EMPRESA CONSTITUÍDA COMO SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA - CARACTERIZAÇÃO - ADEQUAÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DE 2002
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EMPRESA CONSTITUÍDA COMO SOCIEDADE POR QUOTAS DE
RESPONSABILIDADE LIMITADA – CARACTERIZAÇÃO – ADEQUAÇÃO AO
CÓDIGO CIVIL DE 2002.
Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas
Determinada empresa foi constituída em março de 1964
sob o regime de “Sociedade Civil” e sob a forma de “quotas de
responsabilidade limitada”, conforme seu “Contrato Particular de Sociedade
Civil” registrado no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.
Aduz que “o objeto da sociedade é a “compra de área
e/ou frações ideais de terreno no centro comercial de Belo Horizonte, a fim de
promover a construção de um prédio de garagem, como propriedade autônoma
ou sob o regime de condomínio, com recursos próprios e/ou de terceiros,
imóvel esse que será utilizado pelos quotistas e/ou terceiros locatários, para
estacionamento e guarda dos respectivos veículos”.
Esclarece que a “composição do quadro societário, por
assim dizer, e suas respectivas alterações, não foram registradas por meio de
alterações contratuais, mas pelo controle que a Sociedade possui de seus
membros juntos ao Cartório”.
Afirma que “a escrituração contábil/fiscal da empresa
baseia-se no rateio de despesas entre os quotistas, ou seja, apura-se,
mediante assembléia de quotistas, a previsão orçamentária para determinado
período, e com base nela, são divididas as despesas e cobrados os respectivos
valores de cada quotista”.
Após essas considerações, formula as seguintes
perguntas:
1) – Tal empresa estaria obrigada a adequar às mudanças da legislação
societária ocorridas desde a sua fundação, tais como a Lei das S/A e
Código Civil de 2003?
2) – Tal empresa estaria mais caracterizada como associação, condomínio,
sociedade simples, sociedade empresária ou sociedade anônima?
3) – O rateio de despesas, conforme descrito anteriormente, deve ser
considerado como receita? Essa receita seria tributada com base na
legislação do Imposto de Renda?
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A partir de 11 de janeiro de 2003 estamos sob a égide do
novo código civil (Lei 10.406/02), e este revogou a primeira parte do código
comercial de 1850, que dentre outras matérias também regulamentava a parte
das sociedades mercantis.
Em se tratando de sociedade por cotas de
responsabilidade limitada com o advento do novo código, passa a se
denominar tão somente sociedade limitada, estando a nova regulamentação
inserida em trinta e seis novos artigos, se estendendo do artigo 1052 ao 1087
do novo ordenamento civil.
O Código Civil vigente desde 2003 estabelece que os
contratos devem se adaptar ao novo ordenamento, entretanto há entendimento
diverso esposado pela doutrina.
Uma plêiade de juristas sustenta que as sociedades que
não atenderam ao prazo de um ano, previsto no artigo 2.031 do novo código
civil, para se adaptarem às suas disposições, serão consideradas “sociedades
irregulares”.
Entretanto, dentre os que sustentam posição diversa, nos
aliamos ao ponto de vista do Professor, Dr. Luiz Cezar Pazos Quintans, que
em artigo intitulado: Os efeitos da não adaptação dos contratos sociais ao novo
Código Civil, assim se expressa sobre essa questão:
“Discordamos da obrigatoriedade de adaptação, concessa venia, pelas
seguintes razões”:
“Trata-se de imperativo lógico e legal que a nova lei tem efeito imediato e não
retroativo (art. 2º, do Decreto-Lei n. 4.657/42 - LICC). Os fatos são regidos pela
lei vigente na data de sua efetiva ocorrência. O efeito da nova regra é
automaticamente imediato, mas, há que ser respeitado o ato jurídico perfeito, a
coisa julgada e o direito adquirido. Não se pode permitir que a lei retroaja para
atingir fatos pretéritos. O escudo maior dos contratos (sociais, comerciais,
econômicos, etc.) formalizados antes da Lei n. 10.406/2002 é a Constituição
Federal, especialmente no artigo 5º e seu famoso inciso XXXVI, que determina
que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa
julgada."
