Este documento descreve a história da Fundação Cascais e como contribuiu para revelar as potencialidades do interior do concelho de Cascais, especialmente da freguesia de São Domingos de Rana, ao longo dos últimos 30 anos. A Fundação realizou vários estudos e projetos que ajudaram a melhorar a qualidade de vida local e a inverter o abandono desta região. Atualmente, São Domingos de Rana está repleta de novos projetos e vislumbra um futuro promissor graças ao trabalho pioneiro da Fundação Cascais.
6. 2023
JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
O OUTRO CASCAIS
30 Anos da Sociedade Civil
e a Fundação Cascais
História, Pedras e Gentes de São Domingos de Rana
7. FICHA TÉCNICA
título O Outro Cascais - História, Pedras e Gentes de São Domingos de Rana
autor João Aníbal Henriques [1971/…]
Prefácio Luís de Athayde – Presidente da Fundação Cascais
foto capa Arquivo Histórico Municipal de Cascais [AHMC]
Edição Fundação Cascais
execução gráfica Gráfica Diário do Minho
tiragem 750 ex.
depósito legal 522820/23
10. PREFÁCIO
por
Luís de Athayde
Presidente da Fundação Cascais
Em Agosto de 1993, quando se reuniu o Conselho de Fundadores da re-
cém-formada Fundação Cascais, juntaram-se à volta da mesma mesa pela pri-
meira vez na História de Cascais as designadas forças vivas do nosso concelho.
Oriundas das mais variadas origens políticas, partidárias, académicas, so-
ciais, culturais e profissionais, as muitas personalidades que conseguiram
concretizar este projecto chegaram a um único acordo que, no entanto, se
viria a afigurar como o mais importante acordo jamais feito em Cascais! Com
posições divergentes relativamente a quase todos os temas importantes para
o concelho, os fundadores da nova fundação acordaram manter intocada a
independência da instituição, de forma a garantirem que a Fundação Cascais
possuía a abertura e a consistência necessárias para efectivamente dar voz aos
anseios, aos sonhos e aos projectos de todos os Cascalenses.
Este acto, que muitos consideraram utópico em 1993, foi a pedra basilar
sobre a qual se construiu a Fundação Cascais. Uma aposta da sociedade civil,
concertada no âmago da sua pluralidade, convergindo unicamente num acto
de amor efectivamente expresso por Cascais e pelos Cascalenses. Sem peias,
sem meias palavras e com o ensejo que que sempre resultou do carácter bene-
mérito com o qual nasceu e sempre viveu esta instituição.
Decalcada efectivamente sobre o modelo municipalista que deu corpo à
formação da identidade nacional, a Fundação Cascais reuniu os homens-bons
da terra em torno deste comum desiderato excepcional. E organizou-se, como
boa pupila que era das velhas cortes de Portugal, em sectores considerados
vitais para a defesa dos interesses locais. A segurança, o apoio social, o am-
11. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
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biente, a saúde, a educação, o turismo, a cultura e o património, corporizaram
projectos de levantamento de informação que contribuíram de forma efectiva
para qualificar as decisões tomadas pelas instituições que governavam Cascais.
Relembramos o grande seminário sobre saúde, que juntou no Teatro Gil Vi-
cente o Ministro da Saúde, o Presidente da Câmara Municipal, os profissionais
de saúde e os representantes da sociedade civil local. E as actas desse encontro,
publicadas logo de seguida, serviram de base ao projecto de construção do
hospital extraordinário que hoje serve Cascais. Essencial também foi o pri-
meiro grande estudo exaustivo sobre consumo de álcool junto da comunidade
estudantil de Cascais, que forneceu dados essenciais para a definição de um
modelo de intervenção escolar que minorasse os efeitos nefastos desse autênti-
co flagelo que estava a comprometer o futuro de Cascais. Para não mencionar
os estudos sobre o Plano Director Municipal, o Plano de Salvaguarda do Par-
que Natural de Sintra-Cascais, o Plano de Apoio ao Realojamento do Bairro
do Fim-do-Mundo ou a Campanha de Promoção do Comércio Tradicional. O
Levantamento Exaustivo do Património Cascalense, publicado em CD-Rom
contendo cerca de 5800 fichas com a descrição das principais edificações com
valor histórico e patrimonial, e o Plano de Salvaguarda do Monte Estoril, jun-
taram-se ao estudo sobre a realidade arqueológica de Cascais, ao Plano de
Pormenor de Freiria, em São Domingos de Rana, e ao estudo sobre as ribeiras
e linhas de água no território municipal. E no Estoril, o tratamento arquivísti-
co do espólio do saudoso e mítico Monsenhor Moita, deu origem ao livro “O
Estoril e a Paróquia de Santo António”, que conheceu várias edições aos longos
dos anos. Ao mesmo tempo, num ímpeto de inquietação que exigiu coragem
e muita determinação, a fundação do Grupo de Apoio e Desafio à Sida, abor-
dando de forma exemplar outro dos flagelos que afligia Cascais.
Mas não ficaram por aqui os desafios. Várias vezes ao longo dos anos,
a Fundação Cascais lançou no terreno campanhas inéditas de recolha de
informação. E os voluntários e cooperantes que por ela deram a cara, o seu
esforço e o seu tempo, sempre a título gratuito, circularam pelas ruas e rue-
las do Concelho de Cascais ouvindo todos os munícipes e registando as
suas queixas e sugestões. Foram muitas centenas de milhares de quilómetros
percorridos ao longo de trinta anos, que calcorrearam todos os recantos,
12. O OUTRO CASCAIS
11
dando voz a todos aqueles que até aí não possuíam um instrumento que lhes
garantisse a cidadania plena.
E foi precisamente essa a principal conquista da Fundação Cascais. A cria-
ção de condições para que o concelho efectivamente vivesse em pleno a demo-
cracia em linha com um sentido de plenitude e de liberdade. Desta conquista
resultaram benefícios importantes para Cascais e para as suas gentes. E, em
termos da opinião pública e da sociedade civil, daqui nasceu efectivamente
um novo Cascais.
Foi um Cascais que desmistificou ideias e desmanchou preconceitos, crian-
do as condições para que pela primeira vez, em mais de 650 anos de autono-
mia municipal, todos os munícipes de Cascais pudessem ser efectivamente
Cascalenses, independentemente do facto de viverem na Vila de Cascais, no
Estoril, na Abóboda, em Talaíde, em Carcavelos ou na mais remota aldeia de
Alcabideche.
A Fundação Cascais é uma instituição para todos e de todos os Cascalenses.
E é em si própria um garante da liberdade, da consciência cívica e da demo-
cracia onde temos a sorte de estar.
Neste “Outro Cascais” que nasceu deste extraordinário grupo de muita gen-
te que se entregou ao projecto, fica uma homenagem e um agradecimento de
Cascais aos fundadores, cooperantes, voluntários e amigos da nossa Fundação
Cascais!
A bem de Cascais!
Luís de Athayde
Presidente do Conselho de Administração
13.
14. ÍNDICE
Prefácio por Luís Athayde – Presidente da Fundação Cascais.............................................9
Introdução......................................................................................................................15
O Outro Cascais – A Realidade Municipal no Interior do Concelho de Cascais................19
Mitos da Paisagem no Cascais Desconhecido...................................................................25
Por Terras de São Domingos de Rana...............................................................................31
A Igreja De São Domingos De Rana.................................................................................63
O Santuário de Nossa Senhora da Conceição da Abóboda...............................................79
A Capela de Nossa Senhora da Graça em Tires................................................................91
Tires e a Luz....................................................................................................................95
A Villa Romana de Freiria..............................................................................................109
O Conceito de Desurbanização no Interior de Cascais...................................................127
A Lixeira de Trajouce e a Vocação Turística Municipal...................................................135
O Casal Saloio de Outeiro de Polima e a Identidade Local.............................................145
Alcaparras em São Domingos de Rana...........................................................................153
O Casal do Clérigo e a Identidade Urbanística de Cascais..............................................163
Quintas e Centralidades em São Domingos de Rana......................................................169
Nas Penhas de Talaíde...................................................................................................183
Rota Romana de Cascais em São Domingos de Rana......................................................195
Conclusão.....................................................................................................................209
Notas.............................................................................................................................213
Bibliografia....................................................................................................................219
15.
16. INTRODUÇÃO
Quando há 30 anos os homens-bons de Cascais se reuniram no Teatro Gil
Vicente para constituírem a Fundação Cascais e para despoletar um debate
profícuo sobre o futuro do concelho, o Cascais que viviam era muito diferente
daquele que hoje temos.
Foi a Fundação Cascais quem, através de dezenas de iniciativas em várias
áreas diferentes, como a saúde, a cultura, o património histórico, o ambiente,
a segurança, o desporto a educação, o associativismo ou o turismo, começou
a desmistificar a realidade municipal, ultrapassando uma barreira imaginária
mas até aí intransponível entre o charme do litoral e a rusticidade do seu in-
terior. O interior do concelho, principalmente as Freguesias de Alcabideche e
de São Domingos de Rana era considerado de importância menor e, por isso
mesmo, relegado para um plano secundário marcado pela falta de investimen-
to, de atenção e de interesse.
Esquecidas durante muitas décadas, mercê da atenção depositada no litoral,
onde se localizavam as principais potencialidades que suportavam a vocação
turística municipal, as freguesias do interior iam sucumbindo à pressão imo-
biliária, aos bairros clandestinos e ao desleixo e incúria que transversalmente
caracterizavam a governação municipal naquelas áreas.
A Fundação Cascais, pioneira na sua capacidade de organizar e de dar voz
à sociedade civil municipal, teve o condão de despertar as consciências e de
recentrar as atenções dos cascalenses naquelas que verdadeiramente são as
terras com mais potencial do Concelho de Cascais.
No mesmo local onde nasce o Sol e onde sopram os ventos amenos da Serra
de Sintra, começa o território de São Domingos de Rana. E a Fundação Cas-
cais, desde há 30 anos que calcorreia aquelas estradas e caminhos mostrando
o carácter excepcional destas terras tão especiais. De um lado, o verde forte
da Serra de Sintra, marcado pelos traços indeléveis das ribeiras que ali nascem
e que percorrem as suas terras úberes até ao mar. Do outro, o azul das ondas
17. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
16
confunde-se com o próprio céu, definindo um quadro idílico cuja imagem se
impõe ao olhar mas que poucos conheciam até essa data.
Todos os que chegam a Cascais vindos de Oeiras e de Lisboa entram no
concelho através de São Domingos de Rana. Mas, devido aos muitos mitos que
envolvem este lugar, passam normalmente de forma muito rápida, acelerando
o carro que os impede de verdadeiramente olhar e observar.
Os mais velhos habitantes da freguesia, bons conhecedores desta terra ex-
traordinária, riem-se desconsoladamente desta realidade, mas querendo pre-
servar o seu tesouro, acabam por perceber as vantagens que lhes traz o facto
de serem poucos aqueles que optam por aqui parar. Porque o segredo maior
de São Domingos de Rana, perdido na pacatez dos seus prados verdes e selva-
gens, é precisamente essa paz que o território teima em preservar. É este um
segredo bem guardado.
Nem tudo é bom em São Domingos de Rana. Pelo contrário. A História
recente, misturada com interesses prolixos que se multiplicaram durante o sé-
culo passado, teve o condão de remeter para esta freguesia tudo aquilo de que
as instituições competentes desejavam livrar-se. Foram as sucatas, os lixos, as
águas lixiviantes, a poluição industrial, os realojamentos dos antigos bairros de
barracas, as forçadas legalizações das construções clandestinas…
A Fundação Cascais, com a força que teve a capacidade de adquirir através
da conjugação da força individual de todas as personalidades e instituições que
juntou em torno deste comum desiderato, interviu directamente na inversão deste
processo gerando conhecimento e reconhecimento relativamente à realidade mu-
nicipal e desvendando os mitos que enganavam sistematicamente os cascalenses.
