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Baile do Interior
Pio Rambo

CONTOS
Balneário Vale-Tudo
Baile do Interior
Incertezas
Problemas em Família

1
CONTOS

PIO RAMBO

BAILE DO INTERIOR

Gráfica:

2
PK PRODUÇÕES
2008

Digitação: Pio Rambo
Formatação: Silvana Alff
Fotocomposição: Paulo Klein
Impressão: Paulo Klein
Revisão: Renato Klein
Revisão Final: Roberto Stürmer
Capa e Ilustrações: Clóvis Rambo

3
IMPRESSÃO:

PK PRODUÇÕES
Rua Willi Klein, 964
Morada do Vale
95760-000 São Sebastião do Caí – RS
Telefone: (51) 3635 2112

4
Dedico este livro à Berenice
minha esposa, ao Wagner e ao
Guilherme, que com sua
compreensão e tolerância me
ajudaram na criação desta obra.
Dedico este livro também à
juventude maravilhosa que tive,
da qual surgiu a inspiração
para escrever estes contos.

AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus o dom de passar para o papel as vivências que nos cercam. Agradeço aos meus pais (in memoriam) o
seu esforço e empenho para que eu tivesse formação escolar.
Agradeço ao Renato Klein por ter me incentivado a ir
adiante com este projeto.
Agradeço ao Paulo Klein o estímulo e o voto de confiança
dados para que esta minha primeira obra fosse editada.
Agradeço ao Clóvis, meu irmão, pelas lindas ilustrações
e a bela capa produzidas em momento de grande inspiração.

5
Agradeço a revisão crítica e cuidadosa feita pelo
Roberto Stürmer para deixarmos este livro com a menor margem
de erros possível.

APRESENTAÇÃO:

6
INTRODUÇÃO
Através destes quatro contos procurei recriar fatos
comuns que acontecem no interior, em cidades pequenas como a
nossa São Sebastião do Caí.
As duas primeiras estórias são leves, bem humoradas,
retratando os acontecimentos (todos fictícios), com simplória
naturalidade.
7
Já os dois últimos contos, na primeira pessoa, invadem
um pouco mais o sentimento humano, fatos que podem acontecer
com qualquer pessoa após sua adolescência buscando a
compreensão do confronto entre o indivíduo e a realidade que
o cerca principalmente nas dúvidas do amor.
São Sebastião do Caí, 16 de Agosto de 2008.
O autor.

8
SUMÁRIO
CONTOS:
1
2
3
4

–
–
–
–

PÁGINA:

Balneário Vale-Tudo
Baile do Interior
Incertezas
Problemas em Família

9
BALNEÁRIO VALE-TUDO

10
É, este título não está aí só para cativar tua leitura
(ou quase), mas realmente acontecem coisas incríveis e
inacreditáveis lá. Diria que até parecem mentiras.
Um dia, desses chove-não-chove (só sei que o céu estava
a fim de fazer pipi toda hora), eu estava enjoado de ficar em
casa contando o tempo que passava sem fazer nada, decidi ir
ao bar e levantar um pouco o teor alcoólico do meu corpo com
uma cerveja.
Quando cheguei lá, foi só sentar e já dei de cara com o
“Bafudo”. Na mesma hora desisti de acender o cigarro que já
prendia entre os dentes... Por quê? Ora, ainda perguntas? O
Bafudo não leva à toa este apelido. O exalar de seus pulmões
não parece mais ser gás carbônico. Ele é uma verdadeira
destilaria ambulante e o que sai de sua boca é vapor de
álcool e eu não estava a fim de provocar uma explosão. Ainda
mais naquele bar, que por enquanto está anônimo, porque o
nome do registro não foi aceito. Iria se chamar de Bar BumBum.
O garçom demorou tanto tempo para trazer a cerveja que
até já havia perdido a vontade em bebê-la. Sorvi um gole.
Olhei ao meu redor, nada de Bafudo. Acendi um cigarro,
segurei o coração, esperei um “bum”, mas nada. Tomei mais um
gole, mais uma tragada, de repente senti o ar etílico. Era
Bafudo que voltava da privada. Cruzei todos os dedos que
tenho mas não adiantou: Bafudo veio sentar-se a minha mesa.
Ele pousou um cotovelo na mesa, e o outro, da ponta da mesa
escorregou, vindo a fixar-se na sua perna. Ficou feito um
cabide pendurado no armário com a calça toda encolhidinha
para um lado; olhos vermelhos que transmitiam vigilias de
mais de mês;
cabelo alinhado como galhos de plátano. A
barba, pelo que demonstrava, não via a loira da gilete há
dias. Esboçou um sorriso semi-cerrado enquanto levantava uma
sobrancelha. Vi que os poucos dentes que lhe restavam nunca
tiveram o carinho de uma escova e que o sabor do creme dental
ainda não fora computado em seu paladar.
Neste ínterim, seus olhos já denotando um certo grau de
catarata, começaram a brilhar lucifericamente (nem sei se
este termo existe). Levantou a outra sobrancelha e eu me
encolhi o quanto pude. Bafudo falou:

11
- Hic, ... tu qué vê coisa... hã, ...bonita? – baixou a
cabeça balançando-a num vai-vem. E, mexendo o indicador da
mão direita desconcertado, concluiu: - Coisa bonnnita!
Não respondi, pois aquela pergunta me pegou de surpresa.
Fiquei curioso: que coisa bonita um bêbado como o Bafudo
podia me apresentar? Enquanto pensava, o indicador de sua mão
direita continuou balançando, agora traçando no ar um Ou-vêou-vai todo mole, fora do ritmo. Vi que ele queria dizer-me
mais alguma coisa. Fiquei aguardando. Mas, o estado etílico
do Bafudo estava muito além do ponto de ele poder raciocinar.
Enquanto esperava o desfechar do pensamento dele, sem
mais sem menos, surgiu a nossa frente o Aristides. É
conhecido como o “inteligente” só porque usa óculos para
miopia. E, convencido como em mil outras vezes, já saiu
profetizando:
- Ou um não vai com a cara do outro, ou vocês dois se
entendem tão bem que nem precisam mais falar para trocarem
idéias.
Aquilo me picou: onde ele teria arranjado aquela segunda
hipótise tão pamonha? Ainda bem que meu punho não responde às
primeiras ordens do meu cérebro, senão já teria aumentado a
sua conta no dentista. E o Aristides:
- Qual é o problema?
E o Bafudo:
- Probbbbb... ...lema?
- Sim, qual é o problema?
Bafudo meneando a cabeça, olhando para o nada no chão,
respondeu:
- O probbbbblema é o pro...blema! Beba um pouco e o
pro...blema será só o p...roblema.
Com esta saída, não aguentei; deixei o Bafudo com sua
combustosa atmosfera e chamei Aristides para um canto:
- Já ouviste falar de alguma coisa bonita que um bêbado
possa mostrar?
- Nunca! – Respondeu-me ele. – Como é que um bêbado vai
ter algo bonito para mostrar? Mas, se ele tem algum segredo,
que tal tentarmos arrancar dele deixando-o mais bêbado?
- Hum... a idéia não é má! Deixa eu ver... Já sei! Vamos
pagar um martelinho para o Bafudo. Quem sabe, ele não se abre
pra gente!
- Vamos!

*************

12
Pago o quinto martelinho. O bebum nada revelou.
Desistimos.
Resolvi segui-lo no dia em que estivesse lúcido.
Decepção: Bafudo só está lúcido – ou quase – qando vai à
Missa nos domingos de manhã.
E agora? O triste é que eu sou tremendamente curioso e
acredito neste provérbio: “crianças e bêbados nunca mentem”.
Sucedeu-se que eu fui me tornando amigo de Bafudo e, com
o azar dos diabos, quanto mais amigo ficava, mais descia o
meu conceituado e nobre nome. E de tanto que enchi sobre
aquela “coisa bonita”, ele resolveu fazer greve das palavras
“coisa” e “bonita”.
Mas não desisti; ora, meus olhos tinham que desfrutar, e
desfrutar muito bem essa “coisa bonita” depois de todas
aquelas horas de sono de etílica perdição! E todo o dinheiro
gasto em martelinhos? E aquele bafo de guarapa amanhecida com
o qual tive conviver horas e horas, ouvindo falar sobre os
antepassados da quinta geração, os quais compraram as terras
atrás do rio com meia dúzia de patacas?

***********

Domingo. O sol estava tão quente e faiscante que até os
tanques de água estavam sujeitos a se desidratarem. De tanta
água que já tomara, toda a vez que me virava na cadeira de
preguiça, escutava aquele barulho chato de água se nivelando
com o meu corpo dentro do estômago; dava-me a impressão de
estar puxando a descarga da privada: chlong-chla-chaaaaaaa.
Depois, vi tanta gente indo ao balneário e de todos os jeitos
(a pé, a cavalo, de bicicleta, de carro) que resolvi ir
também.
Fiquei mais de uma hora na água aproveitando sua doce
massagem. E como foi divertido ver a simplicidade deste
lugar: as garotas tomando banho de calcinha e sutiã com toda
a descontração. Elas se atiravam na água e a água baixava
tudo. As senhoras de respeito tomavam banho de saia e blusa e
a questão do respeito se tornava crítica. Crítico mesmo, se

13
tornavam os homens que andavam na água de cuecas. Alguns
menos ousados, tomavam banho com aqueles calções tipo “brisa
balouçante” dentro dos quais tranquilamente caberiam dois
homens.
Eu olhei. E olhei mesmo, afinal, era exposição gratuita
e divertida. Meu calção velho e desbotado dos tempos do
colégio, era luxo diante de toda aquela simplicidade. Banho
de sol era privilégio daquelas que vieram especialmente à
cidade comprar o seu maiô ou biquini. Tanga o padre proibiu:
“É imoral”! E o povo creu e cumpriu. Ademais, eles nem sabiam
ao certo o que era tanga. Alguns até achavam que era como os
índios andavam: com aquelas palhas desajeitadas assando tudo.
E a mãe não tirava os olhos da filha, a qual não tirava os
olhos do primo. E o pai não tirava os olhos da cueca do
filho: mexeu, vai para casa. E o filho não tirava os olhos
das semi-escondidas nuances da vizinha, a qual punha tudo
quase a descoberto. E o padre nunca foi lá senão já tinha
pedido transferência. Quando a mãe tirava os olhos, a filha
mergulhava e se escondia no meio de bolinhos de garotas
burburiantes e cheias de cochichos comprometedores. Mas, os
olhos detetivescos da mãe, em uma única singrada já
descobriam a filha pois, o sutiã que ela usava, a mãe lhe
dera em seu último aniversário. Às vezes, as gurias para
realmente enrolarem suas mães, se viravam contra a margem do
outro lado do rio e trocavam as partes de cima, aproveitando
o descuido delas. E as mães custavam a redescobrir o
paradeiro das mesmas. E o pai via o filho com o ... em
condições de cartão vermelho, mas fazia de conta que não via.
Lembrava-se dos tempos em que ele, só de enxergar a vizinha
subindo no cavalo, aparecendo aquele topezinho verde-água na
amarra do calçolão logo acima do joelho, ficava em condições
bem piores.
Virei-me para um lado onde só tinha água e mato, sem
ninguém (pelo menos aos meus olhos) e, como um relâmapago
atavesaram minha mente as palavras “coisa” e “bonita”. Depois
da greve do Bafudo quase já havia esquecido estas palavras,
mas agora novamente despertaram. Pensei para mim mesmo: “Será
possível existir coisa mais bonita para se ver do que isto
aqui?
Os meus pensamentos foram dissolvidos por risadinhas
típicas, parecendo ser de duas crianças com um brinquedo
novo. E eram duas crianças adolescentes com o brinquedo da
adolescência. Entre toda a balbúrdia não foi difícil
encontrar os autores: estavam um pouco mais retirados da
maioria e protegidos por uns ramos de salseiro que pairavam
sobre a água. Discretamente fiquei olhando. Reconheci os
dois: eram Senira e Alberto. Estavam jogando água um no outro

14
quando ela escorregou e um galho discretamente se enganchou
no sutiã deixando o seio esquerdo à mostra. Senira nem se
importou e uma garagalhada forte ecoou pelos peraus do rio.
Alberto achegou-se rapidamente no intuito de tocar, buzinar,
mas, para ele foi uma experiência malfadada: acabou com um
tapa estalante e o filme também terminou. Antes do tapa
invejei Alberto; porém, após o mesmo, até eu senti minhas
bochechas formigarem com tamanho pranchaço.
Eu não fui o único espectador. A mãe de Senira também
viu. Ela, como mãe zelosa que era, foi e arrumou barulho com
seu Antão, o pai de Alberto. Isso aconteceu no gramado à
beira do rio e logo o lugar transformou-se em arena:
- Seu formigão de uma figa! Olha só o que o tarado do
teu filho foi fazer com minha filha!
- Olha sua vaca! Se a tua filha puxou por ti, trata de
fazer com que ela não cometa tantas besteiras como as que tu
cometeste e carregas contigo.
- Mas olhem só! Ele além de ser conhecido por todas as
putas da região ainda é safado e atrevido!
- E de todas, tu és a
mulher que me conheceu
melhor
que qualquer das outras.
- Corno, tarado e sem-vergonha. Vai encontrar tua turma,
ora!
- Você que é barranqueira, sua puta. Vê se cria sua
filha e não a joga no mundo.
Iam começar a se esmurrar quando a discussão foi
dissipada pelos demais.
*************
Pensei em tomar alguma coisa. Estava com muita sede. O
bar mais parecia uma cabana de Honolulu do que um bar. Ia
sentar, mas uma voz desfez aquele ato. Era Bafudo me
chamando:
- José, vem aqui Quero falar contigo.
- Comigo? – Respondi inseguro.
- Já se esqueceu? – disse ele. – Lembra?... Coisa...
bonita?
Titubiei. Tive alguns segundos para me decidir: porém
como Bafudo parecia estar lúcido, fui e sentei com ele. Para
minha surpresa, a atmosfera realmente estava limpa, sem
aquela típica aura etílica, particularidade específica de
Bafudo. Interessei-me pelo caso:
- Por que falou “coisa bonita”?
Ele desviou do assunto:

15
- Coisa feia, isto sim!
- Como assim? – insisti. – Você parece hoje estar com
uma saúde dos diabos...
- E não é para estar? – retalhou-me irritado. – Este
calor não está sequer deixando minha cerveja em paz!
- É, está quente mesmo! ...A cerveja está morna.
- Ouvi dizer que na cidade já existem copos especiais,
os quais não deixam esquentar a cerveja; deveríamos comprar e
experimentar para ver como é.
- Que cidade! Que cerveja! Até trazermos os copos até
aqui, derreterão.
Tive que rir:
- há, há ,há, não são copos de gelo, seu Alírio (que é o
nome do Bafudo). São copos de alumínio, com paredes duplas e
água entre elas, que você congela e assim, mantém a cerveja
gelada por mais tempo.
- Vá, vá, vá! Só em falar esta baboseira a cerveja
esquentou mais ainda. Acho até que isto aqui nem tem álcool,
ou, está evaporando muito ligeiro.
- Pois é! Já não se faz mais cerveja como antigamente.
- Bom, nisto eu concordo. Agora: que se faz mulher bem
mais boa das do meu tempo, isto eu discuto! Olha só aquela
ali – apontou: - É mulher para ninguém botar defeito. Dá
vontade de sair correndo atrás e dar uns beliscões, até para
um velho como eu, hê, hê, hê.
- Com certeza, seu Alírio. – Atalhei.
- Há, há, é bem boazuda!
Olhei em direção que ele apontara e a referida mulher
era feia, murcha e enrugada. Tinha um par de ancas salientes
parecendo uma âncora de navio. E, antes que ele decidisse
correr atrás daquela assombração, arrisquei:
- Coisa bonita, seu Alírio!
- É, mulherão!
- Não, não, não. Não me referi a isto. Sabe, aquele
outro assunto, “coisa bonita”. O que tens para me falar a
respeito?
- Ora, ora. ...Tu já te esqueceste das coisas bonitas
que eu ia te mostrar?
- Sim, é que...
- Fácil! Está logo ali.
- Aonde? – Ele não mostrara. Nervoso e excitado, falou:
- É só dobrar ali – apontou – onde o rio faz a curva e
ver o “paraíso”.
- O paraíso?
- O paraíso!
- Mas, é tão mais bonito e prometedor do que estas
belezas que estamos enxergando por aqui?

16
- Mais! Muito mais!!
- Tens certeza?
- Tenho! É muito mais fascinante e bonito! Ninguém
poderia imaginar tanta beleza escondida somente atrás
daqueles salseiros e maricás.
A partir daquele momento não consegui mais sentar
direito. Minhas nádegas começaram a formigar e eu tentava de
qualquer jeito desvencilhar-me da ansiedade do desconhecido
tão perto e palpável. Não via a hora de acabarem as três
cervejas mandadas servir por mim mesmo.
Após um século de dez minutos, distribuindo cerveja para
todos os integrantes daquele balcão, tomei o último gole e
saí de rasteira, discretamente. Bafudo quis vir comigo, mas o
despistei: deixaria de ser o paraíso caso ele botasse os pés
lá.
Durante a caminhada deu para ver muita coisa: a Marisa,
galinha como sempre, estava de rachar. Sua boca, mesmo com
batom de morango ou cereja, não escondia o gosto dos beijos
de vários cavalheiros desdentados. E Marisa, à beira-rio,
balançava no ritmo melancólico do sambanejo, desecontrando o
ritmo com os quadris em contratempo. E neste embalo ralava
suas intimidades no biquini branco com manchas de barro na
bunda, denotando íntimo prazer. Um cara cabelo cor foguinho
estava a sua frente a espreitá-la como se ela fosse uma
pitonisa sem notar que o prazer quem lhe dava era o roçar do
biquini no meio dos quadris. “Felicidades”, pensei. Olhei
para trás; Bafudo me seguia de longe. Agora senti ele ter-se
tornado um empecilho em minha vida e não via a hora de não
vê-lo mais. Mesmo remoendo um leve remorso sobre o lugar da
“coisa bonita” pois quem me falou sobre ele fora Bafudo, eu
queria chegar lá sozinho e desfrutar de todos os seus
encantos.
Muito mais coisas presenciei durante a minha caminhada.
Inclusive a Rosalie que sempre fora recatada, com cara e
trejeitos de freira, estava sentada no colo do Davi e os dois
estavam num arreto sem igual. Ele já passara da ‘bandeira
vermelha’há muito tempo. E ela sabia disto e estava sentido
prazer em acariciá-lo justamente na ‘bandeira’.
Eu continuei em passos largos em direção à curva do rio.
A poucos passos, uma voz me segurou:
- José?
Quis dar a impressão de não tê-la ouvido. Continuei
caminhando...
- José!
Era uma irresistível voz feminina. Vinha do rio e cedi
aos encantos da voz lírica de Lucena. Abanava freneticamente

17
me
chamando.
Estava
irresistível,
quase
nua
pequeníssimo biquini amarelo de bolinhas pretas.

em

seu

*****************
Saiu muita conversa fiada tipo chá morno. Porém, esta
conversa sobre amenidades deu-me tempo para fazer uma análise
metódica de suas curvas, com vista panorâmica através das
transparências até as mais recôndidas particularidades; ter
pensamentos libidinosos, inimaginários e... bem, eu conto:
Lucena escorregou numa pedra. Que cena! Ela queria
apoiar-se em mim para não cair e eis o resultado: ambos
escorregamos. Mas aproveitei! Segurei-a desajeitadamente
firme contra mim. Senti a voluptuosidade dos seus seios
rechonchudinhos
enquanto
levantávamos.
Ela
sorriu
maliciosamente porque sentiu meu tatear em seus peitos, mas o
meu olhar picante e ao mesmo tempo ingênuo, fê-la ficar sem
jeito.
Ficamos parados frente-a-frente durante alguns minutos,
ela me fitando e eu fitando os dotes dela. Seu coração
parecia estar no meio dos seios, pois via a massa deles
pulsando ofeganetes, cheios de tesão, como se quisessem algo
mais. Tentei levar a mão até lá, mas cordialmente sua
mãozinha de fada me desfez do intento. E, antes que ela
pudesse falar algo, a convidei par ir passear na minha casa,
o que ela prontamente aceitou com um brilho a mais em seu
olhar.

*******************

Vi-me outra vez caminhando ao “paraíso” de Bafudo. Por
falar nele, tinha-o perdido de vista. Faltava pouco para
chegar. Pensei: “Quase!” Mas não havia me dado conta do
sumiço do sol dando lugar a uma nuvem “pretésima”. As gotas
grossas me deram este recado. Saco! Tive que voltar correndo
e recolher minhas roupas para não molharem. Cá entre nós: as
roupas não importavam. Porém, entre elas estava enrolado um
radinho daqueles do Paraguai, fruto do décimo terceiro
salário, o qual não podia deixar molhar.
Em vista da chuva, a algazarra foi total. A gritaria
botava à prova qualquer decibelímetro. Era gente correndo
para todo o lado buscando abrigo sob os salseiros. Os mais

18
sortudos estavam se apinhando embaixo do telhadinho do bar.
Tudo se misturava: felicidade, pavor, tristeza, satisfação,
aflição. Mães em busca de flhas fujonas e rapazinhos tentando
escondê-las, dava aos montes.
Esperei a chuva passar, mas ela só amainou, fechando o
céu por completo. Resolvi voltar para casa.

**************

De noite, no Bum-bum, aquele papo incrementado entre os
disputadores frenéticos. Domingo de noite: dia de confissões,
apostas e propostas. Fernando confessou:
- Isa quase baixou a calcinha pra mim lá embaixo dos
salseiros dentro do rio!
Rogério, com aquela cara repleta de acnes, cravos e
espinhas em errupções contínuas, retrucou:
- Claro, ela estava a fim de fazer pipi e tu já achaste
que toda aquela cerimônia era só para ti.
Gargalhada geral. Fernando enrubesceu e ficou do tamanho
de uma formiga. Ainda tentou argumentar mas sua voz foi
abafada pela zoeira criada ao seu redor pelos frequentadores
do bar.
Assistindo aos duelos grátis, conjeturei meu programa do
próximo fim-de-semana: ver o “paraíso”.
Aos poucos o tumulto foi diminuindo, voltando à conversa
sobre os acontecimentos do balneário.
Bafudo estava sentado num cantinho do bar com sua
bebedeira. Arrotou.
E,
Fernando,
sentindo-se
ainda
emocionado
com
a
humilhação de poucos minutos atrás, começou terrível luta com
os seus gases intestinais querendo sua liberdade. Expreme
daqui, expreme dali e não deu para segurar. Peidou. A
atmosfera nauseou. O bar se transformou
numa bomba de
enxofre. Todos taparam o nariz, inclusive eu. Alguns correram
à rua para tomar um arzinho puro, e, Fernando diminuiu mais
um pouco, ficando do tamanho de uma pulga muito fedorenta! Só
Bafudo ficou indiferente, não se importando com o cheiro.
Mas, conseguiu atirar aquela pedra típica daquelas ocasiões:
- O ppppppor...co!
Aristides, que também estava lá, saiu com mais uma de
suas filosofadas de botequim:
- “Seu” Alírio, é melhor um porco embaixo da mesa do que
um em cima dela.

19
A turma vaiou. Em sinal de revolta seguiu-se uma série
de arrotos melódicos e alcoolizados.
Com essa, conseguiram diminuir mais um. Aristides sumiu
atrás de seus óculos e naquela noite não mais falou. Só
assistiu.
Rogério tentou:
- Aposto que a Chiquinha brigou com Alcebíades!
Murmúrio geral. Entre sins e nãos, todos achavam que
estavam com a razão. E Raul:
- Aquela fofura só gosta do dinheiro de Alcebíades. Ele
é velhaco, frouxo, careca e brocha e garanto que...
O bar silenciou. Entre la-la-ri-la-la-rás e risadinhas
disfarçadas entrava no recinto o casal comentado. Raul
enrubesceu. Conseguiu acender um cigarro no lado do filtro,
queimar os dedos e derrubar dois copos de cerveja. Chiquinha
e Alcebíades compraram sorvetes e nem notaram o ambiente
confuso (ou só fizeram de conta). E a conversa continuou
animada sobre futebol. Assim que o casal saiu, sumindo na
esquina, voltaram às fofocas:
- Fofura! Te adoro!
- Gostosa! Este frouxo não aguenta nem meia...!
- Vem aqui, benzinho!
Rogério falou:
- Vocês viram o par de coxas que este mulherão tem?
- Vimos! – Disse eu. – Só que ela tem dono, não viram?
- Mas ela é muito gostosa! Aquela bundinha rechonchuda e
estes cochões saindo daquele short colante é demais! Ô
sortudo do Alcebíades! – Retrucou Rogério.
Ainda foram delineando aquela mulher com frases sutis.
E, na conversa entre os frequentadores, surgiu mais uma
confissão. Era Leandro e seu lamento:
- A Lia nem sequer olhou para mim no balneário.
Certamente está virada para os carinhas de São Leopoldo que
estavam lá querendo aparecer com suas motos.
- Pô Leandro, tu também não ajudas! – Disse Rogério. –
Como é que ela iria olhar para ti com esta cara inchada? Não
te mandei beijar as abelhas.
Risada geral. Leandro respondeu:
- Mas não é ferroada! Eu estou com o dente inflamado e
não tenho coragem de ir ao dentista.
Gargalhada geral. Leandro não entendeu logo o porquê
dessa hilaridade. Pensou um pouco e já lhe veio à mente o
resultado: resposta cretina! Confissão pamonha! Boca grande!
E seu grau de galã conquistador se diluiu junto com a dor que
vinha sentindo frente aos debochados colegas:
- Que homão!
- Machão!

