2. A poesia
&a
Pintura da capa de
música
Isabel Jover
3. Senhor poeta
Música: Zeca
Afonso
Letra: Manuel
Alegre
Intérprete: Zeca
Afonso
Soltam as velas,
Meu amor é marinheiro, Vamos largar,
E mora no alto mar, Caem cometas,
Seus braços são como o No alto mar.
vento,
Ninguém o pode amarrar.
Senhor poeta,
Vamos dançar,
Caem cometas,
No alto mar.
Cavalgam Zebras,
Voam duendes,
Atiram pedras,
Arrancam dentes.
Senhor poeta...
4. foi marinheiro
maltês ganhão
foi prisioneiro
mas servo não
Pensamento
Música: Adriano Correia de
Oliveira; António Portugal
Letra: Manuel Alegre
Intérprete: Adriano Correia de
Oliveira
Meu pensamento E os reis mandaram
partiu no vento fazer muralhas
podem prendê-lo tecer as malhas
matá-lo não de negras leis
homens morreram
Meu pensamento estátuas ao vento
quebrou amarras por ti morreram
partiu no vento meu pensamento
deixou guitarras
meu pensamento
por onde passa
estátua de vento
em cada praça
Foi à onquista
de um novo mundo
foi vagabundo
contrbandista
5. as mãos que vês nas coisas
transformadas.
As mãos Folhas que vão no vento:
Música: Adriano Correia
de Oliveira
Letra: Manuel Alegre
Intérprete: A. Correia de
Oliveira
Com mãos se faz a paz se faz a verdes harpas.
guerra.
Com mãos tudo se faz e se De mãos é cada flor, cada
desfaz. cidade.
Com mãos se faz o poema - e Ninguém pode vencer estas
são de terra. espadas:
Com mãos se faz a guerra - e nas tuas mãos começa a
são a paz. liberdade
Com mãos se rasga o mar.
Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas
casas, mas
de mãos. E estão no fruto e na
palavra
as mãos que são o canto e são
as armas.
E cravam-se no tempo como
farpas
6. Abre-te bem nos meus ombros
Vira costas à saudade
Capa negra, rosa negra
Bandeira de liberdade.
Eu sou livre como as aves
E passo a vida a cantar
Coração que nasceu livre
Não se pode acorrentar.
Capa negra,rosa
negra
Música: António
Portugal; Adriano
Correia de Oliveira
Letra: Manuel
Alegre
Fado de Coimbra
Capa negra, rosa negra
Rosa negra sem roseira
Abre-te bem nos meus ombros
Como o vento numa bandeira.
7. Canto o teu olhar maduro,
teu sorriso puro,
a tua graça animal.
Canto porque sou homem.
Se não cantasse seria
mesmo bicho sadio
embriagado na alegria
da tua vinha sem vinho.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo
estremece
ao vê-los nus e suados.
Não canto
porque sonho
Música: Fausto; A.
P. Braga
Letra: Eugénio de
Andrade
Intérprete: Fausto
Não canto porque sonho.
Canto porque és real.
8. Intérprete: Vitorino
Nem sombra nem luz
nem sopro de estrela
nem corpinhos nus
de anjos à janela
nem asas de pombos
nem algas no fundo
nem olhos redondos
espantados do mundo
nem vozes na ilha
nem chuva lá fora
dorme minha filha
que eu não vou embora
Canção para a
minha filha
Isabel
adormecer
quando tiver
medo do escuro
Música: Vitorino
Letra: Lobo Antunes
9. Intérprete: Manuel
Freire
Aqui, na Terra, a fome
continua,
A miséria, o luto, e outra vez a
fome.
Acendemos cigarros em fogos
de napalme
E dizemos amor sem saber o
que seja.
Mas fizemos de ti a prova da
riqueza,
Ou talvez da pobreza, e da
fome outra vez.
E pusemos em ti nem eu sei
que desejo
De mais alto que nós, e melhor
Fala do Velho do e mais puro.
