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AS AMAZONAS
                           - conto –
                               2007




                           CAMILA APPEL




* todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de

       Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional*




                                                                    1
Mira acorda num salto felino. Olha pelo vão da sua toca e
atesta o dia nascente. Respira fundo para ajeitar a bandagem
do peito, que se deslocou com pesadelos noturnos, e sai para
tocar a corneta de despertar. Sobe na Pedra do Toque, agacha-
se dobrando uma perna e estendendo a outra, assopra a corneta
de    madeira.    Três   vezes       são    necessárias    para      acordar    as
colegas, todas as doze amazonas. Mulheres altas, magras, de
corpo    forte    e   pele    morena,       vão   saindo   de   suas    tocas    e
reverenciando Mira, que já está de pé em cima da pedra na
espera    dos    cumprimentos.       A     cada   reverenciamento,      a   líder
abaixa um pouco a cabeça, mas não os olhos. A comunicação é
imediata e sem palavras, todas sabem que dia é hoje. É o dia
da troca das bandagens. Espreguiçam-se sem limites e sentam-se
em círculo, aguardando instruções. Mira entra numa toca maior
do que as outras e volta carregando balde de água e uma faca.
Ela   olha   para     todas   as     mulheres,     sentadas     e    atentas,   se
posiciona atrás da amazona azul, Vina. Essa é a amazona azul
porque usa a cor azul para pintar seu rosto, seu braço e suas
bandagens. Os desenhos das pinturas seguem formatos da terra,
são quadrados do grão, triângulos das folhas, círculos do sol,
meio-círculos da lua, intercalando-se em arte não dita. Líder
suprema, a forte e destemida Mira, pára atrás de Vina passando
faca. Corta a bandagem do peito e do quadril. Argila dura cai
no chão, espalhando pedacinhos azuis sobre mata baixa. Vina
agacha-se em dor, segurando os seios que há tempos não sentiam
o ar fresco da floresta. Não chora, já que é proibido. Mas se
não     fosse,    choraria      na       espera    de   que     as     gotas    os
ressuscitassem à medida do deslize. Mira repete o gesto com as
outras nove amazonas. Cada uma sente o corte das bandagens e
despencam no chão, apoiando mãos e joelhos nos pedacinhos do
gesso.




                                                                                 2
Mira dá por encerrada a tarefa, guardando a faca num
espaço da bandagem da cintura. Enfia a faca, mas não tira a
mão    do   seu       cabo,    titubeia       ao     passar    o     olhar    pela      tribo
percebendo        algo        incomum.       Falta      uma.        Ela     olha      rostos,
reconhecendo cores, feições, até lembrar-se da que falta. Numa
das    tocas,     encontra          Ágata,    a     amazonas    violeta,         encolhida.
Reclama de dor na barriga, diz sangrar. Mira arranca Ágata de
dentro da toca, arrastando cabelos. A violeta abraça barriga e
uiva, mas dor não atinge Mira. Joga Ágata no meio do círculo,
Levanta     mulher.       Ágata        violeta       treme     o     olhar       na    líder,
pressiona lábios para não morder nada nem ninguém, prende a
respiração        e    levanta-se.           Suas    pernas        fortes     esticam      os
músculos sem força até conseguirem deixar a dona na vertical.
Mira passa a faca pelas costas de Ágata, soltando as bandagens
violetas que abraçavam seu corpo mulato. Ela cai no chão,
segura os seios que doem tanto que parecem que vão se soltar
do corpo e cair no chão como duas frutas maduras. As amazonas
olham para a irmã e sentem pena, sem demonstrar. Pegam as
novas bandagens de um cesto e começam a enrolar o próprio
corpo. Uma nos seios e a outra no quadril, tão firmes como
tatuagem.       Depois        das    bandagens       estarem       bem    justas,      passam
massa de argila úmida que não demora para secar. Entram na
toca da tintura, uma por vez, e saem de lá com desenhos da sua
cor. Mira espia pelo buraco para certificar-se do processo.
Uma senhora de            cem anos de aparência, a Aipim, passa uma
espécie de pincel em cada uma, com leve sorriso. É a única a
dar carinho, pois já saiu da vida selvagem de sobrevivência
das amazonas, mas nem todas o recebem.
       Mira berra imponente, manda as amazonas para afazeres do
dia.    Parecem        saber    como     prosseguir.          Vão    para    a     toca   das
ferramentas e saem com machados, bolsas trançadas de folhas,
pau cumpridos com pontas afiadas e lanças menores. Correm pela




