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mata
de
lobos
so
bra
di
llo
Cadernos
do Património
3
2 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
Os Cadernos do Património vão ganhando escala. Este terceiro número
será mais uma peça na longa cadeia que se pretende construir, haja força,
beleza e sabedoria para continuar este importante trabalho de valorização
do território raiano.
Considerando que o meu mandato, enquanto presidente da RIBACVDANA,
terminará no final do presente ano, aqui fica o meu agradecimento públi-
co a todos aqueles que ajudaram esta ASSOCIAÇÃO DE FRONTEIRA PARA O
DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO a crescer. E, quando, uma vez mais, aqui,
celebramos a edição de um novo número dos Cadernos do Património, gos-
taria de singularizar esses agradecimentos a quem coordenou a sua edição,
a quem concebeu e desenhou os cadernos, a quem reviu os textos vezes
sem conta e preparou os ficheiros para impressão, e sobretudo distinguir
todos os articulistas e fotógrafos participantes, num trabalho voluntarioso
e pro-bono, sem os quais os Cadernos do Património não teriam sido pos-
síveis com a qualidade que todos reconhecem.
Cadernos do Património 3
– editorial
António Sá Gué
PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DA RIBACVDANA
so
bra
di
llo
mata de lobos
4 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
E os agradecimentos que se impõem às diferentes entidades e pessoas
anónimas que contribuíram para que as jornadas em Mata de Lobos e So-
bradillo decorressem da melhor forma. À Câmara Municipal de Figueira de
CasteloRodrigo,àJuntadeFreguesiadeMatadeLobos eaoAyuntamiento
de Sobradillo, por todo o apoio prestado. Aos “Caminheiros do Águeda” que
nos acompanharam e fizeram a visita guiada à Mata de Lobos, aos “Territó-
rios do Côa” – Associação de Desenvolvimento Regional e ao Parque Natu-
ral Arribes del Duero, e à sua Casa em Sobradillo.
E seria imperdoável se não fosse referida a Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), particularmente, a Dr.ª Lídia
Martins que está ligada aos nossos projectos e trabalhos desde o princípio
e foi quem sempre nos acompanhou no terreno e incentivou a continuar.
Este número conjuga comunicações que foram apresentadas em duas ac-
ções desenvolvidas desde o ano passado: o “3.º Encontro Transfronteiriço
entre Mata de Lobos e Sobradillo”, em Setembro de 2022, e as “2.ªs Con-
versas da Raia”, em Escalhão, em Maio de 2023.
Carlos Vicente trouxe-nos o ciclo do pão, e deu a conhecer como era esse
ciclo na Mata de Lobos e em toda a região de Ribacôa, bem como aspec-
tos etnográficos e linguísticos desta importante actividade da humanidade,
que nos salvou da fome ao longo dos milénios da nossa existência.
Carlos Caetano, enquanto historiador de arte, uma primeira abordagem da
actual Igreja Matriz da Mata de Lobos, bem como das ermidas de Santa
Marinha, de Santo Antão e do Senhor Santo Cristo, alertando sempre para
o valor patrimonial que as suas paredes encerram, tanto no que é visível, e,
por detrás delas, no tanto que é muitas vezes invisível.
José Miguel guiou o nosso olhar para os monumentos naturais, fragas, ro-
chedos, escarpas erguidas na paisagem, e que, pelas suas particularidades,
constituíram-se elementos sacros pré-históricos.
Francisco Gonzalez, além de nos apresentar historicamente o castelo de
Sobradillo, elemento arquitectónico que sobressai no casario que o envolve,
fez uma contextualização da envolvência deste belo pueblo raiano.
Manuel Correia Fernandes explica-nos a diferença entre muros e paredes,
elementos essenciais na arquitectura e na paisagem raiana que, por moti-
vos inaceitáveis, estão a ser desmontados e vendidos ao desbarato.
Finalmente, a paisagem. A paisagem geográfica e humana da raia vista pe-
los olhares atentos do grupo informal de fotógrafos que, desde o início, têm
estado com a RIBACVDANA. Foi nestas participações que o grupo finalmen-
te recebeu o nome de baptismo, “PORTA 55”, uma homenagem à casa de
Aires Roque e de Felisbela Maia, porto de abrigo do grupo em Figueira de
Castelo Rodrigo. E que ano após ano, nos vão deleitando com o seu olhar
agudo e poético, e sempre com uma proposta temática de base, neste caso:
“Caminhos”. Uma metáfora que nos pode orientar para diversos contextos
existenciais, sejam eles materiais ou imateriais – caminho que procuramos
para a RIBACVDANA.
Oxalá esse caminho se apresente sem escolhos e, se os houver, sejamos
capazes de os contornar.
6 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
A DECADÊNCIA DOS FORNOS
DO POVO EM MATA DE LOBOS
– CONTRIBUTO PARA A REABILITAÇÃO
DO PATRIMÓNIO MUNICIPAL
Carlos Guerra Vicente
ASSOCIADO DA RIBACVDANA DA MATA DE LOBOS
O presente artigo, resultado de uma comunicação apresentada no quadro
do III.º Encontro Transfronteiriço de Património Mata de Lobos / Sobradillo,
tem como finalidade sensibilizar as autarquias, as instituições públicas,
os proprietários e as comunidades locais para a importância do legado
patrimonial dos fornos comunitários e para a necessidade de levar a cabo
o seu levantamento completo no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo,
bem como incentivar a sua classificação como imóveis de interesse
municipal, e promover a sua reabilitação e conservação, integrando-os nas
pequenas rotas turísticas municipais, numa lógica de desenvolvimento
sustentável do território e da sua população.
Até à década de 70 do século XX, este concelho, com uma economia
baseada na atividade agro-pastoril, contribuiu, embora em pequena escala,
para as estatísticas de produção de cereais no país.
Ciclo
do
Pão
-
Museu
da
Casa
da
Freguesia
de
Escalhão
-
autor
desconhecido
e
edição
de
Renato
Roque
8 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
Neste contexto social e económico, o pão tinha lugar de destaque como
alimento base dos trabalhadores rurais e das famílias mais pobres e os
fornosaquecidosalenhadesempenhavamumpapelderelevonaeconomia
enasubsistênciadaspopulações,aomesmotempoque configuravamuma
rede de convívio e de sociabilização.
Em Mata de Lobos, os fornos entraram em decadência em finais dos anos
60 do século passado, na sequência de um surto emigratório para França e
da introdução do fabrico industrial do pão no concelho; com efeito, em 1969,
entre outras no concelho, começou a laborar nesta aldeia a Panificadora
Alentejana, propriedade de pequenos investidores vindos daquela região.
Na Mata, chegou a haver oito fornos, mas, por iliteracia cultural e voragem
da reconstrução urbana foram todos extintos e transformados em casas,
garagens e palheiros.
Nas restantes aldeias, de um total estimado em cerca de 56 unidades
existentes no território municipal, muitos desapareceram e a maioria
encontra-se em estado de abandono ou ruína avançada, graças ao
desinteresse dos proprietários, bem como à falta de directivas municipais
paraaconservaçãodestetipodeimóveis.Apesardoestadodedegradação
e de fragilidade destas estruturas em mãos de privados ser transversal
a todo o concelho, os nossos contactos pessoais com alguns autarcas
revelam que, da parte das autarquias locais, há evidências de um interesse
crescente pela sua preservação e intenção de adquirir pelo menos
um forno para uso comunitário, como é o caso de Algodres, Almofala,
Escalhão e Freixeda do Torrão. As visitas efectuadas a todas as freguesias
do concelho permitem-nos verificar que em algumas delas há fornos já
requalificados e noutras há iniciativas de preservação levadas a cabo
pelas autarquias e pelos proprietários. Assim, destaca-se a reabilitação
de um forno comunitário em Penha de Águia pela Câmara Municipal, em
2005, que pode ser utilizado em dias festivos.
Outro na Quintã de Pêro Martins, restaurado pela autarquia local há cerca
de vinte anos e que apenas é aberto para visitas turísticas; um terceiro
em Vale de Afonsinho, renovado em 2021 pela União de Freguesias da
Freixeda do Torrão, e que é utilizado em datas comemorativas; em Cinco
Vilas há dois em bom estado de conservação; o que se situa no largo
da igreja foi intervencionado pelos proprietários há cerca de 10 anos, a
fim de o consolidar e de lhe restituir a dignidade, em função do lugar
que ocupa no centro histórico da aldeia; os seus herdeiros, para honrar
a memória familiar, dão continuidade à sua função comunitária, sendo
utilizado para a confecção dos bolos para a festa de Nª Senhora do
Pranto, em Maio de cada ano.
A ele recorre também a população da Reigada para cozer «os esquecidos
e os pobres (económicos)», realidade que põe em evidência a sua função
comunitária, social e religiosa; em Algodres, onde ainda existem quatro
fornos, os proprietários do que se situa na Rua do Castelo, e que é
integralmente construído em pedra, estão revitalizando a área envolvente
para fins socioculturais e turísticos; por seu lado, a União de Freguesias
de Almofala estabeleceu um acordo escrito com os proprietários de um
dos fornos para ser intervencionado no prazo de dois anos; no Colmeal
é visível a ruína do forno comunitário da aldeia que foi classificada com
“Valor Concelhio” por Despacho de 25 de Outubro de 19681
; contudo, de
um vasto conjunto de imóveis reabilitados para hotelaria, este não sofreu
qualquer intervenção na sua estrutura composta de xisto e de granito.
FIGURA 1 – Lavrando a terra,
Museu Casa Freguesia Escalhão.
FIGURA 2 – Carregando o pão para a eira
– Museu Casa Freguesia Escalhão.
FIGURA 3 – Crivando o pão
– Museu Casa Freguesia Escalhão.
O longo Ciclo do Pão - Lavrador abarbeitando
a terra; a seara é acarrejada para a eira, onde
mãos ágeis acariciam o grão, e um novo ciclo
recomeça com a metamorfose do pão.
FIGURA 4 – J. Vicente e M. Ofélia Guerra
– Mata de Lobos, forneiros de 1959 a 1967.
FIGURA 5 – Forno comunitário reabilitado
– Penha de Águia.
10 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2
Os contactos informais e entrevistas desenvolvidos junto das populações
locais, maioritariamente mulheres com idade superior a 65 anos,
permitem-nos constatar que a história dos fornos e do pão é uma realidade
praticamente desconhecida ou ignorada pelas novas gerações. Por outro
lado, o tempo, a interioridade, o défice demográfico, o desinteresse e
desvalorização, a lentidão da tomada de decisões políticas, a falta ou
dificuldade de negociações com os proprietários, entre outros factores,
concorrem para eliminar em definitivo da paisagem e da memória colectiva
os que ainda não foram intervencionados.
Nos nossos dias, porém, verifica-se um despertar cívico das autarquias,
de movimentos associativos e de alguns proprietários para o importante
papel desempenhado pelos fornos e pelo pão no passado e para as suas
potencialidades enquanto vectores de desenvolvimento cultural, social
e turístico no presente e no futuro. Na sequência desta dinâmica, tem
aumentado a procura do pão tradicional e, por isso, em diversas regiões
do país retomou-se o fabrico artesanal em fornos de lenha, que se
integra em programas de revitalização económica e turística. Destaca-
se, entre outros, o pão de centeio da Serra da Estrela, amassado à mão e
cozido em forno de lenha, o pão de Mafra, o de Montemuro, a broa de Vil
de Moinhos, o molete de Valongo, o pão da Vidigueira, no Alentejo, e o pão
de São Miguel do Pinheiro, no concelho de Mértola, a que foi atribuída a
medalha de ouro no 10º Concurso Nacional de Pão Tradicional Português,
em 2022. Por sua vez, a Câmara Municipal da Mealhada, que reconhece
na dinâmica do pão tradicional e de outros produtos endógenos uma
mais-valia económica e cultural, criou a marca registada “Água / Pão /
Vinho / Leitão da Mesa da Mealhada” e, em parceria com a Escola de
Hotelaria e de Turismo de Coimbra, vem atribuindo um selo de qualidade
aos produtos vencedores em concurso público.
A conjugação destas evidências demonstra quão oportuno e decisivo seria
um mapeamento completo dos fornos comunitários do concelho, envolver
os proprietários neste processo e, em articulação com os vários agentes,
estudarapossibilidadedeosreabilitaredeexplorarassuaspotencialidades
turísticas e educativas. Esta acção poderia ser levada a cabo por uma
equipa multidisciplinar, em paralelo com o levantamento de outros imóveis
de arquitetura rural e de ofícios tradicionais dispersos pelo município em
vias de extinção, tendo em vista avaliar a sua classificação de “interesse
municipal”, dando continuidade ao Inventário de Santos2
Forno do povo – forno público
Forno do povo em Mata de Lobos, em sentido lato, era um imóvel onde se
cozia o pão, e todos estavam enquadrados na malha urbana; no sentido
próprio, consistia no espaço de cozedura do pão constituído por um lastro
plano e por uma câmara em abóbada forrados com tijolo burro, excepto um,
na Rua Combatentes do Ultramar, que era todo em granito aparelhado.
Existia um espaço para a preparação do pão, onde se peneirava e amassava,
uma lareira para aquecer a água da salmoura, uma pia para mergulhar
a vassoira de varrer o interior do forno, um ou mais poiais para pousar os
tabuleiros, e um canto para guardar a lenha. Regra geral havia uma chaminé
commaisde2metrosdealturaparaaexaustãodofumodointeriordoforno
e outra mais pequena para a lareira de apoio. Pertenciam a proprietários
privados, mas desempenhavam uma função pública na medida em que
o livre acesso da população local a qualquer deles era apenas ditada
FIGURA 6 – No forno,
preparando a festa de N.ª Sr.ª
do Pranto, Cinco Vilas.
FIGURA 7 – Forno em ruína
— Colmeal.
FIGURA 8 – Forno da Praça à direita
— Mata de Lobos.
NOTA 1 — Santos, Paulo Jorge Ferreira
dos, Inventário do Património Históri-
co-Arquitectónico Concelhio, Câmara
Municipal de Figueira de Castelo
Rodrigo, 2000.
NOTA 2 — Santos, idem.
12 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
por critérios de proximidade ou de ordem subjectiva; eram alugados aos
forneiros, por meio de contrato oral, com o dever de os manter ao serviço
da comunidade, estando incluída, em alguns contratos, a obrigação de os
proprietários darem, por ano, duas cordas para as cargas de lenha, um par
de sapatos (botas) para a forneira e outro para o forneiro; além disso, davam
também a masseira, os tabuleiros, os panais de pano cru (entretela), o
caldeiro de aquecer a água e a pá de meter e tirar o pão, enquanto o rodo e a
vassoira de limpar o lastro e outros utensílios menores ficavam a cargo dos
forneiros. Estas estruturas em algumas regiões do país eram designadas
por fornos comunitários, fornos comuns, fornos públicos, por oposição aos
fornos de uso unifamiliar. São apresentados por Sandra Pinto em História
del Derecho Europeo3
em documentos de transição da Idade Média para a
Idade Moderna como fornos de poia, fornos de poya de pam, conforme uma
norma das posturas de Leiria de 1625, e fornos poyeiros, porque neles se
poyava a poia, à forneira pelo seu trabalho, costume que se manteve em
vigor em Mata de Lobos até ao final dos anos 60 do século XX. Por sua vez,
Silva, define-os como fornos de cozer à maquia4
.
Na generalidade das freguesias, tal como na Mata, os fornos eram
propriedade privada, sendo comunitária apenas a sua função; contudo, no
Colmeal5
não havia forneira e cada habitante encarregava-se de aquecer o
forno para cozer o seu próprio pão; além disso, havia o costume de espetar
nas frestas da parede de entrada do forno um ramo de giesta para marcar a
vez (adua), e não se pagava a poia. Estes costumes levam-nos a inferir que
nesta aldeia os fornos seriam propriedade da comunidade; encontrámos o
mesmo método de marcação de vez no Bizarril, mas não foi possível saber
se o forno era propriedade privada ou comum.
O forno: função natural, espaço de convívio e escola de saberes
O forno do povo tinha como função natural cozer o pão. Como atrás se
referiu, era uma importante infraestrutura na cadeia da economia de
subsistência, contribuindo para o sustento dos habitantes, dos forneiros e
dos proprietários, e constituía um ponto de encontro semanal obrigatório
para a maioria das famílias. Tinha um papel social de relevo, proporcionando
trocas de informação e de saberes, sedimentação de contratos informais
e de interação individual e comunitária, dando um largo contributo para o
reforço da coesão social do agregado e para o enriquecimento das suas
vidas. As mulheres vinham ali para a fornada do pão, mas também para
conviver,apósumdiaárduodetrabalhodomésticoounocampo.NoInverno
aquecia quem o procurava, e as brasas eram levadas para casas privadas
ou para o clube da terra. Apresentava-se como um espaço privilegiado de
partilha de experiências e de conhecimentos e, tal como num laboratório,
ali se manipulavam ingredientes que exigiam ser geridos com competência
e esmero pela forneira e pelas freguesas. Na sua modesta dimensão, o
forno constituía uma Escola prática de transmissão de saberes de mães
para filhas sobre a arte do pão tradicional. Além disso, pela necessidade
de combustível nos seis dias da semana, os fornos contribuíam para o
equilíbrio da cobertura arbustiva do território e para uma taxa de incêndios
praticamente nula, apesar da sua pegada ecológica.
A Mulher enfrentando a fornalha
Em Mata de Lobos, e na maioria das aldeias, o ritual de cozedura nos
fornos do povo era um exclusivo da forneira, enquanto o abastecimento de
lenha ficava a cargo do forneiro. O forno era um santuário e um espaço de
NOTA 3 — Pinto, Sandra M.G., ESTUDIOS
- HISTORIA DEL DERECHO EUROPEO,
Revista de estudos histórico-jurídicos
nº.42 Valparaíso Aug. 2020. Disponível
em: http://dx.doi.org/10.4067/S07116-
54552020000100319. Acedido em
10.03.2021.
NOTA 4 — Silva, Luís, Os Moinhos e os
Moleiros do Rio Guadiana - Uma Visão
Antropológica, Edições Colibri, 2018.
Disponível em: https://research.unl.pt/
ws/portalfiles/portal/5850002/Livro_
completo.pdf . Acedido em 12.05.2022
NOTA 5 — Coelho, Aires Cruz, História
da Aldeia do Colmeal – Aqui nasceu a
Ordem Militar de São Julião do Pereiro,
vol. I, Ed. do Autor, 2012.
14 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
fertilidade onde a farinha, através de uma prodigiosa alquimia composta
de fermento mãe, de orações e de cruzes em pernão para a massa crescer,
se metamorfoseava em pão. Vozes de comando, mãos e corpos femininos
agitados, a lambra e o crepitar da lenha dentro da fornalha, movimentos e
sombras confluíam para o parto simbólico do pão que, saído pela boca do
forno, ainda quente e perfumado, iria servir de alimento base às famílias
constituídas por numerosa prole.
A logística deste ciclo, entre o sagrado e o profano, estava também nas
mãos da forneira. A ela competia gerir todas as fases do fabrico do pão
que começava na listagem mental das freguesas ao longo da semana, e
que obedecia ao regulamento da (a)dua / (a)duia, uma espécie de norma
consuetudinária infalível, incluindo as freguesas que faziam os preparos em
casa e só recorriam ao forno para cozer o pão. Ninguém cozia fora da sua (a)
dua / (a)duia, isto é, fora da sua vez e na ordem que lhe competia. A palavra
(a)dua/(a)duiasignificaàvez/teravez,e,segundoMachado(1977)6
,deriva
do árabe ocidental ad-dulâ que significa grande rebanho, gado, embora
na primeira edição crítica do Elucidário de Viterbo (1966)7
se advirta que a
etimologia deste vocábulo ainda não está esclarecida.
Das mãos femininas ao cheiro quente do pão caseiro
Os fornos coziam de Segunda a Sábado durante todo o dia, mas podiam
estar abertos até às duas ou três da manhã, para servir as freguesas que
trabalhavam no campo ou que andavam na apanha da azeitona e que,
após a ceia, ainda iam cozer o seu pão, situação generalizada à maioria das
freguesias. Muitas vezes, os fornos abriam as portas a partir das quatro
ou cinco da manhã para freguesas que iam à jeira, relato que ouvimos na
Quintã de Pero Martins e outras aldeias. O forno e os métodos de cozer o
pão pouco ou nada variavam no conjunto das freguesias, e constituíam a
síntese de um ciclo de trabalho, de sacrifício, de angústias, de esperança
muitas vezes frustrada, mas também de alegrias traduzidas pelo prazer do
pão sobre a mesa. A aventura do pão de centeio, mais usual no concelho,
(o trigo era para os ricos), começava com a farinha a ser peneirada com
uma peneira basta ou rala, consoante se quisesse a farinha mais fina ou
com mais ralão (farinha menos peneirada). Peneirava-se para dentro da
masseira com ajuda das cernideiras, uma espécie de grade posta em cima
da masseira, com movimentos braçais horizontais e circulares, com uma
ou duas peneiras em simultâneo. A farinha era a seguir amassada com
fermento mãe, água quente e sal da panela de salmoira (de mais ou menos
cinco litros) que, aos poucos, se ia misturando na farinha. A medida de sal
(que cada freguesa dava para cozer o seu pão) era uma punhada ou duas,
dependendodaquantidadedefarinha.Arranava-se(misturava-se)afarinha
com a água salgada e o fermento até ficarem bem envolvidos e formarem
a massa. Amassar exigia força braçal, pois levava cerca de meia hora até
a massa ficar donda. Uma fanega (50 k) de farinha levava duas tigelas de
fermento e meia fanega (25 k) só uma.
A massa ficava a fintar na masseira durante duas horas; tapava-se com
um panal de entretela que se cobria de farelo para proporcionar mais calor
e, no Inverno, podia ainda cobrir-se com um cobertor. As freguesas que
amassavam em casa cobriam a massa com um cobertor próprio e, no
Inverno, com um tirado da cama. Antes de começar a fintar, a forneira e/ou
as freguesas diziam esta oração, ao mesmo tempo que se faziam cruzes
sobre o pão «para ajudar a levedar a massa»8
, e tinha de ser em número
NOTA 6 — Machado, José Pedro, Dicioná-
rio Etimológico da Língua Portuguesa,
Livros Horizonte, Lisboa, 1977.
NOTA 7 — Fiúza, Mário, Elucidário, 1ª
Edição Crítica: 2º volume, Livraria Civili-
zação, Porto-Lisboa,1966.