Restelo ao No jornal soletramos, de olhos
astronauta tensos,
Música: Manuel Maravilhas de espaço e de
Freire
Letra: José
Saramago
10. Letra: Jorge de Sena
vertigem: Intérprete: Zeca
Salgados oceanos que Afonso
circundam
Ilhas mortas de sede, onde não Roubam-me Deus
chove. Outros o diabo
Quem cantarei
Mas o mundo, astronauta, é
boa mesa Roubam-me a Pátria
(E as bombas de napalme são e a humanidade
outros ma roubam
brinquedos),
Quem cantarei
Onde come, brincando, só a
fome, Sempre há quem roube
Só a fome, astronauta, só a Quem eu deseje
fome, E de mim mesmo
Todos me roubam
Quem cantarei
Quem cantarei
Roubam-me Deus
Outros o diabo
Quem cantarei
Epígrafe para a arte
de Furtar (roubam-
me Deus)
Música: Zeca
Afonso
11. Música: Suzana
Ralha
Roubam-me a Pátria Letra: Luísa Ducla
e a humanidade Soares
outros ma roubam Intérprete: Bando
Quem cantarei dos Gambozinos
Ser um rapaz com juízo?
Roubam-me a voz Ah, isso não é preciso!
quando me calo
ou o silêncio É tão bom ser diabrete,
mesmo se falo pintar de verde o tapete.
É tão bom ser um mauzão,
Aqui d'El Rei. deitar pimenta no pão.
É tão bom ser um pirata,
puxar o rabo da gata.
É tão bom ser um traquinas,
despentear as meninas.
É tão bom ser um travesso,
vestir tudo do avesso.
É tão bom ser um marau,
pôr no lixo o bacalhau.
É tão bom ser desastrado,
cair no lago calçado.
É tão bom ser malandrão,
roer os ossos do cão.
É tão bom não É tão bom ser um maroto,
pôr no prato um gafanhoto.
ter juízo!
12. Música: Alain
Oulman
Letra: Alexandre
O'Neill
Intérprete:The Gift
Se uma gaivota viesse
Tão bom ser insuportável, trazer-me o céu de Lisboa
pisar um senhor notável. no desenho que fizesse,
Ser sempre inconveniente, nesse céu onde o olhar
ao careca dar um pente. é uma asa que não voa,
É tão bom ser mau, mau, mau, esmorece e cai no mar.
Soltar na aula um lacrau.
Que perfeito coração
O pior é quando a mãe no meu peito bateria,
resolve ser má também. meu amor na tua mão,
nessa mão onde cabia
perfeito o meu coração.
Se um português marinheiro,
dos sete mares andarilho,
fosse quem sabe o primeiro
a contar-me o que inventasse,
se um olhar de novo brilho
no meu olhar se enlaçasse.
Que perfeito coração
no meu peito bateria,
meu amor na tua mão,
Gaivota
13. nessa mão onde cabia Música: Sérgio
perfeito o meu coração. Godinho
Letra: Alexandre
Se ao dizer adeus à vida O'Neill
as aves todas do céu, Intérprete: Sérgio
me dessem na despedida Godinho
o teu olhar derradeiro, põe a mesa
esse olhar que era só teu, come à mesa
amor que foste o primeiro. levanta a mesa
trabalha à mesa
Que perfeito coração
no meu peito morreria, desmanivela-a
meu amor na tua mão, desce
nessa mão onde perfeito é cama
bateu o meu coração.