20
- Bota batonzinho na boquinha, bem!
- Já marcou hora na manicure, “Léia”?
E os deboches se estenderam ainda piores por frases
afeminadas. Para rescaldar o calor acirrado e eufórico de
todos, o dono do Bum-bum disse:
- Já passa da meia-noite. – Abanou as chaves. – Hora de
fechar! Vamos terminando os tragos, as cervejas e dêem o
fora.
Para a turma só restou obedecer. Bafudo, como sempre,
foi arrastado por nós até a margem da calçada em frente o bar
e deixado ali. E nós fomos para casa fazendo a mesma arruaça
de sempre: cantamos a plenos pulmões “parabéns a você” par os
vagalumes. Piadinhas, risadas, gritos e tropeços, tudo fazia
barulho naquela saída do bar.

************

Segunda-feira: dia de “São Pega”. Trabalhei como
tartaruga, só que o peso do casco parecia estar sobre a
cabeça e não sobre o corpo. A ressaca se misturava com a
sensação de não ter alcançado tudo o que queria no último
fim-de-semana.
De terça em diante a semana passou ligeira. Porém, mesmo
assim, pensei mais de mil vezes em “paraíso” e
“coisa
bonita”.
Chegou o sábado; programa da noite: Bum-bum! Desta vez
estavam todos atentos às teorias do Fredes Maus, célebre
filósofo e beberrão. Aliás, ele era o tipo da pessoa que
possuía um conhecimento muito grande sobre assuntos dos mais
variados,
mas,
quando
bêbado,
se
tornava
um
chato
inaguentável. E, tranquilamente posso garantir que ele já
estava meio tocado: as palavras fluiam muito fáceis e
borbotavam enroladas e salivadas feito um córrego turbulento
entre pedras:
- ...porque aquele moinho concebeu espíritos e fantasmas
e... qqquem passa lá à noite é tragado pelas Úrias e Higi...
ã, há... Higíades massacr...adas e pppurificadas aos deuses
dos antepassados índios, qqque outrora, em épppocas remotas,
habitavam esta terra e... este lugar sssinistro traga o bolor
dos defffuntos! Aqqquela umidade é um antro ppperfeito para
os mor... ã, mmmorcegos e vampiros; seus gritos se ouvem nas
nnnoites gggélidas e temp...estuosas. É a voz das Higggíades

21
pedindo ppperdão para todos os hommmens que deixaram de amar.
As Úrias gggozam e se regggozijam nas fffrestas bolorentas,
com qqquilos de teias de aranha, pelo bbbem que fizeram a
tttodos os ssseus amantes e sssentiram o calor de
seus
cccorpos e, ...agora gggélidos, sssombrios e macabros. E a
roda do moinho não mais gggirou para deixar as dddeusas em
paz. Eu viii! ...eu sssei, eu ...ppposso dizer!
Palmas. Entre muito-bens e urras, alguns protestos e
certas dúvidas:
- Que é Úria e Higíade:
- Ora, o que isto importa? Deixa ele contar mais!
Fredes Maus continou:
- Fffaço questão de exppplicar: Úrias eram as vvvirgens
pppuras, indes...bravadas e Higíades eram as mulheres
pppolutas e qqque já haviam se al...covitado innnúmeras vezes
com mmmachos e gggaranhões. Em cada Lua nnnova era
sssacri...ficada uma Úria e em cccada Lua cheiiia era
sssacrificada uma Úria.
- Esta conversa não está fechando. E as Higíades? –
Perguntou Rogério.
- É, e as Higíades? – Perguntaram vários em coro. Fredes
tentou responder:
- Aaacccontece que as Higíades eram potttentados dos
demmmônios e...
- Bu-u-u-u! Mentiroso! Está inventando! Cái fora bebum!
– Vai procurar tuas divindades, mentiroso beberrão! –
Gritaram todos irados com a esfarrapada conclusão da história
contada por Fredes.
Ele, pomposo e imponente, apesar da bebedeira, não quis
se fazer derrotado:
- Não, por obbbséquio! Foi o espppírito do grande Tugirô
que me trouxe à luz estas revelações e idéias e...
Bagunça geral. Embora todos soubessem, sem exceção, de
que aquilo tudo saíra do cérebro apopléptico de Fredes Maus,
agora protestavam. Ao mesmo tempo, Bafudo no seu cantinho de
sempre,
entrou
em
discussão
com
Rovaldo,
outro
deliriumtremensmaníaco. Algo havia dado errado entre os dois,
e bêbados como eram, provocaram-se como de costume; Bafudo
disse:
- Se é homem, vem aqui e me bbbate!
E Rovaldo:
- Eu vou tomar mais uma cccerveja “para colocar as
idéias no lugar”, e depois veremos qqquem é homem aqqqui ou
não é.
Na confusão, Fredes tomou a deixa de “se é homem” para
si, achando que os dois estavam insinuando a respeito de sua
condição macha. Seus olhos se iluminaram e pareciam querer

22
pular para fora das pupilas tamanha era sua ira. Cerrou os
dentes nicotinados, cravou os dedos de unhas sujas nas palmas
das mãos cerrando os punhos e, inflamado grunhiu:
- Ah é? Eu ppprovo!
Todos se entreolharam atônitos, pois não sabiam do que
ele estava falando.
Fredes subiu em cima da mesa do bar usando a cadeira
como escada, ajudado pelos presentes que estavam curiosos
para verem o desfecho deste episódio.
Fredes, num lance inesperado, baixou as calças, deixando
à tona um pirulitinho castigado pela manguaça emoldurado por
um moitão de pentelhos grisalhos encobrindo um saco murcho e
desparelho. Aos seus pés, a calça toda amarrotada e uma cueca
encardida, sinalizando anos de uso. A turma calou. Ficaram se
entreolhando boquiabertos, sem nada entender. Aliás, ninguém
entendeu o motivo de tal atitude. A provocação não tinha sido
com ele. Tudo terminou com a intervenção do dono do bar, um
cara mal-humorado, de mal com a vida, que o varreu de lá,
mandando sungar as calças e descer da mesa:
- Lugar de exibicionista é na rua!
O dono do bar o agarrou pelas panturrilhas deitando-o
nos ombros e o carregou para a rua sob os protestos de Fredes
e dos frequentadores do bar. Ele sumiu na escuridão da noite
grunhindo palavras de ordem.
A rinha que havia inflamado Bafudo e Rovaldo amainou.
Acharam graça. A cerveja de Rovaldo foi repartida entre os
dois como se nada tivesse acontecido entre eles.
Fernando aproveitou a hora da intensa gozação sumindo de
mansinho. Começaram a encher comigo, mas não perdi o
embaraço:
- Daqui a pouco o José vai ter mais alguém para
sustentar. A Lu (apelido de Lucena) está com uma cara de
“quero José” que, deste jeito, até a metade do ano junta os
trapinhos contigo.
- Bem, Rogério, pelo menos ela está de olho no cara
certo! – Respondi.
Rogério, sorvendo mais um gole de cerveja, continuou:
- A barra estava pesada! Quando estiveste com Lu, a
Luzia te viu e quase teve um colapso. Não fossem as amigas
dizerem a ela que somente estavas ensinando a Lu a nadar, ela
teria se intrometido na tua festinha no meio do rio.
Eu ia responder, quando Rômulo ficou pirado por ouvir
falar em Luzia. Levantou da cadeira onde estava sentado,
estufou o peito e gritou:
- Quem falar mais uma vez em Luzia aqui dentro, leva
pau!

23
- Calma, calma! Eu não pensei que o negócio era tão
sério entre vocês dois. – Argumentou Rogério. – Quando vai
ser o casório?
E Rômulo, já um pouco menos irritadiço, amainando:
- Bem, também não tem tanta urgência. ...He, he, he!
Primeiro quero experimentar o pasto em todo o potreiro, antes
de ficar no curral e só mais me sobrar o feno para comer.
Surgiu um burburinho entre aprovações na maioria e
alguns desaprovando o modo de pensar de Rômulo. Eu, por minha
vez, tentei derrubar a arrogância de Rogério, que aquela
noite estava de dono do espetáculo, assumindo todos os
argumentos, deixando pouca vez para os outros frequentadores
do bar. Aliás, ele sempre mostrava ar de líder.
Eu havia achado àquela semana uma folha de papel toda
amassada na rua e, por desgraça dele, era uma super carta de
uma pretendente distante. Blefei:
- Vocês sabiam que o Rogério foi assaltado?
Perplexidade geral. A turma se entreolhou incrédula.
Paulo iniciou perguntando, seguido de outros:
- Não, quando?
- É?
- Não acredito! Conta outra.
- É verdade?
- Conta, Rogério!
- Mas eu nem sei do que se trata! O José está
inventando. Eu nunca fui assaltado em toda a minha vida.
- Ah, é? – Retruquei. _ Eu provo: ...como apareceram
aquelas cartas que recebeste da Isaura lá na casa da Alzira?
- Há, há, há! Que mentira mais grosseira, José! Conta
outra! Quem iria querer roubar cartas da Isaura para me
comprometer com a Alzira?
- Ora, alguma garota que esteja afim de ti. – Disse
Paulo. Vi que a turma ficou muito curiosa e intrigada. Então
falei:
- Posso provar para eles que estou falando a verdade? –
Apontei para a turma fitando Rogério. – Olha que eu provo...
- Se for verdade, quero a prova! Mete aí! – Disse
Rogério incrédulo enquanto tateava a borda da mesa sobre a
qual estava sentado para se reequilibrar.
Tirei lentamente aquele papel de carta amassado do bolso
de minha calça, desdobrei, alisei o papel com a costa da mão
e disse:
- Olha só: achei esta carta na calçada em frente à casa
de Alzira e vou ler ela do jeito como Isaura a escreveu.
- Ainda não acredito! – Disse Rogério. E eu iniciei a
leitura daquela carta:

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“Rincão da Boiada 17 de 12 de 19 e nonvenda e dois Meu
ederno Rogério eu esto com umas sautades do tiabo Sabe eu
adoro tu e de amo de morer O peijo que tu me teu fes arter
minia boca de rajar e sindo ele até oje De espero noite e dia
agui em casa e tu nunga abareceu A mae adé aja que desisdiu
de me visidar agui mas eu náo ganso de esberrar. A vaca gue
tu teu o nome de alcira chá deu um derneiro dão bonidinho gue
eu adé bensei empotar o deu nome. Rojério é o nome mais
bonitogue eu chá vi a máe manda lempransas O pai dá com
picheira na berna guase náo pode gaminiar to bassando aguela
bomadinha dransbarrente que tu esgueseu agui e eu ainda náo
sei aonde tu esdava majucado e to dratando com amor e
garrinio assim com vou dratar tu guando cassarmos eu de amo e
sempre esberro gue tu vem agui. A claudia guebrou sinco
tentes e bassou na escola a juva esta crossa e frialenta
assim náo bresicei cabinar na rossa e eu dive tempo de
escreverte esta garta esberro gue costou do que escrevi um
peijo mais artente gue o guando tu me teu guando estive a
ultima ves agui. Sua sempre ederna e berbetua namorada de
todo o tempo.
Isaura Desgulpe de eros e letra”
Durante todo o tempo da leitura desta singular carta, as
risadas e gargalhadas eram tamanhas, que várias vezes me
senti obrigado a interromper, esperando amenizar o rompante
de hilaridade.
Após a leitura, muitas gargalhadas ainda ecoaram,
seguidas de tosse seca e nicótica de alguns frequentadores do
bar.
Rogério, sem jeito, completamente enrubescido, tentou
consertar:
- Podem rir! Ela pelo menos demonstrou sua paixão por
mim nesta carta, e, além do mais, apesar dos “eros”, ela é
muito gostosa.
- Ai, me dói a barriga de tanto rir! Imagina como fica
naquela hora: “rochério, rochério bode potar, eu costo
costossão!” – hahahaha.
- “Me embresta a bomadinha transbarrente, rochério?”
- “Que peijo artente gue tu me teu na poca, rochério!
Minha poca guer um peijo bem costoso mmmmmmmah!”
- “Com tantos eros du vai erar a bondaria, rochério!”
- “Não dá com pijeira também? Há, há há.”
- “Guer acora com bomadinha? Vem rochério, vem, eu basso
a bomadinha bara di!”
...E assim por diante. O coitado do dignatário da
missiva enfiou goela abaixo um martelo de cachaça para ver se
apagava a toda a gozação por cima da carta errada da pretensa

25
namorada. A partir daquele dia, Rogério ficou conhecido como
“Vaselina” ou, o vulgo “Bomadinha”.
Bafudo e Rovaldo continuavam absortos em sua ebriedade
não se dando conta de tudo o que ocorrera.
A folia foi além das duas da madrugada quando, abanando
as chaves o bodegueiro anunciou o fim do expediente. Saimos.
Na volta para casa, a mesma coisa: folia, cantos, arrotos e
gritos. E desta vez, também falando errado como na carta que
eu havia lido.

*****************

Domingo às oito, antes de começar a Missa, o padre já
soubera do ocorrido com Fredes Maus. Também, as velhas beatas
moradoras nas imediações do boteco, que sofrem de insônia por
não terem outra ocupação senão orar, viram tudo. E contaram.
Com certeza ainda fizeram o estardalhaço bem maior do que
acoantecera. Não deu outra: o sermão todo foi dirigido ao
combate do despudor. Fredes já nem se lembrava do que fizera
de tão bêbado que ele estava na véspera. No fim do sermão,
todos aceitaram e creram.
À tarde, sua santidade, o balneário Vale-Tudo. Ninguém
ali lembrava mais as palavras do sermão da manhã. E todos
ficaram à vontade.
Antes de qualquer coisa, empenhei-me em dobrar a curva
do rio e ver o “paraíso” de Bafudo. Está na cara que fiquei
trancado algumas vezes durante a caminhada. Inclusive a chata
da Ressinda me tomara alguns preciosos e infindáveis minutos:
queria jogar víspora comigo à noite. O problema de Ressinda
reside em ela ser viúva e ter um filho de oito anos. Já
estive outras vezes na casa dela e o guri enche tanto o saco
da gente, que não existe qualquer outra vontade sem ser a de
ir embora. Por outro lado, é uma mulher e tanto! Toda
malhada, ‘fitness’, geração saúde. Nem parece ser mãe e ter
mais de trinta anos. Porém, neguei. Quase neguei também
entrar na água com a Jerusa. Ela qeuria aprender a nadar e
era
eu
quem
tinha
que
ensiná-la.
Analisei,
pensei,
ponderei, ...a água do rio Caí estava uma delícia: limpinha,
morna e serena. Por fim, acabei aceitando. Afinal, não
perderia nada em manter aquela sereia por algumas horas em
meus braços.
A aula começou. Fi-la deitar de bruços sobre meus braços
dentro da água e a mandei bater os braços e as pernas com

26
toda força. Aquela hora eu quisera estar de óculos escuros
para que ela não visse para onde eu estava olhando.
Sinceramente, fui obrigado a olhar; aquelas coxas batendo num
vai-e-vem reverso faziam balançar aquele belo par de nádegas,
roçando aquele biquini surradinho, e já meio puído entrando
no rego a meio metro de meus olhos! E o jogo do enche-daqui
enche-dali me cativou a tal ponto que, inconscientemente,
esqueci que era eu o seu aporte e a soltei. No mesmo instante
ela afundou como se fosse uma pedra. Ajudei-a a se reerguer.
Já de pé, maliciosamente ela deu um “bundaço” nas minhas
partes me intimando a não repetir o ocorrido; seu “maninho”
de um metro e noventa estava de olho em nós. Resolvi
recomeçar a aula antes que algo acontecesse. E, no vai-e-vem
das pernas, mais uma vez fiquei quase vesgo olhando de lado
para que ela não notasse. E os seios... Ah, eles roçavam em
minhas mãos e a danada da Jerusa sentia isto. Mas, senti que
tudo não passaria desse ponto naquela tarde e que ela estava
só me usando. Assim, logo desvencilhei-me sob seus protestos
e com a promessa de no próximo domingo dar-lhe mais uma aula.
Agora continuaria a minha pesquisa sobre o “paraíso” de
Bafudo.
Enquanto me dirigia até a margem do rio, dava para ver
no gramado de sua beira diversas pessoas se divertindo,
tomando banho de sol e sempre algum homem mais velho do lado
de sua esposa olhando discretamente o bumbum das meninas
tomando banho de sol.

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28
Saí da água exatamente nom momento de presenciar uma
disputa entre dois motoqueiros de fora, por uma garotinha
espertalhona e aproveitadora: a Mâni. Ela era do tipo esguio,
ágil e elétrica. Não parava nunca. Mas, seu rostinho sensual
conquistava facilmente quem a via pela primeira vez. Um deles
falou:
- Belezinha, sobe aqui e vem sentir o poder da minha
máquina. Garanto que nunca montou algo tão potente.
- Não vai atrás, gata! Este amontoado de parafusos e
tinta está mais ultrapassado do que ser virgem para casar.
Mâni, com aquela carinha desavergonhada olhava ora para
um, ora para outro, indecisa. Aí disse:
- Ô cara, por que tua achas a moto deste aqui – apontou
– tão velha?
- Olha só: - disse o motoqueiro. – Ela ainda está cheia
de cromados. A minha é moderna, possante, gostosa de andar e
não tem estas coisas brilhosas e esquisitas só para aparecer.
O primeiro motoqueiro, já bastante irritado com o
incitamento do colega, resolveu se entrepor:
- ô Gata! Não dá a mínima para este daí! Os cromados da
“bicicletinha elétrica” dele não existem porque estão
enferrujados.
O outro motoqueiro não gostou da brincadeira e os dois
estavam afim de brigar. Foram dados vários tapas e safanões
por ambos quando os espectadores intervieram. Apesar da
relutância de ambos em ficarem rendidos pelas pessoas,
acabaram acalmando. Então, Mâni chegou perto, encarou o da
moto cromada e disse:
- Esta coisa aí – apontou a moto – mais parece um garfo
grande a fim de espetar quem a monta. Olha só: - e,
caminhando ao redor dela – esta moto parece muito estranha.
Não gostei. ...E a tua moto – apontou a do outro motoqueiro –
mais parece ser de brinquedo, tamanha e a quantidade de
plástico que possui. Vou sair... ...não, pensando bem, não
vou sair com nenhum dos dois. Virou as costas e saiu
rebolando ufana seguida de várias amigas, rindo às avessas da
confusão
criada
por
sua
causa.
Os
motoqueiros
se
entreolharam. O mais alto falou para o outro:
- Estas gurias do Caí são fogo, hein? As de São Léo são
bem mais fáceis. ...Vamos tomar uma cerveja?
- Vamos! – Respondeu o outro. É o que nos resta.
Se abraçaram e caminharam em direção ao bar do
balneário. No caminho, tiveram que desviar de diversos
trazeiros de garotas estiradas ao sol por sobre o gramado,
ocupando até as trilhas.

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Uns metros adiante, Bafudo com seu calção 1890, me
aguardava. Parecia completamente lúcido. Estranhei muito esse
seu estado já que vivia bêbado. E, ao me aproximar já saiu
falando:
- Olha José, se quer ver o paraíso, só com minha
companhia. Não gosto que pisem no “meu” terreno sem minha
companhia.
“Se é terreno de Bafudo, que lugar promíscuo será este!”
– Pensei. Mais tarde ficaria sabendo que aquelas terras todas
realmente eram dele. Eu falei impositivo:
- Está certo! Então vamos juntos.
- Então vamos! – Disse ele, já demonstrando muita
ansiedade para me mostrar as “coisas bonitas”.
Atravessamos o rio com a água na altura das coxas.
Cruzamos por Jerusa que ainda se encontrava na água e
aproveitei para dar-lhe um beliscão. Ela se retorceu e me
tapeou no braço. Na tentativa de me esgueirar para não ser
acertado, me desequilibrei e caí na água. Jerusa deu uma
gargalhada saudável e disse enquanto eu levantava:
- Agora estou vingada! Também derrubei você, assim como
fez comigo há pouco.
- Daqui a pouco eu volto e vamos continuar esta
brincadeira. Pode ser? – Perguntei. Ela assentiu com a cabeça
me fitando com um olhar lascivo, boca entreaberta. Em
seguida, ao ver Bafudo comigo, esperando pacientemente de
braços
cruzados
terminarmos
aquela
conversa,
mudou
o
semblante
para
interrogativo,
desviando
os
olhos
discretamente de mim para ele. Entendi sua dúvida. Era do
tipo: “O que este manguaceiro está fazendo contigo aqui?” Eu
expliquei:
- Hã, Jerusa, seu Alírio e eu estamos atravessando o rio
porque ele quer me mostrar uma coisa que ele viu lá.
- É! – Disse Bafudo num tom desaprovador. – Vamos logo,
José!
- Na volta você vai ficar comigo e me ensinar mais um
pouco a nadar, certo?
- Com certeza! – Respondi para Jerusa.
Continuamos andando pela água enquanto eu olhava para
trás e fitava aquela garota linda e perfeitinha me seguindo
com seu olhar, mais uma vez provocante.
Aos poucos chegamos na margem oposta do rio onde só se
via mato denso e baixo. Seguimos pela margem na beira da água
desviando dos galhos das árvores e dos salseiros a se
debruçarem para dentro do rio. Chegamos na curva. Meu coração
bateu mais forte. “É agora!” – Pensei.
E eis que o “paraíso” se nos apresentou. Olhei
estupefato e a garganta com um nó me engasgando, me calou.

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Neste mesmo instante apoderaram-se de mim diversas
sensações e vontades diferentes: palavras, gestos, momentos,
aventuras, desejos, raiva, frustração, impotência, enfim:
simplesmente sumi. Orgulho, vaidade e supremacia pairavam
sobre aquela figura surrada pelos anos, que contemplava a
paisagem com os braços completamente abertos. Com meu eu, se
misturavam a raiva e a decepção de ter ficado duas semanas
irrequieto para inebriar-me com a visão que estávamos tendo.
Duas semanas intensas, carregadas de curiosidade para chegar
a este resultado! Ao mesmo tempo, porém, me senti em paz.
Após este silêncio parecendo infindável, Bafudo abriu a
boca:
- Então, José, isto aqui não é realmente a coisa mais
bonita que existe? Isto não é o verdadeiro Paraíso?
Eu continuava singrando as latitudes daquela visão,
incrédulo. Bafudo continuou:
- Isto não é mais bonito do que a mulher mais boa que
existe? ...Isto não é de encher os olhos?
- É, é! – Foi só o que consegui engrolar.
Era uma vasta plantação de milho brotando!

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BAILE DO INTERIOR

32
Localize-se: você está a cinquenta quilômetros (mais ou
menos) de qualquer cidade de porte grande ou pequeno. Parece
impossível, não? Pois sim, mas há tantas dessas localidades
espalhadas por aí, que é atrevimento começar a enumerá-las.
Bem, falaremos somente de uma: Recanto do lobo. O nome
já indica um lugar terrivelmente romântico. Em Recanto, como
chamam, há três ocasiões especiais por ano, não religiosas,
as quais culminam com um baile. Baile do interior! Olha, para
realmente se saber como é, só participando! É um espetáculo
autêntico, natural e divertido, que enleva qualquer coração
subnutrido pela civilização socialmente abalroante. Não
existe esse negócio de ser associado ou não, nem sequer se

33
levam documentos, pois ninguém os exige. Garota comprometida
ninguém assedia. Às vezes, aparece algum metido, galã de
cidade grande querendo impor sua posição, mas logo acaba
dispondo seu traseiro aos pés dos asseclas do dono do salão,
os quais, em compasso de marcha o põe porta afora, com um
amigável lembrete de que não será bem recebido se retornar.
Guardas só se vêem em bailes de Kerb porque dá muita gente.
Há o pessoal que vem para o baile, a cavalo. Não escutou
direito? Pois ouça: a ca-va-lo! Parece incrível, não? É uma
cena lindíssima de se ver: o rapaz que é cavaleiro durante a
semana, um mês, um ano, nestas ocasiões torna-se importante e
angaria um “agá” a mais em sua designação. Torna-se um
cavalheiro e vai ao baile. Vem trajando uma beca sem par: uma
fatiota já anciã cheirando à naftalina que ele só usa aos
domingos para ir à Missa e nesses anos todos só foi lavada
uma meia dúzia de vezes. Desce do cavalo como um verdadeiro
“cowboy”. Ele tem muita vaidade num acontecimento como
aquele. Seu cabelo, à base de Glostora, vem empastado,
reluzindo ao luar. A repartição do penteado é linear,
reguada, denotando um preparo com bastante tempo para que
ficasse assim. Barba feita no barbeiro, com navalha, de
aparência impecável e tratamento finalizado com Acqua Welva,
aquela loção pós-barba que arde como pimenta, mas mascara
todos os cortezinhos involuntários.
Para completar, ele exala de longe, mas de muito longe o
inconfundível extrato de Ara, essência que encobre qualquer
axila mais propensa a emanações neurosudoríparas, tornando-o
uma viva poção afrodisíaca. Como uma boa parte dos rapazes
usa esta fragrância nos bailes, o salão acaba emanando um
teor de aroma característico, lembrando um verdadeiro baile
do interior.
As damas mais independentes vão ao baile em grupinhos de
amigas ou com algum irmão. As que tem pais severos, morais e
‘corretos’, vão com eles. E, por causa de sua presença no
baile a fiscalizar as filhas, muitas vezes interferem no
sentido de elas arrumarem um bom partido, pois muitos rapazes
não são chegados em garotas acompanhadas dos pais.
Num baile do interior tudo é planejado; ninguém deixa
nada para a última hora. É lógico que isto aconteça, pois o
evento é aguardado com muito entusiasmo durante meses. As
moças, em geral, angariam alguma peça nova em seu vestuário.
As vezes é só um anel, uma calcinha ou um par de meias;
outras vezes, compram fazenda para vestidos, saias ou blusas
e fazem um traje completo, novinho em folha em todas as
peças, desde o sapato. E isto envolve muita preparação, muita
dedicação, idas e vindas à costureira, detalhes, testes de
caimento, enfim, uma maratona! E elas adoram.