16 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
pernão, porque era assim o uso:“Deus te faça pão de massa / Avé-Maria
cheia de graça / Deus cresça a minha massa / Como a virgem cresceu em
graça” (versão de Ozilda Henriques). Sabia-se que a massa estava finta
porque pulava, as cruzes desapareciam e o farelo abria gretas (Ofélia), ou
quando a massa ficava loifinha, isto é, molinha (Ozilda), fase do processo
em que não podemos deixar de ver uma alusão à fecundidade da mulher e
da terra. No Inverno levava mais tempo a fintar por causa do frio. Às vezes
aquecia-se no lume 3 ou 5 dentes de alho com a casca, depois espetavam-
-se na massa e era num instante que a massa abria, mas o alho tinha de ser
em pernão, porque era assim o uso.
Depois de finta, a massa era fingida em cima de um panal com farinha
espalhada para se fazer o pão; cortava-se um bocado da massa com a
rapadoira, e com as mãos andava-se á volta até ficar em forma de pão. A
rapadoira servia também para rapar a massa que ficava colada na masseira;
ospãesassimobtidoseramcolocadosnumtabuleiro,quesepunhaemcima
do poial, para os introduzir no forno. Na Mata havia o hábito de as forneiras
iremacasadealgumasfreguesasbuscaropãojáfingidoemtabuleiros,mas
em Escalhão as forneiras iam buscar a massa finta em cestos ou pequenas
masseiras que punham à cabeça sobre rodilhas ou molidos, para ser fingida
no forno. A quantidade de pães por fornada dependia da dimensão do forno.
No forno existente na Rua dos Combatentes, em Mata de Lobos, cabiam 2
fanegas de pão, isto é, cerca de 20 a 22 pães. Quando se começava a fingir,
tirava-se uma pequena porção de massa finta que servia de fermento
caseiro, para a fornada seguinte e ficava no forno à guarda da forneira numa
tigela de barro ou de esmalte ou em casa da freguesa que cozesse. Havia
sempre fermento para toda a gente, porque o fermento não tinha dono; o
que vinha de fora chamava-se fermento padeiro; no Domingo, guardava-
-se o fermento caseiro em tigelas com uma bagadinha de azeite por cima;
no Verão, cobria-se com uma folha de couve para não endurecer, mas no
Inverno não precisava.
Enquanto se peneirava, fintava e fingia a massa, a forneira ia aquecendo
o forno. O interior do forno ficava quente quando as pedras, tijolo burro ou
baldosas do lastro e da abóbada ficavam brancas até à entrada do forno.
Depois de quente, a forneira retirava as brasas para fora com o rodo ou
arrebanhador. O interior do forno era varrido com uma vassoira de giesta
com um cabo comprido que se mergulhava de vez em quando numa pia
com água para não arder, de modo a deixar o lastro muito bem limpo. Metia-
-se o pão no forno com auxílio de uma pá; enfarinhava-se a pá para a massa
não se agarrar e punha-se farinha por cima do pão para não queimar; no
cabo da pá enfiava-se uma meia chamada siso/mangueira para facilitar
o seu manejo. A forneira recorria a um sistema de sinais para distinguir o
pão: sem nenhum sinal, uma dedada no pão, duas dedadas, um ramo de
giesta ou de carrasco, etc. Os pães eram enfornados segundo uma ordem
fixa: primeiro se metia o pão no cordão que era o semicírculo do forno junto
às paredes laterais e depois para o centro. Ao fim de duas horas, tirava-se
um pão e batia-se com ele no rebordo do forno e sabia-se se estava cozido
conforme o toque do pão. Era costume a forneira passar a mão por baixo do
pão ainda quente para lhe tirar algum tição que estivesse agarrado ao fundo.
Depois de pronto, o pão era levado para casa em tabuleiros pela forneira ou
pelas donas à cabeça; quando os homens participavam neste transporte, os
tabuleiros eram levados sobre os ombros.
NOTA 8 — Fontes, António Lourenço,
Etnografia Transmontana, I – Crenças e
Tradições de Barroso, 2ª ed., Montalegre,
1979.
18 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
O processo de fabrico do pão de trigo era basicamente o mesmo do centeio,
mas levava mais tempo a amassar e dava mais trabalho. Amassar o trigo
exigiadaforneiraedasmulheresaindamaisenergia,ritmoedestrezabraçal,
pois era necessário executar movimentos circulares no sentido do peito,
como se este movimento, de fora para dentro, simbolizasse o sacrifício, o
sentimento e a espiritualidade dedicada ao pão, mas, paradoxalmente, de
vez em quando, era preciso dar punhadas na massa, isto é, batê-la para
adondar.Nageneralidadedasfreguesias,asfamíliasmaispobressócoziam
trigo por altura do Natal e da Páscoa, das festas e em dias de nomeada; em
Cinco Vilas e Quintã de Pêro Martins cozia-se trigo e fogaça para ir vender a
terras do concelho de Pinhel, do outro lado do rio Côa.
Levava-seopãoemalforgesesacosdealgodãonosmachoseatravessava-
-se o rio no barqueiro; era uma forma de ajudar a ganhar a vida.
A Poia: o tributo pago à forneira
Depois da cozedura, cada freguesa deixava à forneira a poia, isto é, um pão,
como forma de pagamento pelo seu trabalho e que, segundo o estudo de
Sandra Pinto9
, deu origem aos designados fornos de poia.
Esta autora refere no mesmo estudo a existência deste uso em três Cartas
de Doação da ilha da Madeira pelo Infante D Henrique: uma datada de 1440
ao Capitão-donatário Tristão Vaz Teixeira, outra a Bartolomeu Perestrelo
em 1446, e a terceira de 1450 ao Capitão-donatário João Gonçalves Zarco
a quem concede a posse de: «todollos fornos de pam em que ouver poya».
Em Mata de Lobos, a poia era paga por cada fanega de farinha cozida, (10
a 12 pães), que correspondia a cerca de 10% da cozedura; quem cozesse
só meia fanega pagava a poia apenas quando cozesse a segunda meia
fanega, ou pagava apenas meia poia que era dividida com os proprietários
do forno, em conformidade com o contrato de arrendamento. Esta “norma”,
com poucas ou nenhumas variações, era prática corrente no concelho e,
curiosamente, encontra-se a mesma equivalência numa Postura Antiga10
da cidade de Lisboa, do século XV: «…mandom que daquy em dyamte todos
os que fornos e fornalhas teuerem nam leuem mays de poya que de doze
pães huu Jguall dos outros».
Como sabemos, esta função do pão já era prática corrente no antigo Egipto
onde o salário dos trabalhadores era pago com pão diário. Afirma Barboff11
que, até aos nossos dias, o cereal detinha valor de moeda: as rendas, os
salários e os serviços pagavam-se em género com o grão, a farinha e o pão.
Opagamento dapoianosfornos, quenaMatavigorou atéaofinaldadécada
de 60, já estava em uso no século XIV, como Soares e Macedo12
referem
em documentos de 1387 que testemunham a rigorosa cobrança do dízimo
das poias do pão alvo ou de segunda, de um forno que um ourives trazia
arrendado pela Igreja de Santa Justa de Coimbra.
O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das
Ciências, (2001)13
regista a palavra poia enquanto regionalismo, como o
pão que se dá à forneira, a farinha que se paga ao moleiro, mas também o
dinheiro ou azeite ao lagareiro. Corominas14
atribui à palavra poya a mesma
etimologia e significado. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa,
(1977)15
, regista a palavra poio com origem no latim podium, com sentido de
lugar mais elevado, pedra grande ou elevação; por analogia com poio surgiu
a palavra poia (pão), e poial. O Elucidário16
confirma a associação de podium
a monte, outeiro ou colina e esclarece que «se chamou poya o pão mais
alto e crescido que, antigamente (e hoje mesmo mas não sem abuso), se
FIGURA 9 – Poia paga à forneira.
NOTA 9 — Pinto, idem.
NOTA 10 — Livro das Posturas Antigas,
Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa
1974, p. 92. (Leitura paleográfica e
transcrição de Maria Teresa Campos
Rodrigues).
NOTA 11—Barboff, Mouette, Terra Mãe Ter-
ra Pão, Âncora Editora, Lisboa, 2005, p.7.
NOTA 12 —Soares, Carmén; Macedo, Irene
Coutinho de, Ensaios sobre património
alimentar luso-brasileiro, Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2014.
Disponível em: https://eg.uc.pt/han-
dle/10316/42255?locale=pt. Acedido
em 25.06.2022.
NOTA 13 — Casteleiro, João Malaca, et al.,
Dicionário da Língua Portuguesa Con-
temporânea - Academia das Ciências de
Lisboa, Verbo, 2001.
NOTA 14 — Corominas, Joan, Dicionário
Crítico Etimológico Castellano e Hispáni-
co, Gredos, Madrid, s/d.
NOTA 15 — Machado, idem.
20 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
pagava ao senhorio dos fornos, em que são obrigados a cozer o seu pão os
moradores do lugar». Por sua vez Lamano, em El Dialeto Vulgar Salmantino
(1915)17
, regista a palavra poya com o sentido de «piedra, que sale de la
abertura o boca del horno, en la cual apoyan la pala al colocar el pan».
Economia circular: o farelo, a sêmea, a bola sovada e o canil
As pessoas do campo não conheciam os preceitos teóricos da economia
circular, mas, porque estavam habituados a respeitar os ciclos da natureza
e por imperativos de poupança, conheciam a sua prática. Fazia-se jus à lei
de Lavoisier: nada se perdia, tudo se aproveitava; os animais comiam farelo
como ração, misturado com nabos e na água; deitava-se também farelo
na vianda dos porcos e às galinhas amassado com água; com ele se fazia
a sêmea que era um pão redondo como os outros, mas feito com ralão de
trigo, assim como a bola sovada, um pão achatado de trigo ralão que era
preciso sovar com os punhos para a massa ficar adondada (mole); em
Escalhão, e noutras terras, fazia-se a bola morta que não crescia, porque
nãotinhafermento;porvezeserafeitacomasrapadurasdamassaefarinha
(excedentes)queerarapadacomarapadoira;picava-seabolacomumgarfo
parafazerfeitioseregava-secomumabagadinhadeazeiteporcima.Ocanil
era um pão comprido feito à base de uma mistura de farelo e de farinha de
centenico que servia de alimento aos cães de guarda dos pastores.
Dos fornos do Egipto aos nossos dias
Heinrich Jacob (2003)18
afirma que os fornos de pão surgiram no antigo
Egipto, Diana Carvalho19
refere achados arqueológicos junto ao lago
Tiberíades que remontam ao Paleolítico Superior, 22.000 a.C., enquanto
Elíxio Quintas (2015) 20
entende que terão aparecido em primeiro lugar na
Mesopotâmia e daí passaram para a Grécia e depois para Roma. Com a
fuga dos hebreus do Egipto no reinado de Ramsés II (1279-1213 a.C.), estes
levaram para Israel o conhecimento do fabrico do pão em fornos, surgindo
as primeiras padarias em Jerusalém. Na Grécia, só por volta do século VI a.C.
é que os gregos se dedicaram ao fabrico do pão em fornos, enquanto na
antigaRomasurgiuporvoltadoano800a.C.,eaprimeiraescoladepadeiros
no ano 500 a.C., cabendo-lhes o papel de disseminar por todo o Império
esta prática. Como sabemos, antes da chegada dos Romanos à Península
Ibérica, os Lusitanos comiam uma espécie de pão de bolot21
, adaptando-se
aos novos costumes com a Romanização.
Da aventura dos cereais selvagens à sua domesticação
Aaventuradaagriculturaandademãosdadascomoscereais,comosfornos
e o pão; por isso, vale a pena situarmo-nos em relação às suas origens.
Jacob22
,afirmaqueaepopeiadoscereaisduraháquase15.000anosetodos
eram primitivamente selvagens; foram domesticados pela mão do homem,
mas sem a mulher, a agricultura nunca teria sido inventada. A aventura da
revolução agrícola teve início há cerca de 10.000 anos, quando o homem
se tornou sedentário e passou a viver em terrenos favoráveis ao cultivo de
cereais, alterando assim a sua alimentação e o seu destino. O historiador
Harari (2021)23
sublinha que a transição para a agricultura começou entre
NOTA 16 — Fiuza, idem.
NOTA 17 — Beneite, José de Lamano
y, El Dialeto Vulgar Salmantino, Sala-
manca, 1915.
NOTA 18 — Jacob, Heinrich Eduard, 6000
anos de pão, Antígona, Lisboa, 2003,
p. 66.
NOTA 19 — Carvalho, Diana Alexandra
Simões, CASTRO LABOREIRO - DO
PÃO DA TERRA AOS FORNOS CO-
MUNITÁRIOS. Uma proposta de
mediação patrimonial, Relatório de
Projeto. Disponível em: https://hdl.
handle.net/10216/105911. Acedido em
10.05.2022.
NOTA 20 — Quintas, Elixio Rivas, O Forno
de Pan, Orense: Grafo Dos, 2015, p.23.
NOTA 21 — Deserto, Jorge; Pereira, Susana
da Hora Marques, Estrabão, Geografia.
Livro III. Introdução, tradução do grego e
notas, p.64, Imprensa da Universidade
de Coimbra.
NOTA 22 — Jacob, idem, pp. 45-54
NOTA 23 — Harari, Yuval Noah, Sapiens
– História Breve da Humanidade, 27ª
Edição, Elsinore, 2021, pp. 99-100.
22 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
9.500 e 8.500 a.C. nos montes do Sudeste da Turquia, do Oeste do Irão e
do Levante, mas também, de forma independente, na China com o arroz, na
América Central com o milho e na América do Sul com a batata. Jorge Dias
(1982) salienta que a agricultura primitiva representa um passo dos mais
decisivos na História do Homem e que o arado simboliza um passo enorme
dado pela humanidade no sentido do seu progresso material e espiritual24
,
enquanto o domínio do fogo permitiu confecionar o pão, tornando-o
fundamental à sua subsistência.
Nãosetemacertezaondesurgiramasespéciesmaisantigasdetrigo;Jacob
aponta a Abissínia (Etiópia) como berço, enquanto Barboff25
, tal como Harari,
remete para o sudoeste asiático, mas talvez seja mais apropriado pensar
que a cultura dos cereais terá surgido em momentos diferentes da História
e em diferentes zonas da Terra, designadamente na bacia de grandes rios
como o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia, o Ganges, na Índia ou o rio
Amarelo, Na China. Como é do conhecimento geral, a bacia do rio Nilo, no
Antigo Egipto, veio a desempenhar um papel decisivo na história do pão tal
como hoje o conhecemos, lugar onde, na opinião de Jacob se deu também a
invenção do pão fermentado, fruto do acaso.
O Culto do pão: mitos, crenças e superstições
Opãoéindissociáveldahistóriadohomempelopapeldesempenhadonasua
sobrevivência, impondo-se, simultaneamente, como alimento essencial para
o corpo e para o espírito. É exaltado por religiões, festas, escritores, poetas,
pintores,músicos,cantigas,danças,provérbioseoraçõesdediferentescredos
nos quatro cantos da terra. Vemo-lo, por exemplo, associado ao milagre das
rosas (1333), à padeira de Aljubarrota (1385), ao cerco de Lisboa (1384) e à
marcha contra a fome das mulheres parisienses sobre Versalhes, em 5 de
Outubro de 1789, mas também ao contrabando entre Espanha e Portugal, às
senhasdedistribuiçãodefarinhaedepãoemperíodoscríticose,cinicamente,
como alvo de manobras militares e geopolíticas.
Alémdisso,opãofiguracomoelodeligaçãocomasdivindadesecomoalém.
Como refere Jacob26
, no antigo Egipto havia uma procissão para comemorar
o momento em que as águas do rio Nilo começavam a subir. Este rio era
adorado como um Deus por trazer a abundância de cereais e, após as
colheitas, fazia-se uma festa em honra de Min, deus da agricultura. Os
egípcios dedicavam um culto diário aos mortos oferecendo-lhes pão e água
e, como eram muito supersticiosos, quando a alma chegava ao reino dos
mortos deveria dizer: “dei pão a todos durante os meus dias!”, assim como
nunca recusavam pão aos pobres, porque “recusar pão a um mendigo, era
considerado o maior dos pecados”, e repartiam o seu pão com as crianças.
Na Grécia antiga, a terra era uma figura feminina e havia o culto a Deméter,
deusa da agricultura e protectora da família; Perséfone, sua filha, era deusa
das sementes e deveria passar quatro meses do ano no reino subterrâneo
do deus Hades, tal como a semente, simbolizando, desta forma o grão
que é lançado à terra e enterrado vivo. Deméter tinha as suas festividades
no dia 20 de Setembro, isto é, no fim das colheitas. Deméter foi também
festejada no mundo Romano com o nome de Ceres, onde os fornos tinham
uma deusa chamada Fornax que presidia ao seu bom funcionamento. Em
Roma, o pão desempenhou um papel moderador na política do “pão e circo”,
a que os imperadores recorreram para acalmar os ânimos dos milhares de
pobres e indigentes que havia na cidade. O pão ázimo, isto é, o pão que os
judeus consideram “puro”, está intimamente ligado à sua saída do Egipto e
NOTA 24 — Dias, Jorge, Os Arados Por-
tugueses, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, 1982, pp. 45-46.
NOTA 25 — Barboff, idem, p.13.
NOTA 26 — Jacob, idem, pp. 58-75.
24 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
é com este pão que é comemorada a Páscoa hebraica, a fim de recordar a
saída da servidão, uma vez que o pão fermentado era considerado impuro.
O Cristianismo fez do pão a sua religião com as palavras de Cristo: “Tomai
e comei, este é o meu corpo”, que são o início de uma narrativa fundadora.
Conhecemos diferentes formas de sentenças e de crenças populares
ligadas ao pão, que nos são veiculadas pela tradição judaico-cristã, mas
que são transversais a vários povos do mundo. Umas conferem-lhe uma
importância vital através da sua personificação: “quando o pão cai ao chão
apanha-se e beija-se; “o pão não se põe com as costas para baixo”; outras
evidenciam superstição: “não se deve sacudir uma toalha com migalhas de
pão à noite”; outras revelam discórdia, pobreza e conflitos familiares: “casa
onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, que encontra eco nos
versos hindus: «Onde pão houver, reina o salário do entendimento / Onde
não houver, guerreiam pai e filho» (Jacob)27
; outras ainda traduzem visões
educativas populares como: “quem dá o pão também dá o pau”.
Não faltam referências bíblicas associadas ao pão. Deus sentenciou ao
homemocaminhodosacrifícioe daabnegação: «Aterraproduziráespinhos
e ervas daninhas, e tu terás de comer das plantas do campo. Com o suor
do teu rosto comerás o teu pão». (Genesis, 3:19), que a expressão popular
“comer o pão que o diabo amassou” sintetiza.
TalcomonoEgipto,tambémemMatadeLobosnãoserecusavaumabordinha
de pão a um pobre que batia à porta; distribuía-se pão por alma dos defuntos
àportadaigreja,tambémconhecidopor“pãodasalmas”(JornalTerraeMar)28
;
dava-se pão às crianças que estivessem por perto para não augar, assim
como era hábito oferecer-lhes pão quando iam a casas estranhas, tomando
a expressão “toma lá do nosso pão” uma forte carga afectiva. Por todo o país
o pão é o elo mais forte e está associado, como objecto de veneração e de
oferenda, a festas religiosas, com a finalidade de agradecer as colheitas e
renovar votos de um bom novo ano agrícola ou de rogar por boa saúde. Em
Mata de Lobos o pão é o protagonista na festa das roscas em Agosto; em
NaveRedonda,nafestadeSto.Amaro,nosegundoDomingodeJaneiro,ainda
hoje os crentes fazem simulacros de partes do corpo doentes que ofertam ao
Santo,comoformadepediracura,equedepoisarrematamelevamparacasa
com a convicção de que o milagre se vai operar.
Além dos folares de Páscoa, o pão tem algum protagonismo na festa do
Charolo em Outeiro, concelho de Bragança, da Santíssima Trindade, na
Batalha,doEspíritoSanto,nosAçores,Samão,CabeceirasdeBasto.Afestada
espiga,queremontaaosceltaseromanos,éumacerimóniaqueseintegrano
ciclo da Primavera. A fogaça é utilizada como voto na Festa das Fogaceiras a
20 de Janeiro, dedicada a S. Sebastião, na Vila da Feira29
Pelas suas analogias,
há quem veja na festa dos Tabuleiros do Espírito Santo, instituída por D Dinis,
em Tomar, uma reminiscência da festa das colheitas e da fertilidade da deusa
Ceres.30
O pão concebido sob o signo da hospitalidade, da solidariedade, do
convívio, da fertilidade e da fecundidade é bandeira de reivindicações sociais,
é sinónimo de trabalho, de salário, da luta pela vida e pela liberdade(Barboff)
31
. Pela sua carga simbólica, o pão é o elo permanente de um ciclo que celebra
a vida, a morte e a festa. Na Ucrânia rural existe, ainda hoje, o costume de
distribuir pão aos vizinhos quando os pais casam um filho.
Conclusões
O fantasma da interioridade, do despovoamento e do empobrecimento paira
sobre o nosso território, sendo urgente inverter esta situação. A cultura, o
NOTA 27 — Jacob, idem, p.25.
NOTA 28 — Fonte: https://www.jornal-
terraemar.pt/pao-das-almas/ . Acedido
em 5.06.2021.
NOTA 29 — Receitas e Sabores dos terri-
tórios rurais, Edições Minha Terra, 2013.
Disponível em:https://www.minhaterra.
pt/wst/files/I12086-MT-MGP-WEB.
PDF . Acedido em 12.01.2022.
NOTA 30 — Receitas e Sabores dos
territórios rurais, idem.
NOTA 31 — Barboff, idem, p.8.
26 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
património histórico, o edificado e o paisagístico representam uma janela
de oportunidades de desenvolvimento social, cultural e económico pela sua
vertente do turismo e, por isso, são merecedores de uma atenção especial nas
opções e nas decisões políticas. As causas e os problemas estão identificados,
odiagnósticoestáfeito,emuitasdassoluçõesdependemdanossacapacidade
de acção. Nesta óptica, aproveitamos a oportunidade para: a) apelar ao poder
local e regional para a necessidade de desenvolver e de apoiar mecanismos
e programas que contribuam para a reabilitação dos fornos do povo para
fins utilitários, socioculturais, turísticos, educativos, museológicos ou outros;
b) sensibilizar os proprietários e a comunidade para a importância da sua
colaboração e para a necessidade de preservar e recuperar as estruturas
ainda existentes; c) interpelar as escolas para a possibilidade de articular o
estudo deste património com áreas temáticas afins, reforçando o sentimento
de identidade e de pertença social e cultural dos alunos; d) privilegiar, quando
possível,assinergiasqueosalunospodemgerarepartilharenquantoelosentre
as instituições e as famílias, tendo em vista a salvaguarda da nossa memória
colectiva,bemcomoodespertardasuaconsciênciadecidadaniaactiva.