Participando activa e empenhadamente no processo que culminará na apro-
vação do primeiro Plano Director Municipal, em 1997, foi a Fundação Cascais
que teve a capacidade de transformar o território esquecido de São Domingos
de Rana no palco maior das potencialidades de Cascais. Até porque, como
sublinhadamente foi dizendo ao longo desse conturbado processo, o Plano
Director Municipal projecta Cascais no futuro. E o futuro, num território
massacrado por muitas décadas de exploração sistemática dos seus recursos,
concentrava-se ali naquele recanto mitologicamente protegido da atenção que
poderia ter despertado junto de outros interesses.
18. O OUTRO CASCAIS
17
Hoje, São Domingos de Rana enche-se de projectos e de ideias, caminhando
em passo firme em direcção a esse futuro novo que se já pressente no horizon-
te cujos primeiros raios de luz começam a clarear. E foi a Fundação Cascais
quem teve a coragem de o despoletar.
Actualmente esta é uma freguesia que se orgulha da sua História, que co-
nhece o seu passado e que se emociona quando as agruras naturais do dia-
-a-dia lhe permitem ouvir ao longe os ecos dos passos dados pelos seus avós
naquelas estradas. É a freguesia de acredita em milagres e que na sua devoção
a Nossa Senhora da Conceição transforma a fertilidade das suas terras em grão,
do qual a força do vento faz farinha e que acaba transformado em pão que se
partilha em comunidade.
O que propomos neste livro é que venha fazer esta viagem cujo guião foi
desenhado pela Fundação Cascais desde 1993. Que ouse sair da autoestrada
e que se perca pelas longas veredas verdejantes onde sucessivas gerações esco-
lheram instalar-se, viver e morrer.
Fizeram-nos porque este é, de facto, um sítio extraordinário e a Fundação
Cascais mostrou-o de forma comprovada ao longo das três últimas décadas.
Percorrer as ruas, os becos, as vielas e as veredas campestres deste outro Cas-
cais é trazer à luz do dia a pérola extraordinária e brilhante que é São Domin-
gos de Rana.
Ao longo das próximas páginas vamos andar por ali, de história em história
e de canto em recanto, procurando trazer a quem nos ler um pouco dos aro-
mas, das cores e dos sons que nos acompanharam nos muitos quilómetros que
por ali fomos fazendo desde 1993.
Move-nos a paixão que perpassa nas vozes dos cascalenses que ali vivem,
muitos deles intrépidos descobridores das velhas lendas e dos costumes ar-
reigados daqueles que os precederam nestes lugares. Porque em cada uma
das suas palavras e em todos os seus suspiros, acrescentamos mais à vida do
município de Cascais, que por ali geme um futuro convicto de serenidade, paz
e felicidade que desejamos permanente.
Este é um outro Cascais que foi descoberto a partir de 1993. Este é um
Cascais em pleno!
19.
20. A REALIDADE MUNICIPAL
NO INTERIOR DO CONCELHO
DE CASCAIS
A Freguesia de São Domingos de Rana, situada estrategicamente no extremo
oriental do Concelho de Cascais, é provavelmente aquela que apresenta uma
maior estabilidade administrativa ao longo da sua História.
Pese embora as diferenças que existem entre as fronteiras definidas pelas
circunscrições religiosa e civil ao longo dos tempos, fazendo com que a actual
freguesia tenha conhecido várias realidades ao longo dos séculos, administra-
tivamente as suas fronteiras já estavam definidas quando o Rei Dom Fernando
instaura o Termo de Cascais, em 1370. Nessa data, ou seja, desde que Cas-
cais conheceu as suas actuais fronteiras administrativas, que São Domingos de
Rana integra o território municipal depois de, tal como tinha acontecido com a
própria sede do Concelho, ter sido autonomizado relativamente a Sintra, onde
até essa data pertencia.
Mas no Século XVIII, quando a influência tutelar do Marquês de Pombal e a
sua empreendedora vontade de promover a produção vinícola na região levaram
à criação do Concelho de Carcavelos, necessariamente preparado para dar res-
posta célere aos muitos investimentos que o Marquês, também Conde de Oeiras,
estava a fazer em propriedades agrícolas naquele local. A criação do Concelho de
Carcavelos, com o antigo povoado elevado à categoria de vila, veio responder a
um problema grave que afectava administrativamente as propriedades do Mar-
quês. É que anteriormente à criação do Concelho de Oeiras, que só aconteceu em
1759, existia nos limites Ocidentais desse território um outro Concelho indepen-
dente, chamado Bucicos, que se extinguiu por falta de gente que o governasse.
A problemática relacionada com a História do município de Bucicos é muito
interessante porque, para além de nos mostrar como os interesses pragmáticos
21. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
20
do dia-a-dia influem nas decisões políticas e são determinantes nos destinos
das localidades, nos permite perceber que os períodos de declínio urbano são
por vezes processos incontornáveis, mesmo quando estamos a abordar espa-
ços que conheceram períodos de enorme pujança e de prosperidade. O desin-
teresse e a incúria, acumulando vicissitudes de índole familiar que se impõem
aos destinos das suas casas e propriedades, gera movimentos de desconstrução
de realidades que eram aparentemente sólidas e muito estruturadas.
São Domingos de Rana foi assim integrado no novo município de Carcave-
los onde se manteve durante um curto espaço de tempo. Entre 1759 e 1764,
as terras de Rana integraram o município de Carcavelos e nessa data, depois de
o mesmo ter sido extinto, seguiram o destino do mesmo ficando integradas no
termo de Oeiras até ao início do Século XIX. Dessa realidade nova passaram a
fazer parte Carcavelos, Sassoeiros, São Domingos de Rana e Arneiro.
Em 1895, por Decreto Real, o Concelho de Oeiras é novamente extinto
e, durante cerca de 3 anos passou a estar integrado no Concelho de Cascais,
levando consigo as terras que definiam a Freguesia de São Domingos de Rana.
Depois, novamente autonomizado em 1898, Oeiras adquire então as suas
fronteiras actuais, deixando em Cascais as terras que são hoje a Freguesia de
São Domingos de Rana, que igualmente fixam os limites administrativos que
hoje lhe conhecemos.
A evolução da freguesia, oscilando ao sabor das necessidades administrati-
vas daqueles que eram os principais proprietários das suas terras, fez-se desta
forma a partir de um dos elementos que são mais importantes para caracterizar
historicamente as terras de Rana: a exploração agrícola e a produção do deno-
minado “Vinho de Carcavelos”.
Num dos extremos da freguesia, junto daquele que passaram a chamar
“Bairro da Mina”, depois do Arneiro, ainda hoje encontramos um monumento
que reforça de forma incomensurável este destino agrícola de São Domingos
de Rana. A mina de água que dá nome ao bairro de génese ilegal que ali nasceu
e cresceu, faz parte do investimento efectuado pelo Marquês de Pombal para
alimentar de água a sua quinta em Oeiras.
Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro Conde de Oeiras e mais tarde
Marquês de Pombal, é figura bem conhecida da historiografia nacional. Mas os
22. O OUTRO CASCAIS
21
seus feitos políticos, e a forma triste como acabou os seus dias exilado das suas
gentes e das suas gentes, ficam aquém das suas aptidões enquanto homem de
negócios iluminado pela ciência e pela tecnologia disponíveis naquele fim de
século.
Trazendo das suas múltiplas viagens pela Europa, a noção exacta do imen-
so potencial que as mais modernas abordagens tecnológicas tinham, aplicou
nas suas quintas em Oeiras grande parte desse conhecimento essencial. E a
água, com a sua boa gestão, foi para ele motivo de uma atenção especial. O
investimento que fez na criação de estruturas que potenciassem a sua gestão,
recriando assim formas alternativas de intervir directamente na redefinição das
capacidades de utilização dos solos, reforçando a sua produtividade através
da canalização da água e do seu aproveitamento de forma multifacetada, foi
motivo essencial para explicar o enorme êxito que alcançou também nessa via
profissional.
Em Oeiras, onde as suas quintas produziam esse “Vinho de Carcavelos”,
toda a tecnologia existente era aplicada no incremento da sua capacidade pro-
dutiva, isto sem nunca descurar a qualidade do seu produto, uma vez que para
além dessa sabedoria técnica o Marquês era bem conhecido pela sua veia em-
preendedora e comercial. Ainda hoje, quando em Cascais ou em Oeiras existe
cerimónia que exige um pouco mais de pompa e de circunstância, é o vinho
de Carcavelos que acompanha os brindes, pelo facto de ser um néctar com ca-
racterísticas únicas e impressionantes, que gera um bem-estar muito marcante.
E isso, sem qualquer espécie de dúvida, só acontece como consequência da
excelência do trabalho do marquês!
No referido Bairro da Mina, ali mesmo à entrada da Freguesia de São Do-
mingos de Rana, a nascente de água natural que existe no topo do morro do
Arneiro debita permanentemente, mesmo no pico do verão, um caudal impor-
tante de água potável. E o Marquês de Pombal, cioso desse potencial, mandou
construir a mina de água que hoje ali encontramos, inserida num sistema hí-
drico que permitia canalizá-la directamente para a sua quinta, situada onde
está hoje a Estação Agronómica Nacional.
A mina de água do Bairro da Mina, que durante muitas décadas teve uma
exclusiva e muito pragmática utilização agrícola, terá servido também, em
23. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
22
meados da década de 70 do século passado, para alimentar um pequeno cha-
fariz que existe no meio do bairro. De acordo com o website da Junta de
Freguesia, onde existe um pequeno apontamento sobre este monumento, era
usual a população local consumir dessa água assim captada sempre que a seca
impunha cortes no abastecimento. Porque como o Marquês de Pombal sabia,
e por isso procedeu ao investimento necessário para garantir a boa captação do
produto, este manancial era permanente e dessa forma essencial para amenizar
os picos de seca que sempre sobrevêm.
Actualmente, com a sua função original comprometida, a mina de água
e o seu torreão setecentista poderia facilmente transformar-se em mais um
detalhe de abandono em São Domingos de Rana. Mas a importância que teve
enquanto foi peça funcional e essencial na consolidação dessa vocação agrícola
que deu forma à identidade da freguesia, granjeou-lhe uma aura simbólica que
preservou a sua significância e lhe eternizou os contornos no quadro idílico
que subsiste em Terras de Rana.
A proximidade da antiga Aldeia do Arneiro, que como indica o topóni-
mo fica a dever-se basicamente à extracção e tratamento de areia e seus de-
rivados, por isso com um cunho vincadamente industrial, determinou de
sobremaneira o destino histórico daquela zona da freguesia. A consistência
da sua ocupação, naturalmente apoiada no facto de o Município de Oei-
ras ter optado por consignar as áreas confinantes com o Arneiro e a Mina
para actividades do sector terciário, moldando assim de alguma forma as
possibilidades de concretização do lado cascalense da fronteira administra-
tiva intermunicipal, acabou assim por ser um contributo importante para
a deturpação do conceito original de ocupação deste espaço, facto que se
concretizou de forma natural com a já referenciada actividade de extracção
de areias e, depois, com a progressiva (mas maciça) instalação do bairro de
génese ilegal que envolve o monumento pombalino na estrada que liga as
duas povoações. O Arneiro, e toda a encosta que desce em direcção à ribeira,
transformou-se paulatinamente num território ambíguo de descontinuidade
urbana, misturando o que resta do seu património de génese saloia, com as
sempre impactantes estruturas que dão forma aos equipamentos industriais
ali colocados.