“O contrato social é um "contrato em curso" que a nova lei não pode alcançá-lo
por se tratar de um ato jurídico perfeito. O direito já foi exercido, apenas os
resultados e objetivos plurilaterais é que continuarão sendo perseguidos. As
sociedades são pessoas jurídicas de direito privado (CC art. 44). A relação
entre os sócios é privativa e os direitos da personalidade da pessoa jurídica
criada pelos sócios é intransmissível e irrenunciável, a teor do artigo 11,
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combinado com o artigo 52, do NCC . Desta forma, neste caso, não são
alcançadas as regras particulares pela obrigatoriedade de observância de uma
lei geral.”
“Corroborando essa linha de raciocínio o próprio texto do início do artigo 2.035
do código novo ensina que: "a validade dos negócios e demais atos jurídicos
constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao dispostos
nas leis anteriores, ...".
“Deste modo, não é porque surgiu uma nova lei geral civil, abrangendo
questões empresariais, que teremos que excluir as regras próprias e
autônomas de direito comercial e jogar fora todo o disposto nas leis comerciais
extravagantes; e o prescrito nos Códigos Civil de 1916 e Comercial de 1850.”
“A norma do artigo 2.031 do Código Civil é invasora. Tenta entrar hostilmente
nos limites da legislação e dos contratos anteriores. O dispositivo tenta obrigar
aqueles que estão protegidos por um sistema de normas, por um pacto, a
ingressarem em outro sistema. É como se depois de um casamento de 30
(trinta) anos, com a construção de um patrimônio, um casal, que efetivamente
possuíam "quotas" (direitos e deveres) iguais, seja obrigado a mudar de regime
de bens, porque a nova lei assim o determina”.
“As leis de natureza comercial, agora de natureza "empresarial", têm
caráter expositivo, declaratório, enfim, enunciativo. Precisamos nos
socorrer das sábias palavras do Saudoso Mestre Carlos Maximiliano que nos
ensina em sua obra: "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 1995, Forense, RJ,
pág. 319, os aspectos interpretativos do Direito Comercial: "Em regra as leis
comerciais têm caráter dispositivo ou enunciativo, e não imperativo ou
absoluto; por isso prevalecem somente no silêncio das partes, e podem
pelos contraentes ser, de fato, revogadas, deixadas em olvido, salvo
poucas exceções, isto é, de normas que ordenam, ou vedam. “Só se não
alteram na prática, ao arbítrio dos interessados, nem interpretam
extensivamente, as leis de ordem pública em sendo imperativas, ou
proibitivas.”
“O Contrato Social é uma questão de ordem íntima da sociedade e as
regras que precisam (ou podem precisar) de alterações dizem respeito às
relações entre os sócios e não deve afetar o relacionamento da sociedade
com terceiros – a responsabilidade sobre o capital, por exemplo, é definida
internamente e só dirá respeito a terceiros se pelos sócios for alterada (ou
manipulada, em caso de abuso de personalidade, desvio de finalidade ou
confusão patrimonial – veja a desconsideração no art. 50 do NCC).”
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“Para alívio das sociedades constituídas antes de 11 de janeiro de 2003,
que não observaram o prazo do contestado artigo 2.031 do NCC, nem
mesmo o próprio artigo nem qualquer outra norma esparsa impõe multa
ou punição para aquele que não observar o prazo de um ano.”
“Enfim, os sócios só podem ser penalizados se seu contrato de
sociedade tiver cláusulas nulas ou contrárias à Lei, inviabilizando,
evidentemente a administração do negócio. Com efeito, a responsabilidade
dos sócios só se tornar ilimitada, a teor do art. 1.180 do NCC, se a deliberação
for contrária à Lei ou ao próprio contrato social. Está claro, pela nova lei, que
detalhes deverão ser ajustados, tais como a extinção do gerente-delegado (art.