No âmbito de uma visão transfronteiriça e holística da cultura e do
património, a Ribacvdana disponibiliza-se para colaborar, com todos os
agentes interessados e responsáveis pelo progresso destes territórios,
em programas de desenvolvimento sustentado que se oponham à
descaracterização dos seus valores patrimoniais e culturais.
Unidos, de um lado e do outro dos rios, teremos mais força para colocar no
mapa o turismo cultural e atrair o olhar de Lisboa e de Madrid para esta
região transfronteiriça. Unidos evitaremos a ameaça do ostracismo pelos
poderes centrais e teremos força para lutar contra a resignação e o anátema
da “baixa densidade”. É preciso mudar o paradigma deste conceito redutor,
contrapondo-o ao de “alta densidade” de um território com elevadas
potencialidades, paisagísticas, ecológicas e em biodiversidade, e exigir ao(s)
poder(es) central(ais) uma prática efectiva de discriminação positiva que
faça justiça ao interior.
As gerações futuras vão agradecer as responsabilidades assumidas em
defesa dos valores materiais e imateriais que constituem a riqueza e o
substrato cultural das gentes que habitam este território e que esperam ver
(re)valorizadas no presente.
Agradecemos a colaboração prestada pelos autarcas do concelho, que
nos abriram as portas de alguns fornos recuperados e transmitiram o seu
empenho na salvaguarda deste património, assim como o contributo do
MuseudaCasadeFreguesiadeEscalhãoquenoscedeualgumasfotografias,
do Centro Interpretativo e Museológico de Algodres e do Museu Rural e
Etnográfico de Vilar de Amargo, instituições que apostam na conservação
e na divulgação do espólio patrimonial e da memória colectiva do concelho,
e onde encontrámos documentadas práticas artesanais do ciclo do pão.
Agradecemos também aos proprietários que foi possível contactar.
Aquideixamosumanotadeprofundagratidãoàsforneirasque,amavelmente,
connosco partilharam o seu inestimável saber e experiência: Maria Ofélia
Guerra, 95 anos, Mata de Lobos; Hermínia Bandarra, 91 anos, Piedade Maia,
90 anos e Judite Rosa, 78 anos, Vale de Afonsinho.
Registamos também as valiosas informações de Ozilda Henriques, 87 anos
(falecida) e Marcolino Silva, 84 anos, Mata de Lobos; Marceolina, 81 anos,
Quintã de Pedro Martins; Maria Clotilde Figueira, 74 anos e Maria Cristina
C. S. Fonseca, 67 anos, Cinco Vilas; Maria Henriqueta Monteiro, 80 anos e
28 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
Ruben Almeida, Vilar Torpim; Maria da Conceição Martins, 92 anos, Vilar
de Amargo; Maria da Conceição E. Ferreira, 84 anos e João E. Ferreira, 70
anos, Escarigo; Maria de Jesus F. A. Moutinho, Vale de Afonsinho; Piedade
Massana e João Massana, Castelo Rodrigo; Aires Cruz Coelho, 76 anos
e Gabriela de Castro, 53 anos, Colmeal; Maria de Lurdes Granado Velho,
86 anos, Deolinda Macias, 92 anos, Irene Henriques, Augusta Valente
Henriques, 70 anos, Maria Augusta Bordalo Velho Ribeiro, 70 anos e Manuel
Besteiro Velho, 87 anos, Escalhão; Maria Célia Cordeiro Rodrigues, 88 anos,
Almofala; Dário Arrepia, Barca de Alva; Maria Isabel Loureiro, Carla Marcelino,
Celina Monteiro, Nando Costa e Maria Vicente, bem como de todos os que
não autorizaram a publicação do seu nome. Obrigado ao Renato Roque e ao
Jorge Velhote pela revisão do texto.
Este artigo pretende ser uma justa homenagem às forneiras e forneiros
que, com grande resiliência física, nobreza de alma e mãos experimentadas
representaram verdadeiros símbolos de resistência contra a fome e a
pobreza, antes da produção industrializada do pão. Uma palavra de apreço
também aos artífices que, da matriz milenar dos fornos, erigiram genuínas
Catedrais do Pão.
Todos, e com redobrada responsabilidade o poder autárquico, temos o dever
cívicoemoraldepreservarestessímbolosfundadoresquenarramaHistória
do Pão, guardam a memória do saber popular e permitiram a sobrevivência
da humanidade. Antes que seja tarde!
1. Mata de Lobos: uma opulenta paróquia raiana
Mata de Lobos é uma importante aldeia do Concelho de Figueira de Castelo
Rodrigo, Distrito da Guarda. A respectiva paróquia, de origem muito antiga,
pertenceu outrora à Diocese de Cidade Rodrigo, mantendo-se nesta
Dioceseatéc.de1400.Porestaaltura,foiintegradanaantiquíssimaDiocese
de Lamego. Com a fundação da Diocese de Pinhel, em 1770, Mata de Lobos
passou a integrar esta efémera Diocese. Após a sua extinção, em 1881, a
paróquia de Mata de Lobos passou a integrar a Diocese da Guarda, a que
continua a pertencer.
Dada a antiguidade da paróquia, a sua grandeza e a abastança dos seus
moradores–edadatambémaopulênciadasduasprimeirasDiocesesaque
pertenceu durante séculos, Mata de Lobos ergueu um vasto e riquíssimo
Mata de Lobos
(Figueira de Castelo Rodrigo):
arquitectura e arte sacra
de uma aldeia raiana.
Um primeiro olhar sobre
um património desconhecido.
Carlos Caetano
HISTORIADOR DE ARTE
NOTA
Fotografias de Renato Roque.
30 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
património religioso. A sobrevivência deste, ainda que muito parcial,
deixa entrever uma paróquia muito rica e até muito populosa no passado,
características que em parte se conservam ainda hoje.
Terra de fronteira, outrora foi uma povoação verdadeiramente florescente:
atestam-no os 192 “moradores” do “lugar de mata de lobos”, recenseados
em 1527, no “recenseamento” geral do Reino mandado fazer por D. João III
(COLLAÇO,1929-1931:p.109)1
,ouos250fogos,“nosquaisentramquinhentas
e sessenta pessoas de sacramento e cento e trinta menores”, registados em
1758eapontadospeloP.ePauloAntunesMonteiro,ovigáriolocal,emresposta
aoinquéritoimpostoapósoTerramotodeLisboade1755pelofuturoMarquês
de Pombal a todos os párocos do Reino – e cujo conjunto conhecemos como
Memórias Paroquiais (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276).
No nosso tempo, com os seus 287 habitantes recenseados em 20212
,
continua a ser uma das maiores freguesias não só do concelho como de
todaaregião,tradicionalmentepoucopovoadaenasúltimasdécadasmuito
fustigada pelo flagelo da emigração e hoje oprimida por taxas deprimentes
de natalidade e de mortalidade, à semelhança das demais povoações não
só da região, como de todo o Interior de Portugal.
O presente estudo resulta de um projecto inicial de elaboração de uma
pequena monografia da actual Igreja Matriz que, pelas suas singularidades, é
digna de um estudo aprofundado e alargado de modo a contemplar as várias
vertentes artísticas que confluem e se abrigam por entre as suas paredes
multisseculares.Aexistência,porém,demaisespaçosreligiososnapovoação,
de antiguidade e de características assinaláveis, quase todos eles detentores
de um espólio de arte sacra de grande categoria, suscita, porém, um estudo
diferente e mais alargado que o previsto inicialmente. Assim, conjuntamente
com a actual Igreja Matriz, há que contar com uma primeira abordagem,
meramentedescritiva,dasactuaisermidasdeSantaMarinha,deSantoAntão
(esta profanada, cremos que de há muito) e do Senhor Santo Cristo3
. É este o
objectivo das presentes linhas: uma primeira recensão e leitura destas quatro
componentes da arquitectura religiosa da paróquia de Mata de Lobos, pois
todos estes monumentos são não só da maior importância arquitectónica
como detêm – os que continuam abertos ao público - imaginária e outras
formas de arte sacra da maior relevância, a merecer justo reconhecimento,
inventário, estudo, conservação e protecção adequadas e muito urgentes.
2. A arquitectura sacra de Mata de Lobos
Dos quatro monumentos religiosos sobreviventes, todos de antiguidade
assinalável, os três mais antigos parecem ser a capela de Santa Marinha,
a actual igreja matriz, e a capela da Santo Antão, todos integráveis no
corpus das velhas igrejas e capelas de origem leonesa, como mostraremos.
Morfologicamente muito diferente é a ermida de Santo Cristo, uma bela e
típica ermida rural de perfil barroquizante.
2.1 - CAPELA DE SANTA MARINHA
A capela de Santa Marinha que chegou até nós4
é um dos monumentos
mais enigmáticos das Beiras. De origem muito antiga5
, esta capela fazia
parte integrante da igreja da mesma invocação, que durante séculos foi a
matriz de Mata de Lobos.
Com efeito, como se nota do vasto arco entaipado da sua actual fachada
principal (FIG1), esta capela serviu durante muitos séculos de capela-mor da
referida igreja, cuja nave foi de há muito demolida.
NOTA 1 — Apesar de muito populosa na
primeira metade do século XVI, Mata de
Lobos tinha que enfrentar os 199 mora-
doresdeAlmofala,os229deEscarigo,os
236 moradores da Vermiosa e os 249 de
Escalhão (COLLAÇO, 1929-1931: p. 109).
NOTA 2 — Mata de Lobos – Wikipédia, a
enciclopédia livre (wikipedia.org); con-
sulta a 7 de Julho de 2023. Apesar do
avultado número de habitantes, note-se
o declínio demográfico constante, verifi-
cadodesde1940,quandoregistava1.377.
Registem-se ainda os valores, sempre
decrescentes, registados em 1981 (664
habitantes), em 1991 (530) ou em 2001
(496). Para a evolução do número de
moradores ver BORGES, 1989: tabela da
p. 77 e ainda SILVA, 1992: tabela da p. 431.
NOTA 3 — Em 1758 o Vigário de Mata de
Lobos refere ainda a capela do Divino
Espírito Santo (CAPELA, MATOS, 2013: p.
276), destruída, mas de que ficou memó-
ria na toponímia local.
NOTA 4 — Monumento Nacional, pelo De-
creto N.º 28/82, de 26-2-1982 (BOR-
GES, 1993: p. 92).
NOTA 5 — É referida em 1165, no âmbito
de doações do Rei de Leão D. Fernando
II ao mosteiro de Santa Maria de Aguiar
(Borges, 1993: p. 91) e Santa Marinha fi-
gura também num tombo indeterminado
de 1385 (BORGES, 1993: p. 92).
32 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
A igreja, verdadeiramente monumental, estava localizada nas periferias
relativamente afastadas da aldeia de hoje. Tudo indica, porém, que à sua
volta e à volta do seu adro se localizasse o núcleo da povoação primitiva. Por
motivos que não conhecemos (falta de água nas proximidades?), a aldeia
ter-se-á deslocalizado para ocupar o espaço em torno da outra igreja da
mesma aldeia, outrora dedicada a S. Sebastião e que constitui, talvez desde
as primeiras décadas do século XIX6
a sede da actual matriz.
A actual capela de Santa Marinha está de há muito localizada numa
extremidade do vasto cemitério que se adaptou à sua volta e cujo pórtico,
muito pitoresco está epigrafado de 1858. (FIG 2)
Foi então que se expandiu o cemitério antigo que originalmente, e como por
todo o lado, se localizava no interior e no adro da primitiva igreja. O vigário de
1758 refere túmulos muito antigos que atribui a templários:
E consta por tradição ser igreja e mosteiro de Templários, que bem o
mostram as suas ruínas por se achar no adro dela muitas sepulturas com
letreiros nas suas campas que declaram ser dos seus cavaleiros, donde
estes foram sepultados, e em outros se vem cruzes formadas (CAPELA,
MATOS, 2013: p. 276).
Há bons motivos para pensar que estes túmulos, descritos em 1758, sejam,
porém, de ilustres membros da comenda homónima, que aqui tinha a sua
sede e que nesta última data tinha como comendador o próprio Sebastião
José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal. Com efeito, remonta
a D. Manuel I a criação de uma Comenda da Ordem de Cristo em Marta
de Lobos (c. 1514; extinta em 1826), sediada nesta antiga igreja de Santa
Marinha (SILVA, 1992: 4337
). Note-se que nos arredores já havia toda uma
série de comendas da mesma Ordem, todas de origem anterior: Muxagata
ou Meda e, muito mais próxima, a Comenda da Reigada, que teve como
Comendador o próprio Infante D. Henrique (CAETANO, 2022: p. 41).
A igreja primitiva, talvez por ficar afastada da nova povoação e por ser
relativamente acanhada para uma população tão numerosa, começou a
ser trocada pela também muito antiga igreja de S. Sebastião, a actual igreja
matriz de Mata de Lobos. Assim, em 1758, tirando os baptizados, os demais
sacramentosjáeramaplicadosnestaúltimaigreja,oquedenotaocrescente
abandono litúrgico da igreja de Santa Marinha. Sobreviveram alguns
elementos muitos esparsos da velha igreja, de entre os quais se destaca a
enorme pia baptismal, ainda que desprovida da sua base primitiva Trata-se
de uma vasta taça de secção circular, decorada com gomos longitudinais
de feição muito rude e de composição visivelmente muito arcaica (Século
XIII?), que presentemente se conserva na sacristia da igreja matriz actual.
Nesta mesma igreja se conserva uma outra excepcional pia da água benta,
também muito antiga, talvez também proveniente da velha Igreja de Santa
Marinha. Provavelmente românica e ainda de origem leonesa, faz-se notar
pelo arcaísmo da sua decoração e em particular pelos seus enrolamentos e
volutas vegetalistas. (FIG 3)
O pároco de 1758 informa-nos que, para lá da capela-mor, a igreja dispunha
de “três naves”, informação que tem sido repetida acriticamente por todos os
monografistas e autores locais. Cumpre, porém, esclarecer que o informador
de 1758 confunde “naves” com “tramos”, pelo que a única nave, de há
muito demolida, da velha igreja, era constituída por três tramos justapostos
longitudinalmente, ficando a fachada principal voltada ritualmente para
Ocidente,comoerapráticacorrentenaarquitecturareligiosapré-tridentina.Os
três tramos eram separados entre si por dois arcos-diafragma, à semelhança
FIGURA 1 — Capela de Santa Marinha
de Mata de Lobos: arco entaipado da sua
actual fachada principal.
FIGURA 2 — Mata de Lobos: portal
do Cemitério, epigrafado de 1858.
FIGURA 3 — Igreja Matriz de Mata
de Lobos: pia da água benta medieval,
porventura pertencente à primitiva
Igreja de Santa Marinha.
NOTA 6 — Num livro de despesas pa-
roquiais relativo ao ano de 1813 surge
a verba de 1.040 réis que a paróquia
“despendeu de uma jeira de lavrador na
mudança dos trastes da Fábrica de San-
ta Marinha [sic] para a Casa da Fábrica”
(citado in BORGES, 1989: p. 49). Parece
poder presumir-se que a primitiva Igreja
de Santa Marinha estava a ser desprovi-
da do seu papel multi-secular de igreja
paroquial de Mata de Lobos, pois o seu
recheio (“trastes”!) estava a ser armaze-
nado na “Casa da Fábrica” da nova Matriz,
isto é, na ampla arrecadação contígua à
sacristia da velha Igreja de S. Sebastião,
que em breve passaria a ter a invocação
de Santa Marinha, que mantém até hoje.
Aliás, a este mesmo ano de 1813 corres-
pondem obras importantes no telhado
desta igreja no qual se despenderam
3.500 telhas (BORGES, 1989: p. 48).
NOTA 7 — Júlio António Borges indica, cer-
tamente por lapso, a data de 1862 para
a extinção desta Comenda (BORGES,
1989: p. 54; p. 59).
34 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
dosdaactualmatrizedosdacapeladeSantoAntão,comoveremos.Naactual
capelaconserva-seumaimensaimposta,decoradacommotivosdecorativos
vegetalistas também muito arcaicos, que serviu certamente de base ao
lançamento de um desses arcos. Presume-se que os arcos-diafragma
fossem de muito amplo vão, o que suscitava o seu escoramento nas paredes
laterias exteriores, mediante a justaposição de contrafortes provavelmente
escalonados e mais ou menos reforçados e elaborados.
Se a nave da igreja é fácil de restituir, pois partilhava a mesma morfologia
que a generalidade das igrejas raianas (futuras escavações facilmente
permitirão restituir a planta exacta da nave da igreja, a não ser que os
alicerces tenham sido todos levantados quando da expansão do cemitério
em meados do século XIX), já a capela-mor levanta os maiores problemas
de interpretação. De há muito desprovida dos rebocos que secularmente
cobriram as suas paredes interiores, o aparelho da face posterior das capela-
-mor (ousia) deixa entrever, à vista desarmada, uma empena triangular
relativamente atarracada e descentrada em relação ao que foi o arco triunfal
de comunicação com a nave. Outra surpresa é também a existência de uma
pequena rosácea circular nessa empena fundeira, cujo campo é preenchido
por três círculos tangentes dispostos em torno de um pequeno círculo
central, sendo todos os círculos e os espaços circundantes vazados para
deixar passar a luz. (FIG 4)
Diga-se que, surpreendentemente, a rosácea está também descentrada,
isto é, fora do eixo da capela-mor e da nave da igreja primitiva.
Em plena vigência do Românico (séculos XII, XIII…) este corpo foi refeito de
modo a passar a constituir a capela-mor da Igreja, que devemos intuir ser
românica também. Na sua face anterior lançou-se o seu arco do triunfo
de grande vão mas de impostas muito rasantes. Esta face da capela
seria devidamente escorada com dois contrafortes, um de cada lado, que
sobrevivem e que deixam intuir as grandes dimensões e a configuração dos
demais contrafortes que, pelo exterior da igreja, escoravam os dois arcos-
-diafragma do interior, já referidos, que delimitavam os três tramos da nave.
Em planta, a capela-mor ganharia uma forma aproximadamente quadrada
presumindo-se que o complexo retabular, sucessivamente refeito ao
longo dos tempos e hoje perdido, ficasse centrado no fundo e ao centro
da parede fundeira da capela mor e não surpreenda se esse complexo,
mais ou menos monumental ocupasse toda a frente da parede fundeira
da capela-mor. A ser assim, como pensamos, a rosácea descentrada do
fundo ficaria oculta, pelo que na época barroca se abriria uma janela a
grande altura embora algo estreita na parede do lado da Epístola (o direito
de quem olha para o altar mor).
O rasgamento desta janela (sacrificando-se para isso um cachorro
românico) iria coincidir com o alteamento sensível da capela mor, o que
se detecta do exterior, pois sobre o nível da extraordinária cachorrada
românica que delimita as três paredes livres da capela mor foram apostas
duas fiadas de pedra belamente aparelhada de modo a altear o espaço
interior da mesma capela-mor.
A cachorrada é hoje o elemento arquitectonicamente mais valioso da igreja.
A merecer análise detalhada, diga-se apenas que os cachorros (mísulas de
sustento do beiral primitivo dispostas regularmente ao lado umas das outras)
ostentam figurações aleatórias de máscaras e outros motivos. (FIG 5)
Como atrás vimos, a velha igreja de Santa Marinha perdeu a sua condição
de paroquial, transferindo-se a cabeça de paróquia para a também muito
FIGURA 4 — Capela de Santa Marinha:
rosácea da parede fundeira da capela-
mor da antiga Igreja e actual Capela de
Santa Marinha.
FIGURA 5 — Capela de Santa Marinha:
cachorrada (pormenor).
36 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
antiga igreja de S. Sebastião, no centro da povoação, que assim mudou de
invocação, passando a ser conhecida como a igreja matriz de Mata de Lobos
ou nova Igreja de Santa Marinha, que analisaremos a seguir. Em momento
que ignoramos, a velha igreja foi amputada da sua nave e de eventual torre
ou campanário. Consequentemente, emparedou-se o vão do arco triunfal
primitivoeneleseadaptouopórticoquechegouaosnossosdias,certamente
adaptado de uma das entradas da nave primitiva (ver atrás FIG 1).
2.2 - CAPELA DE SANTO ANTÃO
Apesar de há muito profanada, a capela de Santo Antão continua a ser
um dos monumentos maiores de Mata de Lobos. Trata-se de uma capela
medieval que, apesar de hoje servir de palheiro e de estábulo (!), é, ainda
assim, a igreja com o interior medieval mais bem conservado da paróquia.
A sua fachada modesta é encimada por uma empena hoje desprovida de
qualquer forma de monumentalidade, mas que deve ter ostentado uma
cruz de pedra no seu topo, senão mesmo um campanário, porventura
pequeno e de apenas uma ventana. Implantado algo assimetricamente
nesta fachada, o portal, em arco e de impostas muito baixas, destaca-se,
porém, pelas belas aduelas que definem um arco vagamente apontado
(FIG 6) o que deixa intuir uma data de construção muito precoce (séculos
XII ou XIII).
Contrastando, porém, com o exterior, o interior da capela de Santo Antão
é da maior monumentalidade (FIG 7). É constituído pela capela-mor, mais
ou menos quadrada e por uma nave desenvolvida, ligadas entre si por
um arco triunfal monumental discretamente quebrado e biselado. Trata-
se de um interior religioso típico desta região raiana, a ter em conta a
morfologia tão singular da nave, oblonga, constituída por dois tramos
justapostos longitudinalmente, definidos por um arco-diafragma
transversal, também ogival, para suporte das estruturas de madeira da
cobertura (tecto de duas águas).
De há muito perdido o seu retábulo (o informante de 1758 fala em apenas
umaltar),estabelíssimacapelachegouaténósdesprovidadequalquerforro,
certamente perdido ou removido aquando da sua profanação. Surpreendem,
porém, as dimensões e a escala grandiosa desta capela singular, a que
aquela morfologia dá uma amplidão espacial rara, na sucessão dos seus
dois amplos tramos justapostos longitudinalmente.
2.3 – A ACTUAL IGREJA MATRIZ DE MATA DE LOBOS.
A actual igreja matriz de Mata de Lobos tem de há muito a invocação
de Santa Marinha mas, no passado, foi a igreja de S. Sebastião. Embora
muito transformada nomeadamente na Época Barroca, a igreja, de origem
muito antiga, chegou até nós conservando o essencial da sua estrutura
primitiva – enquanto ao seu lado se conserva também a sua torre sineira,
também de origem muito antiga, pois deve remontar aos séc.s XIII ou XIV
(BORGES, 1989: p. 112), embora com transformações e acrescentos talvez
no séc. XVIII). Com efeito, uma das singularidades maiores desta igreja é
a sua torre sineira, verdadeiramente monumental, mas muito rara, pois é
independente do corpo construído da igreja. Trata-se de uma torre muito
alta (c. 25 metros de altura total), de pedra excelentemente aparelhada (ao
contrário das alvenarias pobres das paredes da igreja fronteira). De secção
rectangular, a torre detém três andares, separados entre si por duas barras
ou frisos horizontais. O último corpo acolhe as seis ventanas arqueadas
FIGURA 6 — Capela de Santo Antão de
Mata de Lobos: fachada principal.
