SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 2
Feijoada à
     Minha Moda
     Vinicius de Moraes


     Amiga Helena Sangirardi                                               Tudo picado desde cedo
     Conforme um dia prometi                                               De feição a sempre evitar
     Onde, confesso que esqueci                                            Qualquer contato mais... vulgar
     E embora — perdoe — tão tarde                                         Às nossas nobres mãos de aedo.


     (Melhor do que nunca!) este poeta                                     Enquanto nós, a dar uns toques
     Segundo manda a boa ética                                             No que não nos seja a contento
     Envia-lhe a receita (poética)                                         Vigiaremos o cozimento
     De sua feijoada completa.                                             Tomando o nosso uísque on the rocks


     Em atenção ao adiantado                                               Uma vez cozido o feijão
     Da hora em que abrimos o olho                                         (Umas quatro horas, fogo médio)
     O feijão deve, já catado                                              Nós, bocejando o nosso tédio
     Nos esperar, feliz, de molho                                          Nos chegaremos ao fogão

     E a cozinheira, por respeito                                          E em elegante curvatura:
     À nossa mestria na arte                                               Um pé adiante e o braço às costas
     Já deve ter tacado peito                                              Provaremos a rica negrura
     E preparado e posto à parte                                           Por onde devem boiar postas


     Os elementos componentes                                              De carne-seca suculenta
     De um saboroso refogado                                               Gordos paios, nédio toucinho
     Tais: cebolas, tomates, dentes                                        (Nunca orelhas de bacorinho
     De alho — e o que mais for azado                                      Que a tornam em excesso opulenta!)


      Texto extraído do livro “Nova Antologia Poética de Vinicius de Moraes”, seleção e organização, Antonio Cícero e Eucanaã Ferraz, São
      Paulo, Cia das Letras, Editora Schwarcs Ltda., p., 00.


40                                                                                                                  Textos do Brasil . Nº 13
Vinicius de Moraes © Acervo VM




   E — atenção! — segredo modesto                               Em cuja gordura, de resto
   Mas meu, no tocante à feijoada:                              (Melhor gordura nunca houve!)
   Uma língua fresca pelada                                     Deve depois frigir a couve
   Posta a cozer com todo o resto.                              Picada, em fogo alegre e presto.


   Feito o quê, retire-se o caroço                              Uma farofa? — tem seus dias...
   Bastante, que bem amassado                                   Porém que seja na manteiga!
   Junta-se ao belo refogado                                    A laranja gelada, em fatias
   De modo a ter-se um molho grosso                             (Seleta ou da Bahia) — e chega


   Que vai de volta ao caldeirão                                Só na última cozedura
   No qual o poeta, em bom agouro                               Para levar à mesa, deixa-se
   Deve esparzir folhas de louro                                Cair um pouco da gordura
   Com um gesto clássico e pagão.                               Da lingüiça na iguaria — e mexa-se.

   Inútil dizer que, entrementes                                Que prazer mais um corpo pede
   Em chama à parte desta liça                                  Após comido um tal feijão?
   Devem fritar, todas contentes                                — Evidentemente uma rede
   Lindas rodelas de lingüiça                                   E um gato para passar a mão...


   Enquanto ao lado, em fogo brando                             Dever cumprido. Nunca é vã
   Dismilingüindo-se de gozo                                    A palavra de um poeta...— jamais!
   Deve também se estar fritando                                Abraça-a, em Brillat-Savarin
   O torresminho delicioso                                      O seu Vinicius de Moraes


     Os direitos ao uso do poema foram autorizados pela VM EMPREENDIMENTOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS LTDA, além de: © VM
     e © CIA. DAS LETRAS (EDITORA SCHAWARCZ).


Sabores do Brasil                                                                                                             41

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

Marchinhas de carnaval letras
Marchinhas de carnaval letrasMarchinhas de carnaval letras
Marchinhas de carnaval letrasElvis Live
 
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANO
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANOMARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANO
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANOEscolaSBH
 
Gil vicente auto da barca do inferno
Gil vicente   auto da barca do infernoGil vicente   auto da barca do inferno
Gil vicente auto da barca do infernoTalita Travassos
 
Aula definitiva auto_da_barca
Aula definitiva auto_da_barcaAula definitiva auto_da_barca
Aula definitiva auto_da_barcaguest9fbcf8f
 
Moda de viola volume 3
Moda de viola volume 3Moda de viola volume 3
Moda de viola volume 3Nome Sobrenome
 
Auto da barca do inferno
Auto da barca do infernoAuto da barca do inferno
Auto da barca do infernoFábio Oliveira
 
Primeiro livro de poesia.pdf
Primeiro livro de poesia.pdfPrimeiro livro de poesia.pdf
Primeiro livro de poesia.pdfAna Matias
 
A truta Mocha - 1ª Parte
A truta Mocha - 1ª ParteA truta Mocha - 1ª Parte
A truta Mocha - 1ª Partehcbmelo
 
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António Torrado
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António TorradoSerafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António Torrado
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António TorradoFernanda Sousa
 
Ppt serafim e malacueco
Ppt serafim e malacuecoPpt serafim e malacueco
Ppt serafim e malacuecoMaria Ferreira
 