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Os rapazes são mais desleixados e, vez que outra,
compram alguma camisa ou calça. Cuecas e meias nem se fala:
usam até puir. Mas, no modo geral, a visão dos frequentadores
no salão denota muito capricho no visual.
O salão, em quase sua totalidade, é maior se comparado
com os da cidade. Sua decoração é linda e primorosa, face ao
bom gosto da esposa do dono do salão, que decididamente
escolhe todos os detalhes para harmonizar com variadas cores
o espírito daquele espaço de diversão: são lâmpadas envoltas
com enormes topes de papel crepom, bandeirolas e correntes de
jornal envelopado com papel celofane, as quais percorrem todo
o forro em todos os sentidos. As mesas centenárias são
ornamentadas com milhares de craterinhas esculpidas pelos
cupins.
Os salões de baile do interior geralmente são passados
de pais para filhos durante muitas gerações e se tornam
pontos tradicionais de encontros de pessoas a fim de uma
relação mais profunda.

**********

Sandra é do tipo certinha para a nossa história: possui
o nariz sensualmente adornado com sardas atrevidas, olhos
grandes e verdões e uma boca capaz de estraçalhar com sua
voluptuosidade qualquer um que se atrevesse a roubar-lhe um
beijo. Pois ela, que não gosta de deixar tudo para a última
hora, ficou aporrinhando o saco de Plauto, seu irmão, toda a
semana para comprarem a mesinha no salão. Seu vestido novo já
estava pronto há mais de mês. Vivia experimentando-o para ver
se lhe caía bem. Era exigente! Olhava... reforçava suas
linhas com as mãos. E, segurando a cintura, olhava no espelho
e seu pensamento dizia: “É bom comer alface e deixar a massa
de lado! A prova está aqui!” E como caía bem este vestido!
Estava convencida disso. Ninguém precisava admirá-lo; nem
mesmo suas amigas. O mais importante era sentir-se bem nele.
Disso tinha a absoluta certeza. Depois de satisfeita,
guardava-o no armário com delicadeza, imaginando o príncipe
que iria adorná-la com palavras elogiosas a respeito de seu
vestido. “Direi que fui eu quem o fez” – pensou. E para
desfazer o sentimento de mentira, confirmou logo em sua
mente: “Claro, eu pelo menos preguei os botões!”

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Amílcar, irmão de Plauto e Sandra, por fim se convenceu
de que já estava em tempo de comprarem a mesa para o baile;
era sexta-feira e o outro dia, provavelmente, as venderiam
como pão fresco. É tradicional nos bailes do interior
venderem as mesas do salão para que as pessoas possam
usufruí-las a noite inteira e não haver o risco de perdê-las
durante o baile.
Amílcar falou com o Plauto e, de tardezinha, foram
comprar a sua mesa para o baile.
Nota: o ato de ‘comprar mesa’ em salões de baile no
interior é muito difundido e consiste em se pagar uma certa
quantia para ter a reserva de uma mesa com quatro cadeiras
durante todo o baile.

********************

O salão estava repleto de gente. A bandinha já se
instalara e os músicos aguardavam a hora de iniciar. Estavam
todos embecados da cabeça aos pés, uniformizados conforme
grupo instrumental: cordas, sopro, teclado e percussão.
Ninguém dava muita bola para eles. Afinal, o povo ia lá se
divertir.
Faltavam quinze minutos para o baile começar quando
chegaram
Sandra e seus dois irmãos; Plauto comprou as
entradas enquanto Sandra e Amílcar aguardavam. E, como
naquele momento muita gente estava se acotovelando na entrada
do salão para pagar o ingresso, demoraram a conseguir
atravessar a soleira estreita da porta do salão. Haviam
chegado justamente na hora mais imprópria, faltando pouco
para o início do baile. Mas, após alguns pacientes minutos,
finalmente entraram no salão, se desvencilhando daquela massa
humana a se espremer no guichê. Também custou um bocado de
tempo até chegarem à mesa pois o salão estava lotado. Mal se
instalaram e a bandinha se anunciou, principiando com um
dobrado rítmico e melodioso. Alguns casais imediatamente
tomaram posições na pista de danças e seguiram no balanço
feliz da bandinha, que efetivamente acendia a vontade motora
das pernas da maioria a ocuparem a pista.
Os três irmãos, assim que sentaram já foram assediados
pelo garçom que ofereceu-lhes o cardápio da noite, ao que
Plauto somente pediu uma cerveja.

36
O
pedido
foi
rapidamente
atendido
já
que
os
frequentadores do salão ainda não estavam consumindo muito.
Enquanto sorviam a cerveja gelada, no ponto, Amílcar e Sandra
balançavam em seu próprio lugar à mesa, ao ritmo da música.
Plauto retraído, contentava-se em observar a multidão. Ele
era mais parado, mais quieto que os outros dois. Sentia,
também, mais dificuldades em convidar uma garota para dançar.
Compenetrado, inteligente e calmo, satisfazia-se em notar
vida e alegria nos outros. Amílcar e Sandra eram mais
agitados. Os parentes diziam que os dois haviam puxado o
gênio espontâneo da mãe, enquanto Plauto herdara o gênio do
pai, o qual era mais sério. Amílcar desde o início do baile
já se via sondando o salão em seus trezentos e sessenta graus
à cata de garotas. Piscou para umas três ou quatro. Sandra,
por sua vez não temia em ficar com o “joão-ninguém” a noite
toda, pois era linda, completa.
Havia vários rapazes a
desejando. Seu vestido novo estava coerente com a noite: o ar
agradável combinava perfeitamente com as cores primaveris que
ele esboçava. Além disso, a candura do seu modo de olhar, com
aquele rosto ornado de sardas estratégicas, a faziam uma
garota irresistível.
Plauto estava com vontade de fumar. Estavam sem
cigarros. Cigarro de palha se fumava durante a semana, na
roça. O baile propiciava o consumo de cigarros de papel.
Olhou em redor procurando um garçom. Não era difícil divisálos, pois seu uniforme era uma toalha no ombro direito, feita
de saco de açúcar. Roupas, usavam-nas das mais diversas. Era
simplesmente a toalha que caracterizava seu posto no baile.
Finalmente Plauto viu um garçom, chamou-o e fez seu
pedido.
Sandra mal havia tomado um gole de cerveja recém trazido
pelo garçom, quando um aventureiro se aproximou:
- Posso ter a honra de dançar com você?
Sandra virou-se devagarzinho, pois haviam falado às
costas, pronta para qualquer decepção. Ao ver o semblante do
rapaz, mudou de idéia. Ele parecia-lhe um ótimo partido para
iniciar a noite. Consentiu. Foram à pista, a qual já estava
totalmente tomada pelos dançarinos. Amílcar e Plauto – agora
um pouco mais a vontade – ficaram ali, à mesa, conversando e
se divertindo.

****************

37
Durante as primeiras músicas, o rapaz que convidara
Sandra para dançar, nem piou. Ela ficou imaginando que ele só
podia ser belo por fora e oco por dentro. Dançava bem, isto
era verdade, mas não falar nada era inadmissível. Onde é que
já se viu: um rapaz tão bem apessoado, esbelto, elegante,
apresentável, não falar nada! Isto era inadmissível.
A bandinha fez uma pausa. “Se agora ele não piar, doulhe o fora”. – pensou ela. Parecendo o rapaz ter-lhe
adivinhado o pensamento, falou:
- Você é linda!
- O quê?
E
sandra
aproximou
seu
ouvido
por
não
tê-lo
compreendido. A algazarra, o barulho era intenso, nada se
ouvia caso não gritasse. E o moço:
- Eu disse que estou achando a noite maravilhosa.
- Ah! – Pra mim todos os bailes são maravilhosos, chova
ou não. Acontece tão pouco disso por aqui, que quando se tem
a oportunidade para curtir esta alegria, se faz de tudo para
estar presente.
O rapaz a fitou de alto a baixo, inebriado com aquela
garota a sua frente. Continuou falando:
- Você é desinibida!
- O-obrigada! Sou sim. Super-desinibida! Gosto do jeito
como levo as coisas.
- Eu sou meio travado. – Disse o rapaz. – Mas,
devagarinho, quando conheço alguém, vou me soltando e me
transformando num cara super desinibido.
- Gostei de ver. Eu também sou assim.
Sandra sorriu em seu interior, ufana por ter sido
escolhida por aquele rapaz que tinha tudo a ver com ela.
Parecia que a noite estava prometendo um relacionamento novo.
Sorriram. Ambos deixaram transparecer dentes lindos; os
do parceiro de dança de Sandra mostravam-se meio amarelados,
nicotinados; os dela, alvíssimos.
A bandinha retornou com seu repertório. O rapaz não
tardou a tomar Sandra em seus braços, a qual, por sua vez,
deixou se envolver totalmente. E, enquanto dançavam, o rapaz
tentou
cortejá-la
mais
incisivamente,
porém
ela
com
delicadeza impediu-o de prosseguir em seu intento. Ele ficou
todo enrubescido, mas cedeu. Sandra sentiu-se satisfeita ao
notar que ele reconhecia sua tentativa mal-sucedida e que seu
olhar unicamente, embora ele estivesse quieto, dizia quanto
ela o provocava. “Só falta começar a babar” – pensou. E seu
olhar sorriu.

38
******************

A bandinha estava muito enfezada com seu repertório de
melodias rápidas, deixando os dançarinos suados e desgastados
com a intensidade dos ritmos que vinham imprimindo. Os casais
mais animados entravam em todos os ritmos, e mesmo suados,
aplaudiam a seleção musical que a bandinha apresentava.
Mesmo sendo o começo do baile, já tinha alguns casais
dançando, com o homem cochilando sobre o ombro da namorada.
Era o resultado visível de uma semana sobrecarregada, de
muito trabalho, onde a diversão estava tomando conta dos seus
preciosos momentos de sono.
Olhando para as senhoras que sentavam às mesinhas com a
companhia das filhas, as meninas pós-adolescentes, ávidas por
um rapaz que lhes desse uma noite inesquecível, se via que
elas tinham muito o que conversar com as vizinhas, suas
amigas que haviam comprado mesinha perto umas das outras para
que naquela noite todos os assuntos ficassem atualizados. E a
conversa corria frouxa, entusiasmada, delineando sobre as
pessoas que se encontravam no baile. Só as meninas pósadolescentes ficavam
deslocadas. Afinal, nem o assunto das
mães lhes dizia respeito, nem os rapazes as convidavam para
dançar.
******************

De repente, todos os olhares se voltaram para a porta do
salão. A silhueta de uma pessoa à frente da luz da entrada,
logo foi se tornando visível e o seu semblante deixou a todos
atônitos. Quem era ela? De onde vinha uma garota tão formosa
para se perder dentro de um salão, num lugarzinho tão ermo
como Recanto? Mulher diferente, especial, mulherão é o que
parecia. Ancas grandes, alta, peitos definidos, traje
provocante, enfim, alguém que chegou para arrasar.
Estas perguntas certamente giravam na cabeça de todos os
homens desimpedidos do baile. Alguns já estavam mais de olho
nela. E a moça adentrou ao salão com trejeitos acentuados,
seguida dos dois rapazes musculosos e de olhar duvidoso.
Vários rapazes começaram a apostar entre si para ver quem
teria a coragem de convidá-la para dançar. Para a felicidade

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da galera masculina, os homens que a acompanhavam a deixaram
só, sentada numa mesa que havia sido previamente reservada,
sumindo na multidão. Por coincidência, a mesa da moça era
perto da mesa de Amílcar.

******************

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Amílcar entrou em firme bombardeio de olhares com uma
garotinha, que estava escorada numa cadeira, não muito
distante deles. Parecia-lhe ser uma teteinha de cidade. Nunca
havia visto por aquelas bandas e o pessoal de lá e arredores,
em quase sua totalidade, era conhecido seu. Ela piscou.
Plauto também viu:
- Mano, não sei como consegues, ms se perderes esta aí,
o baile não vai ter sentido para ti. Que gataça!
- Plauto, te garanto que esta será minha esta noite!
Espera só para ver.
E Amílcar continuou a olhar para aquela menina, quando
de repente...
- O-o-opa! Plauto, olha só: querem tirá-la de mim!
- É, estou vendo, Amílcar! O Luiz não perde tempo!
Luiz se aproximara da garota. Pelo que se divisava da
mesa onde Amílcar e Plauto se encontravam, o rapaz estava
convidando ela para dançar.
A garota decididamente fez que não. Mas, Luiz continuou
insistindo. E Amílcar:
- Cái fora pé-rapado! Ela não está querendo nada
contigo! Te enxerga, ô babaca!
- Aguenta aí, mano! Vamos ver no que dá. – Disse Plauto
dando tapinhas no ombro do irmão. É claro que Amílcar havia
falado de si para consigo sem sair de sua mesa. A garota
encarava Luiz com despeito. Finalmente, como ele não tinha
mais argumentos, murchou as orelhas e saiu, rubro feito um
tomate. Amílcar respirou aliviado. A garota também. Ela, por
sua vez, olhou de relance para ele, que desviou os olhos para
Plauto, o qual sorriu. Ela, à primeira vista, parecia uma
perfeita malandra: fizera a cena somente para confundi-lo, ou
simplesmente para se divertir. Amílcar nervosamente acendeu
um cigarro; já, já, iria levantar e seguir até a moça, a fim
de convidá-la para dançar, antes que mais um aventureiro se
aproximasse dela. Tomou mais um gole de cerveja e fez figa
para o irmão. Levantou-se. Dirigiu-se em outra direção para
que a garota não o visse se aproximando. Esta técnica é
bastante usada pelos rapazes nos bailes para não irem direto
até a garota, chegando ‘de cara’. Assim parece mais
encantador o encontro e a persuasão em acompanhá-los até a
pista de dança fica mais fácil.
A garota o seguiu com os olhos. Por fim, o rapaz sumiu
entre as pessoas. Ela, intrigada, olhou para a mesa onde
Plauto sentava, fazendo um gesto interrogativo. Ele, mais do
que ligeiro, sinalizou-lhe que esperasse e a garota sorriu.

41
**********

A misteriosa dama continuava sozinha a sua mesa, sem ter
recebido um convite sequer para ir dançar.
Observada por diversos olhares curiosos e analíticos,
ela fazia de conta que não estava vendo o que acontecia. Mas,
observando bem, com o canto dos olhos ela acompanhava tudo ao
seu redor com angústia.
Vários pretensos dançarinos a analisavam a certa
distância, morrendo de vontade em convidá-la para dançar.
Mas, faltava-lhes coragem para isto, pois aquela garota
parecia um ‘monumento’. Quem era aquela garota deslumbrante?
Com um rosto perfeitamente esculpido, ornado por uma vasta
cabeleira loura, franja ao estilo de Cleópatra, a moça
realmente impressionava a todos os rapazes simples do lugar,
pela diferença que impunha em seu visual: salto altíssimo,
meias colantes em preto riscado, um vestido ‘pretinhobásico’, hiper curto e corte profundo no ‘V’ dos seios.
Embaixo, uma camisete colante também em preto riscado. Para
completar um colar de pérolas brancas e um olhar de tentação.
Mas, no momento, ninguém se habilitara a oferecer uma
dança naquela noite, pois a garota destoava com todas as
outras do salão.

**************

Os músicos fizeram um intervalo. Sandra estava exausta,
mas não queria que o rapaz sentasse com ela. Aguentou firme
na pista de dança. Nem sequer a pergunta mais banal ele lhe
havia feito como saber qual era seu nome. Muito menos fizera
qualquer menção ao belo vestido que ela usava. Nas poucas
frases que falara ele lhe parecia ser bastante ignorante.
Tudo
o
que
falava
eram
frases
formais,
ensaiadas,
automáticas. Pensou: “Vou dar-lhe o fora!” Ele, pateticamente
parado à frente dela como um “ás de paus”, parecia estar
escarafunchando seus miolos a fim de encontrar mais uma

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frase. Momento decisivo. Por fim falou baixinho, quase
inaudível:
- Como é seu nome?
Sandra, na ânsia de se livrar do fardo, nem ouviu a
pergunta. Teve a impressão de que ele soprara. Ele, ao invés
de reformular sua pergunta com voz incisiva, limitou-se a
fitá-la apreensivo. O calor no meio da pista era sufocante.
Por fim, Sandra falou decididamente:
- Com licença!
E ele...
- Como? Você disse “Hortência”? Seu nome é Hortência?
- Não! Eu disse: Com licença. ...Com li-cen-ça! Estou de
dando o fo-ra!!! E, ...Hortência é tua mãe!
Sandra virou-se e foi embora. O rapaz, no primeiro
instante ficou impotente diante da incredulidade sobre o
ocorrido, mas assim que, instantes após, voltou à real, ainda
correu atrás tentando barrá-la, mas ela o despistou deixandoo perdido no meio da pista.
A bandinha voltou a tocar.
Sandra, ao chegar a sua mesa, ainda encontrou Plauto
sentado, batendo o ritmo do dobrado com os dedos. Parou-se a
sua frente e com ar de séria, disse:
- Plauto! O que ainda estás fazendo aqui? Te solta, chô,
chô! O salão está minado de garotas bonitas e tu ainda
continuas aqui parado. Vamos, vamos, vamos! – Pegou-o no
braço e puxou-o para que se levantasse, ao que ele falou se
segurando no lugar onde estava:
- Calma, maninha, espera! Eu preciso conquistar primeiro
esta cara-de-pau que tu e o Amílcar já têm de nascença, para
depois conquistar uma garota.
- Te dou cinco minutos, nem mais nem menos, viu?
- Tá, tá! Já tenho uma garota em vista.

**********
Amílcar havia acabado de chegar em sua paquera, aquela
que não foi dançar com o Luiz. Encarou-a de frente e disse:
- Oi, gata!
- Oi, tigre!
Riram descontraidamente. Amílcar cruzou os braços,
deixando aparecer aqueles bíceps avantajados, resultado de
trabalhos braçais da lida do dia-a-dia na roça. Ele pendeu a
cabeça para o lado, e com olhar intrigado falou:

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- Você fez uma cena terrível com aquele rapaz há pouco!
- Ele me amolou!
- Como, assim?
- Ora, me chamou de gostosa, bunduda...
- Isto pra ti significa ser amolada?
- Sei lá! ...Acho chato.
- Chato seria se ninguém a convidasse para dançar.
- Olha, dependendo do cara, é melhor ficar sem dançar! –
Cruzou os braços também e encarou com seriedade Amílcar: Chato mesmo é o olhar de tarado que aquele bobalhão fez, viu?
- Bom, ...eu não vi e por isso não posso dar minha
opinião. Mas, se o dono do salão tivesse visto sua atitude há
pouco, ele com certeza mandaria seus seguranças a porem para
fora sem direito à volta.
- É? Não diga!? ...Suponho que você veio fazê-lo
pessoalmente, não foi?
Amílcar, com a maior desfaçatez retrucou:
- Mais ou menos! Vim tirá-la daqui para colocá-la no
meio da pista! ...Vamos dançar?
- E se eu disser que não? Vai me expulsar daqui? ...Vai
falar para o dono do salão que não fui dançar com ninguém?
Amílcar pensou que a menina estava querendo brincar. E,
soltando os braços, falou em tom de brincadeira:
- Se disser que não, eu simplesmente me viro, retorno
para a minha mesa e tentarei cozinhá-la mais um pouco, e,
- Pois então, faça o favor! – Atalhou a garota.
O rapaz ficou estático, paralisado, estupefato. Nunca
havia imaginado receber uma resposta como aquela, tão
inesperada. A troco de que aquele pedacinho de gente o havia
encarado com tanta volúpia durante aquele tempo todo? O que
aquela garota queria naquele baile, se negava-se a dançar com
todo mundo? O que havia de errado? Ele não fora grosseiro,
pelo contrário, fora gentil e se aproximara dela com um jeito
garboso e natural.
Enquanto remoía estes pensamentos sentiu o sangue lhe
subir à cabeça. Nunca havia ganho uma resposta assim em toda
a sua vida. Nunca, em baile algum, ninguém lhe negara dançar
com ele. Está certo que em alguns outros bailes algumas
garotas só haviam dançado uma música com ele e já o haviam
despachado. Mas não assim: de primeira, na cara, como um
murro! Como agir, ou melhor, reagir? ...Pelo canto do olho
viu que seus irmãos o observavam. E ele não podia esmorecer
logo com a primeira garota da noite, para não inibir ainda
mais o seu irmão. O pior é que a garota olhava para Amílcar,
ao mesmo tempo desafiando e implorando, como se escondesse um
grande mistério. Ou, no fim, seria somente uma tremenda e
salgada amargura de recalque de garota riquinha de cidade

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grande. Como proceder? A moça o deixara em parafuso e as
ideias não fluíam, não vinham à tona. Então tentou consertar:
- Ô gata! Qual é o problema de a gente ir dançar um
pouco e se divertir?
- Você é o problema!
- Eeeu?
- É! Você! Tá cheirando a roça e a palheiro; dá a
impressão de ser até coisa pior, tipo maconha.
- Espera aí, garota! Eu tomei um bom banho antes de vir
para este baile e você está sendo indiscriminada e,
- Há, há, há, banho? Claro, tomou um banho daquele
perfume de buteco Ara, que com qualquer troco você compra e
que cobre qualquer nhaca.
- Está difícil manter assim um diálogo com você. Pro seu
governo, eu nem uso esse tal de Ara. Eu uso...
- O quê? Cueca samba-canção? ...desodorante ‘roll on’?
Ou, usa o papo para levar as garotas bobas daqui na conversa?
- Calma, não se altere! Vamos conversar? – Amenizou
Amílcar. A garota, agora com as mãos na cintura, balançando
as ancas disse:
- Não chateia, tá?
Amílcar, que o tempo todo esteve tentando amainar o
relacionamento com a garota a fim de entrarem numa conversa
civilizada, descobriu por fim que ali não tinha nenhuma
chance. Então partiu também para a ignorância:
- Espera aí! Não vamos começar por este lado descendo o
nível! Somente vim aqui convidá-la para dançar e você me
recebeu com patadas. Não pode ser assim, amarga! Garota, a
vida é tão bacana, não é justo você tratar as pessoas deste
jeito. Vamos parar com as grosserias?
- Há, há, há, ...um grosso se cheira de longe!
- O quê? Quem é grosso? - Redarguiu Amílcar possesso de
raiva. A garota o tirara do sério: - Grossa foi você que
ficou me paquerando o tempo todo e agora que cheguei aqui,
está me queimando. Isto para mim é grossura!
- Não foi para você que eu estava olhando! – Respondeu a
garota. Encolheu os ombros, olhando para o lado: - Foi você
que não soube me interpretar.
- Pra quem estava olhando então? Pra mesa onde eu estava
sentado?
- Nada a ver!
- ...Ah, já sei: você é tão pobre e faveleira que estava
de olho na minha bebida e nas fritas lá da mesa! ...Agora
entendi!
- Metido a engraçadinho! Bem que me disseram que aqui em
Recanto só tinha gente grossa. E é só o que encontrei até
agora!

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- Bom! Muito bom! Você está me chamando de grosso, estou
certo?
- Certo! Certíssimo! Chô, chô, desopila! Cai fora!
- Só vou embora quando terminarmos esta discussão. Vem
cá!
Amílcar forçou a garota a acompanhá-lo. Foram uns dez
metros, num ponto onde seus irmãos não mais os divisassem e
ele a soltou. Antes de deixá-la ir embora, puxou-a de volta
no braço e disse:
- Já que eu sou grosso, escuta essa: Tomara que você, ou
melhor, tu, viu? Tu!!! Afinal, sou grosso! Tomara que tu
tenhas uma semana de diarréia, daquelas que te fazem mudar
pro banheiro, viu? E que cagues todas as tuas calcinhas, que
vás precisar pedir emprestado as cuecas do teu irmão para não
andar sem nada!
A garota fez ar de nojo. Não esperava esta incitação. Só
conseguiu responder:
- Pra você também! E que sua diarréia seja tão fedorenta
que o cheiro estrague seu estômago!
- Puta! – Gritou irado Amílcar enquanto ela estava se
virando para sair de mansinho. A garota ainda virou seu rosto
para ele e franziu o nariz numa expressão animalesca de ira e
sumiu na multidão.
O rapaz sorriu: sempre fora autêntico e natural, mas a
extravasada saída que o acometera fê-lo sentir-se ufano.
Voltou à mesa. Sandra encontrava-se sozinha. Plauto tinha ido
ao banheiro. A irmã quis saber de todos os detalhes da
conversa de Amílcar com aquela pirada e achou a discussão
muito banal. Chamou a garota de perua desalmada.
Quando Plauto voltou à mesa, pediram algo para comer.
Amílcar, para variar, já estava paquerando outra garota.
Desta vez era uma bela dama, parecendo ser de uma estirpe
nobre, moralista e severa. Simplesmente dava-lhe esta
impressão porque uma senhora de mais idade sentava ao lado
dela e fazia a figura de guardiã austera; e àquela senhora,
nada passava despercebido e ela já notara, bem antes da moça,
que ele a estava observando. Amílcar tentou esboçar um
sorriso meio amarelo, ao que a senhora de meia idade
retribuiu, mostrando vários pivôs de ouro. A mocinha disse
qualquer coisa ao pé do ouvido da senhora, ao que ela
retrucou assentindo com a cabeça. Certamente estava aprovando
o rapaz que a interessava.
Amílcar deu uma cutucada em Plauto e disse:
- Mano, vou tentar uma menina onde terei que pedir o
consentimento da mãe! O que achas?
- Depois que levaste o fora daquela gatinha manhosa,
tudo deve ser lucro esta noite.