FIGURA 7 — Capela de Santo Antão: nave.
38 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
dos sinos, distribuídas pelas suas quatro faces (2+1+2+1) e é encimado por
uma cornija barroca que sustenta quatro urnas ou pirâmides decorativas
nos seus quatro vértices. Uma pirâmide de alvenaria, belamente rebocada
e caiada, domina o conjunto. (FIG 8)
Na igreja de Mata de Lobos, muito transformada na Época Barroca,
facilmente podemos entrever uma típica igreja medieval composta por
capela-mor e uma amplíssima nave justaposta, unidas entre si por um arco
triunfaldegrandevão,oquetransmiteumaimpressãodemonumentalidade
que perpassa e se acentua na nave, muito vasta e muito larga, o que lhe
dá uma espacialidade de uma amplitude raras na arquitectura medieval,
nomeadamente nas Beiras.
A igreja respeita a tipologia comum dos espaços sagrados de âmbito
paroquial, assente na justaposição de dois corpos autónomos, capela-mor
e nave longitudinal, ligados entre si por um arco triunfal. A esta estrutura de
base justapuseram-se ao longo dos tempos, e muito informalmente, corpos
adjacentes para servirem de sacristia, de arrecadação e ainda uma capela
anexa, coberta em abóbada de berço e aberta para a nave. Paralelamente,
a igreja serviu de cemitério paroquial multi-secular. Por isso, o piso da
igreja ainda hoje conserva um sensacional corpus de campas, devida e
primorosamente alinhadas ao longo da vasta nave da igreja. (FIG 9)
O elemento mais singular da igreja, porém, é a típica morfologia da
sua amplíssima nave, constituída por quatro tramos justapostos
longitudinalmente. (FIG 10)
ComoporventuranaperdidanavedaigrejaprimitivadeSantaMarinhaecomo
na capela de Santo Antão, como vimos – e sobretudo como na generalidade
das velhas igrejas raianas da margem direita do Côa – o amplo espaço da
nave organiza-se mediante a justaposição de tramos definidos e separados
entre si por amplos arcos transversais. Trata-se de típicos arcos-diafragma,
paralelos entre si8
– aqui em número de três, ligando transversalmente as
duas paredes laterais da nave, a fim de facilitar e simplificar o lançamento
das traves longitudinais que sustentam a cobertura. A amplidão dos arcos
exigiu naturalmente, também como nas demais igrejas da região devedoras
da mesma morfologia, o escoramento das paredes pela sua face exterior,
com a adição de poderosos contrafortes que, no exterior, assinalam o
lançamento dos arcos do interior da nave. A simples observação destes
contrafortes exteriores denuncia no exterior a organização do espaço
interior – mas denuncia também uma origem bastante antiga para esta
e para as demais igrejas da região devedoras desta mesma morfologia9
.
Com efeito, e como vimos defendendo, esta morfologia não é de origem
verdadeiramente portuguesa e, como tal, não se encontra nas terras
aquém do Côa, isto é, na margem esquerda do rio que, até 1297, a data
do Tratado de Alcanizes, constituía a fronteira natural de Portugal com
o Reino de Leão. Assim, as terras que em 1297 foram incorporadas no
Reino de Portugal, eram leonesas, e leonesas eram as gentes, os falares e
naturalmente os modos de construir. Esta circunstância explica a presença
intensiva desta morfologia arquitectónica na vasta região entre o Rio Côa e
a fronteira ajustada diplomaticamente em 1297. Ela é uma sobrevivência de
modelos arquitectónicos e de praxis construtivas muito próprias, que não se
encontravam na margem esquerda do Rio Côa. Consequentemente, a data
de Alcanizes – 1297 – poderia ser um excelente referente cronológico para a
dataçãodaprimitivaconstruçãodestaedasdemaisigrejasdevedorasdesta
morfologia. Porém, deve notar-se que a filiação deste território específico
FIGURA 8 — Torre sineira da Igreja Matriz
de Mata de Lobos.
FIGURA 9 — Igreja Matriz de Mata de
Lobos: sepulturas.
FIGURA 10 — Igreja Matriz de Mata de
Lobos: nave.
NOTA 8 — Arco-diafragma: “arco transversal
que separa os tramos de certas igrejas româ-
nicas com o fim de aliviar as paredes laterais”
(SILVA, CALADO, 2005: p. 37). Esta solução ar-
quitectónica, muito antiga (remonta pelo me-
nos ao século XII, muito popular em estruturas
laicas, nomeadamente na Catalunha, é usada
também abundantemente na arquitectura
religiosa. Muito rara entre nós, ressalvando a
arquitectura religiosa de Riba-Côa, o exemplo
mais monumental em Portugal é o da própria
Sé de Braga. As vantagens desta estrutura são
óbvias: “Este tipo de estrutura entre o estático
e o dinâmico permite cobrir espaços de grande
largura com segurança, sem ter que recorrer
ao sistema abobadado. Além disso, com isto,
diminui o peso e pode-se prescindir de muros
grossos (YARZA, 1994: p. 346).
NOTA 9 — Deve notar-se, porém, que os
pés direitos dos arcos-diafragma (de
cunho barroquizante, desde as bases às
impostas) e mesmo alguns contrafortes
parece terem sido refeitos em época
posterior, embora respeitando a morfo-
logia medieval.
40 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
ao Reino de Leão e depois ao Reino de Castela e Leão, ou simplesmente
de Castela não se extingue totalmente em 1297. Com efeito, no domínio
eclesiástico, este território continuou integrado na Diocese de Cidade
Rodrigo – e integrado nesta diocese ficaria durante mais de um século, pois
só nos inícios do século XV as respectivas paróquias passariam do domínio
da Diocese leonesa-castelhana para a antiquíssima Diocese portuguesa de
Lamego10
, como já vimos.
Seja qual for, porém, a datação da sua construção – que presumimos muito
antiga – esta e as igrejas raianas afins são de facto de explícita origem
leonesa, dada a sua tão peculiar morfologia. Porém, o facto de este território
continuar na dependência da diocese de Cidade Rodrigo por um período
tão dilatado, pode fazer atrasar a datação da fase de construção de pelo
menos algumas destas igrejas, pois o bispo leonês-castelhano certamente
apoiaria a sua construção (ou a sua reconstrução), mediante a remessa de
fundos e, sobretudo, mediante a remessa para este território de mestres-
-pedreiroseserventes.Aintervençãodirectademestres-pedreirosleoneses
na arquitectura raiana portuguesa, anterior e posteriormente a 1297, que já
entrevíramos no santuário da Senhora de Monforte do Bizarril (CAETANO,
2021: pp. 30-32) e na igreja matriz de Escarigo (CAETANO, 2022: p. 38),
parece estar assim plenamente demonstrada.
Mas a intervenção de mestres leoneses-castelhanos, ou simplesmente
castelhanos,naactualigrejadeMatadeLobosnãoterminacomadesanexação
da paróquia da diocese de Cidade Rodrigo. Com efeito, cerca de um século
depois,alguresnosfinsdoséculoXVounoiníciodoséculoXVI,aindaseregista
uma intervenção importantíssima nesta igreja a creditar a mestres da mesma
proveniência castelhana: trata-se do extraordinário pórtico da fachada lateral
Norte,detípicaconfiguraçãotardo-gótica (FIG 11) que,maisumavez,sefilianas
tradiçõesconstrutivascastelhanas–eatémudejares.
Com efeito, a composição deste portal sensacional está muito próxima
de uma estética, ou melhor, apresenta um ar de família a que podemos
chamar de Isabelino – “isabelino” por se ter manifestado no reinado de
Isabel a Católica (n. 1451; reinado 1474-1504) – ciclo artístico que precede
ligeiramente o Manuelino português.
Os pés direitos do arco, singularmente baixos, apresentam duas colunas
tardo-góticas, emparelhadas e muito delgadas, sobre cujos capitéis se
sustentam as impostas laterais, muito desenvolvidas, em que se apoiam
os arranques do arco do portal, quebrado (ogival), desenvolvido em duas
discretas arquivoltas. A aduela do fecho do arco ostenta um baixo relevo
pouco profundo e muito desgastado de S. Sebastião, o antigo padroeiro da
igreja, com as suas flechas e sobretudo com as típicas bragas em moda nos
fins do século XV e princípios do século XVI. Diga-se que arcos atarracados
como este podem ver-se em certa arquitectura paroquial da época,
nomeadamente no portal da fachada principal da vizinha igreja de S. Pedro
de Rio Seco (Almeida), que tem uma morfologia muito parecida com a deste.
Porém, a singularidade do arco de Mata de Lobos está no alfiz que enquadra
e delimita o campo do arco e das suas arquivoltas. Trata-se de uma espécie
de moldura rectangular, definida por pequenas molduras laterais que,
arrancando das impostas, sustentam uma moldura horizontal superior
com o mesmo perfil, molduras estas que ostentam típicas pérolas ou bolas,
mais ou menos regularmente distribuídas pelas três faces do alfiz. Enfim,
diga-se que todo este conjunto portal-arquivoltas-alfiz é tratado em pedra
belamente aparelhada, em contraste com a alvenaria pobre de pedra miúda
FIGURA 11 — Igreja Matriz de Mata de Lobos:
pórtico “isabelino” da fachada Norte.
NOTA 10 — Por Bula de 1403 (SILVA, 1992:
p. 544). Infelizmente, não foi possível
apurar se esta data corresponde à Era
de César ou à Era de Cristo, separadas
por 38 anos.
42 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
da parede em que se integra e que no passado era evidentemente rebocada
e caiada, como o deve voltar a ser.
O alfiz, típico da arquitectura tardo-gótica do Sul, sobretudo da espanhola,
merece destaque por ser muito raro entre nós. Como se sabe, quer o
portal lateral primitivo, quer o alfiz que o enquadra, atrás referidos, foram
ocultados sob uma camada de reboco durante séculos e talvez por isso
o pároco de 1758 os não refira. Segundo informadores locais surgiu em
obras relativamente recentes, quando infelizmente se removeu o reboco
integral das fachadas da igreja. Descobriu-se então que o portal original, de
vão muito amplo, tinha sido parcialmente entaipado, de modo a permitir a
abertura de um portal mais pequeno, em uso até à descoberta e restituição
do portal primitivo (BORGES, 1989: p. 110).
Algures no século XVI, a igreja foi enriquecida com um púlpito monumental
(disposto a meio da nave, do lado da Epístola), sustentado por uma
pequena coluna (ordem arquitectónica indefinida), em torno da qual se
dispõem engenhosamente os degraus irradiantes da escada. A plataforma
do púlpito, hexagonal, é resguardada por guardas de pedra, maciças e
desornamentadas, ressalvando as finas molduras que delimitam cada uma
das guardas, nos seus lados superior e inferior e nos ângulos de junção dos
diversos planos laterais entre si, efeito relativamente comum em púlpitos
quinhentistas da região.
O emparedamento, atrás referido, do arco lateral, pode ter ocorrido durante
as grandes obras do século XVIII, quando a igreja foi intensivamente
barroquizada.Nessaépocafoireconstruída,cremosqueapenasparcialmente,
a capela-mor, que provavelmente conservou a planta e as paredes originais,
alteando-as, porém, de modo a sustentarem uma típica abóbada de arestas,
raríssima na região. Dois contrafortes super-dimensionados, aparentemente
destamesmaépoca,pareceteremsidoconstruídosparaapoiarolançamento
da abóbada. Estão dispostos simetricamente de cada lado da capela-mor,
estando o do lado Norte incorporado na sacristia contígua, onde emparelha
comumformosíssimolavabo,tipicamentebarroco,lavradonamaisfinapedra
da região, epigrafado de 1751.
Acapela-mor,deformasensivelmentequadrada,foiparcialmenterefeitaem
meados do século XVIII, ganhando então a sua figuração actual. O pároco
local, autor da memória de 1758, refere explicitamente que a igreja está
então em obras, testemunhadas, aliás, no espelho do “tabuleiro” do altar-
mor, epigrafado “ANNO D 1759” (Ano do Senhor de 1759) numa inscrição
muito vistosa.
Enfim, à Época Barroca remontam os complexos retabulares da igreja, todos
datáveis de meados do século XVIII, como veremos. Merece referência a
descrição do vigário de 1758, que para lá da referência às obras, testemunha
também a progressiva deslocação do culto da velha igreja matriz, onde
ainda se continuavam a fazer os baptizados, para esta:
"Os mais sacramentos e funções paroquiais se fazem em outra igreja que
está situada no meio do povo com a invocação de S. Sebastião, nesta está o
Santíssimo Sacramento e dela se administra aos enfermos. Na capela maior
queagoraseestáfazendodeabóbadaestáoSacramento,S.Sebastião,Santo
António e o Menino Deus. Compondo-se mais esta igreja de quatro altares,
no primeiro deles para a parte direita está a imagem de Nossa Senhora do
Rosário, e no segundo, que é das Almas se acha a imagem de um Crucifixo a
quem este povo tem grande devoção e a imagem da Mãe de Deus ao pé da
Cruz e o Evangelista São João, e para a parte esquerda no primeiro se acha
44 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
a imagem de S. Jorge, e no segundo S. Tiago. Compõem-se [sic] também de
quatro naves [sic] e seu coro" (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276].
Cingindo-nos agora apenas ao exterior da igreja, nota-se à vista desarmada
a barroquização da velha fábrica medieval, submetida a uma linguagem
classicizante, declinada num gosto indiscutivelmente barroco. Assim
surgem as novas aberturas, enquadradas por pilastras e cornijas e
sinalizadas por vistosas urnas decorativas de composição diversa. Porém,
o elemento mais vistoso deste processo de barroquização manifesta-se
sobretudo na belissima empena da fachada principal, com as suas curvas
e contracurvas belamente lançadas e recortadas no horizonte (FIG 12) – e
que ganhariam uma presença e uma dignidade arquitectónica ímpares, se
tivessem mantido os rebocos e as caiações originais – que são de lei numa
fachada como esta.
2.4 - CAPELA DO SANTO CRISTO
Dada a sua localização, a sua morfologia e até a sua invocação, a capela
de Santo Cristo de Mata de Lobos é uma típica ermida de peregrinação,
embora de âmbito estritamente local. Nada sabemos da sua origem,
possivelmente muito antiga, embora, tal como chegou até nós, pareça
ter sido construída (ou totalmente reconstruída) algures nos séculos XVII
ou XVIII. A sua construção, num lugar aprazível e relativamente afastado
da povoação, assegurava a sacralização do território, tão típica da
espiritualidade das sociedades tradicionais. Com efeito, essa sacralização
incidia não só sobre a capela e o seu muito desafogado adro, mas também
sobre os próprios caminhos que outrora ligavam a primitiva matriz
de Santa Marinha a esta ermida, sinalizados pelos cruzeiros de pedra
correspondentes aos diversos passos da Via Sacra, celebrada outrora
processionalmente ao ar livre por todos os devotos de Santo Cristo. O
percurso sagrado tinha o seu ponto alto no “Calvário” fronteiro, onde os
devotos celebravam a própria Paixão e Morte de Cristo encerrando-se a
devoção, já dentro da capela, com a celebração do passo do “Enterro do
Senhor”, que ainda hoje aí jaz exposto no seu esquife.
OCalváriomonumentaldoadrodacapela (FIG13)éumasingelaevocaçãodo
Calvário de Cristo, crucificado no topo de uma colina, entre os dois ladrões
da narrativa sagrada.
Aqui encontramos apenas, como em tantas localidades além e aquém-
-fronteira, as três cruzes, localizadas no topo de uma pequena colina,
aplainada e airosa, dispostas simetricamente: a cruz de Cristo, maior, no
centro, ladeada pelas duas cruzes mais pequenas correspondentes às
dos dois ladrões dos Evangelhos da Paixão. A fim de dar visibilidade e
monumentalidade ao Calvário, as cruzes estão erguidas sobre altos plintos
de feição barroca. Construído em 1722 (BORGES, 1989: p. 56), há todos
os motivos para considerar, dado o carisma do sítio, a existência de um
calvário anterior, muito mais antigo, provavelmente de madeira, implantado
no mesmo sítio, mas cuja vetustez implicou a sua substituição e a sua
monumentalização,realizadanaexcelentepedradolocal.Aactualcapelado
Santo Cristo também pode resultar da reconstrução integral de uma capela
anterior, porventura mais pequena e mais modesta. Ligeiras prospecções
arqueológicas poderão esclarecer esta questão.
O elemento arquitectónico mais distintivo da capela é a sua fachada
principal, muito original e muito rara, onde se abrem duas portas, dispostas
simetricamente, uma de cada lado, ladeando um amplo janelão horizontal
FIGURA 12 — Igreja Matriz de Mata de
Lobos: fachada principal.
FIGURA 13 — Adro da Capela de Santo
Cristo: Calvário.
46 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
velado por típicos mas raríssimos balaústres de pedra de cunho barroco ou
mesmo pré-barroco. (FIG 14)
Aquelas duas portas, ao serviço de uma capela tão pequena, atestam a
naturezadoseuuso,nomeadamentenasviassacrasedemaiscerimóniasda
SemanaSanta,poisasuadisposiçãofacilitavaasentradasesaídasordenadas
dos devotos, à semelhança das igrejas e dos santuários de peregrinação.
Para lá destas insólitas aberturas, dominando a sua fachada principal, o
outro elemento arquitectónico que dá singularidade a esta bela ermida
é o seu típico alpendre (galilé), aposto à fachada principal: Trata-se de um
micro-adro coberto, mais ou menos quadrado, circunscrito por guardas ou
poiais de pedra, como vemos em tantas velhas ermidas portuguesas.
De planta sensivelmente quadrada, a capela outrora era coberta por
um forro em masseira, porventura muito aparatoso, isto é, de formato
piramidal rebaixado, de secção quadrangular ou mais provavelmente
octogonal,talvezrealizadoemcaixotõesarticuladosunsnosoutros,sendo
o todo devidamente pintado com motivos decorativos e sobretudo com
motivos religiosos. Dada a invocação da capela, podemos imaginar que
o tecto fosse decorado com brutescos classicistas (ornatos vegetalistas
tipicamente enrolados) a enquadrarem os símbolos da Paixão de Cristo
(coroa de espinhos, cruz, pregos, martelo, etc, etc.). Este tecto, mais
ou menos rico, foi substituído em obras recentes por um forro algo
pretensioso, também em masseira, mas realizado com prosaicas ripas de
forro corrente, nos antípodas das pompas barrocas que há que intuir no
interior primitivo desta tão formosa capela.
Dignificando a singela capela, a sua caiação sobrevive intacta no exterior.
Porém, o não entendimento quer da sacralidade do espaço, quer da sua
monumentalizaçãoevidente,levouàrelativamenterecenteremoção,escusada
emuitoinfeliz,dorebocoedacaiaçãointeriores,queeramelementosinerentes
à linguagem arquitectónica desta e de todas as igreja e capelas erguidas na
época barroca que, ao contrário do que pudéssemos pensar hoje, não tolerava
e era incompatível com a estética pseudo-minimalista da “pedra à vista”. Para
acentuarodesconfortovisualelitúrgico,actualmentesentidoporentreassuas
vetustasparedes,assimtristeeescusadamentedecapadase“depenadas”,tem
quesereferirqueasjuntasinterioresentreaspedrasdasparedesforamtratadas
em cimento industrial comum – materiais, técnicas e efeitos absolutamente
impróprios, que temos que classificar de muito “rascas”, passe o plebeísmo da
expressão–soluçãoquesepodeesperarnumqualquerarmazém,garagemou
mesmonumrestaurantetípicomasnuncanumaermidacomoesta,comasua
história,asuaantiguidadeeasuaextremacategoriaarquitectónica!
3. Arte sacra em Mata de Lobos
Como atrás se disse, a paróquia de Mata de Lobos herdou, para lá da sua
extraordinária arquitectura religiosa, um vasto património de arte sacra,
onde confluem as artes aplicadas, a pintura e sobretudo a escultura,
atingindo esta culminâncias raras e inesperadas numa paróquia raiana.
Por absoluta indisponibilidade de espaço não consideraremos as artes
dos têxteis da paróquia (paramentaria, linhos e sedas; bandeiras e toalhas
de altar e afins), nem a marcenaria, patente em excelentes peças de
mobiliário sobreviventes . A ourivesaria11
e em particular a artes dos metais
merece, porém, justo destaque. Assim, entre outras peças de qualidade,
note- se a excelente cruz processional exposta na Capela de Santa Marinha,
aparentemente flamenga. (FIG 15)
FIGURA 14 — Capela de Santo Cristo:
fachada principal.
FIGURA 15 — Capela de Santa Marinha:
Cruz processional.
NOTA 11 — Num livro de despesas paro-
quiais relativo ao ano de 1813 surge a
verba de 3.200 réis que a paróquia “des-
pendeu para quem levou e trouxe a prata
da Igreja para a livrar do inimigo” (citado
in BORGES, 1989: p. 48), tarefas relacio-
nadas com a III Invasão Francesa, que
ocorreuem1810equedevassouaregião.
48 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
Apoiada num globo e com os braços de secção circular, esta cruz, quase
desprovida de ornatos, destaca-se pela elegância sóbria e austera que
associamos a certas formas tardo-renascentistas, tão típica dos finais do
século XVI e dos inícios do século XVII.
3.1 - A ESCULTURA SACRA DE MATA DE LOBOS
Comoportodoolado,atalhaeaesculturasacradeMatadeLobosestavam
ao serviço do culto e exerciam-se a dois níveis: retábulos e imaginária. A
extraordinária colecção de imagens sagradas sobreviventes em Mata
de Lobos, de origem medieval, quinhentista ou posterior, deixa intuir
sucessivas gerações retabulares nas igrejas e capelas desta tão antiga
paróquia. Nas linhas que se seguem procuramos dar uma apanhado
quer dos dois mais importantes retábulos que chegaram até nós, quer da
principal imaginária sobrevivente.
3.1.1 - A VIRGEM EM MAJESTADE ROMÂNICA DA IGREJA MATRIZ DE MATA DE LOBOS
A belíssima e antiquíssima imagem da Virgem em Majestade que hoje se
conserva na capela-mor da actual igreja Matriz (lado do Evangelho) é uma
imagem de madeira em que a Virgem, com o Menino ao colo, de acordo
com uma iconografia muito consolidada (FIG 16). Surge sentada num trono
majestático, exposta à contemplação e à devoção dos fiéis12
. A Virgem usa
túnica longa e está envolta no inevitável manto azul, muito repintado ao
longo dos tempos.