faz a cama
abre a cama
brinca na cama
dorme na cama
desmanivela-a
desce mais
é caixão
entaipa o caixão
forra o caixão
A mesa entra no caixão
fecha o caixão
14. Pedra filosofal
Música: Manuel
Freire
Letra:
AntónioGedeão
era a brincar Intérprete: Manuel
era a brincar Freire
manivela-o Eles não sabem que o sonho
sobe é uma constante da vida
é cama tão concreta e definida
como outra coisa qualquer
manivela-o
sobe como esta pedra cinzenta
é mesa em que me sento e descanso
como este ribeiro manso
põe os cotovelos na mesa em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam
como estas árvores que gritam
em bebedeiras de azul
eles não sabem que sonho
é vinho, é espuma, é fermento
15. pára-raios, locomotiva
barco de proa festiva
alto-forno, geradora
bichinho alacre e sedento cisão do átomo, radar
de focinho pontiagudo ultra-som, televisão
que fuça através de tudo desembarque em foguetão
no perpétuo movimento na superfície lunar
Eles não sabem que o sonho Eles não sabem nem sonham
é tela é cor é pincel que o sonho comanda a vida
base, fuste ou capitel e que sempre que o homem
arco em ogiva, vitral sonha
o mundo pula e avança
Pináculo de catedral como bola colorida
contraponto, sinfonia entre as mãos duma criança
máscara grega, magia
que é retorta de alquimista
mapa do mundo distante
Rosa dos Ventos Infante
caravela quinhentista
que é cabo da Boa-Esperança
Ouro, canela, marfim
florete de espadachim
bastidor, passo de dança
Columbina e Arlequim
passarola voadora
16. Música: José Niza
Letra: António
Gedeão
Intérprete: Duarte
Mendes
Todo o tempo é de poesia
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia
Todo o tempo é de poesia
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue
soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Tempo de Poesia
17. Música: José Niza
Letra: António
Gedeão
Intérprete: Carlos
Mendes
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação ao caos Filipe II
à confusão da harmonia. tinha um colar de oiro
tinha um colar de oiro
com pedras rubis.
Cingia a cintura
com cinto de coiro,
com fivela de oiro,
olho de perdiz
Comia num prato
de prata lavrada
girafa trufada,
rissóis de serpente.
O copo era um gomo
que em flor desabrocha,
de cristal de rocha
do mais transparente.
Andava nas salas
forradas de Arrás,
Poema do fecho com panos por cima,
éclair pela frente e por trás.
18. Tinha tudo, tudo
sem peso nem conta,
bragas de veludo,
peliças de lontra.
Um homem tão grande
tem tudo o que quer.
Tapetes flamengos, O que ele não tinha
combates de galos, era um fecho éclair
alões e podengos,
falcões e cavalos.
Dormia na cama
de prata maciça
com dossel de lhama
de franja roliça.
Na mesa do canto
vermelho damasco
a tíbia de um santo
guardada num frasco.
Foi dono da terra,
foi senhor do mundo,
nada lhe faltava,
Filipe Segundo.
Tinha oiro e prata,
pedras nunca vistas,
safira, topázios,
rubis, ametistas.
19. Estrela da
Manhã
Música: José Niza
Letra: António
Gedeão
Intérprete: José
Niza
Numa qualquer manhã, um
qualquer ser,
vindo de qualquer pai,
acorda e vai.
Vai.
Como se cumprisse um dever.
Nas incógnitas mãos
transporta os nossos gestos;
nas inquietas pupilas fermenta
o nosso olhar.
E em seu impessoal desejo
latejam todos os restos
de quantos desejos ficaram
antes por desejar.
Abre os olhos e vai.
Vai descobrir as velas dos
20. moinhos Vai
e as rodas que os eixos
Segue o teu meridiano, esse,
o que divide ao meio teus
hemisférios cerebrais;
o plano de barro que nunca
endurece,
onde a memória da espécie
grava os sonos imortais.
movem, Vai
o tear que tece o linho,
a espuma roxa dos vinhos, Lábios húmidos do amor da
incêndio na face jovem.
Cego, vê, de olhos abertos.
Sozinho, a multidão vai com manhã,
ele. polpas de cereja.
Bagas de instintos despertos Desdobra-te e beija
ressuma-lhe à flor da pele. em ti mesmo a carne sã.
Vai, belo monstro. Vai
Arranca
as florestas com os teus À tua cega passagem
dentes. a convulsão da folhagem
Imprime na areia branca diz aos ecos
teus voluntariosos pés «tem que ser».
incandescentes.
O mar que rola e se agita,
21. toda a música infinita,
tudo grita
«tem que ser».