Mais procurados (20)

Marchinhas de carnaval letras
Marchinhas de carnaval letrasMarchinhas de carnaval letras
Marchinhas de carnaval letras
 
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANO
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANOMARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANO
MARCHINHAS CARNAVALESCAS 5º ANO
 
Gil vicente auto da barca do inferno
Gil vicente   auto da barca do infernoGil vicente   auto da barca do inferno
Gil vicente auto da barca do inferno
 
A poesia e a música
A poesia e a músicaA poesia e a música
A poesia e a música
 
Aula definitiva auto_da_barca
Aula definitiva auto_da_barcaAula definitiva auto_da_barca
Aula definitiva auto_da_barca
 
AUTO DA BARCA DO INFERNO
AUTO DA BARCA DO INFERNOAUTO DA BARCA DO INFERNO
AUTO DA BARCA DO INFERNO
 
Aula definitiva-auto-da-barca
Aula definitiva-auto-da-barcaAula definitiva-auto-da-barca
Aula definitiva-auto-da-barca
 
Abi personagens tipo bom
Abi personagens tipo bomAbi personagens tipo bom
Abi personagens tipo bom
 
Moda de viola volume 3
Moda de viola volume 3Moda de viola volume 3
Moda de viola volume 3
 
76
7676
76
 
Auto da barca do inferno
Auto da barca do infernoAuto da barca do inferno
Auto da barca do inferno
 
Auto Da Barca
Auto Da BarcaAuto Da Barca
Auto Da Barca
 
Primeiro livro de poesia.pdf
Primeiro livro de poesia.pdfPrimeiro livro de poesia.pdf
Primeiro livro de poesia.pdf
 
Dorival caymmi
Dorival caymmiDorival caymmi
Dorival caymmi
 
A truta Mocha - 1ª Parte
A truta Mocha - 1ª ParteA truta Mocha - 1ª Parte
A truta Mocha - 1ª Parte
 
KitKatClub, Berlin
KitKatClub, BerlinKitKatClub, Berlin
KitKatClub, Berlin
 
GuiãO
GuiãOGuiãO
GuiãO
 
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António Torrado
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António TorradoSerafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António Torrado
Serafim e Malacueco na Corte do Rei Escama de António Torrado
 
Gozíadas
GozíadasGozíadas
Gozíadas
 
Ppt serafim e malacueco
Ppt serafim e malacuecoPpt serafim e malacueco
Ppt serafim e malacueco
 

Mais de quituteira quitutes

Receita Pudim De Mandioca E Torta Garotada
Receita Pudim De Mandioca E Torta GarotadaReceita Pudim De Mandioca E Torta Garotada
Receita Pudim De Mandioca E Torta Garotadaquituteira quitutes
 
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassis
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com CassisReceita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassis
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassisquituteira quitutes
 
Receita Bife à Milanesa Recheado
Receita Bife à Milanesa RecheadoReceita Bife à Milanesa Recheado
Receita Bife à Milanesa Recheadoquituteira quitutes
 
Livro De Receitas Cocina Melhores Receitas
Livro De  Receitas  Cocina  Melhores  ReceitasLivro De  Receitas  Cocina  Melhores  Receitas
Livro De Receitas Cocina Melhores Receitasquituteira quitutes
 
Guia De Alimentos Naturais Vale Das Flores
Guia De Alimentos Naturais Vale Das FloresGuia De Alimentos Naturais Vale Das Flores
Guia De Alimentos Naturais Vale Das Floresquituteira quitutes
 
Frutas E Legumes Alimentos Poderosos
Frutas E Legumes Alimentos PoderososFrutas E Legumes Alimentos Poderosos
Frutas E Legumes Alimentos Poderososquituteira quitutes
 
Receitas E Dicas Colonial Med Spa
Receitas E Dicas Colonial Med SpaReceitas E Dicas Colonial Med Spa
Receitas E Dicas Colonial Med Spaquituteira quitutes
 

Mais de quituteira quitutes (20)

Receitas Soja
Receitas SojaReceitas Soja
Receitas Soja
 
Receitas Drinks
Receitas DrinksReceitas Drinks
Receitas Drinks
 
Receita Pudim De Mandioca E Torta Garotada
Receita Pudim De Mandioca E Torta GarotadaReceita Pudim De Mandioca E Torta Garotada
Receita Pudim De Mandioca E Torta Garotada
 
Receita GeléIa De Jabuticaba
Receita GeléIa De JabuticabaReceita GeléIa De Jabuticaba
Receita GeléIa De Jabuticaba
 
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassis
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com CassisReceita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassis
Receita Crepes Ao Creme De Goiaba Com Cassis
 
Receita Costela Poncho Verde
Receita Costela Poncho VerdeReceita Costela Poncho Verde
Receita Costela Poncho Verde
 
Receita Bife à Milanesa Recheado
Receita Bife à Milanesa RecheadoReceita Bife à Milanesa Recheado
Receita Bife à Milanesa Recheado
 
Livro De Receitas Naturais 02
Livro De Receitas Naturais 02Livro De Receitas Naturais 02
Livro De Receitas Naturais 02
 