Embora de uma forma lacunar, esta imagem parece ser referida pelo vigário
de Mata de Lobos de 1758, quando este, na sua memória, refere um “Menino
Deus” que então se expunha ao culto na capela-mor da igreja, como atrás
vimos, ao lado de S. Sebastião e de Santo António. Fora esta referência tão
vaga, mais nada sabemos desta extraordinária imagem, da sua datação
(século XIII? princípios do século XIV?) ou, muito menos do mestre santeiro
queamodelou.Asuasobrevivênciaé,porém,ummilagredevocionalecultural,
a fazer parelha com idênticos “Milagres” celebrados nas Cantigas de Santa
Maria que devemos ao rei de Leão Afonso X, avô do rei D. Dinis de Portugal,
onde a Virgem é cultuada intensivamente em imagens, algumas das quais
temos que presumir muitos semelhantes a esta. Com efeito, na rudeza das
fisionomias, na frontalidade da postura e até na rigidez geral da composição
emerge uma dignidade e uma graça verdadeiramente transcendentes, que
fazem desta bela imagem, que felizmente permanece exposta ao culto, uma
obra-prima absoluta da escultura medieval portuguesa, filiável no ciclo do
Românico, a merecer restauro condigno e urgente – e a merecer resguardo e
dossel compatível com a sua antiguidade e a sua valia devocional e estética.
3.1.2. A ESCULTURA QUINHENTISTA DE MATA DE LOBOS
AparóquiadeMatadeLobosconserva–maisumavezalgomilagrosamente
– três conjuntos escultóricos da maior categoria, de origem desconhecida
mas datáveis de momentos diversos do século XVI: o grupo da Paixão de
Cristo (Cristo Crucificado, a Virgem e S. João Evangelista) num altar lateral
(lado do Evangelho) da actual igreja matriz; um baixo relevo em madeira
representando S. Jorge a combater o dragão, presentemente exposto
na capela-mor da mesma igreja, também do mesmo lado e, enfim, uma
portentosa, inesperada e surpreendentemente pouco notada imagem
de Santa Marinha, de madeira, mutilada e muito mal conservada, que se
continua a expor na capela da mesma invocação, já atrás referida.
FIGURA 16 — Igreja Matriz de Mata de
Lobos: Virgem em Majestade românica.
NOTA 12 — Inês Mineiro Abreu refere es-
pecifica embora muito fugazmente a
Virgem em Majestade de Mata de Lobos
na sua recente tese (ABREU, 2023: Vol.
I: p. 89; Vol. II: Fig.s 51, 52, 53). A autora
identifica este tipo iconográfico como “o
modelo da Sedes Sapientiae”, que asso-
cia ao tipo da “Virgem em Majestade ou
Trono de Sapiência – isto é, Maria seden-
te que serve de trono ao Menino, ambos
hieráticos e frontais em relação ao ob-
servador, e sem demostrações de afecto
entre ambos, ou seja, duas personagens
pertencentes ao universo estritamente
divino” (ABREU, 2023: p. 72).
Na sua tese, muito interessante, a autora
regista a antiguidade e a popularidade,
mesmo internacional, desta iconografia
(Ibidem, p. 147) e também intui as afinida-
des deste modelo iconográfico com algu-
mas das Virgens invocadas nas Cantigas
de Santa Maria de Afonso o Sábio (Id., Ibi-
dem, p. 52 e seg.s). Noutra passagem da
sua tese, a autora regista a longevidade
deste modelo iconográfico: “o modelo da
Sedes Sapientiae é o que mais permane-
ce imutável até ao séc. XIV, mantendo-se
o gosto, em Portugal, por esta tipologia,
mesmo após 1300, embora introduzin-
do novidades formais e iconográficas ao
mesmo” (Id., Ibidem, P. 147).
Nota: agradeço ao amigo Ruy Ventura
esta referência bibliográfica tão recente,
bem como outras considerações e su-
gestões sobre o conjunto de esculturas
quinhentistas de Mata de Lobos.
50 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
A abordagem destas três peças suscita a questão da sua origem e da sua
datação e também a da sua localização original, certamente em máquinas
retabulares relativamente aparatosas e estruturalmente diferentes entre si,
tendo em conta a morfologia diferente destes três conjuntos.
3.1.2.1 - O CALVÁRIO QUINHENTISTA DE MATA DE LOBOS
Para quem entra, o Calvário expõe-se no primeiro retábulo da igreja, à
esquerda de quem olha para o altar-mor. Relativamente mal adaptado
num excelente retábulo tardo-barroco, demasiado acanhado para receber
um conjunto escultórico tão monumental. O Calvário é constituído pela cruz
comoCrucificadoe,embaixo,dispostossimetricamente,umdecadalado,a
Senhora das Dores e, do outro lado (direito), S. João Evangelista (FIG 17).
Surpreende a evidente monumentalidade do conjunto, que ostenta as
imagensdemaiortamanhodetodaaigrejaesurpreendetambémacategoria
estética global das figuras sagradas, a merecerem estudo aprofundado. O
Calvário, dominado pela figura tão majestosa quanto dramática de Cristo
na Cruz, representado de acordo com convenções iconográficas pouco
correntes, sobrepõe-se a uma figuração da cidade e das muralhas de
Jerusalém, aqui providas de ameias.
Odevotoéconvidadoafecharosolhosàsrepinturasmaisoumenosrecentes
do retábulo e sobretudo aos repintes sucessivos que embonecaram tão
escusadamente estas imagens. Impõe-se, consequentemente, uma
criteriosa limpeza do retábulo e das esculturas, a fim de estas reganharem
o seu brilho, a sua autenticidade e a sua dignidade originais, ocultadas por
repintes aplicados ao longo dos últimos séculos.
Tudo é extraordinário neste Calvário: o tamanho excepcional e a evidente
escala monumental do conjunto, de há muito menorizado na tribuna
acanhadadeumretábuloque,deacanhadaemesmoestreita,ocultaasmãos
de Cristo na Cruz e parece comprimir as imagens uma contra as outras. A par
do tamanho e da escala, registe-se a presença visual única desta cena muda,
mas tão dramática, dominada pela torsão intensa do corpo do Crucificado, de
rosto voltado para a Virgem, ela própria retorcida, de olhos voltados para a
base da cruz enquanto volta o corpo e as mãos suplicantes, agarradas uma
na outra, para a esquerda e para cima, num gesto relativamente invulgar de
dor e prece. No lado direito, o apóstolo S. João, numa posição frontal típica
do contraposto, quebra a serenidade clássica que se esperaria desta pose
ao voltar violentamente a cabeça para a cruz numa torsão que lhe dá uma
amplitude de olhar capaz de captar e reflectir toda a dor da cena sagrada, dos
joelhos, das chagas e do rosto do Crucificado, até à Mater Dolorosa que do
outro lado da cruz volve o seu olhar para os pés do Calvário.
Nada sabemos do complexo retabular primitivo que acolheu este
Calvário porventura neste mesmo sítio, encaixado num muito vasto nicho
incorporado na parede Norte da igreja, sobre uma predela perdida, pintada
ou provavelmente esculpida, que servia de base à cena da Paixão e Morte
de Cristo. Do mesmo modo, nada sabemos quer da autoria quer da datação
deste sensacional conjunto escultórico que milagrosamente chegou até
nós – e que já em 1758 era referido como objecto de grande devoção dos
moradores, como atrás vimos.
A dramaticidade das figuras e as suas torsões tão intensas, a par do
silêncio eloquente das poses e dos gestos, que dispensa gritarias e se
concentra todo nas expressões contidas e interiorizadas desta espécie de
FIGURA 17 — Igreja Matriz de Mata de
Lobos: Calvário quinhentista do altar
das Almas.
artes da Alemanha desde a Idade Média até aos nossos dias. Aqui em
particular, estamos em pleno âmbito do “expressionismo nórdico” de que
fala Fernando Checa, cuja “versão dulcificada” “se observa nos círculos
em torno da Corte” castelhana, ao serviço de uma efectiva “extensão do
modelo nórdico em Castela” (CHECA; 1983: p. 62).
Não surpreenda a acção de oficinas de mestres escultores estrangeiros
ou a importação de obras estrangeiras para terras de Riba-Côa, pois a
categoria de “periferia”, que hoje associamos a estes territórios raianos,
não existia no século XVI nem, de uma maneira geral, nas sociedade de
Antigo Regime, quando (apesar da natureza dos transportes da época) o
território do Reino era infinitamente mais equilibrado, mais coeso e mais
homogéneodemográficaecultutalmentedoquehoje.Éestacircunstância
que explica que uma paróquia, nada periférica, ao contrário do que
pudéssemos pensar, antes muito abastada e influente, nomeadamente
depois de, em 1514, se ter tornado cabeça de uma Comenda da Ordem
de Cristo: a Comenda de Santa Marinha de Mata de Lobos, uma das
comendas novas da Ordem de Cristo, criadas por D. Manuel I (BORGES,
1993: p. 91). Provável encomenda de prestígio de um comendador ou de
um grande da época de algum modo ligado a Mata de Lobos, este Calvário
é dos mais dramáticos, senão o mais dramático das Beiras. Seja qual for
a sua datação e a sua origem efectiva, importado ou executado cá, as
imagens do retábulo da Paixão de Mata de Lobos são obra de um grande
mestre desconhecido ou ainda por identificar (infelizmente muita da velha
arquitectura e da arte beirã está por documentar – e por documentar irá
permanecer, devido à miséria franciscana dos arquivos históricos locais),
de origem flamenga ou mais provavelmente alemã, como pensamos. As
teatro sagrado, põem a questão da origem e da datação deste Calvário e o
dosmestresouodaoficinaondefoifeito.Dadaaexpressividadeveemente
do conjunto parece tratar-se de obra de uma oficina luso-flamenga, ou
mesmo flamenga. Com efeito, sabemos que artistas flamengos – o
escultor Mestre Arnao de Carvalho, ao lado do pintor porventura português
Henrique Fernandes – trabalharam comprovadamente em 1524, na
vizinha paróquia de Escalhão13
, nas esculturas do respectivo retábulo-mor
quinhentista, de que nos ficaram importantes fragmentos14
. Com efeito, a
elegância aristocrática e afectada das personagens sagradas bem como
a sua expressividade - intensa e dolorosa até à saturação - parecem
incompatíveis com as tradições culturais e religiosas próprias da arte e da
sensibilidade portuguesa ou da italiana, mas também parece apresentar
uma carga devocional e uma “temperatura” artística muito afastadas das
espanholas ou francesas da época. Assim, restam duas opções para a
plena identificação deste tão insólito e tão raro Calvário: ou tratar-se de
um produto de importação – ou antes, tratar-se do produto de artista ou
artistas luso-flamengos activos entre nós, provavelmente com oficina
nas Beiras ou (hipótese mais provável ainda, dadas as características da
figuraçãoglobal)serfrutodeumaoficinaoudeummestregermânico,activo
entre nós15
. Notem-se as afinidades com as imagens comprovadamente
alemãs da Virgem e de S. João, do próprio Museu Gulbenkian, datáveis
“já do início do séc. XVI”. Com efeito, estas figurações tão dramáticas, e
mesmo patéticas, na sua eloquência sobrecarregada até à saturação com
oobjectivodesensibilizareresponderàsangústiasexistenciaisdecrentes
acossados em tempos de mudança e de crise16
, integram-se plenamente
nas pulsões “expressionistas” que se captam tão intensamente nas
NOTA 13 — Pedro Dias refere explicita-
mente que “Na Beira Alta, foi Arnao de
Carvalho quem dominou toda a escultura,
tendo-se associado a Vasco Fernandes,
para quem fez as estruturas e estatuária
dos retábulos das Sés de Viseu e Lame-
go. Ainda hoje há obras suas nas igrejas
de Escalhão e Castelo Rodrigo” (DIAS,
1997: p. 54).
NOTA 14 — Fernando Grilo identifica as
seguintes esculturas de Mestre Arnao
no retábulo quinhentista da Matriz de
Escalhão, readaptados no retábulo bar-
roco que chegou até nós: “subsistem
os quatro Evangelistas, e 4 apóstolos,
estátuas de madeira de boa qualidade,
assim como dois notáveis relevos, re-
presentando o Caminho do Calvário e a
Deposição de Cristo, esculturas integra-
das actualmente num retábulo barroco”
(GRILO, 1997:, p. 110), acrescentando que
ao mesmo mestre ainda devem ser atri-
buídas a Virgem e S. João de um Calvário
de Castelo Rodrigo. Sobre Mestre Arnao
de Carvalho ver GRILO, 1997: pp. 106-111.
NOTA 15 — Referindo-se apenas à pintu-
ra – disciplina onde se vive uma situação
em tudo semelhante – Paulo Pereira
pôde escrever que nas primeiras décadas
do século XVI Portugal apresenta “uma
marcada preferência pelas importações
de peças de origem nórdica, flamenga
e alemã”, acrescentando que “O grosso
das importações marcaria, a partir de um
mercado disponível ou de maior acesso fi-
nanceiro,comooeraodaEuropadoNorte
e sobretudo a Flandres, o gosto áulico.
Este gosto manifestava-se não apenas
em aquisições da Coroa mas também em
encomendas feitas a partir dos principais
centros políticos e religiosos portugueses
(Lisboa, Coimbra, Braga, Viseu ou Évora)”
(PEREIRA, 2011: p. 473). Paulo Pereira
publica ainda (Id., Ibidem) um mapa da
Europa com as “Rotas para fornecimento
da indústria naval portuguesa na Europa”,
que vai de Cádis e Sevilha até Riga, notan-
doque“amesmarededecontactosservia
paraotrânsitodeartistaseimportaçãode
obras de arte”.
Por sua vez, Fernando Grilo refere a im-
portação de imagens e conjuntos reta-
bulares como o retábulo da “Parentela
de Santana”, de Antuérpia, c. 1500, que
ainda hoje se expõe na Igreja Matriz de
Torre de Moncorvo (GRILO, 1997: p. 87)
Paralelamente à importação de obras
flamengas e alemãs, o mesmo autor
considera que “A permanência de es-
cultores nórdicos em Portugal veio ao
encontro da necessidade de dar resposta
a um conjunto crescente de encomendas
em madeira, que eram de mais fácil sa-
tisfação,demaisrápidaexecução,menos
onerosas e esteticamente notáveis pelas
possibilidades expressivas e colorísticas
que revelavam” (GRILO, 1997: p. 89).
NOTA 16 — Segundo Maria Rosa Figuei-
redo, trata-se de um período em que “a
contemplação da Paixão de Cristo e do
sofrimento dos Santos, destinada a au-
mentar nos devotos os sentimentos de
52 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3
Caderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de Lobos
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Caderno do Património 3 (2023) Sobradillo-Mata de Lobos

  • 2. 2 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 Os Cadernos do Património vão ganhando escala. Este terceiro número será mais uma peça na longa cadeia que se pretende construir, haja força, beleza e sabedoria para continuar este importante trabalho de valorização do território raiano. Considerando que o meu mandato, enquanto presidente da RIBACVDANA, terminará no final do presente ano, aqui fica o meu agradecimento públi- co a todos aqueles que ajudaram esta ASSOCIAÇÃO DE FRONTEIRA PARA O DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO a crescer. E, quando, uma vez mais, aqui, celebramos a edição de um novo número dos Cadernos do Património, gos- taria de singularizar esses agradecimentos a quem coordenou a sua edição, a quem concebeu e desenhou os cadernos, a quem reviu os textos vezes sem conta e preparou os ficheiros para impressão, e sobretudo distinguir todos os articulistas e fotógrafos participantes, num trabalho voluntarioso e pro-bono, sem os quais os Cadernos do Património não teriam sido pos- síveis com a qualidade que todos reconhecem. Cadernos do Património 3 – editorial António Sá Gué PRESIDENTE DA DIRECÇÃO DA RIBACVDANA so bra di llo mata de lobos
  • 3. 4 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 E os agradecimentos que se impõem às diferentes entidades e pessoas anónimas que contribuíram para que as jornadas em Mata de Lobos e So- bradillo decorressem da melhor forma. À Câmara Municipal de Figueira de CasteloRodrigo,àJuntadeFreguesiadeMatadeLobos eaoAyuntamiento de Sobradillo, por todo o apoio prestado. Aos “Caminheiros do Águeda” que nos acompanharam e fizeram a visita guiada à Mata de Lobos, aos “Territó- rios do Côa” – Associação de Desenvolvimento Regional e ao Parque Natu- ral Arribes del Duero, e à sua Casa em Sobradillo. E seria imperdoável se não fosse referida a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDRC), particularmente, a Dr.ª Lídia Martins que está ligada aos nossos projectos e trabalhos desde o princípio e foi quem sempre nos acompanhou no terreno e incentivou a continuar. Este número conjuga comunicações que foram apresentadas em duas ac- ções desenvolvidas desde o ano passado: o “3.º Encontro Transfronteiriço entre Mata de Lobos e Sobradillo”, em Setembro de 2022, e as “2.ªs Con- versas da Raia”, em Escalhão, em Maio de 2023. Carlos Vicente trouxe-nos o ciclo do pão, e deu a conhecer como era esse ciclo na Mata de Lobos e em toda a região de Ribacôa, bem como aspec- tos etnográficos e linguísticos desta importante actividade da humanidade, que nos salvou da fome ao longo dos milénios da nossa existência. Carlos Caetano, enquanto historiador de arte, uma primeira abordagem da actual Igreja Matriz da Mata de Lobos, bem como das ermidas de Santa Marinha, de Santo Antão e do Senhor Santo Cristo, alertando sempre para o valor patrimonial que as suas paredes encerram, tanto no que é visível, e, por detrás delas, no tanto que é muitas vezes invisível. José Miguel guiou o nosso olhar para os monumentos naturais, fragas, ro- chedos, escarpas erguidas na paisagem, e que, pelas suas particularidades, constituíram-se elementos sacros pré-históricos. Francisco Gonzalez, além de nos apresentar historicamente o castelo de Sobradillo, elemento arquitectónico que sobressai no casario que o envolve, fez uma contextualização da envolvência deste belo pueblo raiano. Manuel Correia Fernandes explica-nos a diferença entre muros e paredes, elementos essenciais na arquitectura e na paisagem raiana que, por moti- vos inaceitáveis, estão a ser desmontados e vendidos ao desbarato. Finalmente, a paisagem. A paisagem geográfica e humana da raia vista pe- los olhares atentos do grupo informal de fotógrafos que, desde o início, têm estado com a RIBACVDANA. Foi nestas participações que o grupo finalmen- te recebeu o nome de baptismo, “PORTA 55”, uma homenagem à casa de Aires Roque e de Felisbela Maia, porto de abrigo do grupo em Figueira de Castelo Rodrigo. E que ano após ano, nos vão deleitando com o seu olhar agudo e poético, e sempre com uma proposta temática de base, neste caso: “Caminhos”. Uma metáfora que nos pode orientar para diversos contextos existenciais, sejam eles materiais ou imateriais – caminho que procuramos para a RIBACVDANA. Oxalá esse caminho se apresente sem escolhos e, se os houver, sejamos capazes de os contornar.
  • 4. 6 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 A DECADÊNCIA DOS FORNOS DO POVO EM MATA DE LOBOS – CONTRIBUTO PARA A REABILITAÇÃO DO PATRIMÓNIO MUNICIPAL Carlos Guerra Vicente ASSOCIADO DA RIBACVDANA DA MATA DE LOBOS O presente artigo, resultado de uma comunicação apresentada no quadro do III.º Encontro Transfronteiriço de Património Mata de Lobos / Sobradillo, tem como finalidade sensibilizar as autarquias, as instituições públicas, os proprietários e as comunidades locais para a importância do legado patrimonial dos fornos comunitários e para a necessidade de levar a cabo o seu levantamento completo no concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, bem como incentivar a sua classificação como imóveis de interesse municipal, e promover a sua reabilitação e conservação, integrando-os nas pequenas rotas turísticas municipais, numa lógica de desenvolvimento sustentável do território e da sua população. Até à década de 70 do século XX, este concelho, com uma economia baseada na atividade agro-pastoril, contribuiu, embora em pequena escala, para as estatísticas de produção de cereais no país. Ciclo do Pão - Museu da Casa da Freguesia de Escalhão - autor desconhecido e edição de Renato Roque
  • 5. 8 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 Neste contexto social e económico, o pão tinha lugar de destaque como alimento base dos trabalhadores rurais e das famílias mais pobres e os fornosaquecidosalenhadesempenhavamumpapelderelevonaeconomia enasubsistênciadaspopulações,aomesmotempoque configuravamuma rede de convívio e de sociabilização. Em Mata de Lobos, os fornos entraram em decadência em finais dos anos 60 do século passado, na sequência de um surto emigratório para França e da introdução do fabrico industrial do pão no concelho; com efeito, em 1969, entre outras no concelho, começou a laborar nesta aldeia a Panificadora Alentejana, propriedade de pequenos investidores vindos daquela região. Na Mata, chegou a haver oito fornos, mas, por iliteracia cultural e voragem da reconstrução urbana foram todos extintos e transformados em casas, garagens e palheiros. Nas restantes aldeias, de um total estimado em cerca de 56 unidades existentes no território municipal, muitos desapareceram e a maioria encontra-se em estado de abandono ou ruína avançada, graças ao desinteresse dos proprietários, bem como à falta de directivas municipais paraaconservaçãodestetipodeimóveis.Apesardoestadodedegradação e de fragilidade destas estruturas em mãos de privados ser transversal a todo o concelho, os nossos contactos pessoais com alguns autarcas revelam que, da parte das autarquias locais, há evidências de um interesse crescente pela sua preservação e intenção de adquirir pelo menos um forno para uso comunitário, como é o caso de Algodres, Almofala, Escalhão e Freixeda do Torrão. As visitas efectuadas a todas as freguesias do concelho permitem-nos verificar que em algumas delas há fornos já requalificados e noutras há iniciativas de preservação levadas a cabo pelas autarquias e pelos proprietários. Assim, destaca-se a reabilitação de um forno comunitário em Penha de Águia pela Câmara Municipal, em 2005, que pode ser utilizado em dias festivos. Outro na Quintã de Pêro Martins, restaurado pela autarquia local há cerca de vinte anos e que apenas é aberto para visitas turísticas; um terceiro em Vale de Afonsinho, renovado em 2021 pela União de Freguesias da Freixeda do Torrão, e que é utilizado em datas comemorativas; em Cinco Vilas há dois em bom estado de conservação; o que se situa no largo da igreja foi intervencionado pelos proprietários há cerca de 10 anos, a fim de o consolidar e de lhe restituir a dignidade, em função do lugar que ocupa no centro histórico da aldeia; os seus herdeiros, para honrar a memória familiar, dão continuidade à sua função comunitária, sendo utilizado para a confecção dos bolos para a festa de Nª Senhora do Pranto, em Maio de cada ano. A ele recorre também a população da Reigada para cozer «os esquecidos e os pobres (económicos)», realidade que põe em evidência a sua função comunitária, social e religiosa; em Algodres, onde ainda existem quatro fornos, os proprietários do que se situa na Rua do Castelo, e que é integralmente construído em pedra, estão revitalizando a área envolvente para fins socioculturais e turísticos; por seu lado, a União de Freguesias de Almofala estabeleceu um acordo escrito com os proprietários de um dos fornos para ser intervencionado no prazo de dois anos; no Colmeal é visível a ruína do forno comunitário da aldeia que foi classificada com “Valor Concelhio” por Despacho de 25 de Outubro de 19681 ; contudo, de um vasto conjunto de imóveis reabilitados para hotelaria, este não sofreu qualquer intervenção na sua estrutura composta de xisto e de granito. FIGURA 1 – Lavrando a terra, Museu Casa Freguesia Escalhão. FIGURA 2 – Carregando o pão para a eira – Museu Casa Freguesia Escalhão. FIGURA 3 – Crivando o pão – Museu Casa Freguesia Escalhão. O longo Ciclo do Pão - Lavrador abarbeitando a terra; a seara é acarrejada para a eira, onde mãos ágeis acariciam o grão, e um novo ciclo recomeça com a metamorfose do pão. FIGURA 4 – J. Vicente e M. Ofélia Guerra – Mata de Lobos, forneiros de 1959 a 1967. FIGURA 5 – Forno comunitário reabilitado – Penha de Águia.