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- Lembra-te que a ‘gatinha manhosa’ não dançou com
ninguém ainda.
- Eu sei! Só estou brincando. Mas, voltando à dama de
olhos negros... ...Estou bom para ver o resultado! ...Você
com esta cara de sacanagem... não sei não! Aquela senhora de
meia idade aí – apontou – deve ter esquecido seus óculos em
casa e está confundindo você com algum latifundiário da
região.
- Eu vou e... ah! Deixa pra lá! As vezes sou meio
convencido. Aí acontecem os incidentes como aquele com aquela
cheiona metida a conquistadora e nesta semana, completamente
desarranjada conforme a praga que roguei.
- Força mano! Não desanima! Cadê tua autoconfiança? E é
bom dar um jeito para não ser passado para trás por mim,
hehe.
- O quê? Está de olho em alguém?
- Claro! Não sou de ferro, né!
- Aonde, aonde? Me mostra!
- Espera, Amílcar! Ela chegou agora no baile e acho que
nem me viu ainda.
- Mas, o que está esperando? Criar coragem?
- Não, mano! Criar ‘cara de pau’.
- Se quer algumas aulas te dou de graça.
- Lá vou eu! – Disse Amílcar e se levantou, fazendo
gesto de fortão para o mano e seguindo em direção à mesa
daquela garota franzina. De longe dava a impressão de ela não
ter mais que os anos de Amílcar após a sua adolescência, mas
ele foi firme até lá, e prontamente se postou diante dela e
disse:
- Com licença! Tenho certeza de que gostaria de dançar
um pouco comigo! ... Aceita?
Ela cochichou qualquer coisa no ouvido da senhora que a
acompanhava e a mais velha assentiu. A garota levantou-se de
súbito, não proferiu palavra alguma, aliás nem sequer para o
rosto de Amílcar olhou e seguiu em direção à pista. O rapaz
teve que acelerar o passo, desvencilhar-se de diversas
pessoas e ainda ouvir gracinhas de conhecidos já meio
tocados, para alcançar a garota:
- Vai criar a menina?
- Não sabia que já tinha uma filha tão grande!
- Nem parece que puxou o pai! Ela é muito mais linda!
- Olha, que aliciar menores dá cadeia!
Todas estas foram frases proferidas pelos ‘amigos’ do
Amílcar, os quais, já bastante ‘tocados’ pela bebida, não
estavam no baile para arrumar namorada, mas, sim, para
bagunçarem. E eles faziam sua festa particular.

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Já entre os dançarinos, ela continuou sem encará-lo,
saindo
em
movimento,
dançando.
Dançava
muito
mal,
desompassadamente, pisoteando os sapatos pretos e reluzentes
do acompanhante. Assim passaram um bom tempo; Amílcar fazia
perguntas; ela respondia que sim, que não, que talvez. Ele
nunca haveria de se perdoar por ter arriscado dançar com uma
garotinha quase pré-adolescente, ainda cheirando a leite e
com uma espinha deveras evoluída – parecendo um vulcão
prestes à errupção – bem no meio da testa. Mas, pausado em
suas interpretações e já vivido o suficiente para tentar
entender as pessoas, desconfiou ser possível estar faltando a
pergunta chave, para que ela se encorajasse a ser real e
franca, desenvolvendo uma conversa sadia. Ele, pacientemente
fez várias perguntas, ensaiou mais algumas, sondou, mas tudo
foi em vão. As respostas da garota continuaram evasivas. Ele
não
sentia
nenhum
regalo
com
aquela
criatura
como
companheira. Seus dedos dos pés já meio desorientados pelo
não uso frequente de sapatos, estavam parecendo balões a
ponto de explodirem, de tantos pisões levados pelos saltinhos
pontudos do sapatinho trinta e dois da garota dançarina.
No intervalo musical seguinte, tentou uma última
pergunta para ver se ela se fazia mais agradável:
- Você é sempre assim?
- Como?
- Ora, você sempre se comporta assim quieta nos bailes?
- Não!
- E por que você está sendo assim comigo?
- Porque sim!
- Porque sim não é resposta! Diga mais alguma coisa além
de sim e não. Por que não fala? Deve saber outros assuntos
além das belas palavras que já trocamos esta noite!
- Não sei!
- Há, há... falou outras palavras! Mas eu sei!
- Sabe o que?
- Sei e posso dizer exatamente o que é que está travando
você de falar. Mas, eu gostaria de ouvir isto de sua bela
boquinha, guardando atás destes lábios tão bem pintadinhos
este monte de dentinhos parecendo pérolas.
- Uáu, que liiindo! Nunca ouvi isto! Fala mais um pouco
que eu me abrirei ...
- Ora, ora, ora! A mocinha sabe falar! Mas, como eu ia
dizendo, além desta bela boquinha, você está muito sexi neste
vestidinho grafite colante! Que curvas! Aposto como sou o
primeiro em sua vida a lhe falar isto cara-a-cara! – A moça
desviou o olhar. – Ih! Vermelhou!?! Desculpe! Não tive a
intenção. Mas, juro que todo o que falei é a mais pura
verdade: é a externação dos meus sentimentos. Tudo combina em

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você, a começar pelo cabelo. Só não gosto do jeito como está
me tratando.
- Não fala assim. Vou mudar, eu juro! Fala mais um
pouco?
- Vamos ver... Aposto também, que sou o primeiro a
beijar sua testa!
- Fazer o que?
- Ora, dar um beijo em sua testa, assim:
Amílcar
fez
menção
em
beijá-la,
ao
que
ela
cordialmente o afastou. Ele, olhando maliciosamente em seus
olhos, beijou a ponta do seu indicador e o pousou suavemente
na testa da mocinha, do lado da espinhona. Ela, por sua vez,
não conseguiu esconder o embaraço e a disparada do seu
coração. O rapaz segredou:
- Da próxima vez pedirei licença para tamanha ousadia.
Mas, vai ser para beijar estes lábios lindos e desejosos com
um beijo bem prolongado.
A garota enrubesceu, desviando seus olhos dos de
Amílcar. Em seguida, fez-se um pequeno silêncio entre os
dois. Ela levantou novamente os olhos encarando o olhar
malicioso e desejoso do rapaz. Olhavam-se estudando cada qual
as feições do companheiro. Amílcar quebrou o silêncio
voltando à questão das respostas da moça.
- E então? Vai abrir o jogo agora?
Meio sem jeito, a moça respondeu:
- Vou! ...não posso me soltar com ninguém por causa...
por... causa da minha mãe! – e se autoafirmando – é, por
causa da minha mãe, já falei, pronto!
- Sua mãe?
- É, é! Está sempre pegando no meu pé. Não tenho
liberdade para nada, até é ela quem escolhe com quem vou
dançar.
- Sua mãe faz isto?
- Faz! E aos olhos dela, faço tudo errado.
- Fale mais, desabafe! Isto ajuda você a se sentir
melhor.
A menina começou a contar sobre sua vida, seu modo de
agir e o quanto a mãe interferia em tudo. Amílcar viu
sinceridade em suas queixas. Ele aproveitou e lhe deu
diversos conselhos, a fim de ela libertar-se das garras da
mãe, ávida por uma futura filha impoluta e indelével. Mas,
depois de falar e aconselhar bastante, sentiu que a garota
de modo algum fazia o seu gênero. Ele gostava de gente
alegre, pra cima, e a garota era o inverso disso. Também não
queria ficar de conselheiro e confidente a noite toda para
quem fosse, nem mesmo para esta garota tão bonita, apesar da
espinhona no meio da testa. Aquela noite ele queria só se

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divertir. Por outro lado, não queria mandar a menina embora
na maior, afinal ela já demonstrara estar cheia de problemas,
e ele não queria acrescentar mais um em sua vida.
Por outro lado também, analisando as curvas da garota,
valia a pena o esforço de ficar ouvindo seus queixumes. E a
banda reiniciou uma melodia brega, de dança lenta, atrevida.
Amílcar, aproveitando a oportunidade trouxe a menina mais
perto, ao que ela o arrastou para o meio da pista,
despistando do olhar de sua mãe. Dançaram bem coladinhos e
nas manobras para lá e para cá, sentiu a perna da menina
entre as suas procurando roçar suas partes. E ele, tateando
com sua coxa procurou fazer o mesmo, apertando sua virilha. E
no esfrega-esfrega, as maçãs do rosto da menina começaram a
ficar vermelhinhas, parecendo ela até estar com febre. Mas,
era a febre da libido.
Continuaram assim por três músicas inteiras, entre
boleros e ‘foxes’. Amílcar gostou e por sinal, a menina teve
sua primeira oportunidade de um aconchego mais próximo, mais
íntimo. Pelo seu comportamento também mostrava ter gostado da
nova experiência. Ela estava ‘prontinha’. Seu olhar desejoso
a estava entregando. E a tesão do rapaz era tanta, que, num
impulso a convidou para darem uma volta no lado de fora do
salão. A menina assentiu, e na loucura daquele impulso, tudo
indicava que agora mãe nenhuma iria impedi-la de perder a
virgindade.
Mas, ao sairem da pista, a mãe aguardava ansiosa a
filha:
- Onde foi que se meteu, Tífani?
- Ora, eu estava no meio da pista. Ela está muito cheia.
– Respondeu a garota para a sua mãe. Amílcar teve sua mão
arrancada da mão da garota pela mãe que estava com um olhar
diabólico. Ele falou:
- Olha, não aconteceu nada demais. Por que esta atitude?
- A Tífani não é destas vadias que se acha por aí, viu?
Ela tem família.
Tífani silenciou, baixando os olhos, resignada. Amílcar
disse:
_ Pois quero que a senhora saiba que esta garota tem uma
alma iluminada, tem tudo para ser um orgulho para você. Mas
se continuar a superprotegê-la, qualquer hora vai aprontar
alguma.
- Vamos para a mesa, Tífani!
- Por que, mamãe? ...estou acompanhada, não viu?
- Deixa pra lá, Tífani. – Disse Amílcar. E cochichando
no seu ouvido, passou o número do seu telefone. – A gente se
vê!

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Tífani continuou olhando desejosa para Amílcar saindo de
perto enquanto a mãe a arrastava de volta para a sua mesa.
Assim, a segunda companheira não completou sua noite.
Fora mais uma experiência sem sucesso.
Mas, ainda tinha muito baile pela frente.

**********

Voltando à mesa, Plauto ainda continuava lá, porém mais
desinibido e seletivo. Amílcar perguntou, enquanto acendia um
cigarro:
- Como está a paquera:
- Vai indo! Estou de olho numas três garotas. O que você
acha daquela ali? – apontou discretamente.
Amílcar observou meticulosamente por alguns momentos a
fim de tentar averiguar todos os detalhes de comportamento da
garota, por mais ínfimos que fossem. Por um instante, passoulhe na mente a impressão de que aquela seria a perfeita
companhia para seu irmão naquele baile. Parecia ser uma
garota sensacional. As aparências enganam, claro, mas a
garota transpirava seu interior. Via-se um brilho de grandeza
naquela pessoa. Por fim, aconselhou:
- Mano velho, afirmo que esta pequena facilmente vai
cair no seu papo! – levantou os ombros, fez postura de
personagem famoso – assim: componha-se!
- Escuta! ...Veio um cara com Sandra e a tirou para
dançar; parecia um rei, e...
- E, e, e, e! Não mude de assunto, Plauto! Não me diga
que está querendo perder aquela garota para outro cara, tipo
Luiz?! Vamos! Aproveita a chance, que outra é difícil de
aparecer!
Plauto ainda remanchou, tentando desconversar, mas,
acabou cedendo. Cruzou os dedos, levantou-se e saiu
titubeando. Seu irmão o seguiu com olhar aprovador e ficou
muito feliz ao ver os dois seguindo para a pista.
Agora era a vez dele tratar de si mesmo. Só tivera
dissabores naquela noite, apesar da tesão que experimentara
com Tífani deixando ela louca por ele. Mas, nem tudo estava
perdido. Singrou o salão à procura da mesa onde a garota
sentava com sua mãe. Os dois se olharam e ela, através de
gestos mostrou que iria telefonar para ele. Ele assentiu e já
desviou o olhar de Tífani, pois sua mãe começou a encará-lo,
braba. Todos estes acontecimentos não o haviam aborrecido,

51
afinal, tinha ainda muito pela frente, e tudo era uma questão
de oportunidade.
Olhou para os dois lados e ficou espreitando uma cena
que
se
desenrolava
ali
perto:
um
casalzinho
estava
concentrado nos mais frenéticos beijos e carinhos, quando uma
senhora de mais idade chegava para junto deles. Nem ele, nem
ela, se deram conta desta súbita companhia e continuaram em
seu regalo. A senhora postou-se entre os dois abrindo caminho
com a bolsa entre os lábios dos frenéticos beijoqueiros.
“Deve ser esquisita a sensação de beijar, de repente, o couro
duro e frio de uma bolsa ao invés dos lábios fofinhos e
quentes da menina e ainda ter que enfrentar o olhar brabinho
– fez beiços – da mãe dela!” – pensou Amílcar enquanto via a
cena e começou a rir. Vários começaram a rir e a senhora não
perdeu o rebolado. Tomou a sua filha, esbofeteou o rapaz com
a bolsa e rumaram para fora do salão. Logo juntaram-se vários
rapazes ao redor do vitimado e fizeram folia fazendo cócegas
nele, mexendo em seus cabelos e mandaram trazer várias
cervejas fazendo a comemoração ali mesmo. E a festa foi geral
naquele canto, com muitos gritos primitivos e gestos
antiquados imitando velhas neuróticas.

************

Um rapaz se aventurou em convidar a moça deslumbrante, e
desconhecida que entrara no salão com dois guarda-costas. Ela
prontamente aceitou. Mas o estranho, é que na metade da
primeira música, os dois voltaram da pista. Decerto ele não
agradara aquela garota com a sua companhia.
A mesma coisa aconteceu com mais dois pretendentes, que
também não chegaram a concluir a dança de uma música e já se
viam desligados daquela estranha moça que assim, continuava
sozinha perto da mesa de Sandra. Era difícil de compreender o
motivo pelo qual tal garota não ficava na pista muito tempo
com seus pretensos dançarinos.

**************

52
Enquanto Amílcar ria, nem reparou que alguém se plantara
na sua mesa. Quando se deu conta, viu tratar-se de um de seus
desafortunados amigos, entre aspas, o qual provavelmente
vinha
se
lamentar.
Ao
repará-lo
Amílcar
cortou
automaticamente o sorriso, tornando seu semblante fechado. O
rapaz disse algumas obviedades, as quais foram retrucadas por
monossílabos. Era o Lido, que foi sentando e encomendou com o
garçom saco-de-açúcar um prato de picadinhos. Amílcar
imaginou que o melhor teria sido ficar aquela noite, em sua
casa, dormindo. Estava dando tudo errado. Não tivera ainda em
seus braços a garota de seus sonhos e agora que iria à luta
se via dominado por um bundão medroso a tomar-lhe o tempo.
Chegou até a duvidar da eficiência de suas qualidades de
galante conquistador. Sua conclusão foi de que o melhor
cavaleiro às vezes também cai do cavalo. Pensou em seus
irmãos: pelo visto, ambos haviam acertado aquela noite, pois
já passara um tempo e eles ainda continuavam na pista. O
infiltrante da mesa continuava matraqueando. Nem reparou que
seu pretenso anfitrião não lhe dava ouvidos. Claro, Amílcar
estava absorto em seus pensamentos e nem se dera conta de que
alguém o analisava. Veio o garçom. Trouxe um prato de
batatinha-frita parecendo couro amanhecido de tão murchas que
as batatas se encontravam. Lido não gostou do engano:
- Mas eu pedi picadinho e não batata-frita!
O garçom, largando o prato na mesa e enxugando as mãos
meio engorduradas na toalha, retrucou:
- Se tivesse pedido picadinho, eu teria trazido. Como
pediu batata-frita, ela está aí. São quatro reais!
- Amílcar, me ajuda! Eu pedi ou não pedi picadinho para
ele?
Amílcar, louco para se ver livre daquele chato retrucou:
- Hum, áh, ... o que?
- Diz para este metido a engraçadinho o que mandei
servir para nós!?
- Sei lá! Foi um picadinho?
O garçom, incrédulo, tentou:
- Ele não tem certeza. Eu é quem estou certo!
- Certo uma ova! – Grunhiu Lido. – O que foi que pedi,
Amílcar?
E Amílcar, para acabar com a discussão, falou:
- Pediu picadinho, Lido.
- Viu só? – falou o rapaz. O garçom, ainda incrédulo
tentou:
- Não quer mesmo ficar com este prato de batatas?
- Não! Isto a minha mãe pode fazer em casa. Mas, salame
ela não pode! Trás o picadinho.
- Faço três reais e...

53
- Eu já disse que não quero! Vá, vá! Traga o que pedi!
Enquanto os dois, o garçom e Lido discutiam sobre as
banalidades de um pratinho de salgados, Amílcar descobriu no
meio da multidão a garota que já o observava há tempo. Era
loira, cor de olhos: natureza. Ele tremeu na base: que
mulheraça! Entrou firme na paquera. Nisso passou outro garçom
com o prato de picadinhos e o trocou pelas batatas
amanhecidas do primeiro garçom, o qual ainda se encontrava em
frenética discussão com Lido. Por fim, tudo se resolveu. O
rapaz pagou a conta e não esperou um minuto sequer para
devorar a comida. Ofereceu para o seu pretenso anfitrião,
que, ao invés de aceitar, resolveu ir logo para junto da
garota que estava paquerando ele. Lido ficou boquiaberto
seguindo os passos de Amílcar, mastigando feito um porco.

**************

A loira o aguardava de braços cruzados:
- Alô!
Amílcar sorriu. Prosseguindo, apontou para ela:
- Você não se importaria em ocupar um lugarzinho comigo
ali na pista?
- De modo algum!
- Então, ...ótimo! Que estamos esperando?
- Nadinha! Me segue. Se for rápido, vai me alcançar. E
saiu em largos passos em direção da pista de dança.
Amílcar, mais do que ligeiro seguiu a garota e já teve a
oportunidade em divisar os quadris bem demarcados pela calça
justa, a qual também sustentava um trazeiro perfeito. “Que
bunda!” – Pensou ele enquanto a alcançava. Chegaram à pista.
De mãos dadas subiram o degrauzinho da pista de dança, quando
ele viu seu irmão, o Plauto, dançando coladinho com a
belíssima garota, demonstrando já bastante intimidade. Os
dois se viram, sorriram e Plauto fez um gesto de aprovação
para Amílcar, que por sua vez tomou os braços da loira e
colocou-os em seus próprios ombros. Encarou-a com carinho:
- Dance da maneira como você está acostumada que a
acompanharei.
- Legal! Senti firmeza!
- Firme é teu astral, gata! Gostei!

54
- Então, vamos dançar? – Disse a moça esboçando um
sorriso, deixando aflorar dentes brancos, alvos.
Dançaram e conversaram muito durante a dança. Amílcar
encontrara uma garota do jeito como gostava: papuda, de bem
com a vida. E conversaram de tudo, de todos, sobre tudo e
sobre coisas até desconhecidas. A conversa fluía natural,
assunto após assunto, parecendo os dois se conhecerem há
anos. E nunca haviam se visto antes. Volta e meia a loira
errava o passo concentrada no assunto da conversa e Amílcar
nem reparava. Gracejavam. Riam em voz alta. Abraçavam-se como
velhos conhecidos. E a banda ensaiava ritmos dos mais
variados, ligeiros, cansativos. Após algum tempo de dança,
estavam os dois exaustos. Amílcar consultou seu relógio:
teriam ainda mais de uma hora para se divertirem e se
descobrirem melhor. Cansado, convidou-a para sentar. Ela
prontamente aceitou. Foram até à mesa. O amigo chato já não
se
encontrava
mais
lá.
A
mesa
estava
completamente
desocupada. Enfim, só os dois, já sentados, o rapaz falou:
- Você bebe o que?
- o que você quiser!
- Cerveja?
- Ótimo! Serve!
- Mas. Se quiser outra coisa, um refri, ou...
- Não! Está bom assim: cerveja!
- Você é bem decidida, hein?
- Com certeza! Você vai me conhecer melhor e verá que eu
não tenho frescura nenhuma pra nada. Sou decidida, mas tudo
serve.
Amílcar chamou um garçom saco-de-açúcar. Prontamente,
veio um correndo. Depois, ele perguntou para a garota:
- O seu nome não é “você”, disso tenho certeza!
- He, he, deixo que você adivinhe.
- Como começa?
- Não, não! Adivinhe!
- Por favor, me dá uma pequena mãozinha, senão fica
difícil.
- Começa com “V”!
- Viu só? Eu estava tentando adivinhar seu nome, dizendo
que era “Clara”! Agora já vi que não é.
- Clara é minha pele e claro é meu cabelo, hehe.
- Você disse que começa com V. Bom, tem muitos nomes que
começam com V. Tipo: Vera, Virgínia, Valdete?
- Não, errou! Não deveria, mas te dou mais uma chance.
- Vanda?
- Errou de novo. Não deveria porque já deu quatro nomes,
mas vou deixá-lo adivinhar mais uma vez.
- Por favor, dê-me mais uma letra! Está difícil...

55
- Está bem! Te dou duas letras a mais: Vê – a – éle.
- Val... Valdete eu já disse. ...Valdirene?
- Está louco? Se eu tivesse um nome desses, me
suicidava! Errou de novo!
- Espera! ...Valéria?
- Há, há, há!
- Acertei? É Valéria?
- Não, bobinho, acabaram-se as chances e você não
acertou. Meu nome é Valquíria.
- Uauuu! Que nome lindo!!! Tem tudo a ver com você! Em
todo o caso, deixa eu ver: ... – enquadrando a moça melhor no
visual, - combina perfeitamente com você!
- Eu não gosto do meu nome. – Cortou ela. Valquíria fez
uma pequena pausa; olhou o cartão de reserva da mesa onde
estava anotado o nome do dono. – O seu nome é Amílcar?
- Ah, isto não vale! Pra você foi muito fácil! Está
escrito ali no cartão. Desta vez me passou a perna
direitinho!
- E sei passar a perna de outras maneiras também, viu?
Valquíria olhou lascivamente para Amílcar que ainda
estava indignado com a facilidade que ela teve em descobrir
seu nome. Ela completou:
- Em jogos de esperteza, não há regras, queridinho!
- No jogo do amor, também não, queridinha!
Enquanto Amílcar proferia estas palavras, aproximou-se
de Valquíria e roçou suavemente seus lábios nos lábios dela.
Ela não resistiu e repassou o feito vorazmente, parecendo
querer lhe arrancar os lábios à força. Algumas senhoras mais
idosas, mães de garotas que, certamente estavam dançando na
mais impoluta inocência com rapazes respeitáveis, observavam
os dois com ojeriza, já antecipando seus pensamentos nos
motivos de fofoca que estas cenas provocariam às linguarudas
de Recanto, caso fossem acontecer com estas filhas. Com
certeza, se houvesse ocorrido tamanho atrevimento, de beijar
na boca um rapaz na frente de todo mundo, semana que vem
ficariam sabendo de tudo. Mas estas mesmas mulheres não se
davam conta que, no meio da pista, escondidas pela barreira
dos dançarinos, as moças beijavam de língua, deixando de ser
polutas e puras, ficando sua inocência questionável.
De
repente,
uma
senhora
olhou,
ficou
estagnada,
explodindo em seguida, pensando tratar-se de sua filha estar
aos beijos com Amílcar. Uma amiga sua
barrou-a a tempo de
evitar o escândalo, fazendo com que reconhecesse a sua
confusão. Aliviada, ajeitou-se novamente na cadeira e
continuou matraqueando com a amiga.
Sandra passou dançando perto da mesa que Amílcar e
Valquíria ocupavam e sorriu satisfeita com a troca de

56
carinhos do casal. Ele a viu. Fez sinal para ela continuar
dançando.
De repente ouviu-se um estrondo de mesa quebrando, copos
e garrafas caindo em cacos. Não foi difícil ver-se de onde
emanara o início da confusão: eram dois rapazes que haviam se
agarrado em duelo. Um, puxou uma cadeira e espatifou-a nas
costas do outro, o qual derramou-se em sangue. Os asseclas do
dono do salão já estavam chegando no confronto. Gritinhos
histéricos e amedrontados partiam de todos os cantos do
recinto, a ponto de superarem o melodioso toque ensaiado
pelos músicos. Valquíria não perdeu tempo em amparar-se nos
braços de Amílcar, que por sua vez, não poupava os carinhos –
alguns até maliciosos – para acalmá-la e suavizar-lhe a
adrenalina inevitável num momento como este. Entraram mais
três na pauleira. A baderna fechou geral naquele canto. Os
músicos, abafados pela gritaria, pararam e se espremeram
atrás das caixas de som. Todos pararam. O “motor da pista”
parou. Até dava a impressão que o ar parou. Somente a briga
não parou. Aliás, ela tornou-se o tétrico centro das
atenções. Os gritos enfurecidos dos “gladiadores” ecoavam
coléricos e alcoólicos. Alguns pares mais afoitos, ocuparamse na pista em treinar beijos dos mais variados, tirando
proveito da desatenção da maioria, principalmente do cuidado
demasiado das mães.
O bolo dos brigões engrossou. Agora eram pelo menos doze
pessoas se esmurrando, se derrubando e se chutando. Mas, a
‘festa’ acabou
quando dois ‘orangotangos’ guarda-costas
apartaram a briga, levando os insidiosos arruaceiros para o
seu devido lugar: a rua. Ao todo foram quatro os expulsos,
justamente os que haviam iniciado a briga. Por fim, dez
minutos se passaram, tudo se normalizou e a banda, para
reiniciar, estremeceu no legítimo “Truff Jacó”. Amílcar olhou
para Valquíria que ainda tremia, mas já começava a se
acalmar. Sorriram infantilmente e combinaram ir dançar.

**************

Mais um pretendente chegou junto daquela moça enigmática
e a convidou para dançar. Os dois rapazes que haviam entrado
com ela no salão, não eram mais vistos em nenhum lugar.
A moça prontamente aceitou o convite e seguiram para a
pista de mãos dadas.