24. O OUTRO CASCAIS
23
Este devir, estranho à imagem do São Domingos de Rana que advogamos
neste trabalho, foi formalizado pela edilidade cascalense no início deste século,
quando preparou e aprovou para aquele lugar algo a que chamou “Plano de
Pormenor do Espaço de Estabelecimento Terciário do Arneiro” (01) e que de-
fine este destino de forma pragmática e com impacto elevado no cumprimento
deste desígnio ancestral: “O PPEETA insere-se num tecido com elevado poten-
cial de desenvolvimento de actividades terciárias de nível superior, reforçado
pela sua localização privilegiada em termos de acessibilidades, aproveitando as
sinergias do Concelho de Oeiras, fortemente dinamizado pela implantação de
importantes núcleos de actividade terciária, e das áreas de maior dinâmica da
Área Metropolitana de Lisboa (AML).”
E mais à frente, quando se debruça sobre a componente estratégica do plano,
é a própria edilidade que incorre neste grave erro de raiz, determinando que a
origem do povoado urbano do Arneiro é de génese clandestina, condicionan-
do assim totalmente a possibilidade de intervir com o enfoque inverso, ou seja,
assentando a bitola definidora dos usos futuros, à origem saloia daquele núcleo
urbano consolidado, recuperando os exemplares de qualidade que lá subsis-
tem e reformatando o destino local a partir da recuperação da sua identidade
e memória. Diz assim o referido documento: “Resultado das assimetrias e de-
sequilíbrios sócio-urbanísticos e funcionais herdados do processo de metropo-
lização das décadas de 50, 60 e 70, bem como das mudanças estruturais mais
recentes decorrentes da alteração das condições de acessibilidade, a estrutura
da ocupação urbana existente no território adjacente à área de intervenção do
PPEETA pode qualificar-se como fragilizada e de fraca coerência urbanística,
onde o uso habitacional surge desligado dos demais, tendo a sua origem as-
sociada a AUGI. No entanto, e apesar da reconhecida desqualificação urbana,
ambiental e social destas áreas habitacionais, reconhece o Plano Regional de
Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa (PROT-AML), em
relação às dinâmicas e tendências dominantes de mudança, que este espaço
se destaca por ser capaz de atrair e fixar novas actividades e funções de nível
superior através da valorização do espaço público, estruturação da rede viária
e elevação do nível de serviços. Atendendo às determinações do PROT-AML
e à necessidade de impedir a degradação de uma zona fortemente carenciada,
25. entendeu a CMC, actuar no sentido de estruturar e organizar o espaço urbano
visando a criação de condições favoráveis à captação de investimento privado
e assim criar oportunidades a nível económico mediante a criação de emprego
e a nível social e ambiental, através da reorganização do espaço”.
Consagra-se assim institucionalmente mais um mito que constrange os des-
tinos de São Domingos de Rana, reformatando a lógica requalificadora assente
numa bitola que recupera os registos históricos da identidade local…
26. MITOS DA PAISAGEM
NO CASCAIS DESCONHECIDO
Outro dos mitos que constrange a perspectiva que temos da Freguesia de
São Domingos de Rana é o da sua esterilidade em termos do seu património
histórico e da sua paisagem. Para o cidadão comum, que associa Cascais ao
cosmopolitismo da sua Avenida Marginal e ao permanente sussurro das ondas
do mar, São Domingos de Rana é espaço de interior, degradado pelos muitos
ataques perpetrados ao longo das últimas décadas que encheram o seu espaço
de verdadeiros monos de betão escondidos por detrás da onda de ilegalidades
urbanísticas que quase destruiu por completo a paisagem saloia dos arrabaldes
de Lisboa.
Mas este mito, fomentado desde a construção da autoestrada que liga Lisboa
a Cascais pela linha artificial e tendenciosamente marcante que atravessa o
concelho, prende-se sobretudo com a falta de coragem dos muitos que todos
os dias por aí passam a grande velocidade. Porque basta sair da via-rápida e
percorrer o interior do Concelho, desde Talaíde até Cascais, para perceber o
quão errado é este exercício de suburbanidade.
Porque se a mancha de degradação, de facto, é uma linha contínua ao longo
da A5, acompanhando a pretensa “facilidade de acessos” com a veia comer-
cial dos muitos promotores clandestinos que encheram estes espaços de avos
que vendiam aos incautos que procuravam viver em Cascais sem terem meios
para o fazerem pelos canais regulares, sobra ainda hoje uma imensa paisagem
quase desértica que, essa sim, traduz a essência cenográfica desta freguesia tão
especial.
Como dizia William Beckford, o jovem fidalgo que em finais do Século
XVIII aportou casualmente em Cascais durante uma viagem entre Inglaterra
e a Jamaica (2): “atravessamos as tristes planícies rochosas de Cascais. Alguns
miseráveis camponeses arrancavam mirrados robles para lenha. O mar res-
27. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
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plandecia na distância. Viam-se muitos barcos. Felizes os que partem mar fora,
disse comigo mesmo (…)”. E esta noção de deserto árido, desprovido de ou-
tros motivos de interesse para além de um distante esgar de perspectiva sobre
as águas do mar fez escola, determinando aquilo que vem a ser a literatura de
viagens e o imaginário mais sombrio construído nas zonas cosmopolitas do
velho Cascais romântico dessa época.
Mas é falsa e difere imenso da realidade. Porque em São Domingos de Rana,
quanto mais não fosse pela pujança úbere das suas terras, pelos vastos pinheirais
e pelos vales verdejantes que acompanhavam as suas muitas linhas de água,
existe uma pluralidade de padrões de cores e aromas que de forma cruzada
determinam amiúde o que de melhor existe em Cascais. E pelo meio do casa-
rio clandestino que infelizmente veio estragar uma parte dessa abundantemente
paisagem, mas que o dandy inglês nunca viu porque não existia no tempo da
sua viagem, subsistem ainda os espaços de deslumbramento que definem bem o
atractivo que desde sempre este espaço exerceu em todas as suas comunidades.
Um dos exercícios mais interessantes da paisagem da freguesia faz-se logo
na fronteira Nascente de São Domingos de Rana. Acompanhando a linha da
Ribeira da Laje, desde a sua foz no mar até ao extremo onde se situa o Bairro
do Pomar das Velhas, logo a Norte da antiga Lixeira de Trajouce, o impacto
paisagístico dos locais por onde passamos é enorme e, se o cruzarmos com os
vestígios dos velhos edifícios históricos que por ali abundam, depressa per-
ceberemos que a imagem mitologicamente criada nada tem a ver com a rea-
lidade. Em primeiro lugar porque a viagem em questão é curta. São poucos
os quilómetros que distam entre a extrema Norte do Concelho de Cascais
e o mar. Do alto do morro sobranceiro a Quenena, na margem esquerda da
ribeira e com vista sobre as pedreiras antigas de Talaíde, olhamos para Sul
e vemos o mar. Mas não o vemos de esguelha, como se fosse um vislumbre
longínquo que faz apertar as saudades. Não. O que vemos é o mar, logo ali,
muito próximo e acessível quase ao alcance de um pequeno passeio a pé atra-
vés da sinuosa e extravagante serventia milenar que acompanha a linha de
água. E quando lá chegamos pela primeira vez com Cascalenses interessados,
daqueles que conhecem bem o concelho e que criticamente ajudam Cascais
a crescer e a afirmar-se, o espanto e o deslumbramento perante aquele qua-
28. O OUTRO CASCAIS
27
dro geram exclamações deslumbradas… O mesmo, uns metros mais abaixo,
junto à ribeira que ruge com ferocidade durante os dias de inverno quando
a água jorra da Serra de Sintra procurando impetuosamente chegar ao mar.
Porque junto à ponte de Quenena, com os juncos a debruar de verde o ímpeto
das águas, a espuma dessa força emerge viril por entre as pedras do leito da
ribeira, construindo pujantes refluxos de água. E, nós que desde há muitos
anos calcorreamos normalmente aquele espaço, já ouvimos vezes sem conta a
expressão atónita de cascalenses que nos dizem “parece que estamos no Gerês
ou na Serra do Soajo!”
Em segundo lugar, porque do alto daquele morro, onde o Pomar das Velhas
tristemente veio assentar, conseguimos identificar à nossa volta dezenas de pe-
ças patrimonialmente interessantes que compõem, por si só, um motivo redo-
brado de interesse para andar por ali vagabundeando e para as visitar. De um
lado, muito próxima e com o ímpeto que só têm os edifícios que estão desde
sempre a funcionar como eixos de orientação da urbanidade, temos a Capela
(hoje Santuário) de Nossa Senhora da Conceição da Abóboda. A sua História,
as suas lendas e a beleza simples da sua arquitectura popular, enleva-nos ao
ponto de acreditarmos em milagres. E logo abaixo, como se, de facto, de um
milagre se tratasse, a Villa Romana de Freiria, porventura a mais importante de
todas as estações arqueológicas de Cascais, que a determinação, a paciência e a
coragem de Guilherme Cardoso e José d’Encarnação tornaram possível salvar.
Mais à frente, no morro seguinte em direcção ao Arneiro e à Mina de Água,
o velho Casal Saloio guarda as memórias sentidas deste importante lugar. Lá
estão, num núcleo expositivo marcado pela excelência de organização e saber
de João Miguel Henriques, todos os detalhes da vida local, expressamente in-
seridos num exemplar único de arquitectura popular. E adiante alguns metros,
para não avançarmos até às verdejantes videiras da Quinta do Mosteiro de
Santa Maria do Mar, miraculosamente salvas pela mão sábia de Joana Balsemão
no desempenho da sua missão de defender os nossos valores naturais, a Villa
Romana de Outeiro de Polima, ao lado dos vestígios pré-históricos que se es-
palham pelos campos recém-lavrados.
Desde este ponto estratégico de observação da paisagem de São Domingos
de Rana, ganhamos uma nova perspectiva do que é este pseudo-interior do
29. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
28
Concelho de Cascais. Um espaço que, ao contrário do que escreveu Beckford
no seu diário, se enche com uma profusão de cores e aromas, de plantas va-
riadas, de árvores magníficas e de flores que em qualquer época do ano nos
corrompem os sentidos com a força dos perfumes que elas teimam em emanar.
Vemos toda a linha de costa, essa sim quase completamente desprovida do ver-
de que por aqui (felizmente) ainda abunda, atulhada de lotes, muros, estradas
e casas, sem praticamente nenhuma possibilidade de sequer vislumbrar a linha
ténue de um mar que daqui se sabe azul e verde na sua conjugação elementar
entre o reflexo do céu e a vetusta paisagem fulgurante da Serra Sagrada.
Em São Domingos de Rana temos património histórico em profusão, natu-
ralmente dependente da sua raiz popular, mas também temos um autêntico
manancial de riqueza que resiste do traço firme da sua paisagem. Temos linhas
de água que ainda guardam memórias próximas de uma agricultura de sub-
sistência que as aproveitava, e temos igualmente as mais recentes estruturas
produtivas de cariz industrial que foram perdendo importância económica e
que, aqui e ali, marcam o território com os seus corpos esventrados e o ce-
nário desolador de abandono que resultou do fim da sua vida de trabalho. E
dirão alguns, contradizendo os fluxos naturais da História que deveriam ser
todos demolidos para se repor o verde ancestral. Mas talvez não, até porque
fazem parte integrante da História Local e, mais importante ainda, apresentam
potencialidades imensas ao nível da criação de estruturas renovadas que nos
permitam usufruir condignamente desta paisagem.
Já lá estão, já estragaram o equilíbrio biofísico que tinham de estragar e já
acarretaram muita riqueza e prosperidade para muitas gerações de fregueses
locais. Como já lá estão, abandonados e desprovidos de um uso consisten-
te com as suas origens manufactureiras, eis que se afirmam como potenciais
polos de desenvolvimento cultural, espaços de arquivo, depósitos de arte, ce-
nários de filmes e séries para a televisão por cabo ou mesmo para residências
lúdicas para albergar os milhares de estudantes estrangeiros que anualmente
procuram Carcavelos para fazer a sua formação académica numa das nossas
universidades.