Cerra os dentes, alma aflita. Lágrima de
Tudo grita
«Tem que ser». preta
Música: José Niza
Letra: António
Gedeão
Intérprete: Manuel
Freire
Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado
Olhei-a de um lado
do outro e de frente
tinha um ar de gota
muito transparente
Mandei vir os ácidos
as bases e os sais
as drogas usadas
22. em casos que tais
Ensaiei a frio
experimentei ao lume
Ser Poeta
(Perdidamente)
Música: João Gil
Letra: Florbela
Espanca
Intérprete: Trovante
de todas as vezes
Ser poeta é ser mais alto, é
deu-me o qu'é costume
ser maior
Do que os homens! Morder
Nem sinais de negro
como quem beija!
nem vestígios de ódio
É ser mendigo e dar como
água (quase tudo)
quem seja
e cloreto de sódio
Rei do Reino de Áquem e de
Além Dor!
É ter de mil desejos o
esplendor
E não saber sequer que se
deseja!
É ter cá dentro um astro que
flameja,
É ter garras e asas de condor!
É ter fome, é ter sede de
23. Infinito!
Por elmo, as manhas de oiro e
de cetim...
Queixa das
almas jovens
censuradas
Música: José Mário
Branco
É condensar o mundo num só Letra: Natália
grito!
Correia
E é amar-te, assim,
Intérprete: José
perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida
Mário Branco
em mim Dão-nos um lírio e um canivete
E dize-lo cantando a toda a e uma alma para ir à escola
gente! mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um
calendário
onde não vem a nossa idade
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa
ausência.
24. Dão-nos um prémio de ser que adormecemos no seu
assim ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um
espelho
pra pentearmos um macaco
sem pecado e sem inocência
Dão-nos um cravo preso à
Dão-nos um barco e um
cabeça
chapéu
e uma cabeça presa à cintura
para tirarmos o retrato
para que o corpo não pareça
Dão-nos bilhetes para o céu
a forma da alma que o procura
levado à cena num teatro
Dão-nos um esquife feito de
Penteiam-nos os crânios
ferro
ermos
com embutidos de diamante
com as cabeleiras das avós
para organizar já o enterro
para jamais nos parecermos
do nosso corpo mais adiante
connosco quando estamos sós
Dão-nos um bolo que é a
história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo
Temos fantasmas tão educados
25. Verdes são os
campos
Música: Zeca
Afonso
Letra: Camões
Intérprete: Zeca
Afonso
Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.
Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.
Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
26. São graças dos olhos
Do meu coração. Endechas a
Bárbara escrava
(aquela cativa)
Música: Zeca
Afonso
Letra: Camões
Intérprete: Zeca
Afonso
Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que para meus olhos
Fosse mais fermosa.
Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
27. Mas não dematar. É força que viva.
Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião Porque
Que os louros são belos.
Música: Francisco
Pretidão de Amor, Fanhais
Tão doce a figura, Letra: Sofia de Melo
Que a neve lhe jura Breyner
Que trocara a cor.
Intérprete:
Leda mansidão,
Francisco Fanhais
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha, Porque os outros se mascaram
Mas bárbara não. mas tu não
Presença serena Porque os outros usam a
Que a tormenta amansa; virtude
Nela, enfim, descansa Para comprar o que não tem
Toda a minha pena. perdão
Esta é a cativa Porque os outros têm medo
Que me tem cativo; mas tu não
E pois nela vivo,
Porque os outros são os
túmulos caiados
Onde germina calada a
podridão.
28. Porque os outros se calam
mas tu não.
Porque os outros se compram
e se vendem
E os seus gestos dão sempre
dividendo.
Porque os outros são hábeis
mas tu não.
Libertação
Porque os outros vão à Música: Santos
sombra dos abrigos Moreira
E tu vais de mãos dadas com Letra: David
os perigos. Mourão-Ferreira
Porque os outros calculam Intérprete: Amália
mas tu não Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.
Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
29. de repente uma suspeita.
Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.
Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.
Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Barco negro
Música: Caco Velho,
Piratini
Letra: David
Mourão-Ferreira
Intérprete: Amália
Longe daqui, onde queiras, Rodrigues
a vida será maior.