  • 6. 10 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 2 Os contactos informais e entrevistas desenvolvidos junto das populações locais, maioritariamente mulheres com idade superior a 65 anos, permitem-nos constatar que a história dos fornos e do pão é uma realidade praticamente desconhecida ou ignorada pelas novas gerações. Por outro lado, o tempo, a interioridade, o défice demográfico, o desinteresse e desvalorização, a lentidão da tomada de decisões políticas, a falta ou dificuldade de negociações com os proprietários, entre outros factores, concorrem para eliminar em definitivo da paisagem e da memória colectiva os que ainda não foram intervencionados. Nos nossos dias, porém, verifica-se um despertar cívico das autarquias, de movimentos associativos e de alguns proprietários para o importante papel desempenhado pelos fornos e pelo pão no passado e para as suas potencialidades enquanto vectores de desenvolvimento cultural, social e turístico no presente e no futuro. Na sequência desta dinâmica, tem aumentado a procura do pão tradicional e, por isso, em diversas regiões do país retomou-se o fabrico artesanal em fornos de lenha, que se integra em programas de revitalização económica e turística. Destaca- se, entre outros, o pão de centeio da Serra da Estrela, amassado à mão e cozido em forno de lenha, o pão de Mafra, o de Montemuro, a broa de Vil de Moinhos, o molete de Valongo, o pão da Vidigueira, no Alentejo, e o pão de São Miguel do Pinheiro, no concelho de Mértola, a que foi atribuída a medalha de ouro no 10º Concurso Nacional de Pão Tradicional Português, em 2022. Por sua vez, a Câmara Municipal da Mealhada, que reconhece na dinâmica do pão tradicional e de outros produtos endógenos uma mais-valia económica e cultural, criou a marca registada “Água / Pão / Vinho / Leitão da Mesa da Mealhada” e, em parceria com a Escola de Hotelaria e de Turismo de Coimbra, vem atribuindo um selo de qualidade aos produtos vencedores em concurso público. A conjugação destas evidências demonstra quão oportuno e decisivo seria um mapeamento completo dos fornos comunitários do concelho, envolver os proprietários neste processo e, em articulação com os vários agentes, estudarapossibilidadedeosreabilitaredeexplorarassuaspotencialidades turísticas e educativas. Esta acção poderia ser levada a cabo por uma equipa multidisciplinar, em paralelo com o levantamento de outros imóveis de arquitetura rural e de ofícios tradicionais dispersos pelo município em vias de extinção, tendo em vista avaliar a sua classificação de “interesse municipal”, dando continuidade ao Inventário de Santos2 Forno do povo – forno público Forno do povo em Mata de Lobos, em sentido lato, era um imóvel onde se cozia o pão, e todos estavam enquadrados na malha urbana; no sentido próprio, consistia no espaço de cozedura do pão constituído por um lastro plano e por uma câmara em abóbada forrados com tijolo burro, excepto um, na Rua Combatentes do Ultramar, que era todo em granito aparelhado. Existia um espaço para a preparação do pão, onde se peneirava e amassava, uma lareira para aquecer a água da salmoura, uma pia para mergulhar a vassoira de varrer o interior do forno, um ou mais poiais para pousar os tabuleiros, e um canto para guardar a lenha. Regra geral havia uma chaminé commaisde2metrosdealturaparaaexaustãodofumodointeriordoforno e outra mais pequena para a lareira de apoio. Pertenciam a proprietários privados, mas desempenhavam uma função pública na medida em que o livre acesso da população local a qualquer deles era apenas ditada FIGURA 6 – No forno, preparando a festa de N.ª Sr.ª do Pranto, Cinco Vilas. FIGURA 7 – Forno em ruína — Colmeal. FIGURA 8 – Forno da Praça à direita — Mata de Lobos. NOTA 1 — Santos, Paulo Jorge Ferreira dos, Inventário do Património Históri- co-Arquitectónico Concelhio, Câmara Municipal de Figueira de Castelo Rodrigo, 2000. NOTA 2 — Santos, idem.
  • 7. 12 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 por critérios de proximidade ou de ordem subjectiva; eram alugados aos forneiros, por meio de contrato oral, com o dever de os manter ao serviço da comunidade, estando incluída, em alguns contratos, a obrigação de os proprietários darem, por ano, duas cordas para as cargas de lenha, um par de sapatos (botas) para a forneira e outro para o forneiro; além disso, davam também a masseira, os tabuleiros, os panais de pano cru (entretela), o caldeiro de aquecer a água e a pá de meter e tirar o pão, enquanto o rodo e a vassoira de limpar o lastro e outros utensílios menores ficavam a cargo dos forneiros. Estas estruturas em algumas regiões do país eram designadas por fornos comunitários, fornos comuns, fornos públicos, por oposição aos fornos de uso unifamiliar. São apresentados por Sandra Pinto em História del Derecho Europeo3 em documentos de transição da Idade Média para a Idade Moderna como fornos de poia, fornos de poya de pam, conforme uma norma das posturas de Leiria de 1625, e fornos poyeiros, porque neles se poyava a poia, à forneira pelo seu trabalho, costume que se manteve em vigor em Mata de Lobos até ao final dos anos 60 do século XX. Por sua vez, Silva, define-os como fornos de cozer à maquia4 . Na generalidade das freguesias, tal como na Mata, os fornos eram propriedade privada, sendo comunitária apenas a sua função; contudo, no Colmeal5 não havia forneira e cada habitante encarregava-se de aquecer o forno para cozer o seu próprio pão; além disso, havia o costume de espetar nas frestas da parede de entrada do forno um ramo de giesta para marcar a vez (adua), e não se pagava a poia. Estes costumes levam-nos a inferir que nesta aldeia os fornos seriam propriedade da comunidade; encontrámos o mesmo método de marcação de vez no Bizarril, mas não foi possível saber se o forno era propriedade privada ou comum. O forno: função natural, espaço de convívio e escola de saberes O forno do povo tinha como função natural cozer o pão. Como atrás se referiu, era uma importante infraestrutura na cadeia da economia de subsistência, contribuindo para o sustento dos habitantes, dos forneiros e dos proprietários, e constituía um ponto de encontro semanal obrigatório para a maioria das famílias. Tinha um papel social de relevo, proporcionando trocas de informação e de saberes, sedimentação de contratos informais e de interação individual e comunitária, dando um largo contributo para o reforço da coesão social do agregado e para o enriquecimento das suas vidas. As mulheres vinham ali para a fornada do pão, mas também para conviver,apósumdiaárduodetrabalhodomésticoounocampo.NoInverno aquecia quem o procurava, e as brasas eram levadas para casas privadas ou para o clube da terra. Apresentava-se como um espaço privilegiado de partilha de experiências e de conhecimentos e, tal como num laboratório, ali se manipulavam ingredientes que exigiam ser geridos com competência e esmero pela forneira e pelas freguesas. Na sua modesta dimensão, o forno constituía uma Escola prática de transmissão de saberes de mães para filhas sobre a arte do pão tradicional. Além disso, pela necessidade de combustível nos seis dias da semana, os fornos contribuíam para o equilíbrio da cobertura arbustiva do território e para uma taxa de incêndios praticamente nula, apesar da sua pegada ecológica. A Mulher enfrentando a fornalha Em Mata de Lobos, e na maioria das aldeias, o ritual de cozedura nos fornos do povo era um exclusivo da forneira, enquanto o abastecimento de lenha ficava a cargo do forneiro. O forno era um santuário e um espaço de NOTA 3 — Pinto, Sandra M.G., ESTUDIOS - HISTORIA DEL DERECHO EUROPEO, Revista de estudos histórico-jurídicos nº.42 Valparaíso Aug. 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.4067/S07116- 54552020000100319. Acedido em 10.03.2021. NOTA 4 — Silva, Luís, Os Moinhos e os Moleiros do Rio Guadiana - Uma Visão Antropológica, Edições Colibri, 2018. Disponível em: https://research.unl.pt/ ws/portalfiles/portal/5850002/Livro_ completo.pdf . Acedido em 12.05.2022 NOTA 5 — Coelho, Aires Cruz, História da Aldeia do Colmeal – Aqui nasceu a Ordem Militar de São Julião do Pereiro, vol. I, Ed. do Autor, 2012.
  • 8. 14 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 fertilidade onde a farinha, através de uma prodigiosa alquimia composta de fermento mãe, de orações e de cruzes em pernão para a massa crescer, se metamorfoseava em pão. Vozes de comando, mãos e corpos femininos agitados, a lambra e o crepitar da lenha dentro da fornalha, movimentos e sombras confluíam para o parto simbólico do pão que, saído pela boca do forno, ainda quente e perfumado, iria servir de alimento base às famílias constituídas por numerosa prole. A logística deste ciclo, entre o sagrado e o profano, estava também nas mãos da forneira. A ela competia gerir todas as fases do fabrico do pão que começava na listagem mental das freguesas ao longo da semana, e que obedecia ao regulamento da (a)dua / (a)duia, uma espécie de norma consuetudinária infalível, incluindo as freguesas que faziam os preparos em casa e só recorriam ao forno para cozer o pão. Ninguém cozia fora da sua (a) dua / (a)duia, isto é, fora da sua vez e na ordem que lhe competia. A palavra (a)dua/(a)duiasignificaàvez/teravez,e,segundoMachado(1977)6 ,deriva do árabe ocidental ad-dulâ que significa grande rebanho, gado, embora na primeira edição crítica do Elucidário de Viterbo (1966)7 se advirta que a etimologia deste vocábulo ainda não está esclarecida. Das mãos femininas ao cheiro quente do pão caseiro Os fornos coziam de Segunda a Sábado durante todo o dia, mas podiam estar abertos até às duas ou três da manhã, para servir as freguesas que trabalhavam no campo ou que andavam na apanha da azeitona e que, após a ceia, ainda iam cozer o seu pão, situação generalizada à maioria das freguesias. Muitas vezes, os fornos abriam as portas a partir das quatro ou cinco da manhã para freguesas que iam à jeira, relato que ouvimos na Quintã de Pero Martins e outras aldeias. O forno e os métodos de cozer o pão pouco ou nada variavam no conjunto das freguesias, e constituíam a síntese de um ciclo de trabalho, de sacrifício, de angústias, de esperança muitas vezes frustrada, mas também de alegrias traduzidas pelo prazer do pão sobre a mesa. A aventura do pão de centeio, mais usual no concelho, (o trigo era para os ricos), começava com a farinha a ser peneirada com uma peneira basta ou rala, consoante se quisesse a farinha mais fina ou com mais ralão (farinha menos peneirada). Peneirava-se para dentro da masseira com ajuda das cernideiras, uma espécie de grade posta em cima da masseira, com movimentos braçais horizontais e circulares, com uma ou duas peneiras em simultâneo. A farinha era a seguir amassada com fermento mãe, água quente e sal da panela de salmoira (de mais ou menos cinco litros) que, aos poucos, se ia misturando na farinha. A medida de sal (que cada freguesa dava para cozer o seu pão) era uma punhada ou duas, dependendodaquantidadedefarinha.Arranava-se(misturava-se)afarinha com a água salgada e o fermento até ficarem bem envolvidos e formarem a massa. Amassar exigia força braçal, pois levava cerca de meia hora até a massa ficar donda. Uma fanega (50 k) de farinha levava duas tigelas de fermento e meia fanega (25 k) só uma. A massa ficava a fintar na masseira durante duas horas; tapava-se com um panal de entretela que se cobria de farelo para proporcionar mais calor e, no Inverno, podia ainda cobrir-se com um cobertor. As freguesas que amassavam em casa cobriam a massa com um cobertor próprio e, no Inverno, com um tirado da cama. Antes de começar a fintar, a forneira e/ou as freguesas diziam esta oração, ao mesmo tempo que se faziam cruzes sobre o pão «para ajudar a levedar a massa»8 , e tinha de ser em número NOTA 6 — Machado, José Pedro, Dicioná- rio Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa, 1977. NOTA 7 — Fiúza, Mário, Elucidário, 1ª Edição Crítica: 2º volume, Livraria Civili- zação, Porto-Lisboa,1966.
  • 9. 16 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 pernão, porque era assim o uso:“Deus te faça pão de massa / Avé-Maria cheia de graça / Deus cresça a minha massa / Como a virgem cresceu em graça” (versão de Ozilda Henriques). Sabia-se que a massa estava finta porque pulava, as cruzes desapareciam e o farelo abria gretas (Ofélia), ou quando a massa ficava loifinha, isto é, molinha (Ozilda), fase do processo em que não podemos deixar de ver uma alusão à fecundidade da mulher e da terra. No Inverno levava mais tempo a fintar por causa do frio. Às vezes aquecia-se no lume 3 ou 5 dentes de alho com a casca, depois espetavam- -se na massa e era num instante que a massa abria, mas o alho tinha de ser em pernão, porque era assim o uso. Depois de finta, a massa era fingida em cima de um panal com farinha espalhada para se fazer o pão; cortava-se um bocado da massa com a rapadoira, e com as mãos andava-se á volta até ficar em forma de pão. A rapadoira servia também para rapar a massa que ficava colada na masseira; ospãesassimobtidoseramcolocadosnumtabuleiro,quesepunhaemcima do poial, para os introduzir no forno. Na Mata havia o hábito de as forneiras iremacasadealgumasfreguesasbuscaropãojáfingidoemtabuleiros,mas em Escalhão as forneiras iam buscar a massa finta em cestos ou pequenas masseiras que punham à cabeça sobre rodilhas ou molidos, para ser fingida no forno. A quantidade de pães por fornada dependia da dimensão do forno. No forno existente na Rua dos Combatentes, em Mata de Lobos, cabiam 2 fanegas de pão, isto é, cerca de 20 a 22 pães. Quando se começava a fingir, tirava-se uma pequena porção de massa finta que servia de fermento caseiro, para a fornada seguinte e ficava no forno à guarda da forneira numa tigela de barro ou de esmalte ou em casa da freguesa que cozesse. Havia sempre fermento para toda a gente, porque o fermento não tinha dono; o que vinha de fora chamava-se fermento padeiro; no Domingo, guardava- -se o fermento caseiro em tigelas com uma bagadinha de azeite por cima; no Verão, cobria-se com uma folha de couve para não endurecer, mas no Inverno não precisava. Enquanto se peneirava, fintava e fingia a massa, a forneira ia aquecendo o forno. O interior do forno ficava quente quando as pedras, tijolo burro ou baldosas do lastro e da abóbada ficavam brancas até à entrada do forno. Depois de quente, a forneira retirava as brasas para fora com o rodo ou arrebanhador. O interior do forno era varrido com uma vassoira de giesta com um cabo comprido que se mergulhava de vez em quando numa pia com água para não arder, de modo a deixar o lastro muito bem limpo. Metia- -se o pão no forno com auxílio de uma pá; enfarinhava-se a pá para a massa não se agarrar e punha-se farinha por cima do pão para não queimar; no cabo da pá enfiava-se uma meia chamada siso/mangueira para facilitar o seu manejo. A forneira recorria a um sistema de sinais para distinguir o pão: sem nenhum sinal, uma dedada no pão, duas dedadas, um ramo de giesta ou de carrasco, etc. Os pães eram enfornados segundo uma ordem fixa: primeiro se metia o pão no cordão que era o semicírculo do forno junto às paredes laterais e depois para o centro. Ao fim de duas horas, tirava-se um pão e batia-se com ele no rebordo do forno e sabia-se se estava cozido conforme o toque do pão. Era costume a forneira passar a mão por baixo do pão ainda quente para lhe tirar algum tição que estivesse agarrado ao fundo. Depois de pronto, o pão era levado para casa em tabuleiros pela forneira ou pelas donas à cabeça; quando os homens participavam neste transporte, os tabuleiros eram levados sobre os ombros. NOTA 8 — Fontes, António Lourenço, Etnografia Transmontana, I – Crenças e Tradições de Barroso, 2ª ed., Montalegre, 1979.
  • 10. 18 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 O processo de fabrico do pão de trigo era basicamente o mesmo do centeio, mas levava mais tempo a amassar e dava mais trabalho. Amassar o trigo exigiadaforneiraedasmulheresaindamaisenergia,ritmoedestrezabraçal, pois era necessário executar movimentos circulares no sentido do peito, como se este movimento, de fora para dentro, simbolizasse o sacrifício, o sentimento e a espiritualidade dedicada ao pão, mas, paradoxalmente, de vez em quando, era preciso dar punhadas na massa, isto é, batê-la para adondar.Nageneralidadedasfreguesias,asfamíliasmaispobressócoziam trigo por altura do Natal e da Páscoa, das festas e em dias de nomeada; em Cinco Vilas e Quintã de Pêro Martins cozia-se trigo e fogaça para ir vender a terras do concelho de Pinhel, do outro lado do rio Côa. Levava-seopãoemalforgesesacosdealgodãonosmachoseatravessava- -se o rio no barqueiro; era uma forma de ajudar a ganhar a vida. A Poia: o tributo pago à forneira Depois da cozedura, cada freguesa deixava à forneira a poia, isto é, um pão, como forma de pagamento pelo seu trabalho e que, segundo o estudo de Sandra Pinto9 , deu origem aos designados fornos de poia. Esta autora refere no mesmo estudo a existência deste uso em três Cartas de Doação da ilha da Madeira pelo Infante D Henrique: uma datada de 1440 ao Capitão-donatário Tristão Vaz Teixeira, outra a Bartolomeu Perestrelo em 1446, e a terceira de 1450 ao Capitão-donatário João Gonçalves Zarco a quem concede a posse de: «todollos fornos de pam em que ouver poya». Em Mata de Lobos, a poia era paga por cada fanega de farinha cozida, (10 a 12 pães), que correspondia a cerca de 10% da cozedura; quem cozesse só meia fanega pagava a poia apenas quando cozesse a segunda meia fanega, ou pagava apenas meia poia que era dividida com os proprietários do forno, em conformidade com o contrato de arrendamento. Esta “norma”, com poucas ou nenhumas variações, era prática corrente no concelho e, curiosamente, encontra-se a mesma equivalência numa Postura Antiga10 da cidade de Lisboa, do século XV: «…mandom que daquy em dyamte todos os que fornos e fornalhas teuerem nam leuem mays de poya que de doze pães huu Jguall dos outros». Como sabemos, esta função do pão já era prática corrente no antigo Egipto onde o salário dos trabalhadores era pago com pão diário. Afirma Barboff11 que, até aos nossos dias, o cereal detinha valor de moeda: as rendas, os salários e os serviços pagavam-se em género com o grão, a farinha e o pão. Opagamento dapoianosfornos, quenaMatavigorou atéaofinaldadécada de 60, já estava em uso no século XIV, como Soares e Macedo12 referem em documentos de 1387 que testemunham a rigorosa cobrança do dízimo das poias do pão alvo ou de segunda, de um forno que um ourives trazia arrendado pela Igreja de Santa Justa de Coimbra. O Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências, (2001)13 regista a palavra poia enquanto regionalismo, como o pão que se dá à forneira, a farinha que se paga ao moleiro, mas também o dinheiro ou azeite ao lagareiro. Corominas14 atribui à palavra poya a mesma etimologia e significado. O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, (1977)15 , regista a palavra poio com origem no latim podium, com sentido de lugar mais elevado, pedra grande ou elevação; por analogia com poio surgiu a palavra poia (pão), e poial. O Elucidário16 confirma a associação de podium a monte, outeiro ou colina e esclarece que «se chamou poya o pão mais alto e crescido que, antigamente (e hoje mesmo mas não sem abuso), se FIGURA 9 – Poia paga à forneira. NOTA 9 — Pinto, idem. NOTA 10 — Livro das Posturas Antigas, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa 1974, p. 92. (Leitura paleográfica e transcrição de Maria Teresa Campos Rodrigues). NOTA 11—Barboff, Mouette, Terra Mãe Ter- ra Pão, Âncora Editora, Lisboa, 2005, p.7. NOTA 12 —Soares, Carmén; Macedo, Irene Coutinho de, Ensaios sobre património alimentar luso-brasileiro, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. Disponível em: https://eg.uc.pt/han- dle/10316/42255?locale=pt. Acedido em 25.06.2022. NOTA 13 — Casteleiro, João Malaca, et al., Dicionário da Língua Portuguesa Con- temporânea - Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001. NOTA 14 — Corominas, Joan, Dicionário Crítico Etimológico Castellano e Hispáni- co, Gredos, Madrid, s/d. NOTA 15 — Machado, idem.