E também esses, se tivessem a sorte de por ali pernoitar, poderiam usufruir
da proximidade à sua escola situada junto ao mar, enquanto ouviriam o chil-
30. O OUTRO CASCAIS
29
rear dos pardais que em bandos imensos ainda hoje esvoaçam pelo que resta
das antigas searas que por ali abundavam. Contribuiriam igualmente para o
despoletar de uma nova vida, rica em termos culturais, que nos ajudaria a
ressuscitar os velhos saberes, os antigos hábitos e costumes e, eventualmente,
a recuperar uma identidade de São Domingos de Rana que foi sempre de pri-
meira importância para a definição da própria identidade municipal.
A paisagem de São Domingos de Rana, consolidada pela altivez das suas
igrejas, pelo carácter avoengo dos seus sítios arqueológicos e, sobretudo, pela
pujança verde das suas linhas de água, é património maior do que quase todo
aquele que encontramos em torno de Lisboa. Porque agrega, de forma explí-
cita para quem o quiser conhecer, motivos de interesse variados e uma poten-
cialidade de influência enorme nas freguesias circundantes.
Nessa viagem pelas estradas secundárias e antigas que atravessam a Fre-
guesia de São Domingos de Rana, atravessamos igualmente as velhas aldeias
rurais. E, mesmo sabendo que a maior parte delas foi completamente esven-
trada pela inusitada onda de betão que consumiu Cascais durante a segunda
metade do Século XX, é certo que todas elas preservam quase incólume o seu
centro histórico consolidado. Esta é igualmente uma surpresa quando por aqui
passeamos com os ditos cascalenses interessados que, passando sempre a cor-
rer por Trajouce, por Talaíde, por Polima, pela Abóboda ou mesmo por Rana,
nunca tinham visto verdadeiramente a beleza extraordinária e harmoniosa de
muitas daquelas ruas e fachadas. Porque se impõe à vista a degradação, e a
bitola que utilizamos é a do betão, fica a vista toldada para uma abordagem
mais imersiva na realidade local. Mas é um erro que assim se faça… até porque
em qualquer dos núcleos habitacionais de São Domingos de Rana, se encon-
tram os motivos e os detalhes que nos fazem repensar a ideia degradada que
tínhamos daqueles espaços. Quantas vezes, depois de despertados os sentidos
perante a inusitada grandeza de uma velha quinta senhorial e/ou de um amal-
gamado casal saloio onde os espaços de habitação se cruzavam com os currais,
não nos deslumbramos com aqueles vetustos portões de ferro forjado ou com
as cantarias imensas de uma qualquer fonte municipal?
Enfim, a herança cultural de São Domingos de Rana é imensa e incomensu-
ravelmente maior do que a mera soma dos seus pontos de interesse. Compõe-
31. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
30
-se num todo que se contrapõe a visões reducionistas tecnicamente montadas
nas primeiras versões dos grandes planos directores municipais. E empenha-
damente contraria todos aqueles que remetem para a Freguesia de São Domin-
gos de Rana os lixos, as sucatas e as poluentes indústrias que destroem o seu
imenso potencial. Importa, com carácter de urgência, desmistificar São Do-
mingos de Rana, impondo ao todo municipal a visão ampla e convergente que
a freguesia naturalmente já tem. É urgente, e diria que é igualmente decisivo,
que se avance com um plano geral de reconhecimento municipal, no qual São
Domingos de Rana, mas também Carcavelos, a Parede, o Estoril, Alcabideche
e até Cascais, partilham as suas características próprias reforçando o todo coe-
rente da vocação turística municipal.
Tal não se faz com reducionismos, nem sequer com as visões deturpadas de
quem lê os documentos administrativos e calcorreia de carro o asfalto dema-
siado perfeito da autoestrada local. Faz-se com trabalho de campo, com o suor
(e também com as lágrimas) que urge promover para sentir os aromas, as cores
e conhecer os horizontes destes campos tão ricos de uma memória sem par.
Porque São Domingos de Rana é parte importante, para não dizer desde
já essencial, do edifício que sustenta a vocação turística municipal. Porque
esta freguesia congrega em si a plenitude de ser a porta de Cascais para quem
vem de Lisboa através da autoestrada ou de Oeiras através da estrada regional.
Porque é um marco que faz a diferença, na definição da excelência do nosso
Cascais!
32. POR TERRAS
DE SÃO DOMINGOS DE RANA
O topónimo ‘Rana’ traduz uma realidade incontornável em São Domingos de
Rana… a rã! Este anfíbio, muito comum nesta freguesia devido à existência de
várias linhas de água que atravessam todo o seu território, é conhecido por estar
sempre associado a habitats com água corrente sempre limpa e bem oxigenada…
Ou seja, o típico ambiente que contradiz o mito de que São Domingos de
Rana é uma freguesia perdida no meio do entulho, das oficinas poluentes e do
desregramento urbanístico que lhe desfeia a alma.
A Freguesia de São Domingos de Rana é a cara de Cascais. Apesar do enga-
no promovido pela designação das portagens ditas de Carcavelos, para quem
entra em Cascais via autoestrada, porque se situam em plena Torre da Aguilha,
ou seja, no coração de São Domingos de Rana, a freguesia é a primeira que se
avista quando se entra no concelho e a última que se vê quando dele se sai.
Mas os mitos em torno desta terra excepcional não se ficam por aqui.
Muitas décadas de desinteresse por parte das entidades municipais, que cul-
minaram com a construção da A5 que literalmente separou as terras de Rana
do território cosmopolita e charmoso do litoral cascalense, acabaram por de-
terminar uma paulatina degradação da sua paisagem, da sua estrutura urbana
e das infraestruturas de apoio e, sobretudo da sua identidade.
Esta situação de continuado desleixo, associada a algum facilitismo que
grassou a partir de meados do Século XX, quando as entidades competentes
deixaram de conseguir responder de forma cabal ao desmesurado crescimento
populacional dos subúrbios de Lisboa, que exigia respostas prontas ao nível
da habitação, acabou por determinar a proliferação em todo o território mu-
nicipal mas, principalmente, na área da Freguesia de São Domingos de Rana,
de milhares de casas clandestinas que desferiram um duro golpe na já muito
depauperada identidade local.
33. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
32
A raiz rural da freguesia, até essa altura de primeira importância para o sus-
tento de todo o território municipal, foi-se degradando à medida em que a falta
de condições de vida para os muitos milhares que a iam procurando se trans-
formava em mais um pretexto para contribuir para o abandono generalizado
ao qual a freguesia esteve sujeita durante muitos anos. Ao nível do património
histórico, as memórias de outros tempos foram sendo envolvidas pelos laivos
betonizados das novas construções, toldando de forma célere os vestígios cada
vez mais subtis das origens magníficas deste local excelso. As velhas estruturas
agrícolas, marcadas de forma fantástica pelo permanente avanço das tecnolo-
gias associadas à exploração da terra, transformaram-se rapidamente em meras
memórias, abandonando a sua anterior importância enquanto pilar do sus-
tento da comunidade e dando lugar a uma tercearização que culminou numa
assaz preocupante anomia transversal a toda a comunidade.
E não deixa de ser importante, até porque traduz muito bem a forma como
as memórias integram a identidade de um local, perceber que já são poucos
aqueles que conhecem de forma cabal o percurso histórico da sua terra e fre-
guesia. E menos ainda, porque a necessidade de empreender investigações
mais aprofundadas sobre essa matéria assim o determina, aqueles que conhe-
cem de forma sentida as raízes onde assentam os alicerces de uma forma de
estar e de ser riquíssima em tradições que caracterizou São Domingos de Rana
durante muitos milénios.
As terras de rã, num laivo de deslumbramento perante a riqueza dos aquí-
feros na freguesia, foram-se progressivamente compondo em torno de orago
de São Domingos (de Gusmão) envolvendo paulatinamente o espaço em torno
do morro onde se ergueu a sua vetusta Igreja paroquial. E o santo, alheado da
força que as águas impetuosamente emprestaram àquela terra, foi conquistan-
do o seu espaço e organizando as suas gentes, numa amálgama de potenciação
das memórias que coisa alguma foi capaz de obliterar.
Quando saímos de Carcavelos e começamos a subir a colina em direcção
à Igreja de São Domingos de Rana, é como se atravessássemos um portal que
transmuta a realidade e altera o registo daquilo que estamos a ver.
A paisagem eclética do Carcavelos litoral, marcado de forma muito rigorosa
pelo longo período de presença assídua da comunidade inglesa, inicialmente
34. O OUTRO CASCAIS
33
em resultado da montagem do cabo submarino e, depois, pela ligação às vi-
nhas e ao vinho que por ali abundavam, vai-se recompondo paulatinamente
da patine rústica de uma ruralidade antiga que são poucos aqueles que estra-
nham.
Como cita João Miguel Henriques na obra que coordena para comemorar
os 650 anos da autonomia de Cascais em relação a Sintra (03) é precisamente
a singeleza da sua História que faz de São Domingos de Rana, vista do alto da
torre sineira da sua Igreja Matriz, uma referência que nos transporta através
dos deleites de outras eras, tempos e pessoas: “A sua igreja matriz, edificada
no cimo de um cômoro, avista-se a muitas milhas de distância, sendo ponto
de referência para a navegação […] Como em todas as terras saloias, nem uma
nota de pobreza, de fealdade, de nódoa. Também nem sombras de grandeza ou
de fidalga prosápia. Casas garridas, alegres, ao longo da estrada florida como
jardim”.
Aqueles vales imensos hoje repletos de construções, misturando o betão
dos muito prédios de vários andares com a precariedade das construções de
génese clandestina, preservam, aqui e ali, vestígios sublimes de uma existência
ancestral à qual os eruditos designam como chã que, associando os valores
saloios de outras partes da grande Península de Lisboa aos laivos agregadores
da ligação muito próxima ao mar que caracterizam este extremo ocidental da
grande Área Metropolitana de Lisboa, se vão multiplicando quase escondidos
pela pujança imensa dos restantes.
No meio das urbanizações concretizadas em vidro, metal e betão, estão os
ansiados pontos brancos da cal que cobriu as velhas paredes das casas dos
primevos habitantes. São singelos, é certo, até porque denotam um assumido
carácter funcional, respondendo com celeridade às múltiplas necessidades de
protecção e aconchego que as casas sempre tiveram. E se pensarmos na fun-
cionalidade destes espaços, depressa perceberemos igualmente a importância
dos detalhes decorativos que, com a singeleza própria do seu enquadramento,
acrescentam valor e urbanidade aos recantos mais tradicionais de São Domin-
gos de Rana.
Conhecer essas funcionalidades (no plural porque muitas vezes funcionam
de forma concomitante) é assim deambular ao sabor das necessidades por
35. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
34
vezes básicas de cada comunidade e de cada agregado familiar. Porque se para
uns se trata da mera sobrevivência, este esforço quotidiano para angariar o mí-
nimo necessário para se sustentar a vida que passa célere ao longo dos dias e
dos anos e de cada estação, para outros faz-se das sobras, ou seja, do que veio a
mais em determinado momento. Para os primeiros, as casas são simples e com
aquele cunho chão que determina a humildade das suas raízes. Enquanto que,
para outros, o mesmo espaço de vida é notoriamente assente nas aparências
que fazem da vida um motor social. E nessas casas as volumetrias crescem,
em altura e em área, de forma a acomodarem todas as necessidades que se vão
acrescentando.
O sustento das gentes de São Domingos de Rana não foi sempre o mesmo.
Apesar de o fácil acesso à pedra – principal recurso natural da freguesia – se
cruzar permanentemente com o carácter úbere da terra, gerando uma econo-
mia de trabalho que assenta de forma efectiva na duplicidade dos perfis dos
seus fregueses, a subsistência de quem por ali habitava várias vezes se adaptou
às circunstâncias da História, gerando respostas que lhes permitissem aumen-
tar os seus rendimentos respondendo de forma cabal às necessidades das re-
giões circunvizinhas. Este fenómeno, que é visível no cruzamento dos dados
fornecidos pelos vários censos que em épocas mais recentes se realizaram na
freguesia com os dados fornecidos pela historiografia, permite-nos entender
melhor a capacidade de os fregueses de São Domingos de Rana se adaptaram
às vicissitudes que lhes são impostas pelo destino, adquirindo novas compe-
tências à medida em que delas passavam a depender para garantir o sustento
do quotidiano.