57
Aconteceu o mesmo problema: dançaram uma música e meia e
já estavam os dois separados. O que havia de diferente com
aquela moça tão delineada, tão marcante? Uma infinidade de
rapazes a convidou para dançar, mas ninguém aguentou ficar
com ela mais do que duas músicas. Uma garota tão diferente,
vistosa, desimpedida e disposta, aceitando todos os convites
para dançar, mas ninguém vingava para ser sua companhia.
Deveria haver algum motivo muito sério para não conseguir
segurar os rapazes por mais de duas músicas. Teria ela mauhálito? Ou, não sabia dançar? Quem sabe, era desdentada? Ou,
quem sabe, seu sovaco estaria com cheiro muito forte,
nocauteante? Tem pessoas que, emocionadas, exalam odores
terríveis em suas axilas. Seria este o seu problema? O que
tinha, ou fazia ela de errado para logo perder seu par?

**************

Plauto estava por demais satisfeito com a garota que
arranjara. Sentiu-se sobremaneira fascinado pela sensualidade
de sua voz a sussurar-lhe palavras dóceis e libidinosas em
seu ouvido. Helena simplesmente conseguiu modificar o
conceito de Plauto sobre as garotas: talvez ela até tivesse
despertado algum sentimento de amor profundo nele. Sim, pois
Plauto sentia-se inebriado, sufocado, leve e... desorientado!
E esta sensação aumentava em cada centímetro de aproximação
para aquele monumento. Seu coração batia, ardia, pulsava,
chacoalhava e amava em todos os detalhes do seu corpo.
Pudera! Helena conseguira modificá-lo em todas as suas
dimensões, tornando-o grande, muito grande... Plauto dizia
palavras desconexas. Suava, estava molhadinho e o amor
transpirava por seus poros deixando a atmosfera ao seu redor
ácida, excitante. Helena pensou que, talvez até ele tivesse
bebido demais, porém as frases cheias de doçura que brotavam
de seus lábios, só podiam ser fruto de uma sobriedade à toda
prova. “Gamei de cara!” – Pensava ele enquanto trazia ela
mais perto de si, enquanto a banda iniciava uma balada
romântica, daquelas do tipo onde o casal fica parado no mesmo
lugar na pista, somente balançando o corpo e se comprimindo.
Ao término da balada, um fox meloso, provocante, e a
bandinha ensaiou uma música rápida, arredia. Plauto, já
bastante cansado pelo tempo em que se encontravam dançando,
quis sentar-se:
- Helena, estou a fim de sentar. Você se importa?

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Baile do interior - Livro de contos.