13 do Decreto n. 3.708 de 1919), regras de deliberações e assembléias
deverão ser reguladas, além de outras sugestões de cunho suplementar ou
facultativo, que merecem atenção. Mas, existe uma grande distância entre
um contrato desatualizado e um contrato ilegal.”
“Entendemos que algumas alterações contratuais são dolorosas, por perda de
poder, por conflitos com alguns sócios, etc. Todavia, deve-se aproveitar, a
alteração contratual, como uma oportunidade para a regulamentação de
questões relativas a herdeiros, relações de matrimônio com o cônjuge, a
regência supletiva das sociedades anônimas, a cessão de quotas, a
administração, o conselho fiscal, a informalidade das deliberações, a exclusão
de sócios, etc.”
“Entendemos que os contratos sociais registrados antes da vigência do
novo código civil estarão meramente "desatualizados", a partir de 12 de
janeiro de 2004, em relação ao Novo Ordenamento, se não considerarmos
os contratos "em andamento" (assinados até 11/01/2004) que poderão ser
registrados em até 30 dias, contados da lavratura do ato (§1º do art. 1.151 do
Código Civil), caso o PL 113 ou outra norma não venha a ser aprovada para
ampliar o prazo”.
“Com a devida licença, a expressão "sociedade irregular" só deve ser utilizada
para classificar uma sociedade de fato, em fase de constituição, que nunca
sofreu registro; ou uma sociedade comum, descrita nos artigos 986 a 990 do
NCC, que é aquela que não possui personalidade jurídica, como requer os
artigos 45, 985 e 1.150 do Novel Civil.” (Texto extraído do Jus Navigandi
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5013). (grifamos e sublinhamos).
Quanto à caracterização da empresa constituída aqui, sob
exame, lembramos que hoje surge no mercado uma nova modalidade de
estruturação do empreendimento, que atende pelo nome de Sociedade de
Propósito Específico, ou simplesmente SPE.
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Por definição, esta modalidade, também conhecida como
“special purpose entity”, também SPE, ou SPC, “special purpose company”, é
uma sociedade que possui atividade restrita, podendo ter prazo de
duração determinado e sua principal utilidade é de isolar o risco
financeiro da atividade a que se destina.
Do ponto de vista prático, existe a questão fiscal que leva
a SPE à adoção dos regimes tributários conhecidos, lucro real ou
presumido, enquanto no PA (Patrimônio de Afetação) pode adotar o RET
(Regime Especial de Tributação), além do que existe a possibilidade de
adesão em qualquer fase da obra, enquanto na SPE existe uma
dificuldade de constituição após o início do empreendimento.
Temos, também o Condomínio Edilício, que foi tratado
pelo Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Marcelo
Guimarães Rodrigues, em artigo cognominado: Personalidade Jurídica do
Condomínio Edilício assevera:
“Além disso, uma vez instituído e especificado o condomínio especial,
esse será regido pela convenção respectiva, cuja existência decorre da
necessidade de administração das partes de uso comum da edificação e que
se equipara a um contrato social, disciplinando entre outras matérias, o
pagamento das contribuições do condomínio, sua administração, a
competência das assembléias, sanções, criação de órgãos decisórios e
de fiscalização, além do regimento interno. O instrumento da convenção do
condomínio é sujeito também a registro obrigatório, mas perante o Livro 03 –
Registro Auxiliar (art. 178, III LRP) do Serviço de Registro de Imóveis da
respectiva circunscrição territorial.
Assim, em dois atos e registros distintos, consumados perante o mesmo
Serviço de Registro de Imóveis, nasce e se aperfeiçoa juridicamente a figura
do condomínio edilício ou em planos horizontais, com legitimidade de
representação da coletividade dos condôminos nas relações jurídicas impostas
explícita ou implicitamente da regular administração de suas partes e
interesses comuns, inclusive perante terceiros.