Padre Barruncho, o ilustre historiador que em finais do Século XIX nos des-
creve com muito detalhe as principais características do território municipal,
dedica uma especial atenção a São Domingos de Rana e aos seus mármores
de excepção. De acordo com o investigador, o mármore vermelho da Torre
da Aguilha, é produto de primeira qualidade que serviu para embelezar es-
truturalmente grande parte das mais interessantes propriedades existente no
termo de Lisboa até àquela época. A Igreja da Graça, em Lisboa, e a Quinta
de Manique, na Freguesia de Alcabideche, são dois dos exemplos que deixa
para ilustrar a importância desta matéria-prima no contexto da reconstrução
36. O OUTRO CASCAIS
35
da capital depois da destruição que resultou do grande terramoto de 1755
(04): “Há notícias que não podemos desenvolver, da existência no concelho de
alguns mármores de valor. Do da Torre da Guilha, freguesia de São Domingos
de Rana, já Duarte Nunes de Leão memorava (em 1599) as qualidades dizen-
do: - «Pedra mármore vermelha, da qual ao presente se faz mais caso do que
das outras, e se busca mais para as obras de que se agora se fez uma grande ara
para a capella môr de Nossa Senhora da Graça d’esta cidade. N’estas pedras
depois de lavradas e polidas com o lustre que tem se podem ver como em
espelhos». Este mármore é tirado d’uma pedreira pertencente à propriedade
que a Casa de Camaride possue no referido sítio da Torre da Guilha. No lugar
de Manique de Baixo, freguesia de Alcabideche, há uma rica ermida, perten-
cente ao sr. Marquez das Minas, toda ella feita do referido mármore. Tem de
comprido treze metros, e de largura, côro com boa obra de talha, e o altar môr,
está entre umas lindas colimnas, da mesma pedra, de que também é o púlpito;
tudo de custosa fábrica e lavor”.
No final do Século XIX, como consequência directa da filoxera, praga que
devastou quase por completo a exploração vinícola existente em Portugal, São
Domingos de Rana assistiu a uma diminuição radical do seu número de ha-
bitantes. Directamente dependentes das enormes explorações vinícolas que
davam forma à economia local e na qual as grandes quintas imperavam, os
trabalhadores que por aqui viviam eram assalariados e não possuíam proprie-
dades suas neste local. Assim, com o colapso devastador daquela praga a des-
truir-lhes os postos de trabalho, facilmente se percebe que a mobilidade se
transformou na única possibilidade de sobrevivência e muitos dos fregueses
locais optaram por se dirigir para Lisboa em busca de ocupação e sustento,
alterando os equilíbrios demográficos e modificando radicalmente a forma
como se concretizou Portugal.
Simultaneamente, quando Fausto Figueiredo electrificou a linha férrea que
ligava Lisboa a Cascais, gerando assim um movimento que dependia da exis-
tência de mão-de-obra de apoio disponível para responder de forma célere às
inovações que permanentemente fustigavam esse projecto essencial, a popula-
ção de São Domingos de Rana voltou a crescer de forma evidente, albergando
assim, por preços muito inferiores àqueles que eram praticados nas zonas mais
37. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
36
próximas da costa e nos grandes aglomerados populacionais, todos os operá-
rios que escolheram esta freguesia onde podiam encontrar alojamento associa-
do a pedaços de terras onde praticavam a horticultura e que são essenciais para
o complemento do sustento que diariamente procuravam. Foi esta população,
recentemente chegada à freguesia, que profundamente enraizada nas dinâmi-
cas próprias destes tempos embrionários do direito do trabalho, trouxe para
o território de Cascais as primeiras formas de organização colectiva da massa
popular, recriando localmente as cooperativas e as associações que acabaram
por ser essenciais para a própria dinamização social da freguesia.
Em meados do Século XX, quando todas estas estruturas estavam devida-
mente organizadas e a funcionar de forma plena e integrada na dinâmica local,
é notório o surgimento das primeiras cooperativas que vieram definir estra-
tégias principalmente ligadas à produção de leite e seus derivados no Con-
celho de Cascais. E São Domingos de Rana, assumindo-se como o principal
alimentador da economia municipal, gerava em si própria as movimentações
necessárias para suportar este edifício de tão grande importância para o de-
vir social local. Como aspecto negativo de toda esta dinâmica, está o natural
recrudescimento dos velhos laivos da ruralidade saloia de outras eras, com o
desaparecimento das estruturas chãs das suas aldeias e a alteração radical da
paisagem dos grandes aglomerados habitacionais.
De acordo com Carlos A. Teixeira, Guilherme Cardoso e Jorge Miranda na
sua obra já referenciada sobre as imagens fotográficas da freguesia (05), foi
muito rápido este processo de alterações das raízes identitárias locais. E em
pouco mais de vinte anos, porventura os mais prósperos da História recente
de São Domingos de Rana, as velhas aldeias autossuficientes que se multipli-
cavam junto às faldas verdejantes da Serra de Sintra, foram sendo substituídas
pelas estruturas modernizadas mas desprovidas de uma identidade sentida
pelo povo, que ainda caracterizam estas terras outrora tão vividas e pujantes:
“As aldeias, de casas baixas, quadrangulares, telhados de quatro águas, onde
ainda não era raro sobressair alguma casa antiga de quinta, de andar, com bei-
rais revirados (de feição oriental), começam a ser invadidas por veraneantes;
primeiro, alugam-se as casas dos camponeses que durante este tempo passar
a viver em barracos no quintal ou em casas de pessoas de família; depois, elas
38. O OUTRO CASCAIS
37
começam a ser compradas e logo melhoradas, caiadas, rebocadas; finalmente,
inicia-se a venda de terrenos para construção. Das construções de veraneio às
permanentes, da iniciativa de empreiteiros, foi um passo: e o desaparecimen-
to das velhas aldeias e dos velhos modos de vida foi um processo acelerado.
Este pode considerar-se geral mas não simultâneo: por acasos da fortuna, una
lugarejos antecipam-se a outros, sem que para isso interferisse a posição ou
proximidade do grande centro urbano. Com os núcleos residenciais instala-se
o comércio corrente e alguns serviços; nos mais populosos, ou de maior nome
tradicional, instalam-se ou desenvolvem-se escolas secundárias; em breve se
tornam lugares de residência permanente, cada vez mais procurados e, por
isso, alastrando mais para além dos limites tradicionais. Há velhas aldeias in-
teiramente absorvidas pelas construções modernas. Sendo um dos melhores
exemplos Sassoeiros, não longe de uma das mais antigas e importantes povoa-
ções rurais do termo da cidade: São Domingos de Rana. Esta é uma evolução
contínua de pouco mais de uma vintena de anos”.
Toda esta pujança económica, assente num efectivo cunho empresarial, veio
a ser pedra angular da nova estrutura social em São Domingos de Rana. Os ac-
tivos políticos herdados dos tempos das primeiras chegadas associadas à linha
férrea, depressa evoluíram para novos modelos de coexistência, nos quais as
populações da freguesia desempenharam papel importante. Os canteiros, pe-
dreiros, cabouqueiros e afins, relacionados com a extracção e com o trabalho
da pedra, depressa se tornaram na mais pujante de todas as actividades desen-
volvidas na freguesia e a sua organização de trabalho foi exemplo que acabou
por vingar, desencadeando reacções em cadeia que se foram paulatinamente
multiplicando por toda a estrutura social concelhia. Exemplo maior desta si-
tuação, sublinhada pelos autores da obra anteriormente mencionada, é a dos
canteiros de Tires, que se organizaram de forma exemplar, ganhando prestígio
e poder de intervenção política, económica e social em São Domingos de Rana:
“A vitalidade de grupo profissional dos canteiros de Tires inscreve-se nas pági-
nas do associativismo e sindicalismo nacionais. Cedo constituíram a sai asso-
ciação de classe. Assim, encontramos referência ao centro federal dos canteiros
e cabouqueiros de Tires, que se integravam na Federação das Associações de
Classe de Lisboa e que, em 1894, contribuía para a criação da Confederação
39. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
38
Nacional das Associações de Classe. Era a então designada Associação de Clas-
se dos Canteiros e Cabouqueiros da Freguesia de São Domingos de Rana”.
Este movimento é, aliás, transversal a todo o território de São Domingos
de Rana e alastra mesmo ao espaço evolvente. É bem conhecido, porventura
por ter surgido como consequência desta organização laboral dos canteiros e
pedreiros de Rana, a greve dos tecelões de Oeiras em 1871. Este movimento
reivindicativo, resultante da organização das primeiras forças laborais e princi-
palmente do surgimento da Internacional Socialista, que havia repescado uma
parte do fulgor da revolução francesa e da experiência da comuna de Paris,
é ele próprio espelho do entendimento estabelecido entre os operários que
começavam a existir nesta região relativamente à elite que era proprietária da
terra e dos equipamentos nos quais eles trabalhavam. No caso de Oeiras, a ex-
pressividade deste fenómeno explica-se pela progressiva perda de importância
da terra na economia local. Tal como em São Domingos de Rana, o número
daqueles que trabalhavam no sector secundário começava a ser superior aos
que trabalhavam a terra e, dessa maneira, com a especialização a que tal fenó-
meno obriga, fácil se torna perceber o poder que foram ganhando na socie-
dade e a capacidade acrescida de mobilização e de reivindicação que as suas
competências acabaram por fazer brotar. Na sua obra sobre o fenómeno oei-
rense, a investigadora Ana Teixeira Gaspar atribui de forma inequívoca a essa
circunstância a explicação para a importância daquilo que por ali aconteceu.
E em São Domingos de Rana, ali mesmo ao lado, fácil se torna perceber que
a experiência adquirida a esse nível acabou por condicionar de sobremaneira
a organização do trabalho (06): “Em 1871, Oeiras deixara já de ser a bucólica
e plácida vila que, durante séculos, vivera a pendular cadência da natureza,
mercê da quase exclusiva dependência da exploração do agro. Situava-se agora
cerca do auge da sua secundarização. A industrialização avassalara, efectiva-
mente, a urge, alterando o quadro do seu viver quotidiano. Novos parâme-
tros axiológicos, modificação dos ritmos de trabalho e do sistema de relações,
afluxo populacional, aumento demográfico, expansão urbana, agravamento do
custo de vida, definem algumas das transformações estruturais por que Oeiras
passava então. Os tradicionais equilíbrios sociais periclitavam. A população
activa empregue no sector secundário crescia e aproximava-se da utilizada no
40. O OUTRO CASCAIS
39
sector primário. Oeiras era, pois, uma vila em transformação, em direcção à
modernidade”.
Em termos laborais o mesmo se passa a poente, no Concelho de Cascais.
Esta capacidade crítica dos canteiros e pedreiros de São Domingos de Rana,
bem expressa na documentação oficial e na muita pressão que a Junta Paro-
quial impõe à câmara municipal, acaba por melhorar a capacidade interventiva
destes grupos que, dessa maneira, fazem esforços de organização com o senti-
do de se unirem para reforçar a sua voz. O fenómeno, num espaço destituído
de uma identidade firme como era a freguesia naquele tempo, mercê da che-
gada maciça de novas gentes e de novos conhecimentos profissionais, plasma-
-se na organização social das várias comunidades, explicando assim muita da
pujança ao nível associativo que São Domingos de Rana conheceu nessa altura
e que se mantém até à actualidade.