                                                                                            3
mata como felinas, fortes e decididas, até sumirem. Assim é o
dia-a-dia das amazonas, a tribo só de mulheres que rejeita
qualquer        homem,    principalmente           os       curiosos.       Dividem-se        em
tarefas e cada dia têm uma atividade especial, como a troca
das bandagens, o dia do acasalamento, o dia da renúncia e o
dia do teste da força.
      O dia do acasalamento ocorre a cada seis meses. Mira fez
paz   com       uma   tribo    de    homens       do    norte     e    combinou         que   as
amazonas        os    usariam       para     procriar.        É   proibido         um    homem
procurar        qualquer      uma     delas       depois      daquela        noite.      Se   a
amazonas engravidar e der à luz um menino, levariam o bebê
para eles. Se for menina, ficará com elas, para ser criada
como uma amazonas. Só que há muitos anos uma não engravida.
Mira não sabe o porquê, já que não participa dos rituais do
acasalamento porque não pode engravidar. A líder tem dedicação
total ao grupo e não deve perder tempo fazendo barriga. Mas,
para sua surpresa, um dia após o da troca das bandagens, Ágata
violeta se estende no meio da roda e anuncia que vai ter cria.
      Se    entreolham         no    silêncio.         Estranho       é,    já   fazem    seis
meses desde o último dia de acasalamento e não seria possível
Ágata estar com tamanha barriga. Mira faz desenhos com seu
cajado na terra, absorvendo a informação e pensando no que
fazer.      O    cajado    aponta          para    a    moça,     inquisitivo,           Andas
acoplando com o guerreiro do norte às escondidas. Ágata abaixa
a   cabeça      em    pedido    de    perdão,          na   espera     de    uma    resposta
positiva. Mira derruba Ágata com uma paulada de seu cajado e
cospe na amazonas que um dia foi sua mais querida. Diz para
todas, Ágata é traidora, deve morrer.
      Ágata é levada para a prisão, enquanto Mira entra na sua
toca, andando como búfalo entediado. É então que Aipim, a
senhora das amazonas, entra na toca da líder. É a única com
permissão. Seus cabelos compridos e brancos cobrem os seios




                                                                                               4
caídos, que não levam mais bandagens. Aipim senta-se ao lado
de Mira e implora pela vida de Ágata. Mira diz que não vai
deixar sentimentos atrapalharem a fantástica organização das
amazonas    e     que    ela   trabalha       muito     duro     para      manter    tudo
funcionando conforme o planejado. Aipim apoia-se em seu cajado
de madeira, que mantêm desde seus dias de líder e avisa Mira,
Sua frieza vai trazer tragédia para tribo. A líder olha pela
janela, vê as amazonas correrem de um lado ao outro, vigiando
a   toca    que    prende      Ágata.        Não   querem       matá-la.     Mira     sai
apontando       cajado    ao     céu,      sinal   de    decisão       tomada.      Manda
trazerem    a     prisioneira          e    ordena,     Poupo    sua    vida,       Ágata
violeta, mas há uma condição, tão violenta quanto sua traição;
quando seu filho nascer, deverá dá-lo a mim, e eu farei do seu
destino, o dele. Ágata tenta reagir, mas suas colegas impedem-
na de falar. Aipim abaixa as sobrancelhas brancas em alívio,
sua filha está salva, pelo menos por enquanto. Os dias passam
e as amazonas continuam nas tarefas de sobrevivência selvagem.
Alimentação       e     manter     a       tribo   segura       de   invasores        são
prioridades.
     Num    dia       qualquer,    Caiba       marrom     chega      com    uma     cobra
embaixo do braço e atira-a morta em cima da mesa de madeira.
Tina, a amazonas verde, que é a cozinheira da tribo, pega a
cobra com ar de quem já sabe o que fazer. Caiba deita em dor.
Mira vê a mordida e manda Caiba para a toca da cura, mas sabe
que nada pode ser feito contra a dentada da jararaca. Em uma
hora, Caiba é velada na fogueira. As amazonas comem a cobra,
dividida em 11 pedaços, e jogam as cinzas de Caiba marrom no
riacho. Não choram. Enquanto isso, Ágata cresce barriga a cada
dia, misturando os prazeres da maternidade com a tristeza do
destino do filho.
     O dia do nascimento vem com a entrada do outono. Ágata,
de dentro da toca da cura, berra junto com seu bebê. É um