  • 11. 20 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 pagava ao senhorio dos fornos, em que são obrigados a cozer o seu pão os moradores do lugar». Por sua vez Lamano, em El Dialeto Vulgar Salmantino (1915)17 , regista a palavra poya com o sentido de «piedra, que sale de la abertura o boca del horno, en la cual apoyan la pala al colocar el pan». Economia circular: o farelo, a sêmea, a bola sovada e o canil As pessoas do campo não conheciam os preceitos teóricos da economia circular, mas, porque estavam habituados a respeitar os ciclos da natureza e por imperativos de poupança, conheciam a sua prática. Fazia-se jus à lei de Lavoisier: nada se perdia, tudo se aproveitava; os animais comiam farelo como ração, misturado com nabos e na água; deitava-se também farelo na vianda dos porcos e às galinhas amassado com água; com ele se fazia a sêmea que era um pão redondo como os outros, mas feito com ralão de trigo, assim como a bola sovada, um pão achatado de trigo ralão que era preciso sovar com os punhos para a massa ficar adondada (mole); em Escalhão, e noutras terras, fazia-se a bola morta que não crescia, porque nãotinhafermento;porvezeserafeitacomasrapadurasdamassaefarinha (excedentes)queerarapadacomarapadoira;picava-seabolacomumgarfo parafazerfeitioseregava-secomumabagadinhadeazeiteporcima.Ocanil era um pão comprido feito à base de uma mistura de farelo e de farinha de centenico que servia de alimento aos cães de guarda dos pastores. Dos fornos do Egipto aos nossos dias Heinrich Jacob (2003)18 afirma que os fornos de pão surgiram no antigo Egipto, Diana Carvalho19 refere achados arqueológicos junto ao lago Tiberíades que remontam ao Paleolítico Superior, 22.000 a.C., enquanto Elíxio Quintas (2015) 20 entende que terão aparecido em primeiro lugar na Mesopotâmia e daí passaram para a Grécia e depois para Roma. Com a fuga dos hebreus do Egipto no reinado de Ramsés II (1279-1213 a.C.), estes levaram para Israel o conhecimento do fabrico do pão em fornos, surgindo as primeiras padarias em Jerusalém. Na Grécia, só por volta do século VI a.C. é que os gregos se dedicaram ao fabrico do pão em fornos, enquanto na antigaRomasurgiuporvoltadoano800a.C.,eaprimeiraescoladepadeiros no ano 500 a.C., cabendo-lhes o papel de disseminar por todo o Império esta prática. Como sabemos, antes da chegada dos Romanos à Península Ibérica, os Lusitanos comiam uma espécie de pão de bolot21 , adaptando-se aos novos costumes com a Romanização. Da aventura dos cereais selvagens à sua domesticação Aaventuradaagriculturaandademãosdadascomoscereais,comosfornos e o pão; por isso, vale a pena situarmo-nos em relação às suas origens. Jacob22 ,afirmaqueaepopeiadoscereaisduraháquase15.000anosetodos eram primitivamente selvagens; foram domesticados pela mão do homem, mas sem a mulher, a agricultura nunca teria sido inventada. A aventura da revolução agrícola teve início há cerca de 10.000 anos, quando o homem se tornou sedentário e passou a viver em terrenos favoráveis ao cultivo de cereais, alterando assim a sua alimentação e o seu destino. O historiador Harari (2021)23 sublinha que a transição para a agricultura começou entre NOTA 16 — Fiuza, idem. NOTA 17 — Beneite, José de Lamano y, El Dialeto Vulgar Salmantino, Sala- manca, 1915. NOTA 18 — Jacob, Heinrich Eduard, 6000 anos de pão, Antígona, Lisboa, 2003, p. 66. NOTA 19 — Carvalho, Diana Alexandra Simões, CASTRO LABOREIRO - DO PÃO DA TERRA AOS FORNOS CO- MUNITÁRIOS. Uma proposta de mediação patrimonial, Relatório de Projeto. Disponível em: https://hdl. handle.net/10216/105911. Acedido em 10.05.2022. NOTA 20 — Quintas, Elixio Rivas, O Forno de Pan, Orense: Grafo Dos, 2015, p.23. NOTA 21 — Deserto, Jorge; Pereira, Susana da Hora Marques, Estrabão, Geografia. Livro III. Introdução, tradução do grego e notas, p.64, Imprensa da Universidade de Coimbra. NOTA 22 — Jacob, idem, pp. 45-54 NOTA 23 — Harari, Yuval Noah, Sapiens – História Breve da Humanidade, 27ª Edição, Elsinore, 2021, pp. 99-100.
  • 12. 22 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 9.500 e 8.500 a.C. nos montes do Sudeste da Turquia, do Oeste do Irão e do Levante, mas também, de forma independente, na China com o arroz, na América Central com o milho e na América do Sul com a batata. Jorge Dias (1982) salienta que a agricultura primitiva representa um passo dos mais decisivos na História do Homem e que o arado simboliza um passo enorme dado pela humanidade no sentido do seu progresso material e espiritual24 , enquanto o domínio do fogo permitiu confecionar o pão, tornando-o fundamental à sua subsistência. Nãosetemacertezaondesurgiramasespéciesmaisantigasdetrigo;Jacob aponta a Abissínia (Etiópia) como berço, enquanto Barboff25 , tal como Harari, remete para o sudoeste asiático, mas talvez seja mais apropriado pensar que a cultura dos cereais terá surgido em momentos diferentes da História e em diferentes zonas da Terra, designadamente na bacia de grandes rios como o Tigre e o Eufrates, na Mesopotâmia, o Ganges, na Índia ou o rio Amarelo, Na China. Como é do conhecimento geral, a bacia do rio Nilo, no Antigo Egipto, veio a desempenhar um papel decisivo na história do pão tal como hoje o conhecemos, lugar onde, na opinião de Jacob se deu também a invenção do pão fermentado, fruto do acaso. O Culto do pão: mitos, crenças e superstições Opãoéindissociáveldahistóriadohomempelopapeldesempenhadonasua sobrevivência, impondo-se, simultaneamente, como alimento essencial para o corpo e para o espírito. É exaltado por religiões, festas, escritores, poetas, pintores,músicos,cantigas,danças,provérbioseoraçõesdediferentescredos nos quatro cantos da terra. Vemo-lo, por exemplo, associado ao milagre das rosas (1333), à padeira de Aljubarrota (1385), ao cerco de Lisboa (1384) e à marcha contra a fome das mulheres parisienses sobre Versalhes, em 5 de Outubro de 1789, mas também ao contrabando entre Espanha e Portugal, às senhasdedistribuiçãodefarinhaedepãoemperíodoscríticose,cinicamente, como alvo de manobras militares e geopolíticas. Alémdisso,opãofiguracomoelodeligaçãocomasdivindadesecomoalém. Como refere Jacob26 , no antigo Egipto havia uma procissão para comemorar o momento em que as águas do rio Nilo começavam a subir. Este rio era adorado como um Deus por trazer a abundância de cereais e, após as colheitas, fazia-se uma festa em honra de Min, deus da agricultura. Os egípcios dedicavam um culto diário aos mortos oferecendo-lhes pão e água e, como eram muito supersticiosos, quando a alma chegava ao reino dos mortos deveria dizer: “dei pão a todos durante os meus dias!”, assim como nunca recusavam pão aos pobres, porque “recusar pão a um mendigo, era considerado o maior dos pecados”, e repartiam o seu pão com as crianças. Na Grécia antiga, a terra era uma figura feminina e havia o culto a Deméter, deusa da agricultura e protectora da família; Perséfone, sua filha, era deusa das sementes e deveria passar quatro meses do ano no reino subterrâneo do deus Hades, tal como a semente, simbolizando, desta forma o grão que é lançado à terra e enterrado vivo. Deméter tinha as suas festividades no dia 20 de Setembro, isto é, no fim das colheitas. Deméter foi também festejada no mundo Romano com o nome de Ceres, onde os fornos tinham uma deusa chamada Fornax que presidia ao seu bom funcionamento. Em Roma, o pão desempenhou um papel moderador na política do “pão e circo”, a que os imperadores recorreram para acalmar os ânimos dos milhares de pobres e indigentes que havia na cidade. O pão ázimo, isto é, o pão que os judeus consideram “puro”, está intimamente ligado à sua saída do Egipto e NOTA 24 — Dias, Jorge, Os Arados Por- tugueses, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1982, pp. 45-46. NOTA 25 — Barboff, idem, p.13. NOTA 26 — Jacob, idem, pp. 58-75.
  • 13. 24 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 é com este pão que é comemorada a Páscoa hebraica, a fim de recordar a saída da servidão, uma vez que o pão fermentado era considerado impuro. O Cristianismo fez do pão a sua religião com as palavras de Cristo: “Tomai e comei, este é o meu corpo”, que são o início de uma narrativa fundadora. Conhecemos diferentes formas de sentenças e de crenças populares ligadas ao pão, que nos são veiculadas pela tradição judaico-cristã, mas que são transversais a vários povos do mundo. Umas conferem-lhe uma importância vital através da sua personificação: “quando o pão cai ao chão apanha-se e beija-se; “o pão não se põe com as costas para baixo”; outras evidenciam superstição: “não se deve sacudir uma toalha com migalhas de pão à noite”; outras revelam discórdia, pobreza e conflitos familiares: “casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”, que encontra eco nos versos hindus: «Onde pão houver, reina o salário do entendimento / Onde não houver, guerreiam pai e filho» (Jacob)27 ; outras ainda traduzem visões educativas populares como: “quem dá o pão também dá o pau”. Não faltam referências bíblicas associadas ao pão. Deus sentenciou ao homemocaminhodosacrifícioe daabnegação: «Aterraproduziráespinhos e ervas daninhas, e tu terás de comer das plantas do campo. Com o suor do teu rosto comerás o teu pão». (Genesis, 3:19), que a expressão popular “comer o pão que o diabo amassou” sintetiza. TalcomonoEgipto,tambémemMatadeLobosnãoserecusavaumabordinha de pão a um pobre que batia à porta; distribuía-se pão por alma dos defuntos àportadaigreja,tambémconhecidopor“pãodasalmas”(JornalTerraeMar)28 ; dava-se pão às crianças que estivessem por perto para não augar, assim como era hábito oferecer-lhes pão quando iam a casas estranhas, tomando a expressão “toma lá do nosso pão” uma forte carga afectiva. Por todo o país o pão é o elo mais forte e está associado, como objecto de veneração e de oferenda, a festas religiosas, com a finalidade de agradecer as colheitas e renovar votos de um bom novo ano agrícola ou de rogar por boa saúde. Em Mata de Lobos o pão é o protagonista na festa das roscas em Agosto; em NaveRedonda,nafestadeSto.Amaro,nosegundoDomingodeJaneiro,ainda hoje os crentes fazem simulacros de partes do corpo doentes que ofertam ao Santo,comoformadepediracura,equedepoisarrematamelevamparacasa com a convicção de que o milagre se vai operar. Além dos folares de Páscoa, o pão tem algum protagonismo na festa do Charolo em Outeiro, concelho de Bragança, da Santíssima Trindade, na Batalha,doEspíritoSanto,nosAçores,Samão,CabeceirasdeBasto.Afestada espiga,queremontaaosceltaseromanos,éumacerimóniaqueseintegrano ciclo da Primavera. A fogaça é utilizada como voto na Festa das Fogaceiras a 20 de Janeiro, dedicada a S. Sebastião, na Vila da Feira29 Pelas suas analogias, há quem veja na festa dos Tabuleiros do Espírito Santo, instituída por D Dinis, em Tomar, uma reminiscência da festa das colheitas e da fertilidade da deusa Ceres.30 O pão concebido sob o signo da hospitalidade, da solidariedade, do convívio, da fertilidade e da fecundidade é bandeira de reivindicações sociais, é sinónimo de trabalho, de salário, da luta pela vida e pela liberdade(Barboff) 31 . Pela sua carga simbólica, o pão é o elo permanente de um ciclo que celebra a vida, a morte e a festa. Na Ucrânia rural existe, ainda hoje, o costume de distribuir pão aos vizinhos quando os pais casam um filho. Conclusões O fantasma da interioridade, do despovoamento e do empobrecimento paira sobre o nosso território, sendo urgente inverter esta situação. A cultura, o NOTA 27 — Jacob, idem, p.25. NOTA 28 — Fonte: https://www.jornal- terraemar.pt/pao-das-almas/ . Acedido em 5.06.2021. NOTA 29 — Receitas e Sabores dos terri- tórios rurais, Edições Minha Terra, 2013. Disponível em:https://www.minhaterra. pt/wst/files/I12086-MT-MGP-WEB. PDF . Acedido em 12.01.2022. NOTA 30 — Receitas e Sabores dos territórios rurais, idem. NOTA 31 — Barboff, idem, p.8.
  • 14. 26 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 património histórico, o edificado e o paisagístico representam uma janela de oportunidades de desenvolvimento social, cultural e económico pela sua vertente do turismo e, por isso, são merecedores de uma atenção especial nas opções e nas decisões políticas. As causas e os problemas estão identificados, odiagnósticoestáfeito,emuitasdassoluçõesdependemdanossacapacidade de acção. Nesta óptica, aproveitamos a oportunidade para: a) apelar ao poder local e regional para a necessidade de desenvolver e de apoiar mecanismos e programas que contribuam para a reabilitação dos fornos do povo para fins utilitários, socioculturais, turísticos, educativos, museológicos ou outros; b) sensibilizar os proprietários e a comunidade para a importância da sua colaboração e para a necessidade de preservar e recuperar as estruturas ainda existentes; c) interpelar as escolas para a possibilidade de articular o estudo deste património com áreas temáticas afins, reforçando o sentimento de identidade e de pertença social e cultural dos alunos; d) privilegiar, quando possível,assinergiasqueosalunospodemgerarepartilharenquantoelosentre as instituições e as famílias, tendo em vista a salvaguarda da nossa memória colectiva,bemcomoodespertardasuaconsciênciadecidadaniaactiva. No âmbito de uma visão transfronteiriça e holística da cultura e do património, a Ribacvdana disponibiliza-se para colaborar, com todos os agentes interessados e responsáveis pelo progresso destes territórios, em programas de desenvolvimento sustentado que se oponham à descaracterização dos seus valores patrimoniais e culturais. Unidos, de um lado e do outro dos rios, teremos mais força para colocar no mapa o turismo cultural e atrair o olhar de Lisboa e de Madrid para esta região transfronteiriça. Unidos evitaremos a ameaça do ostracismo pelos poderes centrais e teremos força para lutar contra a resignação e o anátema da “baixa densidade”. É preciso mudar o paradigma deste conceito redutor, contrapondo-o ao de “alta densidade” de um território com elevadas potencialidades, paisagísticas, ecológicas e em biodiversidade, e exigir ao(s) poder(es) central(ais) uma prática efectiva de discriminação positiva que faça justiça ao interior. As gerações futuras vão agradecer as responsabilidades assumidas em defesa dos valores materiais e imateriais que constituem a riqueza e o substrato cultural das gentes que habitam este território e que esperam ver (re)valorizadas no presente. Agradecemos a colaboração prestada pelos autarcas do concelho, que nos abriram as portas de alguns fornos recuperados e transmitiram o seu empenho na salvaguarda deste património, assim como o contributo do MuseudaCasadeFreguesiadeEscalhãoquenoscedeualgumasfotografias, do Centro Interpretativo e Museológico de Algodres e do Museu Rural e Etnográfico de Vilar de Amargo, instituições que apostam na conservação e na divulgação do espólio patrimonial e da memória colectiva do concelho, e onde encontrámos documentadas práticas artesanais do ciclo do pão. Agradecemos também aos proprietários que foi possível contactar. Aquideixamosumanotadeprofundagratidãoàsforneirasque,amavelmente, connosco partilharam o seu inestimável saber e experiência: Maria Ofélia Guerra, 95 anos, Mata de Lobos; Hermínia Bandarra, 91 anos, Piedade Maia, 90 anos e Judite Rosa, 78 anos, Vale de Afonsinho. Registamos também as valiosas informações de Ozilda Henriques, 87 anos (falecida) e Marcolino Silva, 84 anos, Mata de Lobos; Marceolina, 81 anos, Quintã de Pedro Martins; Maria Clotilde Figueira, 74 anos e Maria Cristina C. S. Fonseca, 67 anos, Cinco Vilas; Maria Henriqueta Monteiro, 80 anos e
  • 15. 28 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 Ruben Almeida, Vilar Torpim; Maria da Conceição Martins, 92 anos, Vilar de Amargo; Maria da Conceição E. Ferreira, 84 anos e João E. Ferreira, 70 anos, Escarigo; Maria de Jesus F. A. Moutinho, Vale de Afonsinho; Piedade Massana e João Massana, Castelo Rodrigo; Aires Cruz Coelho, 76 anos e Gabriela de Castro, 53 anos, Colmeal; Maria de Lurdes Granado Velho, 86 anos, Deolinda Macias, 92 anos, Irene Henriques, Augusta Valente Henriques, 70 anos, Maria Augusta Bordalo Velho Ribeiro, 70 anos e Manuel Besteiro Velho, 87 anos, Escalhão; Maria Célia Cordeiro Rodrigues, 88 anos, Almofala; Dário Arrepia, Barca de Alva; Maria Isabel Loureiro, Carla Marcelino, Celina Monteiro, Nando Costa e Maria Vicente, bem como de todos os que não autorizaram a publicação do seu nome. Obrigado ao Renato Roque e ao Jorge Velhote pela revisão do texto. Este artigo pretende ser uma justa homenagem às forneiras e forneiros que, com grande resiliência física, nobreza de alma e mãos experimentadas representaram verdadeiros símbolos de resistência contra a fome e a pobreza, antes da produção industrializada do pão. Uma palavra de apreço também aos artífices que, da matriz milenar dos fornos, erigiram genuínas Catedrais do Pão. Todos, e com redobrada responsabilidade o poder autárquico, temos o dever cívicoemoraldepreservarestessímbolosfundadoresquenarramaHistória do Pão, guardam a memória do saber popular e permitiram a sobrevivência da humanidade. Antes que seja tarde! 1. Mata de Lobos: uma opulenta paróquia raiana Mata de Lobos é uma importante aldeia do Concelho de Figueira de Castelo Rodrigo, Distrito da Guarda. A respectiva paróquia, de origem muito antiga, pertenceu outrora à Diocese de Cidade Rodrigo, mantendo-se nesta Dioceseatéc.de1400.Porestaaltura,foiintegradanaantiquíssimaDiocese de Lamego. Com a fundação da Diocese de Pinhel, em 1770, Mata de Lobos passou a integrar esta efémera Diocese. Após a sua extinção, em 1881, a paróquia de Mata de Lobos passou a integrar a Diocese da Guarda, a que continua a pertencer. Dada a antiguidade da paróquia, a sua grandeza e a abastança dos seus moradores–edadatambémaopulênciadasduasprimeirasDiocesesaque pertenceu durante séculos, Mata de Lobos ergueu um vasto e riquíssimo Mata de Lobos (Figueira de Castelo Rodrigo): arquitectura e arte sacra de uma aldeia raiana. Um primeiro olhar sobre um património desconhecido. Carlos Caetano HISTORIADOR DE ARTE NOTA Fotografias de Renato Roque.
  • 16. 30 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 património religioso. A sobrevivência deste, ainda que muito parcial, deixa entrever uma paróquia muito rica e até muito populosa no passado, características que em parte se conservam ainda hoje. Terra de fronteira, outrora foi uma povoação verdadeiramente florescente: atestam-no os 192 “moradores” do “lugar de mata de lobos”, recenseados em 1527, no “recenseamento” geral do Reino mandado fazer por D. João III (COLLAÇO,1929-1931:p.109)1 ,ouos250fogos,“nosquaisentramquinhentas e sessenta pessoas de sacramento e cento e trinta menores”, registados em 1758eapontadospeloP.ePauloAntunesMonteiro,ovigáriolocal,emresposta aoinquéritoimpostoapósoTerramotodeLisboade1755pelofuturoMarquês de Pombal a todos os párocos do Reino – e cujo conjunto conhecemos como Memórias Paroquiais (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276). No nosso tempo, com os seus 287 habitantes recenseados em 20212 , continua a ser uma das maiores freguesias não só do concelho como de todaaregião,tradicionalmentepoucopovoadaenasúltimasdécadasmuito fustigada pelo flagelo da emigração e hoje oprimida por taxas deprimentes de natalidade e de mortalidade, à semelhança das demais povoações não só da região, como de todo o Interior de Portugal. O presente estudo resulta de um projecto inicial de elaboração de uma pequena monografia da actual Igreja Matriz que, pelas suas singularidades, é digna de um estudo aprofundado e alargado de modo a contemplar as várias vertentes artísticas que confluem e se abrigam por entre as suas paredes multisseculares.Aexistência,porém,demaisespaçosreligiososnapovoação, de antiguidade e de características assinaláveis, quase todos eles detentores de um espólio de arte sacra de grande categoria, suscita, porém, um estudo diferente e mais alargado que o previsto inicialmente. Assim, conjuntamente com a actual Igreja Matriz, há que contar com uma primeira abordagem, meramentedescritiva,dasactuaisermidasdeSantaMarinha,deSantoAntão (esta profanada, cremos que de há muito) e do Senhor Santo Cristo3 . É este o objectivo das presentes linhas: uma primeira recensão e leitura destas quatro componentes da arquitectura religiosa da paróquia de Mata de Lobos, pois todos estes monumentos são não só da maior importância arquitectónica como detêm – os que continuam abertos ao público - imaginária e outras formas de arte sacra da maior relevância, a merecer justo reconhecimento, inventário, estudo, conservação e protecção adequadas e muito urgentes. 2. A arquitectura sacra de Mata de Lobos Dos quatro monumentos religiosos sobreviventes, todos de antiguidade assinalável, os três mais antigos parecem ser a capela de Santa Marinha, a actual igreja matriz, e a capela da Santo Antão, todos integráveis no corpus das velhas igrejas e capelas de origem leonesa, como mostraremos. Morfologicamente muito diferente é a ermida de Santo Cristo, uma bela e típica ermida rural de perfil barroquizante. 2.1 - CAPELA DE SANTA MARINHA A capela de Santa Marinha que chegou até nós4 é um dos monumentos mais enigmáticos das Beiras. De origem muito antiga5 , esta capela fazia parte integrante da igreja da mesma invocação, que durante séculos foi a matriz de Mata de Lobos. Com efeito, como se nota do vasto arco entaipado da sua actual fachada principal (FIG1), esta capela serviu durante muitos séculos de capela-mor da referida igreja, cuja nave foi de há muito demolida. NOTA 1 — Apesar de muito populosa na primeira metade do século XVI, Mata de Lobos tinha que enfrentar os 199 mora- doresdeAlmofala,os229deEscarigo,os 236 moradores da Vermiosa e os 249 de Escalhão (COLLAÇO, 1929-1931: p. 109). NOTA 2 — Mata de Lobos – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org); con- sulta a 7 de Julho de 2023. Apesar do avultado número de habitantes, note-se o declínio demográfico constante, verifi- cadodesde1940,quandoregistava1.377. Registem-se ainda os valores, sempre decrescentes, registados em 1981 (664 habitantes), em 1991 (530) ou em 2001 (496). Para a evolução do número de moradores ver BORGES, 1989: tabela da p. 77 e ainda SILVA, 1992: tabela da p. 431. NOTA 3 — Em 1758 o Vigário de Mata de Lobos refere ainda a capela do Divino Espírito Santo (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276), destruída, mas de que ficou memó- ria na toponímia local. NOTA 4 — Monumento Nacional, pelo De- creto N.º 28/82, de 26-2-1982 (BOR- GES, 1993: p. 92). NOTA 5 — É referida em 1165, no âmbito de doações do Rei de Leão D. Fernando II ao mosteiro de Santa Maria de Aguiar (Borges, 1993: p. 91) e Santa Marinha fi- gura também num tombo indeterminado de 1385 (BORGES, 1993: p. 92).