  • 1. Baile do Interior Pio Rambo CONTOS Balneário Vale-Tudo Baile do Interior Incertezas Problemas em Família 1
  • 2. CONTOS PIO RAMBO BAILE DO INTERIOR Gráfica: 2
  • 3. PK PRODUÇÕES 2008 Digitação: Pio Rambo Formatação: Silvana Alff Fotocomposição: Paulo Klein Impressão: Paulo Klein Revisão: Renato Klein Revisão Final: Roberto Stürmer Capa e Ilustrações: Clóvis Rambo 3
  • 4. IMPRESSÃO: PK PRODUÇÕES Rua Willi Klein, 964 Morada do Vale 95760-000 São Sebastião do Caí – RS Telefone: (51) 3635 2112 4
  • 5. Dedico este livro à Berenice minha esposa, ao Wagner e ao Guilherme, que com sua compreensão e tolerância me ajudaram na criação desta obra. Dedico este livro também à juventude maravilhosa que tive, da qual surgiu a inspiração para escrever estes contos. AGRADECIMENTOS Agradeço a Deus o dom de passar para o papel as vivências que nos cercam. Agradeço aos meus pais (in memoriam) o seu esforço e empenho para que eu tivesse formação escolar. Agradeço ao Renato Klein por ter me incentivado a ir adiante com este projeto. Agradeço ao Paulo Klein o estímulo e o voto de confiança dados para que esta minha primeira obra fosse editada. Agradeço ao Clóvis, meu irmão, pelas lindas ilustrações e a bela capa produzidas em momento de grande inspiração. 5
  • 6. Agradeço a revisão crítica e cuidadosa feita pelo Roberto Stürmer para deixarmos este livro com a menor margem de erros possível. APRESENTAÇÃO: 6
  • 7. INTRODUÇÃO Através destes quatro contos procurei recriar fatos comuns que acontecem no interior, em cidades pequenas como a nossa São Sebastião do Caí. As duas primeiras estórias são leves, bem humoradas, retratando os acontecimentos (todos fictícios), com simplória naturalidade. 7
  • 8. Já os dois últimos contos, na primeira pessoa, invadem um pouco mais o sentimento humano, fatos que podem acontecer com qualquer pessoa após sua adolescência buscando a compreensão do confronto entre o indivíduo e a realidade que o cerca principalmente nas dúvidas do amor. São Sebastião do Caí, 16 de Agosto de 2008. O autor. 8
  • 11. É, este título não está aí só para cativar tua leitura (ou quase), mas realmente acontecem coisas incríveis e inacreditáveis lá. Diria que até parecem mentiras. Um dia, desses chove-não-chove (só sei que o céu estava a fim de fazer pipi toda hora), eu estava enjoado de ficar em casa contando o tempo que passava sem fazer nada, decidi ir ao bar e levantar um pouco o teor alcoólico do meu corpo com uma cerveja. Quando cheguei lá, foi só sentar e já dei de cara com o “Bafudo”. Na mesma hora desisti de acender o cigarro que já prendia entre os dentes... Por quê? Ora, ainda perguntas? O Bafudo não leva à toa este apelido. O exalar de seus pulmões não parece mais ser gás carbônico. Ele é uma verdadeira destilaria ambulante e o que sai de sua boca é vapor de álcool e eu não estava a fim de provocar uma explosão. Ainda mais naquele bar, que por enquanto está anônimo, porque o nome do registro não foi aceito. Iria se chamar de Bar BumBum. O garçom demorou tanto tempo para trazer a cerveja que até já havia perdido a vontade em bebê-la. Sorvi um gole. Olhei ao meu redor, nada de Bafudo. Acendi um cigarro, segurei o coração, esperei um “bum”, mas nada. Tomei mais um gole, mais uma tragada, de repente senti o ar etílico. Era Bafudo que voltava da privada. Cruzei todos os dedos que tenho mas não adiantou: Bafudo veio sentar-se a minha mesa. Ele pousou um cotovelo na mesa, e o outro, da ponta da mesa escorregou, vindo a fixar-se na sua perna. Ficou feito um cabide pendurado no armário com a calça toda encolhidinha para um lado; olhos vermelhos que transmitiam vigilias de mais de mês; cabelo alinhado como galhos de plátano. A barba, pelo que demonstrava, não via a loira da gilete há dias. Esboçou um sorriso semi-cerrado enquanto levantava uma sobrancelha. Vi que os poucos dentes que lhe restavam nunca tiveram o carinho de uma escova e que o sabor do creme dental ainda não fora computado em seu paladar. Neste ínterim, seus olhos já denotando um certo grau de catarata, começaram a brilhar lucifericamente (nem sei se este termo existe). Levantou a outra sobrancelha e eu me encolhi o quanto pude. Bafudo falou: 11
  • 12. - Hic, ... tu qué vê coisa... hã, ...bonita? – baixou a cabeça balançando-a num vai-vem. E, mexendo o indicador da mão direita desconcertado, concluiu: - Coisa bonnnita! Não respondi, pois aquela pergunta me pegou de surpresa. Fiquei curioso: que coisa bonita um bêbado como o Bafudo podia me apresentar? Enquanto pensava, o indicador de sua mão direita continuou balançando, agora traçando no ar um Ou-vêou-vai todo mole, fora do ritmo. Vi que ele queria dizer-me mais alguma coisa. Fiquei aguardando. Mas, o estado etílico do Bafudo estava muito além do ponto de ele poder raciocinar. Enquanto esperava o desfechar do pensamento dele, sem mais sem menos, surgiu a nossa frente o Aristides. É conhecido como o “inteligente” só porque usa óculos para miopia. E, convencido como em mil outras vezes, já saiu profetizando: - Ou um não vai com a cara do outro, ou vocês dois se entendem tão bem que nem precisam mais falar para trocarem idéias. Aquilo me picou: onde ele teria arranjado aquela segunda hipótise tão pamonha? Ainda bem que meu punho não responde às primeiras ordens do meu cérebro, senão já teria aumentado a sua conta no dentista. E o Aristides: - Qual é o problema? E o Bafudo: - Probbbbb... ...lema? - Sim, qual é o problema? Bafudo meneando a cabeça, olhando para o nada no chão, respondeu: - O probbbbblema é o pro...blema! Beba um pouco e o pro...blema será só o p...roblema. Com esta saída, não aguentei; deixei o Bafudo com sua combustosa atmosfera e chamei Aristides para um canto: - Já ouviste falar de alguma coisa bonita que um bêbado possa mostrar? - Nunca! – Respondeu-me ele. – Como é que um bêbado vai ter algo bonito para mostrar? Mas, se ele tem algum segredo, que tal tentarmos arrancar dele deixando-o mais bêbado? - Hum... a idéia não é má! Deixa eu ver... Já sei! Vamos pagar um martelinho para o Bafudo. Quem sabe, ele não se abre pra gente! - Vamos! ************* 12
  • 13. Pago o quinto martelinho. O bebum nada revelou. Desistimos. Resolvi segui-lo no dia em que estivesse lúcido. Decepção: Bafudo só está lúcido – ou quase – qando vai à Missa nos domingos de manhã. E agora? O triste é que eu sou tremendamente curioso e acredito neste provérbio: “crianças e bêbados nunca mentem”. Sucedeu-se que eu fui me tornando amigo de Bafudo e, com o azar dos diabos, quanto mais amigo ficava, mais descia o meu conceituado e nobre nome. E de tanto que enchi sobre aquela “coisa bonita”, ele resolveu fazer greve das palavras “coisa” e “bonita”. Mas não desisti; ora, meus olhos tinham que desfrutar, e desfrutar muito bem essa “coisa bonita” depois de todas aquelas horas de sono de etílica perdição! E todo o dinheiro gasto em martelinhos? E aquele bafo de guarapa amanhecida com o qual tive conviver horas e horas, ouvindo falar sobre os antepassados da quinta geração, os quais compraram as terras atrás do rio com meia dúzia de patacas? *********** Domingo. O sol estava tão quente e faiscante que até os tanques de água estavam sujeitos a se desidratarem. De tanta água que já tomara, toda a vez que me virava na cadeira de preguiça, escutava aquele barulho chato de água se nivelando com o meu corpo dentro do estômago; dava-me a impressão de estar puxando a descarga da privada: chlong-chla-chaaaaaaa. Depois, vi tanta gente indo ao balneário e de todos os jeitos (a pé, a cavalo, de bicicleta, de carro) que resolvi ir também. Fiquei mais de uma hora na água aproveitando sua doce massagem. E como foi divertido ver a simplicidade deste lugar: as garotas tomando banho de calcinha e sutiã com toda a descontração. Elas se atiravam na água e a água baixava tudo. As senhoras de respeito tomavam banho de saia e blusa e a questão do respeito se tornava crítica. Crítico mesmo, se 13
  • 14. tornavam os homens que andavam na água de cuecas. Alguns menos ousados, tomavam banho com aqueles calções tipo “brisa balouçante” dentro dos quais tranquilamente caberiam dois homens. Eu olhei. E olhei mesmo, afinal, era exposição gratuita e divertida. Meu calção velho e desbotado dos tempos do colégio, era luxo diante de toda aquela simplicidade. Banho de sol era privilégio daquelas que vieram especialmente à cidade comprar o seu maiô ou biquini. Tanga o padre proibiu: “É imoral”! E o povo creu e cumpriu. Ademais, eles nem sabiam ao certo o que era tanga. Alguns até achavam que era como os índios andavam: com aquelas palhas desajeitadas assando tudo. E a mãe não tirava os olhos da filha, a qual não tirava os olhos do primo. E o pai não tirava os olhos da cueca do filho: mexeu, vai para casa. E o filho não tirava os olhos das semi-escondidas nuances da vizinha, a qual punha tudo quase a descoberto. E o padre nunca foi lá senão já tinha pedido transferência. Quando a mãe tirava os olhos, a filha mergulhava e se escondia no meio de bolinhos de garotas burburiantes e cheias de cochichos comprometedores. Mas, os olhos detetivescos da mãe, em uma única singrada já descobriam a filha pois, o sutiã que ela usava, a mãe lhe dera em seu último aniversário. Às vezes, as gurias para realmente enrolarem suas mães, se viravam contra a margem do outro lado do rio e trocavam as partes de cima, aproveitando o descuido delas. E as mães custavam a redescobrir o paradeiro das mesmas. E o pai via o filho com o ... em condições de cartão vermelho, mas fazia de conta que não via. Lembrava-se dos tempos em que ele, só de enxergar a vizinha subindo no cavalo, aparecendo aquele topezinho verde-água na amarra do calçolão logo acima do joelho, ficava em condições bem piores. Virei-me para um lado onde só tinha água e mato, sem ninguém (pelo menos aos meus olhos) e, como um relâmapago atavesaram minha mente as palavras “coisa” e “bonita”. Depois da greve do Bafudo quase já havia esquecido estas palavras, mas agora novamente despertaram. Pensei para mim mesmo: “Será possível existir coisa mais bonita para se ver do que isto aqui? Os meus pensamentos foram dissolvidos por risadinhas típicas, parecendo ser de duas crianças com um brinquedo novo. E eram duas crianças adolescentes com o brinquedo da adolescência. Entre toda a balbúrdia não foi difícil encontrar os autores: estavam um pouco mais retirados da maioria e protegidos por uns ramos de salseiro que pairavam sobre a água. Discretamente fiquei olhando. Reconheci os dois: eram Senira e Alberto. Estavam jogando água um no outro 14
  • 15. quando ela escorregou e um galho discretamente se enganchou no sutiã deixando o seio esquerdo à mostra. Senira nem se importou e uma garagalhada forte ecoou pelos peraus do rio. Alberto achegou-se rapidamente no intuito de tocar, buzinar, mas, para ele foi uma experiência malfadada: acabou com um tapa estalante e o filme também terminou. Antes do tapa invejei Alberto; porém, após o mesmo, até eu senti minhas bochechas formigarem com tamanho pranchaço. Eu não fui o único espectador. A mãe de Senira também viu. Ela, como mãe zelosa que era, foi e arrumou barulho com seu Antão, o pai de Alberto. Isso aconteceu no gramado à beira do rio e logo o lugar transformou-se em arena: - Seu formigão de uma figa! Olha só o que o tarado do teu filho foi fazer com minha filha! - Olha sua vaca! Se a tua filha puxou por ti, trata de fazer com que ela não cometa tantas besteiras como as que tu cometeste e carregas contigo. - Mas olhem só! Ele além de ser conhecido por todas as putas da região ainda é safado e atrevido! - E de todas, tu és a mulher que me conheceu melhor que qualquer das outras. - Corno, tarado e sem-vergonha. Vai encontrar tua turma, ora! - Você que é barranqueira, sua puta. Vê se cria sua filha e não a joga no mundo. Iam começar a se esmurrar quando a discussão foi dissipada pelos demais. ************* Pensei em tomar alguma coisa. Estava com muita sede. O bar mais parecia uma cabana de Honolulu do que um bar. Ia sentar, mas uma voz desfez aquele ato. Era Bafudo me chamando: - José, vem aqui Quero falar contigo. - Comigo? – Respondi inseguro. - Já se esqueceu? – disse ele. – Lembra?... Coisa... bonita? Titubiei. Tive alguns segundos para me decidir: porém como Bafudo parecia estar lúcido, fui e sentei com ele. Para minha surpresa, a atmosfera realmente estava limpa, sem aquela típica aura etílica, particularidade específica de Bafudo. Interessei-me pelo caso: - Por que falou “coisa bonita”? Ele desviou do assunto: 15
  • 16. - Coisa feia, isto sim! - Como assim? – insisti. – Você parece hoje estar com uma saúde dos diabos... - E não é para estar? – retalhou-me irritado. – Este calor não está sequer deixando minha cerveja em paz! - É, está quente mesmo! ...A cerveja está morna. - Ouvi dizer que na cidade já existem copos especiais, os quais não deixam esquentar a cerveja; deveríamos comprar e experimentar para ver como é. - Que cidade! Que cerveja! Até trazermos os copos até aqui, derreterão. Tive que rir: - há, há ,há, não são copos de gelo, seu Alírio (que é o nome do Bafudo). São copos de alumínio, com paredes duplas e água entre elas, que você congela e assim, mantém a cerveja gelada por mais tempo. - Vá, vá, vá! Só em falar esta baboseira a cerveja esquentou mais ainda. Acho até que isto aqui nem tem álcool, ou, está evaporando muito ligeiro. - Pois é! Já não se faz mais cerveja como antigamente. - Bom, nisto eu concordo. Agora: que se faz mulher bem mais boa das do meu tempo, isto eu discuto! Olha só aquela ali – apontou: - É mulher para ninguém botar defeito. Dá vontade de sair correndo atrás e dar uns beliscões, até para um velho como eu, hê, hê, hê. - Com certeza, seu Alírio. – Atalhei. - Há, há, é bem boazuda! Olhei em direção que ele apontara e a referida mulher era feia, murcha e enrugada. Tinha um par de ancas salientes parecendo uma âncora de navio. E, antes que ele decidisse correr atrás daquela assombração, arrisquei: - Coisa bonita, seu Alírio! - É, mulherão! - Não, não, não. Não me referi a isto. Sabe, aquele outro assunto, “coisa bonita”. O que tens para me falar a respeito? - Ora, ora. ...Tu já te esqueceste das coisas bonitas que eu ia te mostrar? - Sim, é que... - Fácil! Está logo ali. - Aonde? – Ele não mostrara. Nervoso e excitado, falou: - É só dobrar ali – apontou – onde o rio faz a curva e ver o “paraíso”. - O paraíso? - O paraíso! - Mas, é tão mais bonito e prometedor do que estas belezas que estamos enxergando por aqui? 16
  • 17. - Mais! Muito mais!! - Tens certeza? - Tenho! É muito mais fascinante e bonito! Ninguém poderia imaginar tanta beleza escondida somente atrás daqueles salseiros e maricás. A partir daquele momento não consegui mais sentar direito. Minhas nádegas começaram a formigar e eu tentava de qualquer jeito desvencilhar-me da ansiedade do desconhecido tão perto e palpável. Não via a hora de acabarem as três cervejas mandadas servir por mim mesmo. Após um século de dez minutos, distribuindo cerveja para todos os integrantes daquele balcão, tomei o último gole e saí de rasteira, discretamente. Bafudo quis vir comigo, mas o despistei: deixaria de ser o paraíso caso ele botasse os pés lá. Durante a caminhada deu para ver muita coisa: a Marisa, galinha como sempre, estava de rachar. Sua boca, mesmo com batom de morango ou cereja, não escondia o gosto dos beijos de vários cavalheiros desdentados. E Marisa, à beira-rio, balançava no ritmo melancólico do sambanejo, desecontrando o ritmo com os quadris em contratempo. E neste embalo ralava suas intimidades no biquini branco com manchas de barro na bunda, denotando íntimo prazer. Um cara cabelo cor foguinho estava a sua frente a espreitá-la como se ela fosse uma pitonisa sem notar que o prazer quem lhe dava era o roçar do biquini no meio dos quadris. “Felicidades”, pensei. Olhei para trás; Bafudo me seguia de longe. Agora senti ele ter-se tornado um empecilho em minha vida e não via a hora de não vê-lo mais. Mesmo remoendo um leve remorso sobre o lugar da “coisa bonita” pois quem me falou sobre ele fora Bafudo, eu queria chegar lá sozinho e desfrutar de todos os seus encantos. Muito mais coisas presenciei durante a minha caminhada. Inclusive a Rosalie que sempre fora recatada, com cara e trejeitos de freira, estava sentada no colo do Davi e os dois estavam num arreto sem igual. Ele já passara da ‘bandeira vermelha’há muito tempo. E ela sabia disto e estava sentido prazer em acariciá-lo justamente na ‘bandeira’. Eu continuei em passos largos em direção à curva do rio. A poucos passos, uma voz me segurou: - José? Quis dar a impressão de não tê-la ouvido. Continuei caminhando... - José! Era uma irresistível voz feminina. Vinha do rio e cedi aos encantos da voz lírica de Lucena. Abanava freneticamente 17
  • 18. me chamando. Estava irresistível, quase nua pequeníssimo biquini amarelo de bolinhas pretas. em seu ***************** Saiu muita conversa fiada tipo chá morno. Porém, esta conversa sobre amenidades deu-me tempo para fazer uma análise metódica de suas curvas, com vista panorâmica através das transparências até as mais recôndidas particularidades; ter pensamentos libidinosos, inimaginários e... bem, eu conto: Lucena escorregou numa pedra. Que cena! Ela queria apoiar-se em mim para não cair e eis o resultado: ambos escorregamos. Mas aproveitei! Segurei-a desajeitadamente firme contra mim. Senti a voluptuosidade dos seus seios rechonchudinhos enquanto levantávamos. Ela sorriu maliciosamente porque sentiu meu tatear em seus peitos, mas o meu olhar picante e ao mesmo tempo ingênuo, fê-la ficar sem jeito. Ficamos parados frente-a-frente durante alguns minutos, ela me fitando e eu fitando os dotes dela. Seu coração parecia estar no meio dos seios, pois via a massa deles pulsando ofeganetes, cheios de tesão, como se quisessem algo mais. Tentei levar a mão até lá, mas cordialmente sua mãozinha de fada me desfez do intento. E, antes que ela pudesse falar algo, a convidei par ir passear na minha casa, o que ela prontamente aceitou com um brilho a mais em seu olhar. ******************* Vi-me outra vez caminhando ao “paraíso” de Bafudo. Por falar nele, tinha-o perdido de vista. Faltava pouco para chegar. Pensei: “Quase!” Mas não havia me dado conta do sumiço do sol dando lugar a uma nuvem “pretésima”. As gotas grossas me deram este recado. Saco! Tive que voltar correndo e recolher minhas roupas para não molharem. Cá entre nós: as roupas não importavam. Porém, entre elas estava enrolado um radinho daqueles do Paraguai, fruto do décimo terceiro salário, o qual não podia deixar molhar. Em vista da chuva, a algazarra foi total. A gritaria botava à prova qualquer decibelímetro. Era gente correndo para todo o lado buscando abrigo sob os salseiros. Os mais 18
  • 19. sortudos estavam se apinhando embaixo do telhadinho do bar. Tudo se misturava: felicidade, pavor, tristeza, satisfação, aflição. Mães em busca de flhas fujonas e rapazinhos tentando escondê-las, dava aos montes. Esperei a chuva passar, mas ela só amainou, fechando o céu por completo. Resolvi voltar para casa. ************** De noite, no Bum-bum, aquele papo incrementado entre os disputadores frenéticos. Domingo de noite: dia de confissões, apostas e propostas. Fernando confessou: - Isa quase baixou a calcinha pra mim lá embaixo dos salseiros dentro do rio! Rogério, com aquela cara repleta de acnes, cravos e espinhas em errupções contínuas, retrucou: - Claro, ela estava a fim de fazer pipi e tu já achaste que toda aquela cerimônia era só para ti. Gargalhada geral. Fernando enrubesceu e ficou do tamanho de uma formiga. Ainda tentou argumentar mas sua voz foi abafada pela zoeira criada ao seu redor pelos frequentadores do bar. Assistindo aos duelos grátis, conjeturei meu programa do próximo fim-de-semana: ver o “paraíso”. Aos poucos o tumulto foi diminuindo, voltando à conversa sobre os acontecimentos do balneário. Bafudo estava sentado num cantinho do bar com sua bebedeira. Arrotou. E, Fernando, sentindo-se ainda emocionado com a humilhação de poucos minutos atrás, começou terrível luta com os seus gases intestinais querendo sua liberdade. Expreme daqui, expreme dali e não deu para segurar. Peidou. A atmosfera nauseou. O bar se transformou numa bomba de enxofre. Todos taparam o nariz, inclusive eu. Alguns correram à rua para tomar um arzinho puro, e, Fernando diminuiu mais um pouco, ficando do tamanho de uma pulga muito fedorenta! Só Bafudo ficou indiferente, não se importando com o cheiro. Mas, conseguiu atirar aquela pedra típica daquelas ocasiões: - O ppppppor...co! Aristides, que também estava lá, saiu com mais uma de suas filosofadas de botequim: - “Seu” Alírio, é melhor um porco embaixo da mesa do que um em cima dela. 19
  • 20. A turma vaiou. Em sinal de revolta seguiu-se uma série de arrotos melódicos e alcoolizados. Com essa, conseguiram diminuir mais um. Aristides sumiu atrás de seus óculos e naquela noite não mais falou. Só assistiu. Rogério tentou: - Aposto que a Chiquinha brigou com Alcebíades! Murmúrio geral. Entre sins e nãos, todos achavam que estavam com a razão. E Raul: - Aquela fofura só gosta do dinheiro de Alcebíades. Ele é velhaco, frouxo, careca e brocha e garanto que... O bar silenciou. Entre la-la-ri-la-la-rás e risadinhas disfarçadas entrava no recinto o casal comentado. Raul enrubesceu. Conseguiu acender um cigarro no lado do filtro, queimar os dedos e derrubar dois copos de cerveja. Chiquinha e Alcebíades compraram sorvetes e nem notaram o ambiente confuso (ou só fizeram de conta). E a conversa continuou animada sobre futebol. Assim que o casal saiu, sumindo na esquina, voltaram às fofocas: - Fofura! Te adoro! - Gostosa! Este frouxo não aguenta nem meia...! - Vem aqui, benzinho! Rogério falou: - Vocês viram o par de coxas que este mulherão tem? - Vimos! – Disse eu. – Só que ela tem dono, não viram? - Mas ela é muito gostosa! Aquela bundinha rechonchuda e estes cochões saindo daquele short colante é demais! Ô sortudo do Alcebíades! – Retrucou Rogério. Ainda foram delineando aquela mulher com frases sutis. E, na conversa entre os frequentadores, surgiu mais uma confissão. Era Leandro e seu lamento: - A Lia nem sequer olhou para mim no balneário. Certamente está virada para os carinhas de São Leopoldo que estavam lá querendo aparecer com suas motos. - Pô Leandro, tu também não ajudas! – Disse Rogério. – Como é que ela iria olhar para ti com esta cara inchada? Não te mandei beijar as abelhas. Risada geral. Leandro respondeu: - Mas não é ferroada! Eu estou com o dente inflamado e não tenho coragem de ir ao dentista. Gargalhada geral. Leandro não entendeu logo o porquê dessa hilaridade. Pensou um pouco e já lhe veio à mente o resultado: resposta cretina! Confissão pamonha! Boca grande! E seu grau de galã conquistador se diluiu junto com a dor que vinha sentindo frente aos debochados colegas: - Que homão! - Machão! 20
  • 21. - Bota batonzinho na boquinha, bem! - Já marcou hora na manicure, “Léia”? E os deboches se estenderam ainda piores por frases afeminadas. Para rescaldar o calor acirrado e eufórico de todos, o dono do Bum-bum disse: - Já passa da meia-noite. – Abanou as chaves. – Hora de fechar! Vamos terminando os tragos, as cervejas e dêem o fora. Para a turma só restou obedecer. Bafudo, como sempre, foi arrastado por nós até a margem da calçada em frente o bar e deixado ali. E nós fomos para casa fazendo a mesma arruaça de sempre: cantamos a plenos pulmões “parabéns a você” par os vagalumes. Piadinhas, risadas, gritos e tropeços, tudo fazia barulho naquela saída do bar. ************ Segunda-feira: dia de “São Pega”. Trabalhei como tartaruga, só que o peso do casco parecia estar sobre a cabeça e não sobre o corpo. A ressaca se misturava com a sensação de não ter alcançado tudo o que queria no último fim-de-semana. De terça em diante a semana passou ligeira. Porém, mesmo assim, pensei mais de mil vezes em “paraíso” e “coisa bonita”. Chegou o sábado; programa da noite: Bum-bum! Desta vez estavam todos atentos às teorias do Fredes Maus, célebre filósofo e beberrão. Aliás, ele era o tipo da pessoa que possuía um conhecimento muito grande sobre assuntos dos mais variados, mas, quando bêbado, se tornava um chato inaguentável. E, tranquilamente posso garantir que ele já estava meio tocado: as palavras fluiam muito fáceis e borbotavam enroladas e salivadas feito um córrego turbulento entre pedras: - ...porque aquele moinho concebeu espíritos e fantasmas e... qqquem passa lá à noite é tragado pelas Úrias e Higi... ã, há... Higíades massacr...adas e pppurificadas aos deuses dos antepassados índios, qqque outrora, em épppocas remotas, habitavam esta terra e... este lugar sssinistro traga o bolor dos defffuntos! Aqqquela umidade é um antro ppperfeito para os mor... ã, mmmorcegos e vampiros; seus gritos se ouvem nas nnnoites gggélidas e temp...estuosas. É a voz das Higggíades 21
  • 22. pedindo ppperdão para todos os hommmens que deixaram de amar. As Úrias gggozam e se regggozijam nas fffrestas bolorentas, com qqquilos de teias de aranha, pelo bbbem que fizeram a tttodos os ssseus amantes e sssentiram o calor de seus cccorpos e, ...agora gggélidos, sssombrios e macabros. E a roda do moinho não mais gggirou para deixar as dddeusas em paz. Eu viii! ...eu sssei, eu ...ppposso dizer! Palmas. Entre muito-bens e urras, alguns protestos e certas dúvidas: - Que é Úria e Higíade: - Ora, o que isto importa? Deixa ele contar mais! Fredes Maus continou: - Fffaço questão de exppplicar: Úrias eram as vvvirgens pppuras, indes...bravadas e Higíades eram as mulheres pppolutas e qqque já haviam se al...covitado innnúmeras vezes com mmmachos e gggaranhões. Em cada Lua nnnova era sssacri...ficada uma Úria e em cccada Lua cheiiia era sssacrificada uma Úria. - Esta conversa não está fechando. E as Higíades? – Perguntou Rogério. - É, e as Higíades? – Perguntaram vários em coro. Fredes tentou responder: - Aaacccontece que as Higíades eram potttentados dos demmmônios e... - Bu-u-u-u! Mentiroso! Está inventando! Cái fora bebum! – Vai procurar tuas divindades, mentiroso beberrão! – Gritaram todos irados com a esfarrapada conclusão da história contada por Fredes. Ele, pomposo e imponente, apesar da bebedeira, não quis se fazer derrotado: - Não, por obbbséquio! Foi o espppírito do grande Tugirô que me trouxe à luz estas revelações e idéias e... Bagunça geral. Embora todos soubessem, sem exceção, de que aquilo tudo saíra do cérebro apopléptico de Fredes Maus, agora protestavam. Ao mesmo tempo, Bafudo no seu cantinho de sempre, entrou em discussão com Rovaldo, outro deliriumtremensmaníaco. Algo havia dado errado entre os dois, e bêbados como eram, provocaram-se como de costume; Bafudo disse: - Se é homem, vem aqui e me bbbate! E Rovaldo: - Eu vou tomar mais uma cccerveja “para colocar as idéias no lugar”, e depois veremos qqquem é homem aqqqui ou não é. Na confusão, Fredes tomou a deixa de “se é homem” para si, achando que os dois estavam insinuando a respeito de sua condição macha. Seus olhos se iluminaram e pareciam querer 22
  • 23. pular para fora das pupilas tamanha era sua ira. Cerrou os dentes nicotinados, cravou os dedos de unhas sujas nas palmas das mãos cerrando os punhos e, inflamado grunhiu: - Ah é? Eu ppprovo! Todos se entreolharam atônitos, pois não sabiam do que ele estava falando. Fredes subiu em cima da mesa do bar usando a cadeira como escada, ajudado pelos presentes que estavam curiosos para verem o desfecho deste episódio. Fredes, num lance inesperado, baixou as calças, deixando à tona um pirulitinho castigado pela manguaça emoldurado por um moitão de pentelhos grisalhos encobrindo um saco murcho e desparelho. Aos seus pés, a calça toda amarrotada e uma cueca encardida, sinalizando anos de uso. A turma calou. Ficaram se entreolhando boquiabertos, sem nada entender. Aliás, ninguém entendeu o motivo de tal atitude. A provocação não tinha sido com ele. Tudo terminou com a intervenção do dono do bar, um cara mal-humorado, de mal com a vida, que o varreu de lá, mandando sungar as calças e descer da mesa: - Lugar de exibicionista é na rua! O dono do bar o agarrou pelas panturrilhas deitando-o nos ombros e o carregou para a rua sob os protestos de Fredes e dos frequentadores do bar. Ele sumiu na escuridão da noite grunhindo palavras de ordem. A rinha que havia inflamado Bafudo e Rovaldo amainou. Acharam graça. A cerveja de Rovaldo foi repartida entre os dois como se nada tivesse acontecido entre eles. Fernando aproveitou a hora da intensa gozação sumindo de mansinho. Começaram a encher comigo, mas não perdi o embaraço: - Daqui a pouco o José vai ter mais alguém para sustentar. A Lu (apelido de Lucena) está com uma cara de “quero José” que, deste jeito, até a metade do ano junta os trapinhos contigo. - Bem, Rogério, pelo menos ela está de olho no cara certo! – Respondi. Rogério, sorvendo mais um gole de cerveja, continuou: - A barra estava pesada! Quando estiveste com Lu, a Luzia te viu e quase teve um colapso. Não fossem as amigas dizerem a ela que somente estavas ensinando a Lu a nadar, ela teria se intrometido na tua festinha no meio do rio. Eu ia responder, quando Rômulo ficou pirado por ouvir falar em Luzia. Levantou da cadeira onde estava sentado, estufou o peito e gritou: - Quem falar mais uma vez em Luzia aqui dentro, leva pau! 23
  • 24. - Calma, calma! Eu não pensei que o negócio era tão sério entre vocês dois. – Argumentou Rogério. – Quando vai ser o casório? E Rômulo, já um pouco menos irritadiço, amainando: - Bem, também não tem tanta urgência. ...He, he, he! Primeiro quero experimentar o pasto em todo o potreiro, antes de ficar no curral e só mais me sobrar o feno para comer. Surgiu um burburinho entre aprovações na maioria e alguns desaprovando o modo de pensar de Rômulo. Eu, por minha vez, tentei derrubar a arrogância de Rogério, que aquela noite estava de dono do espetáculo, assumindo todos os argumentos, deixando pouca vez para os outros frequentadores do bar. Aliás, ele sempre mostrava ar de líder. Eu havia achado àquela semana uma folha de papel toda amassada na rua e, por desgraça dele, era uma super carta de uma pretendente distante. Blefei: - Vocês sabiam que o Rogério foi assaltado? Perplexidade geral. A turma se entreolhou incrédula. Paulo iniciou perguntando, seguido de outros: - Não, quando? - É? - Não acredito! Conta outra. - É verdade? - Conta, Rogério! - Mas eu nem sei do que se trata! O José está inventando. Eu nunca fui assaltado em toda a minha vida. - Ah, é? – Retruquei. _ Eu provo: ...como apareceram aquelas cartas que recebeste da Isaura lá na casa da Alzira? - Há, há, há! Que mentira mais grosseira, José! Conta outra! Quem iria querer roubar cartas da Isaura para me comprometer com a Alzira? - Ora, alguma garota que esteja afim de ti. – Disse Paulo. Vi que a turma ficou muito curiosa e intrigada. Então falei: - Posso provar para eles que estou falando a verdade? – Apontei para a turma fitando Rogério. – Olha que eu provo... - Se for verdade, quero a prova! Mete aí! – Disse Rogério incrédulo enquanto tateava a borda da mesa sobre a qual estava sentado para se reequilibrar. Tirei lentamente aquele papel de carta amassado do bolso de minha calça, desdobrei, alisei o papel com a costa da mão e disse: - Olha só: achei esta carta na calçada em frente à casa de Alzira e vou ler ela do jeito como Isaura a escreveu. - Ainda não acredito! – Disse Rogério. E eu iniciei a leitura daquela carta: 24