                                                                                        5
menino. Mira não a deixa ver o filho, enrola o feto prematuro
num   pano.     Ágata       implora        entrega    do     filho     à    tribo     dos
guerreiros do norte. Mira dá as costas em silêncio, vai ao
riacho que banha a tribo. Desenrola o menino chorão, pousa o
pequeno corpo na água e, com um berro de urso, afoga criança.
As amazonas gritam com sua líder. Morto, o menino bóia, como
um barco vazio.
      Ágata chora, bêbada de dor. É acolhida por Aipim, sua mãe
não   declarada,          que   por   fim    tem     seu    carinho    recebido       com
desespero. A notícia da morte do menino passa rápido de galho
em galho, até chegar aos ouvidos do xamã que rege a tribo dos
guerreiros do norte, aquele que vê além das árvores e fala com
a morte. Os homens se enfurecem com a tragédia do menino que
há muito estava prometido pelo vidente da tribo como o maior
guerreiro de todos os tempos, aquele que estava para nascer do
ventre    de   uma       amazonas.     Cauê,    o    pai,    promete       vingança   ao
vento. Recebe apoio de seus irmãos, que viram no ocorrido uma
oportunidade.        A     tribo      do    norte     está    incomodada       com    as
amazonas,      por    caçarem      melhor      do    que    eles,    obrigando-os      a
buscar animais do outro lado da montanha, com uma semana a
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      Depois de quatro dias, a tribo das amazonas é invadida
pelos guerreiros do norte. Chegam pintados para matar. Cortam
os longos cabelos das amazonas menos rápidas e jogam-nas na
fogueira. Mira vê as irmãs sendo assassinadas enquanto ela
resiste à luta. Percebe o fim, a inutilidade de sua garra, e
foge entre árvores. Só que não foge sozinha.
      A   líder      em    decadência       percebe    corpo    não    obedecendo      a
mente. Pára na ponta do riacho, se inclina para beber água,
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não espera Mira terminar de beber, Vira para mim mulher. Mira
levanta e range, olha para a ponta da flecha, encara Ágata nos




                                                                                        6
olhos, Antes por ti do que por eles. Não reage quando Ágata
mira o peito esquerdo, Vamos ver se és vazia mesmo, se não
tens coração, nada vais te acontecer. A flecha perfura Mira,
seu olhar reprime em dor. Pensa que aquilo é mais suportável
do que imaginava, até libertador. Cai de costas para o riacho
que há pouco a nutriu. A floresta silencia, o tempo congela.
    Por de trás das árvores está o guerreiro Cauê, pronto
para vingar-se da mulher que um dia amou. Com sua flecha
certeira, Cauê atinge Ágata e foge. Caída em cima de Mira,
violeta não faz um barulho sequer, apenas aguarda a morte. As
duas se olham pela última vez. A última força se esvai e
morrem,   juntas    e   sozinhas.     Um   grande       vazio   toma    conta   da
floresta, nada se escuta, nada se meche. Até que o vazio do
som é quebrado pela primeira batida. Tum. O coração começa a
bater. Tum. O tum de cada batida cresce, vibra com a floresta,
com a terra, seguindo o riacho para o norte da montanha. O tum
é levado pelo vento, voando alto, e antes de chegar ao céu,
bate na ponta da montanha mais alta. Explode o coração em água
torrencial.      Como   uma   cachoeira    se   libertando       da    barragem,
desce   em   abundância       pelo   vão   da   terra     até   virar    um     rio
inundado,    o   rio    Amazonas,    guardando      a    primeira      batida   do
coração, do segredo do amor, da sedução e da selvageria das
grandes amazonas brasileiras.