De manhã, que medo, que me
Nem as esp'ranças do céu achasses feia!
me conseguem demover
Este amor é teu e meu: Acordei, tremendo, deitada
só na terra o queremos ter. n'areia
30. Mas logo os teus olhos
disseram que não,
E o sol penetrou no meu
coração.
Me diz qu'estás sempre
Vi depois, numa rocha, uma comigo.
cruz,
No vento que lança areia nos
E o teu barco negro dançava vidros;
na luz Na água que canta, no fogo
mortiço;
Vi teu braço acenando, entre No calor do leito, nos bancos
as velas já soltas vazios;
Dentro do meu peito, estás
Dizem as velhas da praia, que sempre comigo
não voltas:
São loucas! São loucas!
Eu sei, meu amor,
Que nem chegaste a partir,
Pois tudo, em meu redor,
31. O menino da sua E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
mãe
Música: Mafalda
Veiga
Letra: Fernando
Pessoa
Intérprete: Mafalda
Veiga
No plaino abandonado
De outra algibeira, alada
Que a morna brisa aquece,
Ponta a roçar o solo,
De balas trespassado
A brancura embainhada
Duas, de lado a lado,
De um lenço… deu-lho a criada
Jaz morto, e arrefece.
Velha que o trouxe ao colo.
Raia-lhe a farda o sangue
Lá longe, em casa, há a prece:
Alvo, louro, exangue, “Que volte cedo, e bem!”
Fita com olhar langue (Malhas que o Império tece!)
E cego os céus perdidos. Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho unico, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
32. Tem o som de repetida
Por mais que me tanjas perto
Quando passo sempre errante
És para mim como um sonho
Soas-me na alma distante
A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto
Sinto mais longe o passado
Sinto a saudade mais perto
O sino da minha
aldeia
Música: Roberto
Mendes
Letra: Fernando
Pessoa
Intérprete: Maria
Bethânia
Ó sino da minha aldeia
Dolente na tarde calma
Cada tua badalada
Soa dentro de minh'alma
e é tão lento o teu soar
Tão como triste da vida
Que já a primeira pancada
33. Deus quer, o homem sonha, a
obra nasce
Deus quis que a Terra fosse
toda uma
Que o mar unisse, já não
separasse
Sagrou-te e foste desvendando
a espuma
E a orla branca foi
De ilha em continente
Clareou correndo até ao fim do
mundo
E viu-se a terra inteira, de
repente
Surgiu redonda do azul
profundo
Quem te sagrou, criou-te
português
O Infante Do mar e nós em ti nos deu
sinal
Música: Dulce
Pontes
Letra: Fernando
Pessoa
Intérprete: Dulce
Pontes
34. Cumpriu-se o mar e o império Intérprete: Lua
se desfez Extravagante
Senhor, falta cumprir-se O tempo que hei sonhado
Portugal quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
foi só a vida mentida
de um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
figura, anónimo e frio,
a vida vivida em vão.
A'spr'ança que pouco alcança!
que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
sobe mais que a minha
'spr'ança,
rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
que não sois ondas sequer,
Fado Pessoa horas, dias, anos, breves
passam - verduras ou neves
Música: Vitorino
Letra: Fernando
Pessoa
35. que cerquei com um andaime
a casa por fabricar.
que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou,
a ilusão, que me mantinha,
só no palco era rainha:
despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
gulosas da margem ida,
que lembranças sonolentas
de esperanças nevoentas!
Que sonhos, o sonho e a vida!
Som morto das águas mansas
que correm por ter que ser,
leva não só as lembranças,
mas as mortas esperanças
mortas, porque hão-de morrer.
Ondas passadas, levai-me
para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me
36. Música: Zeca
Afonso
Letra: Fernando
Pessoa
Intérprete: Zeca
Afonso
No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada.
Uns por verem rir os outros
E outros sem ser por nada
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...
No comboio descendente
Vinham todos à janela
Uns calados para os outros
E outros a dar-lhes trela
No comboio descendente
De Cruz Quebrada a Palmela...
No comboio descendente
Mas que grande reinação!
Uns dormnindo, outros com
sono,
Comboio E outros nem sim nem não
Descendente No comboio descendente
De Palmela a Portimão