Anote-se que a partir do registro de sua instituição, fica o condomínio
obrigado a se cadastrar na Receita Federal a fim de obter o CNPJ
(cadastro nacional de pessoas jurídicas), habilitando-o a contratar
empregados, preencher livros fiscais, cadastrar-se junto ao INSS, FGTS,
faturar compras e firmar contratos em geral. É sujeito de direitos e
obrigações como a generalidade das empresas, sendo obrigado inclusive
a reter parcelas devidas ao INSS, PIS, Confins e CSLL (contribuição sobre
o lucro líquido), etc.
Perfil sui generis do condomínio edilício.
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A personificação jurídica do condomínio edilício, lacunosa na lei, é um tema
pouquíssimo desenvolvido na doutrina, circunstâncias que sem dúvida
dificultam, mas não impedem que o Judiciário, quando provocado e diante do
caso concreto decida a respeito, como de fato tem ocorrido em frequência
crescente.
O condomínio edilício tem sido considerado sob os mais diversos enfoques:
“˜ente jurídico”, persona ficta (ou “moral”, “intelectual”, “coletiva”), denominação
que, do ponto de vista do jusnaturalismo, conceitua comunidades ou
corporações, ou “comunidade de interesses ativos e passivos”, que não
obstante se distingue perfeitamente dos titulares de cada uma das unidades
autônomas, não é enquadrado como uma pessoa jurídica em sentido estrito, de
igual forma como se dá com outros entes formais tais como o espólio da
herança jacente ou vacante, a massa falida, a sociedade irregular, etc.
Todavia, não se pode deixar de apontar algumas assimetrias na composição
desse rol.
De início, revela observar o caráter transitório dos demais entes formais o que
torna despiciendo conferir a tais situações jurídicas uma proteção mais
abrangente. Já no condomínio edilício, ocorre justamente o contrário de
sorte que sua instituição é, senão perpétua, ao menos perene, o que
justifica sob vários aspectos, inclusive da segurança jurídica, a definição
de sua personalidade.” (grifamos).
Logo, a sociedade constituída em março de 1964, como
visto, não estaria obrigada a se adequar às mudanças propostas pelo novo
ordenamento (Lei das S/A e Código Civil de 2002).
Nada impede que o empreendimento assuma outras
feições, como associação, condomínio, sociedade simples, sociedade
empresária ou mesmo sociedade anônima, desde que a forma escolhida
atenda aos interesses dos sócios e não fira os preceitos legais pertinentes,
lembrando que, atualmente, despontam as modalidades: a sociedade de
propósito específico e a figura do condomínio edilício aqui definidos.
Por fim, o chamado rateio de despesas – assunto
polêmico - mencionado pela consulente, na forma descrita, pode ser
considerado pelo Fisco como receita, por integrar o faturamento e,
consequentemente, deve ser oferecida à tributação, sujeitando-se, a nosso ver,
à legislação do Imposto de Renda.
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Entretanto, se o reembolso de despesa não acrescentar
em nada no patrimônio da empresa, por isso não pode haver tributação sobre
esse valor.
Há precedentes do Conselho de Contribuintes – ligado ao
Ministério da Fazenda, é órgão de controle sobre atos da fiscalização da
Receita Federal – em decisões condenando a empresa que recebeu os
reembolsos por causa da falta de comprovação de que os pagamentos
foram frutos de rateio, pelo fato de interpretar o Fisco tais reembolsos como
resultado positivo e cobram o imposto.
De modo que a empresa que faz esse tipo de rateio de
despesas precisa se munir de provas, ou seja, um rateio bem documentado,
bem comprovado de que se trata de ressarcimento, é a melhor solução
preventiva do que realmente ocorreu para que venha a ter sucesso num
eventual julgamento administrativo.