                                                                                  7

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As amazonas

  • 1. AS AMAZONAS - conto – 2007 CAMILA APPEL * todos os direitos reservados. texto registrado no Escritório de Direitos Autorais da Fundação Biblioteca Nacional* 1
  • 2. Mira acorda num salto felino. Olha pelo vão da sua toca e atesta o dia nascente. Respira fundo para ajeitar a bandagem do peito, que se deslocou com pesadelos noturnos, e sai para tocar a corneta de despertar. Sobe na Pedra do Toque, agacha- se dobrando uma perna e estendendo a outra, assopra a corneta de madeira. Três vezes são necessárias para acordar as colegas, todas as doze amazonas. Mulheres altas, magras, de corpo forte e pele morena, vão saindo de suas tocas e reverenciando Mira, que já está de pé em cima da pedra na espera dos cumprimentos. A cada reverenciamento, a líder abaixa um pouco a cabeça, mas não os olhos. A comunicação é imediata e sem palavras, todas sabem que dia é hoje. É o dia da troca das bandagens. Espreguiçam-se sem limites e sentam-se em círculo, aguardando instruções. Mira entra numa toca maior do que as outras e volta carregando balde de água e uma faca. Ela olha para todas as mulheres, sentadas e atentas, se posiciona atrás da amazona azul, Vina. Essa é a amazona azul porque usa a cor azul para pintar seu rosto, seu braço e suas bandagens. Os desenhos das pinturas seguem formatos da terra, são quadrados do grão, triângulos das folhas, círculos do sol, meio-círculos da lua, intercalando-se em arte não dita. Líder suprema, a forte e destemida Mira, pára atrás de Vina passando faca. Corta a bandagem do peito e do quadril. Argila dura cai no chão, espalhando pedacinhos azuis sobre mata baixa. Vina agacha-se em dor, segurando os seios que há tempos não sentiam o ar fresco da floresta. Não chora, já que é proibido. Mas se não fosse, choraria na espera de que as gotas os ressuscitassem à medida do deslize. Mira repete o gesto com as outras nove amazonas. Cada uma sente o corte das bandagens e despencam no chão, apoiando mãos e joelhos nos pedacinhos do gesso. 2
  • 3. Mira dá por encerrada a tarefa, guardando a faca num espaço da bandagem da cintura. Enfia a faca, mas não tira a mão do seu cabo, titubeia ao passar o olhar pela tribo percebendo algo incomum. Falta uma. Ela olha rostos, reconhecendo cores, feições, até lembrar-se da que falta. Numa das tocas, encontra Ágata, a amazonas violeta, encolhida. Reclama de dor na barriga, diz sangrar. Mira arranca Ágata de dentro da toca, arrastando cabelos. A violeta abraça barriga e uiva, mas dor não atinge Mira. Joga Ágata no meio do círculo, Levanta mulher. Ágata violeta treme o olhar na líder, pressiona lábios para não morder nada nem ninguém, prende a respiração e levanta-se. Suas pernas fortes esticam os músculos sem força até conseguirem deixar a dona na vertical. Mira passa a faca pelas costas de Ágata, soltando as bandagens violetas que abraçavam seu corpo mulato. Ela cai no chão, segura os seios que doem tanto que parecem que vão se soltar do corpo e cair no chão como duas frutas maduras. As amazonas olham para a irmã e sentem pena, sem demonstrar. Pegam as novas bandagens de um cesto e começam a enrolar o próprio corpo. Uma nos seios e a outra no quadril, tão firmes como tatuagem. Depois das bandagens estarem bem justas, passam massa de argila úmida que não demora para secar. Entram na toca da tintura, uma por vez, e saem de lá com desenhos da sua cor. Mira espia pelo buraco para certificar-se do processo. Uma senhora de cem anos de aparência, a Aipim, passa uma espécie de pincel em cada uma, com leve sorriso. É a única a dar carinho, pois já saiu da vida selvagem de sobrevivência das amazonas, mas nem todas o recebem. Mira berra imponente, manda as amazonas para afazeres do dia. Parecem saber como prosseguir. Vão para a toca das ferramentas e saem com machados, bolsas trançadas de folhas, pau cumpridos com pontas afiadas e lanças menores. Correm pela 3