Livro De Receitas Mundiais 02
Livro De Receitas Mundiais 02Livro De Receitas Mundiais 02
Livro De Receitas Mundiais 02
 
Comida Mineira
Comida MineiraComida Mineira
Comida Mineira
 
Receitas Walita
Receitas WalitaReceitas Walita
Receitas Walita
 
Receitas Holiday Christmas
Receitas  Holiday  ChristmasReceitas  Holiday  Christmas
Receitas Holiday Christmas
 
Livro De Receitas Cocina Melhores Receitas
Livro De  Receitas  Cocina  Melhores  ReceitasLivro De  Receitas  Cocina  Melhores  Receitas
Livro De Receitas Cocina Melhores Receitas
 
Receitas Chocolate Orkut
Receitas Chocolate OrkutReceitas Chocolate Orkut
Receitas Chocolate Orkut
 
Guia De Alimentos Naturais Vale Das Flores
Guia De Alimentos Naturais Vale Das FloresGuia De Alimentos Naturais Vale Das Flores
Guia De Alimentos Naturais Vale Das Flores
 
Frutas E Legumes Alimentos Poderosos
Frutas E Legumes Alimentos PoderososFrutas E Legumes Alimentos Poderosos
Frutas E Legumes Alimentos Poderosos
 
Receita Bolo De Iogurte
Receita Bolo De IogurteReceita Bolo De Iogurte
Receita Bolo De Iogurte
 
LinhaçA
LinhaçALinhaçA
LinhaçA
 
Receitas E Dicas Colonial Med Spa
Receitas E Dicas Colonial Med SpaReceitas E Dicas Colonial Med Spa
Receitas E Dicas Colonial Med Spa
 
Menu Chef Vol 20
Menu Chef Vol 20Menu Chef Vol 20
Menu Chef Vol 20
 

Receita poética de feijoada à moda de Vinicius de Moraes

  • 1. Feijoada à Minha Moda Vinicius de Moraes Amiga Helena Sangirardi Tudo picado desde cedo Conforme um dia prometi De feição a sempre evitar Onde, confesso que esqueci Qualquer contato mais... vulgar E embora — perdoe — tão tarde Às nossas nobres mãos de aedo. (Melhor do que nunca!) este poeta Enquanto nós, a dar uns toques Segundo manda a boa ética No que não nos seja a contento Envia-lhe a receita (poética) Vigiaremos o cozimento De sua feijoada completa. Tomando o nosso uísque on the rocks Em atenção ao adiantado Uma vez cozido o feijão Da hora em que abrimos o olho (Umas quatro horas, fogo médio) O feijão deve, já catado Nós, bocejando o nosso tédio Nos esperar, feliz, de molho Nos chegaremos ao fogão E a cozinheira, por respeito E em elegante curvatura: À nossa mestria na arte Um pé adiante e o braço às costas Já deve ter tacado peito Provaremos a rica negrura E preparado e posto à parte Por onde devem boiar postas Os elementos componentes De carne-seca suculenta De um saboroso refogado Gordos paios, nédio toucinho Tais: cebolas, tomates, dentes (Nunca orelhas de bacorinho De alho — e o que mais for azado Que a tornam em excesso opulenta!) Texto extraído do livro “Nova Antologia Poética de Vinicius de Moraes”, seleção e organização, Antonio Cícero e Eucanaã Ferraz, São Paulo, Cia das Letras, Editora Schwarcs Ltda., p., 00. 40 Textos do Brasil . Nº 13
  • 2. Vinicius de Moraes © Acervo VM E — atenção! — segredo modesto Em cuja gordura, de resto Mas meu, no tocante à feijoada: (Melhor gordura nunca houve!) Uma língua fresca pelada Deve depois frigir a couve Posta a cozer com todo o resto. Picada, em fogo alegre e presto. Feito o quê, retire-se o caroço Uma farofa? — tem seus dias... Bastante, que bem amassado Porém que seja na manteiga! Junta-se ao belo refogado A laranja gelada, em fatias De modo a ter-se um molho grosso (Seleta ou da Bahia) — e chega Que vai de volta ao caldeirão Só na última cozedura No qual o poeta, em bom agouro Para levar à mesa, deixa-se Deve esparzir folhas de louro Cair um pouco da gordura Com um gesto clássico e pagão. Da lingüiça na iguaria — e mexa-se. Inútil dizer que, entrementes Que prazer mais um corpo pede Em chama à parte desta liça Após comido um tal feijão? Devem fritar, todas contentes — Evidentemente uma rede Lindas rodelas de lingüiça E um gato para passar a mão... Enquanto ao lado, em fogo brando Dever cumprido. Nunca é vã Dismilingüindo-se de gozo A palavra de um poeta...— jamais! Deve também se estar fritando Abraça-a, em Brillat-Savarin O torresminho delicioso O seu Vinicius de Moraes Os direitos ao uso do poema foram autorizados pela VM EMPREENDIMENTOS ARTÍSTICOS E CULTURAIS LTDA, além de: © VM e © CIA. DAS LETRAS (EDITORA SCHAWARCZ). Sabores do Brasil 41