerge a liberdade humana
como expressão da vida; liberdade essa que é o AGUIAR, Odílio A. Pensamento e Narração
sentido da política como vida comum. em Hannah Arendt. In: BIGNOTTO, Newton;
JARDIM, Eduardo (Org.). Diálogos, Refle-
Referências Bibliográficas xões e Memórias. Belo Horizonte. Editora
UFMG. 2003.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. XARÃO, Francisco. Política e liberdade em
Tradução de Roberto Raposo. Rio Janeiro: Fo- Hannah Arendt. Ijuí-Rio Grande do Sul: Ed.
rense Universitária. 2001. UNIJUÍ, 2000.
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