  • 4. mata como felinas, fortes e decididas, até sumirem. Assim é o dia-a-dia das amazonas, a tribo só de mulheres que rejeita qualquer homem, principalmente os curiosos. Dividem-se em tarefas e cada dia têm uma atividade especial, como a troca das bandagens, o dia do acasalamento, o dia da renúncia e o dia do teste da força. O dia do acasalamento ocorre a cada seis meses. Mira fez paz com uma tribo de homens do norte e combinou que as amazonas os usariam para procriar. É proibido um homem procurar qualquer uma delas depois daquela noite. Se a amazonas engravidar e der à luz um menino, levariam o bebê para eles. Se for menina, ficará com elas, para ser criada como uma amazonas. Só que há muitos anos uma não engravida. Mira não sabe o porquê, já que não participa dos rituais do acasalamento porque não pode engravidar. A líder tem dedicação total ao grupo e não deve perder tempo fazendo barriga. Mas, para sua surpresa, um dia após o da troca das bandagens, Ágata violeta se estende no meio da roda e anuncia que vai ter cria. Se entreolham no silêncio. Estranho é, já fazem seis meses desde o último dia de acasalamento e não seria possível Ágata estar com tamanha barriga. Mira faz desenhos com seu cajado na terra, absorvendo a informação e pensando no que fazer. O cajado aponta para a moça, inquisitivo, Andas acoplando com o guerreiro do norte às escondidas. Ágata abaixa a cabeça em pedido de perdão, na espera de uma resposta positiva. Mira derruba Ágata com uma paulada de seu cajado e cospe na amazonas que um dia foi sua mais querida. Diz para todas, Ágata é traidora, deve morrer. Ágata é levada para a prisão, enquanto Mira entra na sua toca, andando como búfalo entediado. É então que Aipim, a senhora das amazonas, entra na toca da líder. É a única com permissão. Seus cabelos compridos e brancos cobrem os seios 4
  • 5. caídos, que não levam mais bandagens. Aipim senta-se ao lado de Mira e implora pela vida de Ágata. Mira diz que não vai deixar sentimentos atrapalharem a fantástica organização das amazonas e que ela trabalha muito duro para manter tudo funcionando conforme o planejado. Aipim apoia-se em seu cajado de madeira, que mantêm desde seus dias de líder e avisa Mira, Sua frieza vai trazer tragédia para tribo. A líder olha pela janela, vê as amazonas correrem de um lado ao outro, vigiando a toca que prende Ágata. Não querem matá-la. Mira sai apontando cajado ao céu, sinal de decisão tomada. Manda trazerem a prisioneira e ordena, Poupo sua vida, Ágata violeta, mas há uma condição, tão violenta quanto sua traição; quando seu filho nascer, deverá dá-lo a mim, e eu farei do seu destino, o dele. Ágata tenta reagir, mas suas colegas impedem- na de falar. Aipim abaixa as sobrancelhas brancas em alívio, sua filha está salva, pelo menos por enquanto. Os dias passam e as amazonas continuam nas tarefas de sobrevivência selvagem. Alimentação e manter a tribo segura de invasores são prioridades. Num dia qualquer, Caiba marrom chega com uma cobra embaixo do braço e atira-a morta em cima da mesa de madeira. Tina, a amazonas verde, que é a cozinheira da tribo, pega a cobra com ar de quem já sabe o que fazer. Caiba deita em dor. Mira vê a mordida e manda Caiba para a toca da cura, mas sabe que nada pode ser feito contra a dentada da jararaca. Em uma hora, Caiba é velada na fogueira. As amazonas comem a cobra, dividida em 11 pedaços, e jogam as cinzas de Caiba marrom no riacho. Não choram. Enquanto isso, Ágata cresce barriga a cada dia, misturando os prazeres da maternidade com a tristeza do destino do filho. O dia do nascimento vem com a entrada do outono. Ágata, de dentro da toca da cura, berra junto com seu bebê. É um 5