  • 25. “Rincão da Boiada 17 de 12 de 19 e nonvenda e dois Meu ederno Rogério eu esto com umas sautades do tiabo Sabe eu adoro tu e de amo de morer O peijo que tu me teu fes arter minia boca de rajar e sindo ele até oje De espero noite e dia agui em casa e tu nunga abareceu A mae adé aja que desisdiu de me visidar agui mas eu náo ganso de esberrar. A vaca gue tu teu o nome de alcira chá deu um derneiro dão bonidinho gue eu adé bensei empotar o deu nome. Rojério é o nome mais bonitogue eu chá vi a máe manda lempransas O pai dá com picheira na berna guase náo pode gaminiar to bassando aguela bomadinha dransbarrente que tu esgueseu agui e eu ainda náo sei aonde tu esdava majucado e to dratando com amor e garrinio assim com vou dratar tu guando cassarmos eu de amo e sempre esberro gue tu vem agui. A claudia guebrou sinco tentes e bassou na escola a juva esta crossa e frialenta assim náo bresicei cabinar na rossa e eu dive tempo de escreverte esta garta esberro gue costou do que escrevi um peijo mais artente gue o guando tu me teu guando estive a ultima ves agui. Sua sempre ederna e berbetua namorada de todo o tempo. Isaura Desgulpe de eros e letra” Durante todo o tempo da leitura desta singular carta, as risadas e gargalhadas eram tamanhas, que várias vezes me senti obrigado a interromper, esperando amenizar o rompante de hilaridade. Após a leitura, muitas gargalhadas ainda ecoaram, seguidas de tosse seca e nicótica de alguns frequentadores do bar. Rogério, sem jeito, completamente enrubescido, tentou consertar: - Podem rir! Ela pelo menos demonstrou sua paixão por mim nesta carta, e, além do mais, apesar dos “eros”, ela é muito gostosa. - Ai, me dói a barriga de tanto rir! Imagina como fica naquela hora: “rochério, rochério bode potar, eu costo costossão!” – hahahaha. - “Me embresta a bomadinha transbarrente, rochério?” - “Que peijo artente gue tu me teu na poca, rochério! Minha poca guer um peijo bem costoso mmmmmmmah!” - “Com tantos eros du vai erar a bondaria, rochério!” - “Não dá com pijeira também? Há, há há.” - “Guer acora com bomadinha? Vem rochério, vem, eu basso a bomadinha bara di!” ...E assim por diante. O coitado do dignatário da missiva enfiou goela abaixo um martelo de cachaça para ver se apagava a toda a gozação por cima da carta errada da pretensa 25
  • 26. namorada. A partir daquele dia, Rogério ficou conhecido como “Vaselina” ou, o vulgo “Bomadinha”. Bafudo e Rovaldo continuavam absortos em sua ebriedade não se dando conta de tudo o que ocorrera. A folia foi além das duas da madrugada quando, abanando as chaves o bodegueiro anunciou o fim do expediente. Saimos. Na volta para casa, a mesma coisa: folia, cantos, arrotos e gritos. E desta vez, também falando errado como na carta que eu havia lido. ***************** Domingo às oito, antes de começar a Missa, o padre já soubera do ocorrido com Fredes Maus. Também, as velhas beatas moradoras nas imediações do boteco, que sofrem de insônia por não terem outra ocupação senão orar, viram tudo. E contaram. Com certeza ainda fizeram o estardalhaço bem maior do que acoantecera. Não deu outra: o sermão todo foi dirigido ao combate do despudor. Fredes já nem se lembrava do que fizera de tão bêbado que ele estava na véspera. No fim do sermão, todos aceitaram e creram. À tarde, sua santidade, o balneário Vale-Tudo. Ninguém ali lembrava mais as palavras do sermão da manhã. E todos ficaram à vontade. Antes de qualquer coisa, empenhei-me em dobrar a curva do rio e ver o “paraíso” de Bafudo. Está na cara que fiquei trancado algumas vezes durante a caminhada. Inclusive a chata da Ressinda me tomara alguns preciosos e infindáveis minutos: queria jogar víspora comigo à noite. O problema de Ressinda reside em ela ser viúva e ter um filho de oito anos. Já estive outras vezes na casa dela e o guri enche tanto o saco da gente, que não existe qualquer outra vontade sem ser a de ir embora. Por outro lado, é uma mulher e tanto! Toda malhada, ‘fitness’, geração saúde. Nem parece ser mãe e ter mais de trinta anos. Porém, neguei. Quase neguei também entrar na água com a Jerusa. Ela qeuria aprender a nadar e era eu quem tinha que ensiná-la. Analisei, pensei, ponderei, ...a água do rio Caí estava uma delícia: limpinha, morna e serena. Por fim, acabei aceitando. Afinal, não perderia nada em manter aquela sereia por algumas horas em meus braços. A aula começou. Fi-la deitar de bruços sobre meus braços dentro da água e a mandei bater os braços e as pernas com 26
  • 27. toda força. Aquela hora eu quisera estar de óculos escuros para que ela não visse para onde eu estava olhando. Sinceramente, fui obrigado a olhar; aquelas coxas batendo num vai-e-vem reverso faziam balançar aquele belo par de nádegas, roçando aquele biquini surradinho, e já meio puído entrando no rego a meio metro de meus olhos! E o jogo do enche-daqui enche-dali me cativou a tal ponto que, inconscientemente, esqueci que era eu o seu aporte e a soltei. No mesmo instante ela afundou como se fosse uma pedra. Ajudei-a a se reerguer. Já de pé, maliciosamente ela deu um “bundaço” nas minhas partes me intimando a não repetir o ocorrido; seu “maninho” de um metro e noventa estava de olho em nós. Resolvi recomeçar a aula antes que algo acontecesse. E, no vai-e-vem das pernas, mais uma vez fiquei quase vesgo olhando de lado para que ela não notasse. E os seios... Ah, eles roçavam em minhas mãos e a danada da Jerusa sentia isto. Mas, senti que tudo não passaria desse ponto naquela tarde e que ela estava só me usando. Assim, logo desvencilhei-me sob seus protestos e com a promessa de no próximo domingo dar-lhe mais uma aula. Agora continuaria a minha pesquisa sobre o “paraíso” de Bafudo. Enquanto me dirigia até a margem do rio, dava para ver no gramado de sua beira diversas pessoas se divertindo, tomando banho de sol e sempre algum homem mais velho do lado de sua esposa olhando discretamente o bumbum das meninas tomando banho de sol. 27
  • 28. 28
  • 29. Saí da água exatamente nom momento de presenciar uma disputa entre dois motoqueiros de fora, por uma garotinha espertalhona e aproveitadora: a Mâni. Ela era do tipo esguio, ágil e elétrica. Não parava nunca. Mas, seu rostinho sensual conquistava facilmente quem a via pela primeira vez. Um deles falou: - Belezinha, sobe aqui e vem sentir o poder da minha máquina. Garanto que nunca montou algo tão potente. - Não vai atrás, gata! Este amontoado de parafusos e tinta está mais ultrapassado do que ser virgem para casar. Mâni, com aquela carinha desavergonhada olhava ora para um, ora para outro, indecisa. Aí disse: - Ô cara, por que tua achas a moto deste aqui – apontou – tão velha? - Olha só: - disse o motoqueiro. – Ela ainda está cheia de cromados. A minha é moderna, possante, gostosa de andar e não tem estas coisas brilhosas e esquisitas só para aparecer. O primeiro motoqueiro, já bastante irritado com o incitamento do colega, resolveu se entrepor: - ô Gata! Não dá a mínima para este daí! Os cromados da “bicicletinha elétrica” dele não existem porque estão enferrujados. O outro motoqueiro não gostou da brincadeira e os dois estavam afim de brigar. Foram dados vários tapas e safanões por ambos quando os espectadores intervieram. Apesar da relutância de ambos em ficarem rendidos pelas pessoas, acabaram acalmando. Então, Mâni chegou perto, encarou o da moto cromada e disse: - Esta coisa aí – apontou a moto – mais parece um garfo grande a fim de espetar quem a monta. Olha só: - e, caminhando ao redor dela – esta moto parece muito estranha. Não gostei. ...E a tua moto – apontou a do outro motoqueiro – mais parece ser de brinquedo, tamanha e a quantidade de plástico que possui. Vou sair... ...não, pensando bem, não vou sair com nenhum dos dois. Virou as costas e saiu rebolando ufana seguida de várias amigas, rindo às avessas da confusão criada por sua causa. Os motoqueiros se entreolharam. O mais alto falou para o outro: - Estas gurias do Caí são fogo, hein? As de São Léo são bem mais fáceis. ...Vamos tomar uma cerveja? - Vamos! – Respondeu o outro. É o que nos resta. Se abraçaram e caminharam em direção ao bar do balneário. No caminho, tiveram que desviar de diversos trazeiros de garotas estiradas ao sol por sobre o gramado, ocupando até as trilhas. 29
  • 30. Uns metros adiante, Bafudo com seu calção 1890, me aguardava. Parecia completamente lúcido. Estranhei muito esse seu estado já que vivia bêbado. E, ao me aproximar já saiu falando: - Olha José, se quer ver o paraíso, só com minha companhia. Não gosto que pisem no “meu” terreno sem minha companhia. “Se é terreno de Bafudo, que lugar promíscuo será este!” – Pensei. Mais tarde ficaria sabendo que aquelas terras todas realmente eram dele. Eu falei impositivo: - Está certo! Então vamos juntos. - Então vamos! – Disse ele, já demonstrando muita ansiedade para me mostrar as “coisas bonitas”. Atravessamos o rio com a água na altura das coxas. Cruzamos por Jerusa que ainda se encontrava na água e aproveitei para dar-lhe um beliscão. Ela se retorceu e me tapeou no braço. Na tentativa de me esgueirar para não ser acertado, me desequilibrei e caí na água. Jerusa deu uma gargalhada saudável e disse enquanto eu levantava: - Agora estou vingada! Também derrubei você, assim como fez comigo há pouco. - Daqui a pouco eu volto e vamos continuar esta brincadeira. Pode ser? – Perguntei. Ela assentiu com a cabeça me fitando com um olhar lascivo, boca entreaberta. Em seguida, ao ver Bafudo comigo, esperando pacientemente de braços cruzados terminarmos aquela conversa, mudou o semblante para interrogativo, desviando os olhos discretamente de mim para ele. Entendi sua dúvida. Era do tipo: “O que este manguaceiro está fazendo contigo aqui?” Eu expliquei: - Hã, Jerusa, seu Alírio e eu estamos atravessando o rio porque ele quer me mostrar uma coisa que ele viu lá. - É! – Disse Bafudo num tom desaprovador. – Vamos logo, José! - Na volta você vai ficar comigo e me ensinar mais um pouco a nadar, certo? - Com certeza! – Respondi para Jerusa. Continuamos andando pela água enquanto eu olhava para trás e fitava aquela garota linda e perfeitinha me seguindo com seu olhar, mais uma vez provocante. Aos poucos chegamos na margem oposta do rio onde só se via mato denso e baixo. Seguimos pela margem na beira da água desviando dos galhos das árvores e dos salseiros a se debruçarem para dentro do rio. Chegamos na curva. Meu coração bateu mais forte. “É agora!” – Pensei. E eis que o “paraíso” se nos apresentou. Olhei estupefato e a garganta com um nó me engasgando, me calou. 30
  • 31. Neste mesmo instante apoderaram-se de mim diversas sensações e vontades diferentes: palavras, gestos, momentos, aventuras, desejos, raiva, frustração, impotência, enfim: simplesmente sumi. Orgulho, vaidade e supremacia pairavam sobre aquela figura surrada pelos anos, que contemplava a paisagem com os braços completamente abertos. Com meu eu, se misturavam a raiva e a decepção de ter ficado duas semanas irrequieto para inebriar-me com a visão que estávamos tendo. Duas semanas intensas, carregadas de curiosidade para chegar a este resultado! Ao mesmo tempo, porém, me senti em paz. Após este silêncio parecendo infindável, Bafudo abriu a boca: - Então, José, isto aqui não é realmente a coisa mais bonita que existe? Isto não é o verdadeiro Paraíso? Eu continuava singrando as latitudes daquela visão, incrédulo. Bafudo continuou: - Isto não é mais bonito do que a mulher mais boa que existe? ...Isto não é de encher os olhos? - É, é! – Foi só o que consegui engrolar. Era uma vasta plantação de milho brotando! 31
  • 33. Localize-se: você está a cinquenta quilômetros (mais ou menos) de qualquer cidade de porte grande ou pequeno. Parece impossível, não? Pois sim, mas há tantas dessas localidades espalhadas por aí, que é atrevimento começar a enumerá-las. Bem, falaremos somente de uma: Recanto do lobo. O nome já indica um lugar terrivelmente romântico. Em Recanto, como chamam, há três ocasiões especiais por ano, não religiosas, as quais culminam com um baile. Baile do interior! Olha, para realmente se saber como é, só participando! É um espetáculo autêntico, natural e divertido, que enleva qualquer coração subnutrido pela civilização socialmente abalroante. Não existe esse negócio de ser associado ou não, nem sequer se 33
  • 34. levam documentos, pois ninguém os exige. Garota comprometida ninguém assedia. Às vezes, aparece algum metido, galã de cidade grande querendo impor sua posição, mas logo acaba dispondo seu traseiro aos pés dos asseclas do dono do salão, os quais, em compasso de marcha o põe porta afora, com um amigável lembrete de que não será bem recebido se retornar. Guardas só se vêem em bailes de Kerb porque dá muita gente. Há o pessoal que vem para o baile, a cavalo. Não escutou direito? Pois ouça: a ca-va-lo! Parece incrível, não? É uma cena lindíssima de se ver: o rapaz que é cavaleiro durante a semana, um mês, um ano, nestas ocasiões torna-se importante e angaria um “agá” a mais em sua designação. Torna-se um cavalheiro e vai ao baile. Vem trajando uma beca sem par: uma fatiota já anciã cheirando à naftalina que ele só usa aos domingos para ir à Missa e nesses anos todos só foi lavada uma meia dúzia de vezes. Desce do cavalo como um verdadeiro “cowboy”. Ele tem muita vaidade num acontecimento como aquele. Seu cabelo, à base de Glostora, vem empastado, reluzindo ao luar. A repartição do penteado é linear, reguada, denotando um preparo com bastante tempo para que ficasse assim. Barba feita no barbeiro, com navalha, de aparência impecável e tratamento finalizado com Acqua Welva, aquela loção pós-barba que arde como pimenta, mas mascara todos os cortezinhos involuntários. Para completar, ele exala de longe, mas de muito longe o inconfundível extrato de Ara, essência que encobre qualquer axila mais propensa a emanações neurosudoríparas, tornando-o uma viva poção afrodisíaca. Como uma boa parte dos rapazes usa esta fragrância nos bailes, o salão acaba emanando um teor de aroma característico, lembrando um verdadeiro baile do interior. As damas mais independentes vão ao baile em grupinhos de amigas ou com algum irmão. As que tem pais severos, morais e ‘corretos’, vão com eles. E, por causa de sua presença no baile a fiscalizar as filhas, muitas vezes interferem no sentido de elas arrumarem um bom partido, pois muitos rapazes não são chegados em garotas acompanhadas dos pais. Num baile do interior tudo é planejado; ninguém deixa nada para a última hora. É lógico que isto aconteça, pois o evento é aguardado com muito entusiasmo durante meses. As moças, em geral, angariam alguma peça nova em seu vestuário. As vezes é só um anel, uma calcinha ou um par de meias; outras vezes, compram fazenda para vestidos, saias ou blusas e fazem um traje completo, novinho em folha em todas as peças, desde o sapato. E isto envolve muita preparação, muita dedicação, idas e vindas à costureira, detalhes, testes de caimento, enfim, uma maratona! E elas adoram. 34
  • 35. Os rapazes são mais desleixados e, vez que outra, compram alguma camisa ou calça. Cuecas e meias nem se fala: usam até puir. Mas, no modo geral, a visão dos frequentadores no salão denota muito capricho no visual. O salão, em quase sua totalidade, é maior se comparado com os da cidade. Sua decoração é linda e primorosa, face ao bom gosto da esposa do dono do salão, que decididamente escolhe todos os detalhes para harmonizar com variadas cores o espírito daquele espaço de diversão: são lâmpadas envoltas com enormes topes de papel crepom, bandeirolas e correntes de jornal envelopado com papel celofane, as quais percorrem todo o forro em todos os sentidos. As mesas centenárias são ornamentadas com milhares de craterinhas esculpidas pelos cupins. Os salões de baile do interior geralmente são passados de pais para filhos durante muitas gerações e se tornam pontos tradicionais de encontros de pessoas a fim de uma relação mais profunda. ********** Sandra é do tipo certinha para a nossa história: possui o nariz sensualmente adornado com sardas atrevidas, olhos grandes e verdões e uma boca capaz de estraçalhar com sua voluptuosidade qualquer um que se atrevesse a roubar-lhe um beijo. Pois ela, que não gosta de deixar tudo para a última hora, ficou aporrinhando o saco de Plauto, seu irmão, toda a semana para comprarem a mesinha no salão. Seu vestido novo já estava pronto há mais de mês. Vivia experimentando-o para ver se lhe caía bem. Era exigente! Olhava... reforçava suas linhas com as mãos. E, segurando a cintura, olhava no espelho e seu pensamento dizia: “É bom comer alface e deixar a massa de lado! A prova está aqui!” E como caía bem este vestido! Estava convencida disso. Ninguém precisava admirá-lo; nem mesmo suas amigas. O mais importante era sentir-se bem nele. Disso tinha a absoluta certeza. Depois de satisfeita, guardava-o no armário com delicadeza, imaginando o príncipe que iria adorná-la com palavras elogiosas a respeito de seu vestido. “Direi que fui eu quem o fez” – pensou. E para desfazer o sentimento de mentira, confirmou logo em sua mente: “Claro, eu pelo menos preguei os botões!” 35
  • 36. Amílcar, irmão de Plauto e Sandra, por fim se convenceu de que já estava em tempo de comprarem a mesa para o baile; era sexta-feira e o outro dia, provavelmente, as venderiam como pão fresco. É tradicional nos bailes do interior venderem as mesas do salão para que as pessoas possam usufruí-las a noite inteira e não haver o risco de perdê-las durante o baile. Amílcar falou com o Plauto e, de tardezinha, foram comprar a sua mesa para o baile. Nota: o ato de ‘comprar mesa’ em salões de baile no interior é muito difundido e consiste em se pagar uma certa quantia para ter a reserva de uma mesa com quatro cadeiras durante todo o baile. ******************** O salão estava repleto de gente. A bandinha já se instalara e os músicos aguardavam a hora de iniciar. Estavam todos embecados da cabeça aos pés, uniformizados conforme grupo instrumental: cordas, sopro, teclado e percussão. Ninguém dava muita bola para eles. Afinal, o povo ia lá se divertir. Faltavam quinze minutos para o baile começar quando chegaram Sandra e seus dois irmãos; Plauto comprou as entradas enquanto Sandra e Amílcar aguardavam. E, como naquele momento muita gente estava se acotovelando na entrada do salão para pagar o ingresso, demoraram a conseguir atravessar a soleira estreita da porta do salão. Haviam chegado justamente na hora mais imprópria, faltando pouco para o início do baile. Mas, após alguns pacientes minutos, finalmente entraram no salão, se desvencilhando daquela massa humana a se espremer no guichê. Também custou um bocado de tempo até chegarem à mesa pois o salão estava lotado. Mal se instalaram e a bandinha se anunciou, principiando com um dobrado rítmico e melodioso. Alguns casais imediatamente tomaram posições na pista de danças e seguiram no balanço feliz da bandinha, que efetivamente acendia a vontade motora das pernas da maioria a ocuparem a pista. Os três irmãos, assim que sentaram já foram assediados pelo garçom que ofereceu-lhes o cardápio da noite, ao que Plauto somente pediu uma cerveja. 36
  • 37. O pedido foi rapidamente atendido já que os frequentadores do salão ainda não estavam consumindo muito. Enquanto sorviam a cerveja gelada, no ponto, Amílcar e Sandra balançavam em seu próprio lugar à mesa, ao ritmo da música. Plauto retraído, contentava-se em observar a multidão. Ele era mais parado, mais quieto que os outros dois. Sentia, também, mais dificuldades em convidar uma garota para dançar. Compenetrado, inteligente e calmo, satisfazia-se em notar vida e alegria nos outros. Amílcar e Sandra eram mais agitados. Os parentes diziam que os dois haviam puxado o gênio espontâneo da mãe, enquanto Plauto herdara o gênio do pai, o qual era mais sério. Amílcar desde o início do baile já se via sondando o salão em seus trezentos e sessenta graus à cata de garotas. Piscou para umas três ou quatro. Sandra, por sua vez não temia em ficar com o “joão-ninguém” a noite toda, pois era linda, completa. Havia vários rapazes a desejando. Seu vestido novo estava coerente com a noite: o ar agradável combinava perfeitamente com as cores primaveris que ele esboçava. Além disso, a candura do seu modo de olhar, com aquele rosto ornado de sardas estratégicas, a faziam uma garota irresistível. Plauto estava com vontade de fumar. Estavam sem cigarros. Cigarro de palha se fumava durante a semana, na roça. O baile propiciava o consumo de cigarros de papel. Olhou em redor procurando um garçom. Não era difícil divisálos, pois seu uniforme era uma toalha no ombro direito, feita de saco de açúcar. Roupas, usavam-nas das mais diversas. Era simplesmente a toalha que caracterizava seu posto no baile. Finalmente Plauto viu um garçom, chamou-o e fez seu pedido. Sandra mal havia tomado um gole de cerveja recém trazido pelo garçom, quando um aventureiro se aproximou: - Posso ter a honra de dançar com você? Sandra virou-se devagarzinho, pois haviam falado às costas, pronta para qualquer decepção. Ao ver o semblante do rapaz, mudou de idéia. Ele parecia-lhe um ótimo partido para iniciar a noite. Consentiu. Foram à pista, a qual já estava totalmente tomada pelos dançarinos. Amílcar e Plauto – agora um pouco mais a vontade – ficaram ali, à mesa, conversando e se divertindo. **************** 37
  • 38. Durante as primeiras músicas, o rapaz que convidara Sandra para dançar, nem piou. Ela ficou imaginando que ele só podia ser belo por fora e oco por dentro. Dançava bem, isto era verdade, mas não falar nada era inadmissível. Onde é que já se viu: um rapaz tão bem apessoado, esbelto, elegante, apresentável, não falar nada! Isto era inadmissível. A bandinha fez uma pausa. “Se agora ele não piar, doulhe o fora”. – pensou ela. Parecendo o rapaz ter-lhe adivinhado o pensamento, falou: - Você é linda! - O quê? E sandra aproximou seu ouvido por não tê-lo compreendido. A algazarra, o barulho era intenso, nada se ouvia caso não gritasse. E o moço: - Eu disse que estou achando a noite maravilhosa. - Ah! – Pra mim todos os bailes são maravilhosos, chova ou não. Acontece tão pouco disso por aqui, que quando se tem a oportunidade para curtir esta alegria, se faz de tudo para estar presente. O rapaz a fitou de alto a baixo, inebriado com aquela garota a sua frente. Continuou falando: - Você é desinibida! - O-obrigada! Sou sim. Super-desinibida! Gosto do jeito como levo as coisas. - Eu sou meio travado. – Disse o rapaz. – Mas, devagarinho, quando conheço alguém, vou me soltando e me transformando num cara super desinibido. - Gostei de ver. Eu também sou assim. Sandra sorriu em seu interior, ufana por ter sido escolhida por aquele rapaz que tinha tudo a ver com ela. Parecia que a noite estava prometendo um relacionamento novo. Sorriram. Ambos deixaram transparecer dentes lindos; os do parceiro de dança de Sandra mostravam-se meio amarelados, nicotinados; os dela, alvíssimos. A bandinha retornou com seu repertório. O rapaz não tardou a tomar Sandra em seus braços, a qual, por sua vez, deixou se envolver totalmente. E, enquanto dançavam, o rapaz tentou cortejá-la mais incisivamente, porém ela com delicadeza impediu-o de prosseguir em seu intento. Ele ficou todo enrubescido, mas cedeu. Sandra sentiu-se satisfeita ao notar que ele reconhecia sua tentativa mal-sucedida e que seu olhar unicamente, embora ele estivesse quieto, dizia quanto ela o provocava. “Só falta começar a babar” – pensou. E seu olhar sorriu. 38
  • 39. ****************** A bandinha estava muito enfezada com seu repertório de melodias rápidas, deixando os dançarinos suados e desgastados com a intensidade dos ritmos que vinham imprimindo. Os casais mais animados entravam em todos os ritmos, e mesmo suados, aplaudiam a seleção musical que a bandinha apresentava. Mesmo sendo o começo do baile, já tinha alguns casais dançando, com o homem cochilando sobre o ombro da namorada. Era o resultado visível de uma semana sobrecarregada, de muito trabalho, onde a diversão estava tomando conta dos seus preciosos momentos de sono. Olhando para as senhoras que sentavam às mesinhas com a companhia das filhas, as meninas pós-adolescentes, ávidas por um rapaz que lhes desse uma noite inesquecível, se via que elas tinham muito o que conversar com as vizinhas, suas amigas que haviam comprado mesinha perto umas das outras para que naquela noite todos os assuntos ficassem atualizados. E a conversa corria frouxa, entusiasmada, delineando sobre as pessoas que se encontravam no baile. Só as meninas pósadolescentes ficavam deslocadas. Afinal, nem o assunto das mães lhes dizia respeito, nem os rapazes as convidavam para dançar. ****************** De repente, todos os olhares se voltaram para a porta do salão. A silhueta de uma pessoa à frente da luz da entrada, logo foi se tornando visível e o seu semblante deixou a todos atônitos. Quem era ela? De onde vinha uma garota tão formosa para se perder dentro de um salão, num lugarzinho tão ermo como Recanto? Mulher diferente, especial, mulherão é o que parecia. Ancas grandes, alta, peitos definidos, traje provocante, enfim, alguém que chegou para arrasar. Estas perguntas certamente giravam na cabeça de todos os homens desimpedidos do baile. Alguns já estavam mais de olho nela. E a moça adentrou ao salão com trejeitos acentuados, seguida dos dois rapazes musculosos e de olhar duvidoso. Vários rapazes começaram a apostar entre si para ver quem teria a coragem de convidá-la para dançar. Para a felicidade 39
  • 40. da galera masculina, os homens que a acompanhavam a deixaram só, sentada numa mesa que havia sido previamente reservada, sumindo na multidão. Por coincidência, a mesa da moça era perto da mesa de Amílcar. ****************** 40
  • 41. Amílcar entrou em firme bombardeio de olhares com uma garotinha, que estava escorada numa cadeira, não muito distante deles. Parecia-lhe ser uma teteinha de cidade. Nunca havia visto por aquelas bandas e o pessoal de lá e arredores, em quase sua totalidade, era conhecido seu. Ela piscou. Plauto também viu: - Mano, não sei como consegues, ms se perderes esta aí, o baile não vai ter sentido para ti. Que gataça! - Plauto, te garanto que esta será minha esta noite! Espera só para ver. E Amílcar continuou a olhar para aquela menina, quando de repente... - O-o-opa! Plauto, olha só: querem tirá-la de mim! - É, estou vendo, Amílcar! O Luiz não perde tempo! Luiz se aproximara da garota. Pelo que se divisava da mesa onde Amílcar e Plauto se encontravam, o rapaz estava convidando ela para dançar. A garota decididamente fez que não. Mas, Luiz continuou insistindo. E Amílcar: - Cái fora pé-rapado! Ela não está querendo nada contigo! Te enxerga, ô babaca! - Aguenta aí, mano! Vamos ver no que dá. – Disse Plauto dando tapinhas no ombro do irmão. É claro que Amílcar havia falado de si para consigo sem sair de sua mesa. A garota encarava Luiz com despeito. Finalmente, como ele não tinha mais argumentos, murchou as orelhas e saiu, rubro feito um tomate. Amílcar respirou aliviado. A garota também. Ela, por sua vez, olhou de relance para ele, que desviou os olhos para Plauto, o qual sorriu. Ela, à primeira vista, parecia uma perfeita malandra: fizera a cena somente para confundi-lo, ou simplesmente para se divertir. Amílcar nervosamente acendeu um cigarro; já, já, iria levantar e seguir até a moça, a fim de convidá-la para dançar, antes que mais um aventureiro se aproximasse dela. Tomou mais um gole de cerveja e fez figa para o irmão. Levantou-se. Dirigiu-se em outra direção para que a garota não o visse se aproximando. Esta técnica é bastante usada pelos rapazes nos bailes para não irem direto até a garota, chegando ‘de cara’. Assim parece mais encantador o encontro e a persuasão em acompanhá-los até a pista de dança fica mais fácil. A garota o seguiu com os olhos. Por fim, o rapaz sumiu entre as pessoas. Ela, intrigada, olhou para a mesa onde Plauto sentava, fazendo um gesto interrogativo. Ele, mais do que ligeiro, sinalizou-lhe que esperasse e a garota sorriu. 41
  • 42. ********** A misteriosa dama continuava sozinha a sua mesa, sem ter recebido um convite sequer para ir dançar. Observada por diversos olhares curiosos e analíticos, ela fazia de conta que não estava vendo o que acontecia. Mas, observando bem, com o canto dos olhos ela acompanhava tudo ao seu redor com angústia. Vários pretensos dançarinos a analisavam a certa distância, morrendo de vontade em convidá-la para dançar. Mas, faltava-lhes coragem para isto, pois aquela garota parecia um ‘monumento’. Quem era aquela garota deslumbrante? Com um rosto perfeitamente esculpido, ornado por uma vasta cabeleira loura, franja ao estilo de Cleópatra, a moça realmente impressionava a todos os rapazes simples do lugar, pela diferença que impunha em seu visual: salto altíssimo, meias colantes em preto riscado, um vestido ‘pretinhobásico’, hiper curto e corte profundo no ‘V’ dos seios. Embaixo, uma camisete colante também em preto riscado. Para completar um colar de pérolas brancas e um olhar de tentação. Mas, no momento, ninguém se habilitara a oferecer uma dança naquela noite, pois a garota destoava com todas as outras do salão. ************** Os músicos fizeram um intervalo. Sandra estava exausta, mas não queria que o rapaz sentasse com ela. Aguentou firme na pista de dança. Nem sequer a pergunta mais banal ele lhe havia feito como saber qual era seu nome. Muito menos fizera qualquer menção ao belo vestido que ela usava. Nas poucas frases que falara ele lhe parecia ser bastante ignorante. Tudo o que falava eram frases formais, ensaiadas, automáticas. Pensou: “Vou dar-lhe o fora!” Ele, pateticamente parado à frente dela como um “ás de paus”, parecia estar escarafunchando seus miolos a fim de encontrar mais uma 42
  • 43. frase. Momento decisivo. Por fim falou baixinho, quase inaudível: - Como é seu nome? Sandra, na ânsia de se livrar do fardo, nem ouviu a pergunta. Teve a impressão de que ele soprara. Ele, ao invés de reformular sua pergunta com voz incisiva, limitou-se a fitá-la apreensivo. O calor no meio da pista era sufocante. Por fim, Sandra falou decididamente: - Com licença! E ele... - Como? Você disse “Hortência”? Seu nome é Hortência? - Não! Eu disse: Com licença. ...Com li-cen-ça! Estou de dando o fo-ra!!! E, ...Hortência é tua mãe! Sandra virou-se e foi embora. O rapaz, no primeiro instante ficou impotente diante da incredulidade sobre o ocorrido, mas assim que, instantes após, voltou à real, ainda correu atrás tentando barrá-la, mas ela o despistou deixandoo perdido no meio da pista. A bandinha voltou a tocar. Sandra, ao chegar a sua mesa, ainda encontrou Plauto sentado, batendo o ritmo do dobrado com os dedos. Parou-se a sua frente e com ar de séria, disse: - Plauto! O que ainda estás fazendo aqui? Te solta, chô, chô! O salão está minado de garotas bonitas e tu ainda continuas aqui parado. Vamos, vamos, vamos! – Pegou-o no braço e puxou-o para que se levantasse, ao que ele falou se segurando no lugar onde estava: - Calma, maninha, espera! Eu preciso conquistar primeiro esta cara-de-pau que tu e o Amílcar já têm de nascença, para depois conquistar uma garota. - Te dou cinco minutos, nem mais nem menos, viu? - Tá, tá! Já tenho uma garota em vista. ********** Amílcar havia acabado de chegar em sua paquera, aquela que não foi dançar com o Luiz. Encarou-a de frente e disse: - Oi, gata! - Oi, tigre! Riram descontraidamente. Amílcar cruzou os braços, deixando aparecer aqueles bíceps avantajados, resultado de trabalhos braçais da lida do dia-a-dia na roça. Ele pendeu a cabeça para o lado, e com olhar intrigado falou: 43