E se em termos laborais os resultados desta dinâmica são inequívocos, mais o
são ainda quando nos debruçamos sobre a vertente cultural. Até porque, mercê
do seu empenho e do muito trabalho dedicado a explorar de forma conveniente
os recursos riquíssimos que existiam na freguesia, os seus habitantes ganharam a
capacidade de prosperar. Quando assim acontece, aumentando o tempo livre e a
possibilidade de fruir convenientemente do espaço que nos envolve e da própria
vida, natural se torna o surgimento de uma série de formas de associação que
promovam o convívio e a troca de experiências entre aqueles que por ali andam.
Num interessante artigo publicado nos anos 50 do Século XX no Jornal a Nossa
Terra, é notória a proliferação do número de associações e sociedades desporti-
vas, culturais ou de benemerência que se multiplicam de forma exponencial em
São Domingos de Rana: “Destaque-se, e por aqui se avalie a civilidade da gente
local, o bom acolhimento com que ela envolve o movimento associativo que,
como pelo resto do concelho, alastra quase febrilmente. São Domingos, Abóbo-
da, Caparide, Matos Cheirinhos, Rana, Tires, Trajouce e Talaíde possuem socie-
dades culturais e recreativas, na sua maioria instaladas em construções de muito
bom gosto. Nesta última localidade merece-nos especial atenção o «Grupo de
Solidariedade e Instrução Musical», pelos fins beneméritos que o prestigiam.
Também o «Operário Futebol Clube de Talaíde», ainda em formação, mas já
acreditado em face da boa-vontade e do bairrismo dos seus actuais presidentes,
41. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
40
srs. Veríssimo Herculano Duarte e Carlos Fernando de Bastos Sabido, tem cap-
tado as simpatias da terra”. E mais adiante, numa peça que em tudo corrobora
aquilo que em São Domingos de Rana ainda hoje transparece, uma menção
directa à forma como toda a organização social e o dinamismo da sociedade civil
de São Domingos de Rana contribui de forma inestimável para tonar mais ape-
lativas aquelas aldeias que se vão enchendo de novas gentes: “É este o exemplo
máximo que estas modestas povoações, de modestas gentes, podem orgulhosa-
mente arvorar, revestindo, mercê dos seus nobres sentimentos, folguedos vulga-
res, quase diríamos supérfluos, de uma utilidade social que constitui – queremos
estar certos – o imã que arrebata a simpatia das multidões”. E termina dizendo:
“Uma pequena análise sobre as actividades presentes em São Domingos de Rana
convence-nos da marcha segura que as anima”.
Numa vertente mais política, que deriva naturalmente da força que nasce
com a organização destas estruturas locais, multiplicando o poder através da
união de todos os participantes na grande obra por eles iniciada, encontramos
em São Domingos de Rana muitos indícios da participação, principalmente
junto dos grupos especializados daqueles que trabalhavam a pedra, de organi-
zações que extravasam os limites municipais. Tal situação se vê, por exemplo,
durante o processo de implantação da república em Cascais e, principalmente,
na forma como as estruturas locais se dirigem aos poderes instituídos, com exi-
gências variadas que denotam a já referida organização mas, também, um espí-
rito crítico muito bem estruturado. Esta verdadeira iniciação que os grupos de
pedreiros exigem no espaço da actual freguesia de São Domingos de Rana visa,
em primeira linha, garantir que existe conhecimento técnico que salvaguarde a
qualidade do seu trabalho mas, por outro lado, que desse processo resulte uma
união de forças eficaz e com capacidade de intervir na vida política e social de
Cascais e de Portugal. Manuel van Hoof Ribeiro, num dos seus trabalhos sobre
o conhecimento iniciático e a ordem maçónica (07) refere que a “iniciação não
se propunha exclusivamente como exame de potencialidade futura, mas como
prova de trabalho executado, e de atitudes profissionais já assumidas. Era por
parte do recipendiário também um desejo manifesto de perfeição, mas prin-
cipalmente o exame a que se submetia como profissional que deseja conhecer
novas técnicas (segredos) para chegar a ser mais perfeito”.
42. O OUTRO CASCAIS
41
Este fenómeno, que explica, de alguma maneira, a estrutura cívica e social
de São Domingos de Rana, é expressivamente linear na forma como se vai
adaptando aos vários momentos da história, possuindo um real impacto nas
grandes decisões que são tomadas a nível local e que dão corpo à própria sig-
nificação do que foi a permanente organização popular da freguesia.
Como refere João Miguel Henriques (03) na já referida obra que coordenou
no âmbito das comemorações oficiais do 650º aniversário da autonomia de
Cascais, o impacto do trabalho da pedra, exigindo especialização e conheci-
mentos técnicos, teve redobrada importância em resultado da dependência
que a agricultura sentia relativamente à água e, a partir do Século XIX, ao
impacto destruidor que a filoxera impôs às vinhas. Mas, mesmo assim, até
o trabalho da pedra conheceu momentos menos bons, sobretudo quando a
mecanização veio tornar obsoletas muitas das velhas técnicas utilizadas, mas-
sificando as rotinas e dando forma à avassaladora voragem das construções de
betão que vieram destruir a homogeneidade saloia da antiga Freguesia de São
Domingos de Rana. Diz o ilustre historiador que “a figura do canteiro, que José
Sabido descreve como «a pessoa que trabalha a pedra em todas as suas verten-
tes», tenderia a desaparecer mercê da mecanização, do paulatino esgotamento
das pedreiras e, por fim, em função do surto urbanístico das localidades men-
cionadas, a que adiante nos referiremos. Longe está, assim, o tempo em que,
como recorda, «a execução das cantarias era feita manualmente com a ajuda
da maceta, escopros de dentes ou lisos, ponteiros, picões, escodas de dentes
ou lisas, bojardões e bojardas»”.
Com ocupação humana ininterrupta desde o Paleolítico até à actualidade,
o território actualmente incluído na área de jurisdição da Freguesia de São
Domingos de Rana apresenta assim uma variedade de testemunhos que nos
permitem compreender como foram evoluindo as diversas realidades. Trans-
versais, na forma como actuam perante os grupos humanos que ali chegam
despertando-lhes o interesse em por ali ficarem, são os recursos que sempre
caracterizaram aquele espaço. A fertilidade do solo e a abundância de nascen-
tes de água, produzindo uma paisagem onde a caça e a agricultura garantiam
um bem-estar difícil de encontrar noutros lados, gerava na população uma
sensação de segurança que ao longo de várias eras lhes foi permitindo dedicar
43. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
42
uma parte do seu tempo livre para aprofundar os conhecimentos relacionados
com o espaço onde habitavam.
Como referem Guilherme Cardoso e José d’Encarnação, a população que
habitava este território desde tempos imemoráveis era activa e culta, tendo
sido capaz de desenvolver formas de vida coesas e produtivas que garantiram
bem-estar e prosperidade aproveitando os recursos excelentes que o meio am-
biente lhes propiciava. Terá sido essa a razão, aliás, que explica a bem conse-
guida romanização do espaço, com os recém-chegados romanos a integrarem-
-se em pleno nas estruturas que já por aqui existiam: “Não houve hiatos desde
a época pré-histórica até ao período romano, como não os haverá depois. E
se abundam informações de textos histórico-literários sobre as características
desta região – entre o promontório de Ofiússa (Cabo da Roca) e a ampla baía
que o antecede a Sul, de difícil navegação com um só vento, como escreve
Avieno – e os povos que a habitavam (Cempsos e Sefes, diz-se), as escavações
arqueológicas dão-nos conta de uma população activa e culta, que certamente
ainda conviveu com os colonos romanos recém-chegados”.
Os mesmos autores, numa primeira abordagem àquela que virá a ser a “Car-
ta Arqueológica de Cascais”, publicada já nos anos 90 do século passado por
Guilherme Cardoso, referem, num artigo inserido no número 5 do Arquivo de
Cascais (08) um interessante achado arqueológico identificado pelo geólogo
João Cardoso em Manique de Baixo, perto do Colégio Salesiano. Era uma me-
dalha de fíbula, em bronze, totalmente descontextualizada arqueologicamente
que nos comprova essa linearidade cronológica, mostrando que o actual terri-
tório de São Domingos de Rana foi sempre local privilegiado de assentamen-
to das várias comunidades humanas que em todas as eras aqui procuraram
um espaço com conforto, segurança e prosperidade para fazerem o seu lar. O
achado é descrito pelos autores desta maneira: “Tem representado em baixo-
-relevo um veado, de frente com a cruz brilhando no entremeio das hastes.
Corre na orla um cinturão, com uma fivela em baixo, servindo de campo à
legenda: «NEMZETY YÂDASZATI VÉDEGYLET»”, numa ponte muito inte-
ressante entre os vestígios Paleolíticos encontrados em Trajouce e em Polima;
com os achados Neolíticos da Pedreira de Polima e de Freiria; com a expressiva
ocupação romana em Caparide, Casal do Clérigo, Freiria e Miroiços; e com a
44. O OUTRO CASCAIS
43
imensa e muito pujante ocupação humana transversal ao tempo encontrada
nas estratigrafias de cada um destes locais.
A transversalidade da ocupação humana neste território, comprovada de
sobremaneira através dos muitos achados arqueológicos encontrados na fre-
guesia, é assim uma realidade que se impõe, sobretudo se pensarmos que as
actuais fronteiras de São Domingos de Rana se mantiveram estáveis durante
muitos séculos e que, em virtude disso, foi a força, a determinação e a vontade
das gentes aquilo que definiu com rigor os destinos que progressivamente se
foram impondo à comunidade.
No ano de 1964, quando Cascais comemorava os 600 anos da sua autono-
mia, Ferreira de Andrade publicava a sua obra-prima “Cascais Vila da Corte”
(09), na qual abordava centenas de episódios e de histórias que dão forma à
História de Cascais.
Nessa obra, repositório integral daquilo que era a percepção vivida nessa
época em relação ao Concelho, o investigador publica igualmente várias infor-
mações acerca da realidade municipal. No que ao número de fogos diz respei-
to, é notória a informação que dá conta de ser a freguesia de São Domingos de
Rana aquela que tem mais população e, sobretudo, a de ela estar distribuída
de maneira universal sobre o espaço, em linha com aquilo que eram as carac-
terísticas morfológicas que o território apresentava então:
45. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
44
FOGOS EM SÃO DOMINGOS DE RANA EM 1964
Abóboda................................ 546
Caparide................................ 555
Conceição da Abóboda............ 68
Matarraque.............................. 66
Matos Cheirinhos.................. 173
Outeiro de Polima.................. 156
Penedo................................... 343
Polima................................... 144
Quenena.................................. 57
Rana.................................... 1049
Rebelva.................................. 318
Ribeira das Parreiras................ 20
São Domingos de Rana........ 1132
Talaíde................................... 314
Tires.................................... 1887
Trajouce................................. 488
Zambujal............................... 830
Isolados................................. 177
A simbologia relacionada com o trabalho da pedra é importante de sobre-
maneira no entendimento daquilo que foram as principais dinâmicas definido-
res do crescimento e afirmação da identidade local em São Domingos de Rana.
Nas suas formulações mais simples e abstractas, como também nas estruturas
mais eruditas e exigentes, a génese desta linguagem é transversal a toda a co-
munidade, fornecendo importantes informações acerca da forma como a or-
ganização do espaço se torna determinante na configuração social que suporta
a vida numa determinada região. A necessidade de conhecimentos técnicos
muito elaborados para a correcta extracção e manuseamento da pedra, exigem
a criação de uma estrutura que garanta a correcta passagem desse saber. E, se
nalguns momentos e em estruturas de carácter chão, essa sabedoria se reveste
de aspectos muito pragmáticos, identificando e traduzindo os pequenos gestos
46. O OUTRO CASCAIS
45
e detalhes da vida quotidiana, noutros, porventura naqueles que se prendem
com a ritualística e com o culto religioso, a necessidade de colocar na pedra
uma série de gestos repetidos geracionalmente, como se de uma prática con-
suetudinária se tratasse, torna-se essencial para que a forma nascente consagre
a estrutura de pensamento que a acompanha.