  • 6. menino. Mira não a deixa ver o filho, enrola o feto prematuro num pano. Ágata implora entrega do filho à tribo dos guerreiros do norte. Mira dá as costas em silêncio, vai ao riacho que banha a tribo. Desenrola o menino chorão, pousa o pequeno corpo na água e, com um berro de urso, afoga criança. As amazonas gritam com sua líder. Morto, o menino bóia, como um barco vazio. Ágata chora, bêbada de dor. É acolhida por Aipim, sua mãe não declarada, que por fim tem seu carinho recebido com desespero. A notícia da morte do menino passa rápido de galho em galho, até chegar aos ouvidos do xamã que rege a tribo dos guerreiros do norte, aquele que vê além das árvores e fala com a morte. Os homens se enfurecem com a tragédia do menino que há muito estava prometido pelo vidente da tribo como o maior guerreiro de todos os tempos, aquele que estava para nascer do ventre de uma amazonas. Cauê, o pai, promete vingança ao vento. Recebe apoio de seus irmãos, que viram no ocorrido uma oportunidade. A tribo do norte está incomodada com as amazonas, por caçarem melhor do que eles, obrigando-os a buscar animais do outro lado da montanha, com uma semana a mais de viagem e de trabalho. Depois de quatro dias, a tribo das amazonas é invadida pelos guerreiros do norte. Chegam pintados para matar. Cortam os longos cabelos das amazonas menos rápidas e jogam-nas na fogueira. Mira vê as irmãs sendo assassinadas enquanto ela resiste à luta. Percebe o fim, a inutilidade de sua garra, e foge entre árvores. Só que não foge sozinha. A líder em decadência percebe corpo não obedecendo a mente. Pára na ponta do riacho, se inclina para beber água, quando escuta alguém se aproximar, cheirando à morte. Ágata não espera Mira terminar de beber, Vira para mim mulher. Mira levanta e range, olha para a ponta da flecha, encara Ágata nos 6
  • 7. olhos, Antes por ti do que por eles. Não reage quando Ágata mira o peito esquerdo, Vamos ver se és vazia mesmo, se não tens coração, nada vais te acontecer. A flecha perfura Mira, seu olhar reprime em dor. Pensa que aquilo é mais suportável do que imaginava, até libertador. Cai de costas para o riacho que há pouco a nutriu. A floresta silencia, o tempo congela. Por de trás das árvores está o guerreiro Cauê, pronto para vingar-se da mulher que um dia amou. Com sua flecha certeira, Cauê atinge Ágata e foge. Caída em cima de Mira, violeta não faz um barulho sequer, apenas aguarda a morte. As duas se olham pela última vez. A última força se esvai e morrem, juntas e sozinhas. Um grande vazio toma conta da floresta, nada se escuta, nada se meche. Até que o vazio do som é quebrado pela primeira batida. Tum. O coração começa a bater. Tum. O tum de cada batida cresce, vibra com a floresta, com a terra, seguindo o riacho para o norte da montanha. O tum é levado pelo vento, voando alto, e antes de chegar ao céu, bate na ponta da montanha mais alta. Explode o coração em água torrencial. Como uma cachoeira se libertando da barragem, desce em abundância pelo vão da terra até virar um rio inundado, o rio Amazonas, guardando a primeira batida do coração, do segredo do amor, da sedução e da selvageria das grandes amazonas brasileiras. 7