  • 44. - Você fez uma cena terrível com aquele rapaz há pouco! - Ele me amolou! - Como, assim? - Ora, me chamou de gostosa, bunduda... - Isto pra ti significa ser amolada? - Sei lá! ...Acho chato. - Chato seria se ninguém a convidasse para dançar. - Olha, dependendo do cara, é melhor ficar sem dançar! – Cruzou os braços também e encarou com seriedade Amílcar: Chato mesmo é o olhar de tarado que aquele bobalhão fez, viu? - Bom, ...eu não vi e por isso não posso dar minha opinião. Mas, se o dono do salão tivesse visto sua atitude há pouco, ele com certeza mandaria seus seguranças a porem para fora sem direito à volta. - É? Não diga!? ...Suponho que você veio fazê-lo pessoalmente, não foi? Amílcar, com a maior desfaçatez retrucou: - Mais ou menos! Vim tirá-la daqui para colocá-la no meio da pista! ...Vamos dançar? - E se eu disser que não? Vai me expulsar daqui? ...Vai falar para o dono do salão que não fui dançar com ninguém? Amílcar pensou que a menina estava querendo brincar. E, soltando os braços, falou em tom de brincadeira: - Se disser que não, eu simplesmente me viro, retorno para a minha mesa e tentarei cozinhá-la mais um pouco, e, - Pois então, faça o favor! – Atalhou a garota. O rapaz ficou estático, paralisado, estupefato. Nunca havia imaginado receber uma resposta como aquela, tão inesperada. A troco de que aquele pedacinho de gente o havia encarado com tanta volúpia durante aquele tempo todo? O que aquela garota queria naquele baile, se negava-se a dançar com todo mundo? O que havia de errado? Ele não fora grosseiro, pelo contrário, fora gentil e se aproximara dela com um jeito garboso e natural. Enquanto remoía estes pensamentos sentiu o sangue lhe subir à cabeça. Nunca havia ganho uma resposta assim em toda a sua vida. Nunca, em baile algum, ninguém lhe negara dançar com ele. Está certo que em alguns outros bailes algumas garotas só haviam dançado uma música com ele e já o haviam despachado. Mas não assim: de primeira, na cara, como um murro! Como agir, ou melhor, reagir? ...Pelo canto do olho viu que seus irmãos o observavam. E ele não podia esmorecer logo com a primeira garota da noite, para não inibir ainda mais o seu irmão. O pior é que a garota olhava para Amílcar, ao mesmo tempo desafiando e implorando, como se escondesse um grande mistério. Ou, no fim, seria somente uma tremenda e salgada amargura de recalque de garota riquinha de cidade 44
  • 45. grande. Como proceder? A moça o deixara em parafuso e as ideias não fluíam, não vinham à tona. Então tentou consertar: - Ô gata! Qual é o problema de a gente ir dançar um pouco e se divertir? - Você é o problema! - Eeeu? - É! Você! Tá cheirando a roça e a palheiro; dá a impressão de ser até coisa pior, tipo maconha. - Espera aí, garota! Eu tomei um bom banho antes de vir para este baile e você está sendo indiscriminada e, - Há, há, há, banho? Claro, tomou um banho daquele perfume de buteco Ara, que com qualquer troco você compra e que cobre qualquer nhaca. - Está difícil manter assim um diálogo com você. Pro seu governo, eu nem uso esse tal de Ara. Eu uso... - O quê? Cueca samba-canção? ...desodorante ‘roll on’? Ou, usa o papo para levar as garotas bobas daqui na conversa? - Calma, não se altere! Vamos conversar? – Amenizou Amílcar. A garota, agora com as mãos na cintura, balançando as ancas disse: - Não chateia, tá? Amílcar, que o tempo todo esteve tentando amainar o relacionamento com a garota a fim de entrarem numa conversa civilizada, descobriu por fim que ali não tinha nenhuma chance. Então partiu também para a ignorância: - Espera aí! Não vamos começar por este lado descendo o nível! Somente vim aqui convidá-la para dançar e você me recebeu com patadas. Não pode ser assim, amarga! Garota, a vida é tão bacana, não é justo você tratar as pessoas deste jeito. Vamos parar com as grosserias? - Há, há, há, ...um grosso se cheira de longe! - O quê? Quem é grosso? - Redarguiu Amílcar possesso de raiva. A garota o tirara do sério: - Grossa foi você que ficou me paquerando o tempo todo e agora que cheguei aqui, está me queimando. Isto para mim é grossura! - Não foi para você que eu estava olhando! – Respondeu a garota. Encolheu os ombros, olhando para o lado: - Foi você que não soube me interpretar. - Pra quem estava olhando então? Pra mesa onde eu estava sentado? - Nada a ver! - ...Ah, já sei: você é tão pobre e faveleira que estava de olho na minha bebida e nas fritas lá da mesa! ...Agora entendi! - Metido a engraçadinho! Bem que me disseram que aqui em Recanto só tinha gente grossa. E é só o que encontrei até agora! 45
  • 46. - Bom! Muito bom! Você está me chamando de grosso, estou certo? - Certo! Certíssimo! Chô, chô, desopila! Cai fora! - Só vou embora quando terminarmos esta discussão. Vem cá! Amílcar forçou a garota a acompanhá-lo. Foram uns dez metros, num ponto onde seus irmãos não mais os divisassem e ele a soltou. Antes de deixá-la ir embora, puxou-a de volta no braço e disse: - Já que eu sou grosso, escuta essa: Tomara que você, ou melhor, tu, viu? Tu!!! Afinal, sou grosso! Tomara que tu tenhas uma semana de diarréia, daquelas que te fazem mudar pro banheiro, viu? E que cagues todas as tuas calcinhas, que vás precisar pedir emprestado as cuecas do teu irmão para não andar sem nada! A garota fez ar de nojo. Não esperava esta incitação. Só conseguiu responder: - Pra você também! E que sua diarréia seja tão fedorenta que o cheiro estrague seu estômago! - Puta! – Gritou irado Amílcar enquanto ela estava se virando para sair de mansinho. A garota ainda virou seu rosto para ele e franziu o nariz numa expressão animalesca de ira e sumiu na multidão. O rapaz sorriu: sempre fora autêntico e natural, mas a extravasada saída que o acometera fê-lo sentir-se ufano. Voltou à mesa. Sandra encontrava-se sozinha. Plauto tinha ido ao banheiro. A irmã quis saber de todos os detalhes da conversa de Amílcar com aquela pirada e achou a discussão muito banal. Chamou a garota de perua desalmada. Quando Plauto voltou à mesa, pediram algo para comer. Amílcar, para variar, já estava paquerando outra garota. Desta vez era uma bela dama, parecendo ser de uma estirpe nobre, moralista e severa. Simplesmente dava-lhe esta impressão porque uma senhora de mais idade sentava ao lado dela e fazia a figura de guardiã austera; e àquela senhora, nada passava despercebido e ela já notara, bem antes da moça, que ele a estava observando. Amílcar tentou esboçar um sorriso meio amarelo, ao que a senhora de meia idade retribuiu, mostrando vários pivôs de ouro. A mocinha disse qualquer coisa ao pé do ouvido da senhora, ao que ela retrucou assentindo com a cabeça. Certamente estava aprovando o rapaz que a interessava. Amílcar deu uma cutucada em Plauto e disse: - Mano, vou tentar uma menina onde terei que pedir o consentimento da mãe! O que achas? - Depois que levaste o fora daquela gatinha manhosa, tudo deve ser lucro esta noite. 46
  • 47. - Lembra-te que a ‘gatinha manhosa’ não dançou com ninguém ainda. - Eu sei! Só estou brincando. Mas, voltando à dama de olhos negros... ...Estou bom para ver o resultado! ...Você com esta cara de sacanagem... não sei não! Aquela senhora de meia idade aí – apontou – deve ter esquecido seus óculos em casa e está confundindo você com algum latifundiário da região. - Eu vou e... ah! Deixa pra lá! As vezes sou meio convencido. Aí acontecem os incidentes como aquele com aquela cheiona metida a conquistadora e nesta semana, completamente desarranjada conforme a praga que roguei. - Força mano! Não desanima! Cadê tua autoconfiança? E é bom dar um jeito para não ser passado para trás por mim, hehe. - O quê? Está de olho em alguém? - Claro! Não sou de ferro, né! - Aonde, aonde? Me mostra! - Espera, Amílcar! Ela chegou agora no baile e acho que nem me viu ainda. - Mas, o que está esperando? Criar coragem? - Não, mano! Criar ‘cara de pau’. - Se quer algumas aulas te dou de graça. - Lá vou eu! – Disse Amílcar e se levantou, fazendo gesto de fortão para o mano e seguindo em direção à mesa daquela garota franzina. De longe dava a impressão de ela não ter mais que os anos de Amílcar após a sua adolescência, mas ele foi firme até lá, e prontamente se postou diante dela e disse: - Com licença! Tenho certeza de que gostaria de dançar um pouco comigo! ... Aceita? Ela cochichou qualquer coisa no ouvido da senhora que a acompanhava e a mais velha assentiu. A garota levantou-se de súbito, não proferiu palavra alguma, aliás nem sequer para o rosto de Amílcar olhou e seguiu em direção à pista. O rapaz teve que acelerar o passo, desvencilhar-se de diversas pessoas e ainda ouvir gracinhas de conhecidos já meio tocados, para alcançar a garota: - Vai criar a menina? - Não sabia que já tinha uma filha tão grande! - Nem parece que puxou o pai! Ela é muito mais linda! - Olha, que aliciar menores dá cadeia! Todas estas foram frases proferidas pelos ‘amigos’ do Amílcar, os quais, já bastante ‘tocados’ pela bebida, não estavam no baile para arrumar namorada, mas, sim, para bagunçarem. E eles faziam sua festa particular. 47
  • 48. Já entre os dançarinos, ela continuou sem encará-lo, saindo em movimento, dançando. Dançava muito mal, desompassadamente, pisoteando os sapatos pretos e reluzentes do acompanhante. Assim passaram um bom tempo; Amílcar fazia perguntas; ela respondia que sim, que não, que talvez. Ele nunca haveria de se perdoar por ter arriscado dançar com uma garotinha quase pré-adolescente, ainda cheirando a leite e com uma espinha deveras evoluída – parecendo um vulcão prestes à errupção – bem no meio da testa. Mas, pausado em suas interpretações e já vivido o suficiente para tentar entender as pessoas, desconfiou ser possível estar faltando a pergunta chave, para que ela se encorajasse a ser real e franca, desenvolvendo uma conversa sadia. Ele, pacientemente fez várias perguntas, ensaiou mais algumas, sondou, mas tudo foi em vão. As respostas da garota continuaram evasivas. Ele não sentia nenhum regalo com aquela criatura como companheira. Seus dedos dos pés já meio desorientados pelo não uso frequente de sapatos, estavam parecendo balões a ponto de explodirem, de tantos pisões levados pelos saltinhos pontudos do sapatinho trinta e dois da garota dançarina. No intervalo musical seguinte, tentou uma última pergunta para ver se ela se fazia mais agradável: - Você é sempre assim? - Como? - Ora, você sempre se comporta assim quieta nos bailes? - Não! - E por que você está sendo assim comigo? - Porque sim! - Porque sim não é resposta! Diga mais alguma coisa além de sim e não. Por que não fala? Deve saber outros assuntos além das belas palavras que já trocamos esta noite! - Não sei! - Há, há... falou outras palavras! Mas eu sei! - Sabe o que? - Sei e posso dizer exatamente o que é que está travando você de falar. Mas, eu gostaria de ouvir isto de sua bela boquinha, guardando atás destes lábios tão bem pintadinhos este monte de dentinhos parecendo pérolas. - Uáu, que liiindo! Nunca ouvi isto! Fala mais um pouco que eu me abrirei ... - Ora, ora, ora! A mocinha sabe falar! Mas, como eu ia dizendo, além desta bela boquinha, você está muito sexi neste vestidinho grafite colante! Que curvas! Aposto como sou o primeiro em sua vida a lhe falar isto cara-a-cara! – A moça desviou o olhar. – Ih! Vermelhou!?! Desculpe! Não tive a intenção. Mas, juro que todo o que falei é a mais pura verdade: é a externação dos meus sentimentos. Tudo combina em 48
  • 49. você, a começar pelo cabelo. Só não gosto do jeito como está me tratando. - Não fala assim. Vou mudar, eu juro! Fala mais um pouco? - Vamos ver... Aposto também, que sou o primeiro a beijar sua testa! - Fazer o que? - Ora, dar um beijo em sua testa, assim: Amílcar fez menção em beijá-la, ao que ela cordialmente o afastou. Ele, olhando maliciosamente em seus olhos, beijou a ponta do seu indicador e o pousou suavemente na testa da mocinha, do lado da espinhona. Ela, por sua vez, não conseguiu esconder o embaraço e a disparada do seu coração. O rapaz segredou: - Da próxima vez pedirei licença para tamanha ousadia. Mas, vai ser para beijar estes lábios lindos e desejosos com um beijo bem prolongado. A garota enrubesceu, desviando seus olhos dos de Amílcar. Em seguida, fez-se um pequeno silêncio entre os dois. Ela levantou novamente os olhos encarando o olhar malicioso e desejoso do rapaz. Olhavam-se estudando cada qual as feições do companheiro. Amílcar quebrou o silêncio voltando à questão das respostas da moça. - E então? Vai abrir o jogo agora? Meio sem jeito, a moça respondeu: - Vou! ...não posso me soltar com ninguém por causa... por... causa da minha mãe! – e se autoafirmando – é, por causa da minha mãe, já falei, pronto! - Sua mãe? - É, é! Está sempre pegando no meu pé. Não tenho liberdade para nada, até é ela quem escolhe com quem vou dançar. - Sua mãe faz isto? - Faz! E aos olhos dela, faço tudo errado. - Fale mais, desabafe! Isto ajuda você a se sentir melhor. A menina começou a contar sobre sua vida, seu modo de agir e o quanto a mãe interferia em tudo. Amílcar viu sinceridade em suas queixas. Ele aproveitou e lhe deu diversos conselhos, a fim de ela libertar-se das garras da mãe, ávida por uma futura filha impoluta e indelével. Mas, depois de falar e aconselhar bastante, sentiu que a garota de modo algum fazia o seu gênero. Ele gostava de gente alegre, pra cima, e a garota era o inverso disso. Também não queria ficar de conselheiro e confidente a noite toda para quem fosse, nem mesmo para esta garota tão bonita, apesar da espinhona no meio da testa. Aquela noite ele queria só se 49
  • 50. divertir. Por outro lado, não queria mandar a menina embora na maior, afinal ela já demonstrara estar cheia de problemas, e ele não queria acrescentar mais um em sua vida. Por outro lado também, analisando as curvas da garota, valia a pena o esforço de ficar ouvindo seus queixumes. E a banda reiniciou uma melodia brega, de dança lenta, atrevida. Amílcar, aproveitando a oportunidade trouxe a menina mais perto, ao que ela o arrastou para o meio da pista, despistando do olhar de sua mãe. Dançaram bem coladinhos e nas manobras para lá e para cá, sentiu a perna da menina entre as suas procurando roçar suas partes. E ele, tateando com sua coxa procurou fazer o mesmo, apertando sua virilha. E no esfrega-esfrega, as maçãs do rosto da menina começaram a ficar vermelhinhas, parecendo ela até estar com febre. Mas, era a febre da libido. Continuaram assim por três músicas inteiras, entre boleros e ‘foxes’. Amílcar gostou e por sinal, a menina teve sua primeira oportunidade de um aconchego mais próximo, mais íntimo. Pelo seu comportamento também mostrava ter gostado da nova experiência. Ela estava ‘prontinha’. Seu olhar desejoso a estava entregando. E a tesão do rapaz era tanta, que, num impulso a convidou para darem uma volta no lado de fora do salão. A menina assentiu, e na loucura daquele impulso, tudo indicava que agora mãe nenhuma iria impedi-la de perder a virgindade. Mas, ao sairem da pista, a mãe aguardava ansiosa a filha: - Onde foi que se meteu, Tífani? - Ora, eu estava no meio da pista. Ela está muito cheia. – Respondeu a garota para a sua mãe. Amílcar teve sua mão arrancada da mão da garota pela mãe que estava com um olhar diabólico. Ele falou: - Olha, não aconteceu nada demais. Por que esta atitude? - A Tífani não é destas vadias que se acha por aí, viu? Ela tem família. Tífani silenciou, baixando os olhos, resignada. Amílcar disse: _ Pois quero que a senhora saiba que esta garota tem uma alma iluminada, tem tudo para ser um orgulho para você. Mas se continuar a superprotegê-la, qualquer hora vai aprontar alguma. - Vamos para a mesa, Tífani! - Por que, mamãe? ...estou acompanhada, não viu? - Deixa pra lá, Tífani. – Disse Amílcar. E cochichando no seu ouvido, passou o número do seu telefone. – A gente se vê! 50
  • 51. Tífani continuou olhando desejosa para Amílcar saindo de perto enquanto a mãe a arrastava de volta para a sua mesa. Assim, a segunda companheira não completou sua noite. Fora mais uma experiência sem sucesso. Mas, ainda tinha muito baile pela frente. ********** Voltando à mesa, Plauto ainda continuava lá, porém mais desinibido e seletivo. Amílcar perguntou, enquanto acendia um cigarro: - Como está a paquera: - Vai indo! Estou de olho numas três garotas. O que você acha daquela ali? – apontou discretamente. Amílcar observou meticulosamente por alguns momentos a fim de tentar averiguar todos os detalhes de comportamento da garota, por mais ínfimos que fossem. Por um instante, passoulhe na mente a impressão de que aquela seria a perfeita companhia para seu irmão naquele baile. Parecia ser uma garota sensacional. As aparências enganam, claro, mas a garota transpirava seu interior. Via-se um brilho de grandeza naquela pessoa. Por fim, aconselhou: - Mano velho, afirmo que esta pequena facilmente vai cair no seu papo! – levantou os ombros, fez postura de personagem famoso – assim: componha-se! - Escuta! ...Veio um cara com Sandra e a tirou para dançar; parecia um rei, e... - E, e, e, e! Não mude de assunto, Plauto! Não me diga que está querendo perder aquela garota para outro cara, tipo Luiz?! Vamos! Aproveita a chance, que outra é difícil de aparecer! Plauto ainda remanchou, tentando desconversar, mas, acabou cedendo. Cruzou os dedos, levantou-se e saiu titubeando. Seu irmão o seguiu com olhar aprovador e ficou muito feliz ao ver os dois seguindo para a pista. Agora era a vez dele tratar de si mesmo. Só tivera dissabores naquela noite, apesar da tesão que experimentara com Tífani deixando ela louca por ele. Mas, nem tudo estava perdido. Singrou o salão à procura da mesa onde a garota sentava com sua mãe. Os dois se olharam e ela, através de gestos mostrou que iria telefonar para ele. Ele assentiu e já desviou o olhar de Tífani, pois sua mãe começou a encará-lo, braba. Todos estes acontecimentos não o haviam aborrecido, 51
  • 52. afinal, tinha ainda muito pela frente, e tudo era uma questão de oportunidade. Olhou para os dois lados e ficou espreitando uma cena que se desenrolava ali perto: um casalzinho estava concentrado nos mais frenéticos beijos e carinhos, quando uma senhora de mais idade chegava para junto deles. Nem ele, nem ela, se deram conta desta súbita companhia e continuaram em seu regalo. A senhora postou-se entre os dois abrindo caminho com a bolsa entre os lábios dos frenéticos beijoqueiros. “Deve ser esquisita a sensação de beijar, de repente, o couro duro e frio de uma bolsa ao invés dos lábios fofinhos e quentes da menina e ainda ter que enfrentar o olhar brabinho – fez beiços – da mãe dela!” – pensou Amílcar enquanto via a cena e começou a rir. Vários começaram a rir e a senhora não perdeu o rebolado. Tomou a sua filha, esbofeteou o rapaz com a bolsa e rumaram para fora do salão. Logo juntaram-se vários rapazes ao redor do vitimado e fizeram folia fazendo cócegas nele, mexendo em seus cabelos e mandaram trazer várias cervejas fazendo a comemoração ali mesmo. E a festa foi geral naquele canto, com muitos gritos primitivos e gestos antiquados imitando velhas neuróticas. ************ Um rapaz se aventurou em convidar a moça deslumbrante, e desconhecida que entrara no salão com dois guarda-costas. Ela prontamente aceitou. Mas o estranho, é que na metade da primeira música, os dois voltaram da pista. Decerto ele não agradara aquela garota com a sua companhia. A mesma coisa aconteceu com mais dois pretendentes, que também não chegaram a concluir a dança de uma música e já se viam desligados daquela estranha moça que assim, continuava sozinha perto da mesa de Sandra. Era difícil de compreender o motivo pelo qual tal garota não ficava na pista muito tempo com seus pretensos dançarinos. ************** 52
  • 53. Enquanto Amílcar ria, nem reparou que alguém se plantara na sua mesa. Quando se deu conta, viu tratar-se de um de seus desafortunados amigos, entre aspas, o qual provavelmente vinha se lamentar. Ao repará-lo Amílcar cortou automaticamente o sorriso, tornando seu semblante fechado. O rapaz disse algumas obviedades, as quais foram retrucadas por monossílabos. Era o Lido, que foi sentando e encomendou com o garçom saco-de-açúcar um prato de picadinhos. Amílcar imaginou que o melhor teria sido ficar aquela noite, em sua casa, dormindo. Estava dando tudo errado. Não tivera ainda em seus braços a garota de seus sonhos e agora que iria à luta se via dominado por um bundão medroso a tomar-lhe o tempo. Chegou até a duvidar da eficiência de suas qualidades de galante conquistador. Sua conclusão foi de que o melhor cavaleiro às vezes também cai do cavalo. Pensou em seus irmãos: pelo visto, ambos haviam acertado aquela noite, pois já passara um tempo e eles ainda continuavam na pista. O infiltrante da mesa continuava matraqueando. Nem reparou que seu pretenso anfitrião não lhe dava ouvidos. Claro, Amílcar estava absorto em seus pensamentos e nem se dera conta de que alguém o analisava. Veio o garçom. Trouxe um prato de batatinha-frita parecendo couro amanhecido de tão murchas que as batatas se encontravam. Lido não gostou do engano: - Mas eu pedi picadinho e não batata-frita! O garçom, largando o prato na mesa e enxugando as mãos meio engorduradas na toalha, retrucou: - Se tivesse pedido picadinho, eu teria trazido. Como pediu batata-frita, ela está aí. São quatro reais! - Amílcar, me ajuda! Eu pedi ou não pedi picadinho para ele? Amílcar, louco para se ver livre daquele chato retrucou: - Hum, áh, ... o que? - Diz para este metido a engraçadinho o que mandei servir para nós!? - Sei lá! Foi um picadinho? O garçom, incrédulo, tentou: - Ele não tem certeza. Eu é quem estou certo! - Certo uma ova! – Grunhiu Lido. – O que foi que pedi, Amílcar? E Amílcar, para acabar com a discussão, falou: - Pediu picadinho, Lido. - Viu só? – falou o rapaz. O garçom, ainda incrédulo tentou: - Não quer mesmo ficar com este prato de batatas? - Não! Isto a minha mãe pode fazer em casa. Mas, salame ela não pode! Trás o picadinho. - Faço três reais e... 53
  • 54. - Eu já disse que não quero! Vá, vá! Traga o que pedi! Enquanto os dois, o garçom e Lido discutiam sobre as banalidades de um pratinho de salgados, Amílcar descobriu no meio da multidão a garota que já o observava há tempo. Era loira, cor de olhos: natureza. Ele tremeu na base: que mulheraça! Entrou firme na paquera. Nisso passou outro garçom com o prato de picadinhos e o trocou pelas batatas amanhecidas do primeiro garçom, o qual ainda se encontrava em frenética discussão com Lido. Por fim, tudo se resolveu. O rapaz pagou a conta e não esperou um minuto sequer para devorar a comida. Ofereceu para o seu pretenso anfitrião, que, ao invés de aceitar, resolveu ir logo para junto da garota que estava paquerando ele. Lido ficou boquiaberto seguindo os passos de Amílcar, mastigando feito um porco. ************** A loira o aguardava de braços cruzados: - Alô! Amílcar sorriu. Prosseguindo, apontou para ela: - Você não se importaria em ocupar um lugarzinho comigo ali na pista? - De modo algum! - Então, ...ótimo! Que estamos esperando? - Nadinha! Me segue. Se for rápido, vai me alcançar. E saiu em largos passos em direção da pista de dança. Amílcar, mais do que ligeiro seguiu a garota e já teve a oportunidade em divisar os quadris bem demarcados pela calça justa, a qual também sustentava um trazeiro perfeito. “Que bunda!” – Pensou ele enquanto a alcançava. Chegaram à pista. De mãos dadas subiram o degrauzinho da pista de dança, quando ele viu seu irmão, o Plauto, dançando coladinho com a belíssima garota, demonstrando já bastante intimidade. Os dois se viram, sorriram e Plauto fez um gesto de aprovação para Amílcar, que por sua vez tomou os braços da loira e colocou-os em seus próprios ombros. Encarou-a com carinho: - Dance da maneira como você está acostumada que a acompanharei. - Legal! Senti firmeza! - Firme é teu astral, gata! Gostei! 54
  • 55. - Então, vamos dançar? – Disse a moça esboçando um sorriso, deixando aflorar dentes brancos, alvos. Dançaram e conversaram muito durante a dança. Amílcar encontrara uma garota do jeito como gostava: papuda, de bem com a vida. E conversaram de tudo, de todos, sobre tudo e sobre coisas até desconhecidas. A conversa fluía natural, assunto após assunto, parecendo os dois se conhecerem há anos. E nunca haviam se visto antes. Volta e meia a loira errava o passo concentrada no assunto da conversa e Amílcar nem reparava. Gracejavam. Riam em voz alta. Abraçavam-se como velhos conhecidos. E a banda ensaiava ritmos dos mais variados, ligeiros, cansativos. Após algum tempo de dança, estavam os dois exaustos. Amílcar consultou seu relógio: teriam ainda mais de uma hora para se divertirem e se descobrirem melhor. Cansado, convidou-a para sentar. Ela prontamente aceitou. Foram até à mesa. O amigo chato já não se encontrava mais lá. A mesa estava completamente desocupada. Enfim, só os dois, já sentados, o rapaz falou: - Você bebe o que? - o que você quiser! - Cerveja? - Ótimo! Serve! - Mas. Se quiser outra coisa, um refri, ou... - Não! Está bom assim: cerveja! - Você é bem decidida, hein? - Com certeza! Você vai me conhecer melhor e verá que eu não tenho frescura nenhuma pra nada. Sou decidida, mas tudo serve. Amílcar chamou um garçom saco-de-açúcar. Prontamente, veio um correndo. Depois, ele perguntou para a garota: - O seu nome não é “você”, disso tenho certeza! - He, he, deixo que você adivinhe. - Como começa? - Não, não! Adivinhe! - Por favor, me dá uma pequena mãozinha, senão fica difícil. - Começa com “V”! - Viu só? Eu estava tentando adivinhar seu nome, dizendo que era “Clara”! Agora já vi que não é. - Clara é minha pele e claro é meu cabelo, hehe. - Você disse que começa com V. Bom, tem muitos nomes que começam com V. Tipo: Vera, Virgínia, Valdete? - Não, errou! Não deveria, mas te dou mais uma chance. - Vanda? - Errou de novo. Não deveria porque já deu quatro nomes, mas vou deixá-lo adivinhar mais uma vez. - Por favor, dê-me mais uma letra! Está difícil... 55
  • 56. - Está bem! Te dou duas letras a mais: Vê – a – éle. - Val... Valdete eu já disse. ...Valdirene? - Está louco? Se eu tivesse um nome desses, me suicidava! Errou de novo! - Espera! ...Valéria? - Há, há, há! - Acertei? É Valéria? - Não, bobinho, acabaram-se as chances e você não acertou. Meu nome é Valquíria. - Uauuu! Que nome lindo!!! Tem tudo a ver com você! Em todo o caso, deixa eu ver: ... – enquadrando a moça melhor no visual, - combina perfeitamente com você! - Eu não gosto do meu nome. – Cortou ela. Valquíria fez uma pequena pausa; olhou o cartão de reserva da mesa onde estava anotado o nome do dono. – O seu nome é Amílcar? - Ah, isto não vale! Pra você foi muito fácil! Está escrito ali no cartão. Desta vez me passou a perna direitinho! - E sei passar a perna de outras maneiras também, viu? Valquíria olhou lascivamente para Amílcar que ainda estava indignado com a facilidade que ela teve em descobrir seu nome. Ela completou: - Em jogos de esperteza, não há regras, queridinho! - No jogo do amor, também não, queridinha! Enquanto Amílcar proferia estas palavras, aproximou-se de Valquíria e roçou suavemente seus lábios nos lábios dela. Ela não resistiu e repassou o feito vorazmente, parecendo querer lhe arrancar os lábios à força. Algumas senhoras mais idosas, mães de garotas que, certamente estavam dançando na mais impoluta inocência com rapazes respeitáveis, observavam os dois com ojeriza, já antecipando seus pensamentos nos motivos de fofoca que estas cenas provocariam às linguarudas de Recanto, caso fossem acontecer com estas filhas. Com certeza, se houvesse ocorrido tamanho atrevimento, de beijar na boca um rapaz na frente de todo mundo, semana que vem ficariam sabendo de tudo. Mas estas mesmas mulheres não se davam conta que, no meio da pista, escondidas pela barreira dos dançarinos, as moças beijavam de língua, deixando de ser polutas e puras, ficando sua inocência questionável. De repente, uma senhora olhou, ficou estagnada, explodindo em seguida, pensando tratar-se de sua filha estar aos beijos com Amílcar. Uma amiga sua barrou-a a tempo de evitar o escândalo, fazendo com que reconhecesse a sua confusão. Aliviada, ajeitou-se novamente na cadeira e continuou matraqueando com a amiga. Sandra passou dançando perto da mesa que Amílcar e Valquíria ocupavam e sorriu satisfeita com a troca de 56
  • 57. carinhos do casal. Ele a viu. Fez sinal para ela continuar dançando. De repente ouviu-se um estrondo de mesa quebrando, copos e garrafas caindo em cacos. Não foi difícil ver-se de onde emanara o início da confusão: eram dois rapazes que haviam se agarrado em duelo. Um, puxou uma cadeira e espatifou-a nas costas do outro, o qual derramou-se em sangue. Os asseclas do dono do salão já estavam chegando no confronto. Gritinhos histéricos e amedrontados partiam de todos os cantos do recinto, a ponto de superarem o melodioso toque ensaiado pelos músicos. Valquíria não perdeu tempo em amparar-se nos braços de Amílcar, que por sua vez, não poupava os carinhos – alguns até maliciosos – para acalmá-la e suavizar-lhe a adrenalina inevitável num momento como este. Entraram mais três na pauleira. A baderna fechou geral naquele canto. Os músicos, abafados pela gritaria, pararam e se espremeram atrás das caixas de som. Todos pararam. O “motor da pista” parou. Até dava a impressão que o ar parou. Somente a briga não parou. Aliás, ela tornou-se o tétrico centro das atenções. Os gritos enfurecidos dos “gladiadores” ecoavam coléricos e alcoólicos. Alguns pares mais afoitos, ocuparamse na pista em treinar beijos dos mais variados, tirando proveito da desatenção da maioria, principalmente do cuidado demasiado das mães. O bolo dos brigões engrossou. Agora eram pelo menos doze pessoas se esmurrando, se derrubando e se chutando. Mas, a ‘festa’ acabou quando dois ‘orangotangos’ guarda-costas apartaram a briga, levando os insidiosos arruaceiros para o seu devido lugar: a rua. Ao todo foram quatro os expulsos, justamente os que haviam iniciado a briga. Por fim, dez minutos se passaram, tudo se normalizou e a banda, para reiniciar, estremeceu no legítimo “Truff Jacó”. Amílcar olhou para Valquíria que ainda tremia, mas já começava a se acalmar. Sorriram infantilmente e combinaram ir dançar. ************** Mais um pretendente chegou junto daquela moça enigmática e a convidou para dançar. Os dois rapazes que haviam entrado com ela no salão, não eram mais vistos em nenhum lugar. A moça prontamente aceitou o convite e seguiram para a pista de mãos dadas. 57
  • 58. Aconteceu o mesmo problema: dançaram uma música e meia e já estavam os dois separados. O que havia de diferente com aquela moça tão delineada, tão marcante? Uma infinidade de rapazes a convidou para dançar, mas ninguém aguentou ficar com ela mais do que duas músicas. Uma garota tão diferente, vistosa, desimpedida e disposta, aceitando todos os convites para dançar, mas ninguém vingava para ser sua companhia. Deveria haver algum motivo muito sério para não conseguir segurar os rapazes por mais de duas músicas. Teria ela mauhálito? Ou, não sabia dançar? Quem sabe, era desdentada? Ou, quem sabe, seu sovaco estaria com cheiro muito forte, nocauteante? Tem pessoas que, emocionadas, exalam odores terríveis em suas axilas. Seria este o seu problema? O que tinha, ou fazia ela de errado para logo perder seu par? ************** Plauto estava por demais satisfeito com a garota que arranjara. Sentiu-se sobremaneira fascinado pela sensualidade de sua voz a sussurar-lhe palavras dóceis e libidinosas em seu ouvido. Helena simplesmente conseguiu modificar o conceito de Plauto sobre as garotas: talvez ela até tivesse despertado algum sentimento de amor profundo nele. Sim, pois Plauto sentia-se inebriado, sufocado, leve e... desorientado! E esta sensação aumentava em cada centímetro de aproximação para aquele monumento. Seu coração batia, ardia, pulsava, chacoalhava e amava em todos os detalhes do seu corpo. Pudera! Helena conseguira modificá-lo em todas as suas dimensões, tornando-o grande, muito grande... Plauto dizia palavras desconexas. Suava, estava molhadinho e o amor transpirava por seus poros deixando a atmosfera ao seu redor ácida, excitante. Helena pensou que, talvez até ele tivesse bebido demais, porém as frases cheias de doçura que brotavam de seus lábios, só podiam ser fruto de uma sobriedade à toda prova. “Gamei de cara!” – Pensava ele enquanto trazia ela mais perto de si, enquanto a banda iniciava uma balada romântica, daquelas do tipo onde o casal fica parado no mesmo lugar na pista, somente balançando o corpo e se comprimindo. Ao término da balada, um fox meloso, provocante, e a bandinha ensaiou uma música rápida, arredia. Plauto, já bastante cansado pelo tempo em que se encontravam dançando, quis sentar-se: - Helena, estou a fim de sentar. Você se importa? 58