Acontece, por exemplo, na forma como a decoração pétrea se transforma
no eixo basilar dessa comunicação, traduzindo simbolicamente conhecimento
e mensagens que são relevantes para a componente pedagógica de cada sinal.
Em São Domingos de Rana, como noutras partes do Concelho de Cascais e
em Portugal, de uma forma mais geral, as confrarias de Mestres Construtores
garantem o cumprimento desse desiderato e, controlando de forma sistemática
o acesso a essa sabedoria simbólica que ajuda a definir os espaços, controlam
igualmente o impacto social e político que cada nova construção tem sobre o
crescimento consolidado da comunidade. Em São Domingos de Rana, nas suas
expressões mais simples, a expressão simbólica do martelo, ferramenta essen-
cial nas mãos do canteiro, surge normalmente associada a outros símbolos
relacionados com o sofrimento que acompanhou a morte física de Jesus Cristo.
Porque os cilícios que lhe flagelaram a carne, símbolo maior da sua humani-
dade plena, acompanham nos últimos passos a colocação dos pregos que lhe
sustentam o corpo na subida à cruz salvífica onde morreu. Porque a morte e
a vida, depostas perante a comunidade impreparada, são expressões maiores
do nascimento e da morte que sustenta o edifício vital que todos conhecem. E,
dessa maneira, a identificação faz-se directamente na forma como esses sinais
se expressam e plasmam na vida pessoal de cada um.
Do outro lado, os instrumentos que constroem, ou sejam, aqueles que con-
trastam com os instrumentos de suplício. A sua função libertadora, no xadrez a
preto e banco que determina a dualidade da própria vida, são parte integrante
do ideário dos Mestres Construtores de São Domingos de Rana. E se no templo
principal da freguesia, o terceiro olho, ou seja, a visão elementar que permi-
te ver a Deus, assume posição determinante no frontal da Igreja, também lá
dentro a nave central se ilumina a parte deste complexo tríptico de janelas que
abrem para Sul os acessos à luz redentora de Cristo que ilumina a sabedoria de
quem por ali vai rezando.
47. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
46
A ressurreição de Jesus Cristo ao terceiro dia, como se Pai e Filho se con-
jugassem de forma integral na ideia contida na expressão maior do Espírito-
-Santo, acompanha aqui a simbologia distinta de quem fez a actual Freguesia
de São Domingos de Rana. Até porque no espaço interno do templo, é na
sucessão da arcaria, marcando as capelas laterais, que encontramos a alusão
maior ao caminho de Fé e resignação que a componente pedagógica de quem
preparou este espaço pretendia concretizar. Essencial, nesta forma de exprimir
e partilhar a sabedoria ancestral por quem está apto para a receber, as duas
pias de água benta colocadas à entrada do templo. Obras-primas da canta-
ria Cascalense, esculpidas num único bloco de pedra, são autênticos pórticos
que simbolizam a limpeza espiritual necessária para se poder aspirar a entrar
de forma condigna e partilhar o Mistério que a cada canto e recanto cumpre
expressar. No Altar-Mor lá estão as colunas que sustentam todo o edifício,
sublinhando a importância estrutural do saber enquanto ponto axial para a
definição da ritualística que faz crescer a humanidade. Na “Ceia do Senhor” a
pintura de Pedro Alexandrino que decora este espaço maior do templo de São
Domingos de Rana, os braços abertos do Mestre abarcam toda a comunidade,
porque Mestre e Discípulos, na amplitude maior que deriva do carácter eterno
e infinito da espiritualidade, são parte integrante dessa visão unificada que os
canteiros eruditos de São Domingos de Rana souberam expressar.
A força expande-se em permanência através da simbologia associada a estes
espaços de oração e Fé. O triângulo sagrado que o colherim iniciático sou-
be criar, é sinal pungente de um caminho determinado em direcção ao Pai.
Apesar das vicissitudes impostas pela História, determinando momentos de
destruição que subverteram de forma evidente a complexidade sapiente que se
expressava (ou deveria ter expressado) nas cantarias marcantes de São Domin-
gos de Rana, sobreviveu o esboço do desenho de Pedro Alexandrino que Au-
gusto Abreu Nunes encontrou e depositou no Museu Nacional de Arte Antiga.
Nele, a instituição do Santo Rosário deveria fechar a cúpula celeste do templo,
numa alusão assumidamente laica à génese Mariana da ritualística local. Até
porque a Mãe terrena de Deus, Concebida sem o pecado original, é Ela própria
a escadaria que a comunidade utiliza para chegar ao céu. A Scala Coeli, com
os seus sete degraus sagrados são peça essencial na estratégia definida pelos
48. O OUTRO CASCAIS
47
Mestres Canteiros para dar significado ao seu trabalho. O Santíssimo Rosário,
que Nossa Senhora instituiu e que Pedro Alexandrino pintou no já demolido
tecto da Igreja de São Domingos de Rana, é ele próprio caminho sagrado,
assumindo-se na repetição melancólica das várias orações que o compõem,
como instrumento gerador da música celeste que consagra os espaços e san-
tifica quem a profere. O mais interessante, num elemento que reforça ainda
mais a importância da sabedoria expressa na pedra pelos Mestres Canteiros
de São Domingos de Rana, é que esse elemento está visceralmente presente
em todos os blocos iniciáticos de todos os credos e religiões, sendo sempre a
forma maior de acesso à totalidade divina que sobrevive dentro de cada um de
nós. Do Budismo ao Islão, passando pelos cultos anímicos de Timor ou pela
ritualística andrógina dos aborígenes australianos, a escadaria em direcção ao
céu é elemento transversal e porventura indispensável para o encetar da via-
gem que todos estamos condenados a empreender no final da nossa jornada
de sangue, suor e lágrimas que o Mundo nos oferece. Cada degrau, facultando
a possibilidade de alargar horizontes, nos dá a amplitude e a escala que nos
permite entender de forma significante a paisagem que dali vamos obter. Por-
que embora o que está em cima seja sempre absolutamente igual ao que está
em baixo, o significado de cada uma das partes anula o seu contrário gerando
o vazio necessário para que o Espírito alcance a glória total que nasce do vazio
infinito que a divindade tem de ter.
O peso da simbologia, que assume importância determinante e quase sem-
pre muito discreta na vida das comunidades, é especialmente visível nos deta-
lhes que são concebidos para serem pressentidos por parte de quem por eles
passa. Os pormenores decorativos e, principalmente o requinte das pequenas
peças que aparentemente não têm funcionalidade alguma, acompanham nor-
malmente uma mensagem que se torna mais firme à medida em que as várias
gerações que por elas vão passando a observam, interiorizam e interpretam.
Dizíamos há já uns anos, numa publicação dedicada à simbologia de Cas-
cais que a Academia de Letras e Artes trouxe a público (10) que tratar deste
tema pressupõe o assumir de um duplo risco: por um lado, o de nos furtar-
mos aos cânones impostos pelas máquinas que vivem de uma interpretação
linear da cultura e de Portugal; e, por outro, o risco sempre presente de uma
49. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
48
interpretação politicamente incorrecta que carregue consigo o ónus do não
parecer bem a quem a lê. Ambas, é certo, aprofundando o risco de acelerarem
discussões polémicas mas inócuas em torno deste tema e, no que à academia
diz respeito, de aligeirarem as premissas que nos permitem intervir de forma
cabal nos fluxos extraordinários que dão forma à Identidade Municipal. Até
porque, como temos visto no que a São Domingos de Rana diz respeito, a ge-
neralidade vocacional de Cascais absorve de forma evidente os laivos maiores
de cada uma destas peças simbólicas que efectivamente acabam por ter um
impacto extraordinário naquilo que são, naquilo que pensam e na forma como
vivem todos os cascalenses.
Na generalidade do território municipal de Cascais, são as linhas de água que
conduzem este veículo propulsor da cultura identitária. Essencial à vida, marca
de forma indelével as escolhas relativamente aos locais onde conhecemos os pri-
meiros assentamentos humanos e, na actual freguesia de São Domingos de Rana,
esses mananciais são efectivamente as veias que dão forma ao corpo e à vida
dos fregueses locais. Desta maneira, assume especial importância esta temática
simbólica, que assim explica a devoção maior a Nossa Senhora da Conceição, na
perspectiva cristã, mas que repesca formas anteriores de pensamento comunitá-
rio. As linhas de água, serpenteando pela paisagem, contornando os montes e os
cerros que se enchiam no traço verdejante dos cereais, mesclando a vida quoti-
diana com a interpretação espiritual que o Homem sempre faz relativamente aos
aspectos que não compreende e que são essenciais à sua vida e ao seu bem-estar
dinâmico. Assim, estudar a vivência simbólica de um determinado espaço ou de
um dado grupo de pessoas, mais do que através da documentação escrita, faz-se
necessariamente através da utilização dos símbolos e das pistas que surgem plas-
mados numa determinada realidade cultural.
Na maravilhosa História da Água em Cascais que Guilherme Cardoso e José
d’Encarnação publicaram em 1995 a pedido dos então Serviços Municipaliza-
dos de Água e Saneamento de Cascais (11), explica-se de forma muito prag-
mática a intervenção que a água tem na definição da estrutura de pensamento
de uma comunidade. Para além do seu valor simbólico, porque para além de
ser essencial à vida, a água possui propriedades que têm impacto no dia-a-dia
da humanidade, ela é igualmente associada a diversas práticas religiosas que os
50. O OUTRO CASCAIS
49
dois conceituados autores não se acanham de descrever: “Não será decerto exa-
gero afirmar que fazer a história da água é fazer a história de uma região. Pri-
meiro, porque a água constitui – bem no sabemos – algo de essencial. Depois,
porque nela se reflectem e dela promanam questões económicas, políticas,
sociais, religiosas. Sim, religiosas – pois à água desde sempre foram atribuídas
virtudes sobrenaturais. Quer porque, na verdade, beber determinada água em
determinada circunstância trazia inesperado bem-estar; quer porque o manto
divinizante esconjurava conspurcatórias veleidades, susceptíveis de acarretar
maleitas a toda uma comunidade indefesa. O divino, um escudo protector!”
Por isso, aqui na Freguesia de São Domingos de Rana, é na interpretação da
forma como a água impacta no território que encontramos as cores, as formas
e os sons que definem a sua sempre arbitrária identidade local, que nos per-
mite desvendar a maior parte das informações de que necessitamos para ler o
quadro geral que mostra a sua sempre complexa realidade social. A simbologia
social de um lugar, mais do que a soma dos detalhes que vão ficando de gera-
ção em geração nas casas, nas ruas e nos monumentos, é a interpretação que
deles fazemos e que, para grande desespero daqueles que estão presos pelas
amarras da academia e da versão mais linear da própria ciência, se transmuta
de acordo com a perspectiva, com o olhar e com a luz que os ilumina em de-
terminado momento.
Neste território, muito condicionado pelas vicissitudes da natureza da qual
dependia o viço da produção agrícola e, por extensão, a maior ou menor ca-
pacidade de viver bem, assumem especial importância as abordagens simbó-
licas relativas ao contraste que resulta da proximidade ao mar e à Serra de
Sintra. São Domingos de Rana, mais do que qualquer outra das freguesias
do Concelho de Cascais, está compartimentada entre o acidente artificial da
auto-estrada, que literalmente divide o território em duas metades e que ao
longo dos anos determinaram graus de atenção diferentes pelos diversos po-
deres políticos que governaram o Concelho, e as penhas verdejantes da serra
que condiciona a paisagem e o clima. Procurar conhecê-los e interpretá-los,
porque a própria natureza se encarrega de enviar sinais que nos permitem
perceber o seu ensejo, é assim tarefa essencial quando queremos planificar o
pragmatismo do quotidiano.
51. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
50
E a manipulação dessa realidade, aspiração permanente do Homem desde
os primórdios da sua existência, é factor de primeira importância no entendi-
mento que temos das sempre ambíguas descontinuidades que caracterizam
a nossa História recente. Nascem daí os modelos organizados de intervenção
nessa realidade e, com a evolução dos tempos e dos conhecimentos, gera-se
um quadro geral de entendimento sobre as formas mais adequadas para agir
em prol de uma boa reposta por parte do meio. Os ritos e os rituais, expressão
viva dessa forma de interagir e de marcar o devir quotidiano, fluem assim na-
turalmente, instituindo-se como peça imprescindível para garantir o bem-estar
geral da comunidade onde se inserem. Daí até à especialização de grupos den-
tro da comunidade que, mercê dos seus conhecimentos adquirem capacidades
acrescidas para lidar com os problemas; e desses até à criação de espaços es-
pecialmente concebidos para esse mesmo efeito, vai um passo fugaz e rápido,
que define a organização do território e das suas gentes.
As devoções rituais, respostas perenes a estes problemas, estão geralmente
circunscritas e um território específico, pretensamente dotados de caracterís-
ticas especiais que explicam a ponte que liga os cidadãos e uma realidade
benfazeja. Chegamos desta forma às pequenas ermidas situadas em locais lon-
gínquos e propícios à interiorização espiritual que é essencial para o encontrar
das respostas aos problemas que a vida nos vai trazendo. E o mesmo se passa
nas vetustas capelas das aldeias e dessas às grandes igrejas e templos.
São Domingos de Rana constrói-se assim, organizado a partir destas referên-
cias e desenvolvendo-as de forma a adquirir competências próprias que lhes
permitem influir no sistema. Cada espaço sagrado, conjugado com a sacrali-
dade humana daqueles que neles vivem ou trabalham por terem adquirido
conhecimento especial (ou por terem uma especial capacidade de interpretar
os fenómenos e a natureza), torna-se assim numa espécie de eixo ao longo do
qual se definem os padrões da ocupação humana e as práticas pragmáticas do
dia-a-dia que fazem parte da vida de cada um dos cidadãos que nele procura
responder de forma cabal aos desafios com que o destino os bafeja.
Na aldeia do Zambujal, situada junto à Ribeira das Marianas, encontramos
um excelente exemplo da forma como o natural desenvolvimento dos primei-
ros assentamentos humanos acabou por não ser decisivo na forma como a
52. O OUTRO CASCAIS
51
localidade evoluiu. O conceito de desurbanização encontra aqui um dos seus
expoentes mais elevados, no sentido em que a quase totalidade dos vestígios
da sua ocupação ancestral profundamente ligada à terra e à agricultura, foram
engolidos literalmente pelas ondas sucessivas de cimento. As ruas, outrora
marcadas pelo ritmo sempre pacato das carroças de bois, foram-se progressi-
vamente transformando em vias suburbanas definidas pelo excesso de tráfego
automóvel e as casas, a grande maioria de características chãs na sua humilde
origem hortícola, foram substituídas rapidamente por bairros de auto-cons-
trução.
Os velhos palheiros, teimosamente sobrevivendo no meio das casas novas
que os vão engolindo sucessivamente, já não guardam os cereais que outrora
eram enviados para o moinho situado no topo da localidade, até porque os
campos lavrados que envolviam a aldeia, quase todos com solos de primeira
qualidade agrícola, já foram também cobertos com edifícios, oficinas e casas
que destruíram a sua aptidão.
E infelizmente, porque até à entrada em vigor no actual PDM este tipo de es-
paços estava completamente desprotegido ao nível do seu património rural, o
caso do Zambujal não é único na Freguesia de São Domingos de Rana nem tão
pouco na área de influência do território municipal. O regime de minifúndio
que sempre caracterizou aquelas localidades, subsistindo através de uma eco-
nomia de mercado que assentava no parcelamento da terra e numa multiplici-
dade de pequenas quintas e courelas que não permitiam aos seus proprietários
grandes ensejos de enriquecer, impôs um registo de humilde remediamento
que teve como principal consequência a menor influência política e social por
parte daqueles que ali habitavam.
Em Matos Cheirinhos, por exemplo, a situação é idêntica àquela que encon-
tramos no Zambujal. Os velhos campos de lavoura, marcados pelo carácter úbe-
re da terra, foram quase totalmente substituídos pelos bairros incaracterísticos
que a auto-construção impôs. E em cada arruamento, misturando estilos, cores e
linguagens arquitectónicas diferentes, encontramos hoje um desafio imenso que
resulta de uma evidente e muito preocupante anomia social vigente.
O topónimo Matos Cheirinhos, remetendo-nos oniricamente para as terras
aromatizadas com o perfume intenso das estevas ou com o aroma ambíguo
53. JOÃO ANÍBAL HENRIQUES
52
das urzes, é ele próprio um engano, porque de acordo com o etnólogo Leite
de Vasconcelos, a raiz do topónimo provém da palavra chaneirinhos (ou chão-
zinhos) ou seja, remetendo-nos para essa mesma realidade empobrecida do
parcelamento das propriedades e para a singeleza da sua produção tal como
atrás apontámos.
No mesmo erro incorre quem, procurando nas palavras que caracterizam os
espaços os sinais que lhe permitiram desconstruir a história de cada localida-
de, atribui ao topónimo de Quenena uma ligação à enorme vila com o mesmo
nome existente em terras de Espanha. De acordo com J. Diogo Correia, na sua
obra de referência atrás referida (12), o topónimo Quenena nada tem a ver
com a sua congénere espanhola, até porque a antiguidade da aldeia de São
Domingos de Rana é substancialmente maior do que aquela que caracteriza
a outra. A explicação de acordo com este especialista, prende-se com uma
derivação da palavra canena, ou seja, um adjectivo que significa ‘pequena’ ou
‘somítica’. Mas não podendo provar esta proveniência, fica-se por uma ilustre
suposição que em si própria nos acrescenta dados relativamente às origens
ancestrais desta localidade.
No caso em apreço, com uma situação geográfica ímpar encostada à Ribeira
da Laje, Quenena foi, durante muitos séculos uma das referências urbanas de
Cascais. Tendo sido apontada com uma das aldeias que forneceu dados para o
primeiro grande numeramento de 1527, o certo é que provavelmente como re-
sultado da imensa pujança empreendedora que caracterizou a vizinha Talaíde,
Quenena se manteve sempre com as suas reduzidas dimensões, encostada ao
morro onde mais tarde se virá a instalar a velha lixeira a céu aberto, e perdida
na estrada que ligava a sede do concelho ao vizinho município de Oeiras. As
suas velhas casas de características rústicas, formando um aglomerado perfei-
tamente integrado na paisagem e que reduzia a uma espécie de cenário idílico
os seus muros tradicionais de pedra solta que marcavam a paisagem, manti-
veram-se incólumes durante muitos anos, preservando as memórias de um
possível casal saloio de origens medievais ou mesmo, dado o que conhecemos
para a sua envolvência, a origem romana do povoado. Ali mesmo, junto aos
dois chafarizes municipais que encantam aqueles que ousam sair da estrada
principal e explorar este recanto encantado de Cascais, estão ainda os vestígios
54. O OUTRO CASCAIS
53
maiores desse encantamento que se perdeu, basicamente porque Quenena, ao
longo dos anos que acompanharam o surto urbano que encheu o território de
Cascais de construções clandestinas, se viu envolvido pela amálgama caótica
das casas de auto-construção. Com o acrescento da lixeira, que deturpou ainda
mais o registo original, o certo é que airosa aldeia de outros tempos foi per-
dendo o carácter e a esperança ao mesmo tempo que as suas memórias se iam
esbatendo ao sabor das intempéries que amiúde fustigam aquele local.
Nos anos 70 do Século XX, Quenena multiplicou várias vezes a sua popula-
ção. E, já sem as referências sadias que lhe marcaram o destino recente, as ruas
cruzaram-se sem regras e o local transformou-se rapidamente numa espécie de
depósito de entulho fustigado de forma permanente pelos lixos que permanen-
temente por ali esvoaçavam e lhes cobriam o chão. Para agravar a situação, a ve-
lha lixeira, permanentemente em risco de atingir o seu ponto de ruptura, havia
sido construída em atropelo completo às regras mais básicas de urbanismo, per-
mitindo que as lixívias e os líquidos putrefactos que escorriam das deposições, se
infiltrassem na terra e, por força da gravidade, descessem à localidade tingindo
de negro as paredes das casas e pondo em causa a salubridade da povoação.
Os habitantes de Quenena que resistiram à debandada sofreram de forma
premente com esta situação. E em 1997, quando o executivo municipal de então
aprovou o primeiro Plano Director Municipal (13), eis que a estupefacção de to-
dos se instala quando o documento caracteriza Quenena como sendo um bairro
de génese ilegal! Daí até à degradação foi um passo muito rápido e aquela que
ainda há pouco tempo era considerada uma das mais bonitas aldeias do Conce-
lho de Cascais, assumiu-se numa clandestinidade que não era sua, de forma a
lutar pela dignidade que aquele espaço e os seus habitantes sempre mereceram.
No coração da freguesia, junto ao eixo que ligava as villas romanas de Frei-
ria e do Outeiro de Polima à centralidade de Tires e, daí, ao porto natural si-
tuado na Baía de Cascais, a Abóboda é outras das localidades de São Domingos
de Rana que merece uma especial atenção.
A sua História, tão longa quanto a própria presença da humanidade neste
território é, com as povoações circunvizinhas, profundamente dependente da
natureza e da qualidade fértil das suas terras. Milenarmente, sempre em as-
sociação directa com os ciclos da natureza, Abóboda construiu-se a partir da
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forma como as comunidades que a foram habitando geriam os recursos que a
natureza lhes oferecia, rentabilizando o saber passado de geração em geração
em favor de ciclos produtivos que gerassem excedentes e que, dessa maneira,
propiciassem o acesso aos mercados.
Saloia na sua origem histórica, essa personalidade vincada surge transver-
salmente em todos os exemplares da sua vivência urbanística. As casas, as ruas
e os monumentos, misturando a complexidade associada aos muitos contactos
que os habitantes sempre tiveram com outros povos e civilizações por via do
estabelecimento de trocas comerciais com a singeleza própria de uma fórmu-
la arquitectónica de cunho simples e funcional, geram um cenário pleno de
bucolismo que regista o viver pacífico e linear dos seus habitantes. Durante
muitos séculos, porventura durante milénios, a realidade da Abóboda consoli-
dou-se a partir deste binómio formado pela capacidade de produção agrícola e
hortícola local e pelo saber acumulado pelas várias gerações, que assim permi-
tia a obtenção do retorno necessário ao esforço comunitário.
Nas plantas datadas do início do Século XX que estão no Arquivo Histórico
Municipal de Cascais podemos ver que essa singeleza na traça e no estilo era
ainda acompanhada pelo carácter embrionário do núcleo histórico consolida-
do. As poucas casas que ali existiam, organizadas de forma linear em torno do
seu chafariz e do tanque comunitário, estavam completamente envolvidas por
explorações agrícolas que, na realidade efectiva dos moradores, mais não eram
do que pequenas courelas que serviam basicamente para garantir a auto-sufi-
ciência alimentar dos seus proprietários.
É esta realidade, assente no progressivo e permanente parcelamento da
terra, que vai diminuindo a capacidade de produção local, e que explica, a
partir de meados do Século XX, o desvincular desta ancestral matriz agríco-
la e uma tendência de cunho industrial que paulatinamente vai destruindo
a velha aldeia e desvirtuando as suas nobres raízes. Esta amálgama de usos,
com oficinas automóveis a dividir as paredes com casas de auto-construção e
pequenas indústrias das mais variadas índoles, concorreu de forma evidente
para a degradação ambiental e social da localidade, impondo o colapso nos
sistemas de drenagem das ruas, nos esgotos domésticos, na rede viária, etc.
Aos poucos, as paisagens idílicas que outrora enchiam de encanto os cenários