  • 17. 32 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 A igreja, verdadeiramente monumental, estava localizada nas periferias relativamente afastadas da aldeia de hoje. Tudo indica, porém, que à sua volta e à volta do seu adro se localizasse o núcleo da povoação primitiva. Por motivos que não conhecemos (falta de água nas proximidades?), a aldeia ter-se-á deslocalizado para ocupar o espaço em torno da outra igreja da mesma aldeia, outrora dedicada a S. Sebastião e que constitui, talvez desde as primeiras décadas do século XIX6 a sede da actual matriz. A actual capela de Santa Marinha está de há muito localizada numa extremidade do vasto cemitério que se adaptou à sua volta e cujo pórtico, muito pitoresco está epigrafado de 1858. (FIG 2) Foi então que se expandiu o cemitério antigo que originalmente, e como por todo o lado, se localizava no interior e no adro da primitiva igreja. O vigário de 1758 refere túmulos muito antigos que atribui a templários: E consta por tradição ser igreja e mosteiro de Templários, que bem o mostram as suas ruínas por se achar no adro dela muitas sepulturas com letreiros nas suas campas que declaram ser dos seus cavaleiros, donde estes foram sepultados, e em outros se vem cruzes formadas (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276). Há bons motivos para pensar que estes túmulos, descritos em 1758, sejam, porém, de ilustres membros da comenda homónima, que aqui tinha a sua sede e que nesta última data tinha como comendador o próprio Sebastião José de Carvalho e Melo, o futuro Marquês de Pombal. Com efeito, remonta a D. Manuel I a criação de uma Comenda da Ordem de Cristo em Marta de Lobos (c. 1514; extinta em 1826), sediada nesta antiga igreja de Santa Marinha (SILVA, 1992: 4337 ). Note-se que nos arredores já havia toda uma série de comendas da mesma Ordem, todas de origem anterior: Muxagata ou Meda e, muito mais próxima, a Comenda da Reigada, que teve como Comendador o próprio Infante D. Henrique (CAETANO, 2022: p. 41). A igreja primitiva, talvez por ficar afastada da nova povoação e por ser relativamente acanhada para uma população tão numerosa, começou a ser trocada pela também muito antiga igreja de S. Sebastião, a actual igreja matriz de Mata de Lobos. Assim, em 1758, tirando os baptizados, os demais sacramentosjáeramaplicadosnestaúltimaigreja,oquedenotaocrescente abandono litúrgico da igreja de Santa Marinha. Sobreviveram alguns elementos muitos esparsos da velha igreja, de entre os quais se destaca a enorme pia baptismal, ainda que desprovida da sua base primitiva Trata-se de uma vasta taça de secção circular, decorada com gomos longitudinais de feição muito rude e de composição visivelmente muito arcaica (Século XIII?), que presentemente se conserva na sacristia da igreja matriz actual. Nesta mesma igreja se conserva uma outra excepcional pia da água benta, também muito antiga, talvez também proveniente da velha Igreja de Santa Marinha. Provavelmente românica e ainda de origem leonesa, faz-se notar pelo arcaísmo da sua decoração e em particular pelos seus enrolamentos e volutas vegetalistas. (FIG 3) O pároco de 1758 informa-nos que, para lá da capela-mor, a igreja dispunha de “três naves”, informação que tem sido repetida acriticamente por todos os monografistas e autores locais. Cumpre, porém, esclarecer que o informador de 1758 confunde “naves” com “tramos”, pelo que a única nave, de há muito demolida, da velha igreja, era constituída por três tramos justapostos longitudinalmente, ficando a fachada principal voltada ritualmente para Ocidente,comoerapráticacorrentenaarquitecturareligiosapré-tridentina.Os três tramos eram separados entre si por dois arcos-diafragma, à semelhança FIGURA 1 — Capela de Santa Marinha de Mata de Lobos: arco entaipado da sua actual fachada principal. FIGURA 2 — Mata de Lobos: portal do Cemitério, epigrafado de 1858. FIGURA 3 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: pia da água benta medieval, porventura pertencente à primitiva Igreja de Santa Marinha. NOTA 6 — Num livro de despesas pa- roquiais relativo ao ano de 1813 surge a verba de 1.040 réis que a paróquia “despendeu de uma jeira de lavrador na mudança dos trastes da Fábrica de San- ta Marinha [sic] para a Casa da Fábrica” (citado in BORGES, 1989: p. 49). Parece poder presumir-se que a primitiva Igreja de Santa Marinha estava a ser desprovi- da do seu papel multi-secular de igreja paroquial de Mata de Lobos, pois o seu recheio (“trastes”!) estava a ser armaze- nado na “Casa da Fábrica” da nova Matriz, isto é, na ampla arrecadação contígua à sacristia da velha Igreja de S. Sebastião, que em breve passaria a ter a invocação de Santa Marinha, que mantém até hoje. Aliás, a este mesmo ano de 1813 corres- pondem obras importantes no telhado desta igreja no qual se despenderam 3.500 telhas (BORGES, 1989: p. 48). NOTA 7 — Júlio António Borges indica, cer- tamente por lapso, a data de 1862 para a extinção desta Comenda (BORGES, 1989: p. 54; p. 59).
  • 18. 34 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 dosdaactualmatrizedosdacapeladeSantoAntão,comoveremos.Naactual capelaconserva-seumaimensaimposta,decoradacommotivosdecorativos vegetalistas também muito arcaicos, que serviu certamente de base ao lançamento de um desses arcos. Presume-se que os arcos-diafragma fossem de muito amplo vão, o que suscitava o seu escoramento nas paredes laterias exteriores, mediante a justaposição de contrafortes provavelmente escalonados e mais ou menos reforçados e elaborados. Se a nave da igreja é fácil de restituir, pois partilhava a mesma morfologia que a generalidade das igrejas raianas (futuras escavações facilmente permitirão restituir a planta exacta da nave da igreja, a não ser que os alicerces tenham sido todos levantados quando da expansão do cemitério em meados do século XIX), já a capela-mor levanta os maiores problemas de interpretação. De há muito desprovida dos rebocos que secularmente cobriram as suas paredes interiores, o aparelho da face posterior das capela- -mor (ousia) deixa entrever, à vista desarmada, uma empena triangular relativamente atarracada e descentrada em relação ao que foi o arco triunfal de comunicação com a nave. Outra surpresa é também a existência de uma pequena rosácea circular nessa empena fundeira, cujo campo é preenchido por três círculos tangentes dispostos em torno de um pequeno círculo central, sendo todos os círculos e os espaços circundantes vazados para deixar passar a luz. (FIG 4) Diga-se que, surpreendentemente, a rosácea está também descentrada, isto é, fora do eixo da capela-mor e da nave da igreja primitiva. Em plena vigência do Românico (séculos XII, XIII…) este corpo foi refeito de modo a passar a constituir a capela-mor da Igreja, que devemos intuir ser românica também. Na sua face anterior lançou-se o seu arco do triunfo de grande vão mas de impostas muito rasantes. Esta face da capela seria devidamente escorada com dois contrafortes, um de cada lado, que sobrevivem e que deixam intuir as grandes dimensões e a configuração dos demais contrafortes que, pelo exterior da igreja, escoravam os dois arcos- -diafragma do interior, já referidos, que delimitavam os três tramos da nave. Em planta, a capela-mor ganharia uma forma aproximadamente quadrada presumindo-se que o complexo retabular, sucessivamente refeito ao longo dos tempos e hoje perdido, ficasse centrado no fundo e ao centro da parede fundeira da capela mor e não surpreenda se esse complexo, mais ou menos monumental ocupasse toda a frente da parede fundeira da capela-mor. A ser assim, como pensamos, a rosácea descentrada do fundo ficaria oculta, pelo que na época barroca se abriria uma janela a grande altura embora algo estreita na parede do lado da Epístola (o direito de quem olha para o altar mor). O rasgamento desta janela (sacrificando-se para isso um cachorro românico) iria coincidir com o alteamento sensível da capela mor, o que se detecta do exterior, pois sobre o nível da extraordinária cachorrada românica que delimita as três paredes livres da capela mor foram apostas duas fiadas de pedra belamente aparelhada de modo a altear o espaço interior da mesma capela-mor. A cachorrada é hoje o elemento arquitectonicamente mais valioso da igreja. A merecer análise detalhada, diga-se apenas que os cachorros (mísulas de sustento do beiral primitivo dispostas regularmente ao lado umas das outras) ostentam figurações aleatórias de máscaras e outros motivos. (FIG 5) Como atrás vimos, a velha igreja de Santa Marinha perdeu a sua condição de paroquial, transferindo-se a cabeça de paróquia para a também muito FIGURA 4 — Capela de Santa Marinha: rosácea da parede fundeira da capela- mor da antiga Igreja e actual Capela de Santa Marinha. FIGURA 5 — Capela de Santa Marinha: cachorrada (pormenor).
  • 19. 36 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 antiga igreja de S. Sebastião, no centro da povoação, que assim mudou de invocação, passando a ser conhecida como a igreja matriz de Mata de Lobos ou nova Igreja de Santa Marinha, que analisaremos a seguir. Em momento que ignoramos, a velha igreja foi amputada da sua nave e de eventual torre ou campanário. Consequentemente, emparedou-se o vão do arco triunfal primitivoeneleseadaptouopórticoquechegouaosnossosdias,certamente adaptado de uma das entradas da nave primitiva (ver atrás FIG 1). 2.2 - CAPELA DE SANTO ANTÃO Apesar de há muito profanada, a capela de Santo Antão continua a ser um dos monumentos maiores de Mata de Lobos. Trata-se de uma capela medieval que, apesar de hoje servir de palheiro e de estábulo (!), é, ainda assim, a igreja com o interior medieval mais bem conservado da paróquia. A sua fachada modesta é encimada por uma empena hoje desprovida de qualquer forma de monumentalidade, mas que deve ter ostentado uma cruz de pedra no seu topo, senão mesmo um campanário, porventura pequeno e de apenas uma ventana. Implantado algo assimetricamente nesta fachada, o portal, em arco e de impostas muito baixas, destaca-se, porém, pelas belas aduelas que definem um arco vagamente apontado (FIG 6) o que deixa intuir uma data de construção muito precoce (séculos XII ou XIII). Contrastando, porém, com o exterior, o interior da capela de Santo Antão é da maior monumentalidade (FIG 7). É constituído pela capela-mor, mais ou menos quadrada e por uma nave desenvolvida, ligadas entre si por um arco triunfal monumental discretamente quebrado e biselado. Trata- se de um interior religioso típico desta região raiana, a ter em conta a morfologia tão singular da nave, oblonga, constituída por dois tramos justapostos longitudinalmente, definidos por um arco-diafragma transversal, também ogival, para suporte das estruturas de madeira da cobertura (tecto de duas águas). De há muito perdido o seu retábulo (o informante de 1758 fala em apenas umaltar),estabelíssimacapelachegouaténósdesprovidadequalquerforro, certamente perdido ou removido aquando da sua profanação. Surpreendem, porém, as dimensões e a escala grandiosa desta capela singular, a que aquela morfologia dá uma amplidão espacial rara, na sucessão dos seus dois amplos tramos justapostos longitudinalmente. 2.3 – A ACTUAL IGREJA MATRIZ DE MATA DE LOBOS. A actual igreja matriz de Mata de Lobos tem de há muito a invocação de Santa Marinha mas, no passado, foi a igreja de S. Sebastião. Embora muito transformada nomeadamente na Época Barroca, a igreja, de origem muito antiga, chegou até nós conservando o essencial da sua estrutura primitiva – enquanto ao seu lado se conserva também a sua torre sineira, também de origem muito antiga, pois deve remontar aos séc.s XIII ou XIV (BORGES, 1989: p. 112), embora com transformações e acrescentos talvez no séc. XVIII). Com efeito, uma das singularidades maiores desta igreja é a sua torre sineira, verdadeiramente monumental, mas muito rara, pois é independente do corpo construído da igreja. Trata-se de uma torre muito alta (c. 25 metros de altura total), de pedra excelentemente aparelhada (ao contrário das alvenarias pobres das paredes da igreja fronteira). De secção rectangular, a torre detém três andares, separados entre si por duas barras ou frisos horizontais. O último corpo acolhe as seis ventanas arqueadas FIGURA 6 — Capela de Santo Antão de Mata de Lobos: fachada principal. FIGURA 7 — Capela de Santo Antão: nave.
  • 20. 38 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 dos sinos, distribuídas pelas suas quatro faces (2+1+2+1) e é encimado por uma cornija barroca que sustenta quatro urnas ou pirâmides decorativas nos seus quatro vértices. Uma pirâmide de alvenaria, belamente rebocada e caiada, domina o conjunto. (FIG 8) Na igreja de Mata de Lobos, muito transformada na Época Barroca, facilmente podemos entrever uma típica igreja medieval composta por capela-mor e uma amplíssima nave justaposta, unidas entre si por um arco triunfaldegrandevão,oquetransmiteumaimpressãodemonumentalidade que perpassa e se acentua na nave, muito vasta e muito larga, o que lhe dá uma espacialidade de uma amplitude raras na arquitectura medieval, nomeadamente nas Beiras. A igreja respeita a tipologia comum dos espaços sagrados de âmbito paroquial, assente na justaposição de dois corpos autónomos, capela-mor e nave longitudinal, ligados entre si por um arco triunfal. A esta estrutura de base justapuseram-se ao longo dos tempos, e muito informalmente, corpos adjacentes para servirem de sacristia, de arrecadação e ainda uma capela anexa, coberta em abóbada de berço e aberta para a nave. Paralelamente, a igreja serviu de cemitério paroquial multi-secular. Por isso, o piso da igreja ainda hoje conserva um sensacional corpus de campas, devida e primorosamente alinhadas ao longo da vasta nave da igreja. (FIG 9) O elemento mais singular da igreja, porém, é a típica morfologia da sua amplíssima nave, constituída por quatro tramos justapostos longitudinalmente. (FIG 10) ComoporventuranaperdidanavedaigrejaprimitivadeSantaMarinhaecomo na capela de Santo Antão, como vimos – e sobretudo como na generalidade das velhas igrejas raianas da margem direita do Côa – o amplo espaço da nave organiza-se mediante a justaposição de tramos definidos e separados entre si por amplos arcos transversais. Trata-se de típicos arcos-diafragma, paralelos entre si8 – aqui em número de três, ligando transversalmente as duas paredes laterais da nave, a fim de facilitar e simplificar o lançamento das traves longitudinais que sustentam a cobertura. A amplidão dos arcos exigiu naturalmente, também como nas demais igrejas da região devedoras da mesma morfologia, o escoramento das paredes pela sua face exterior, com a adição de poderosos contrafortes que, no exterior, assinalam o lançamento dos arcos do interior da nave. A simples observação destes contrafortes exteriores denuncia no exterior a organização do espaço interior – mas denuncia também uma origem bastante antiga para esta e para as demais igrejas da região devedoras desta mesma morfologia9 . Com efeito, e como vimos defendendo, esta morfologia não é de origem verdadeiramente portuguesa e, como tal, não se encontra nas terras aquém do Côa, isto é, na margem esquerda do rio que, até 1297, a data do Tratado de Alcanizes, constituía a fronteira natural de Portugal com o Reino de Leão. Assim, as terras que em 1297 foram incorporadas no Reino de Portugal, eram leonesas, e leonesas eram as gentes, os falares e naturalmente os modos de construir. Esta circunstância explica a presença intensiva desta morfologia arquitectónica na vasta região entre o Rio Côa e a fronteira ajustada diplomaticamente em 1297. Ela é uma sobrevivência de modelos arquitectónicos e de praxis construtivas muito próprias, que não se encontravam na margem esquerda do Rio Côa. Consequentemente, a data de Alcanizes – 1297 – poderia ser um excelente referente cronológico para a dataçãodaprimitivaconstruçãodestaedasdemaisigrejasdevedorasdesta morfologia. Porém, deve notar-se que a filiação deste território específico FIGURA 8 — Torre sineira da Igreja Matriz de Mata de Lobos. FIGURA 9 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: sepulturas. FIGURA 10 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: nave. NOTA 8 — Arco-diafragma: “arco transversal que separa os tramos de certas igrejas româ- nicas com o fim de aliviar as paredes laterais” (SILVA, CALADO, 2005: p. 37). Esta solução ar- quitectónica, muito antiga (remonta pelo me- nos ao século XII, muito popular em estruturas laicas, nomeadamente na Catalunha, é usada também abundantemente na arquitectura religiosa. Muito rara entre nós, ressalvando a arquitectura religiosa de Riba-Côa, o exemplo mais monumental em Portugal é o da própria Sé de Braga. As vantagens desta estrutura são óbvias: “Este tipo de estrutura entre o estático e o dinâmico permite cobrir espaços de grande largura com segurança, sem ter que recorrer ao sistema abobadado. Além disso, com isto, diminui o peso e pode-se prescindir de muros grossos (YARZA, 1994: p. 346). NOTA 9 — Deve notar-se, porém, que os pés direitos dos arcos-diafragma (de cunho barroquizante, desde as bases às impostas) e mesmo alguns contrafortes parece terem sido refeitos em época posterior, embora respeitando a morfo- logia medieval.
  • 21. 40 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 ao Reino de Leão e depois ao Reino de Castela e Leão, ou simplesmente de Castela não se extingue totalmente em 1297. Com efeito, no domínio eclesiástico, este território continuou integrado na Diocese de Cidade Rodrigo – e integrado nesta diocese ficaria durante mais de um século, pois só nos inícios do século XV as respectivas paróquias passariam do domínio da Diocese leonesa-castelhana para a antiquíssima Diocese portuguesa de Lamego10 , como já vimos. Seja qual for, porém, a datação da sua construção – que presumimos muito antiga – esta e as igrejas raianas afins são de facto de explícita origem leonesa, dada a sua tão peculiar morfologia. Porém, o facto de este território continuar na dependência da diocese de Cidade Rodrigo por um período tão dilatado, pode fazer atrasar a datação da fase de construção de pelo menos algumas destas igrejas, pois o bispo leonês-castelhano certamente apoiaria a sua construção (ou a sua reconstrução), mediante a remessa de fundos e, sobretudo, mediante a remessa para este território de mestres- -pedreiroseserventes.Aintervençãodirectademestres-pedreirosleoneses na arquitectura raiana portuguesa, anterior e posteriormente a 1297, que já entrevíramos no santuário da Senhora de Monforte do Bizarril (CAETANO, 2021: pp. 30-32) e na igreja matriz de Escarigo (CAETANO, 2022: p. 38), parece estar assim plenamente demonstrada. Mas a intervenção de mestres leoneses-castelhanos, ou simplesmente castelhanos,naactualigrejadeMatadeLobosnãoterminacomadesanexação da paróquia da diocese de Cidade Rodrigo. Com efeito, cerca de um século depois,alguresnosfinsdoséculoXVounoiníciodoséculoXVI,aindaseregista uma intervenção importantíssima nesta igreja a creditar a mestres da mesma proveniência castelhana: trata-se do extraordinário pórtico da fachada lateral Norte,detípicaconfiguraçãotardo-gótica (FIG 11) que,maisumavez,sefilianas tradiçõesconstrutivascastelhanas–eatémudejares. Com efeito, a composição deste portal sensacional está muito próxima de uma estética, ou melhor, apresenta um ar de família a que podemos chamar de Isabelino – “isabelino” por se ter manifestado no reinado de Isabel a Católica (n. 1451; reinado 1474-1504) – ciclo artístico que precede ligeiramente o Manuelino português. Os pés direitos do arco, singularmente baixos, apresentam duas colunas tardo-góticas, emparelhadas e muito delgadas, sobre cujos capitéis se sustentam as impostas laterais, muito desenvolvidas, em que se apoiam os arranques do arco do portal, quebrado (ogival), desenvolvido em duas discretas arquivoltas. A aduela do fecho do arco ostenta um baixo relevo pouco profundo e muito desgastado de S. Sebastião, o antigo padroeiro da igreja, com as suas flechas e sobretudo com as típicas bragas em moda nos fins do século XV e princípios do século XVI. Diga-se que arcos atarracados como este podem ver-se em certa arquitectura paroquial da época, nomeadamente no portal da fachada principal da vizinha igreja de S. Pedro de Rio Seco (Almeida), que tem uma morfologia muito parecida com a deste. Porém, a singularidade do arco de Mata de Lobos está no alfiz que enquadra e delimita o campo do arco e das suas arquivoltas. Trata-se de uma espécie de moldura rectangular, definida por pequenas molduras laterais que, arrancando das impostas, sustentam uma moldura horizontal superior com o mesmo perfil, molduras estas que ostentam típicas pérolas ou bolas, mais ou menos regularmente distribuídas pelas três faces do alfiz. Enfim, diga-se que todo este conjunto portal-arquivoltas-alfiz é tratado em pedra belamente aparelhada, em contraste com a alvenaria pobre de pedra miúda FIGURA 11 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: pórtico “isabelino” da fachada Norte. NOTA 10 — Por Bula de 1403 (SILVA, 1992: p. 544). Infelizmente, não foi possível apurar se esta data corresponde à Era de César ou à Era de Cristo, separadas por 38 anos.
  • 22. 42 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 da parede em que se integra e que no passado era evidentemente rebocada e caiada, como o deve voltar a ser. O alfiz, típico da arquitectura tardo-gótica do Sul, sobretudo da espanhola, merece destaque por ser muito raro entre nós. Como se sabe, quer o portal lateral primitivo, quer o alfiz que o enquadra, atrás referidos, foram ocultados sob uma camada de reboco durante séculos e talvez por isso o pároco de 1758 os não refira. Segundo informadores locais surgiu em obras relativamente recentes, quando infelizmente se removeu o reboco integral das fachadas da igreja. Descobriu-se então que o portal original, de vão muito amplo, tinha sido parcialmente entaipado, de modo a permitir a abertura de um portal mais pequeno, em uso até à descoberta e restituição do portal primitivo (BORGES, 1989: p. 110). Algures no século XVI, a igreja foi enriquecida com um púlpito monumental (disposto a meio da nave, do lado da Epístola), sustentado por uma pequena coluna (ordem arquitectónica indefinida), em torno da qual se dispõem engenhosamente os degraus irradiantes da escada. A plataforma do púlpito, hexagonal, é resguardada por guardas de pedra, maciças e desornamentadas, ressalvando as finas molduras que delimitam cada uma das guardas, nos seus lados superior e inferior e nos ângulos de junção dos diversos planos laterais entre si, efeito relativamente comum em púlpitos quinhentistas da região. O emparedamento, atrás referido, do arco lateral, pode ter ocorrido durante as grandes obras do século XVIII, quando a igreja foi intensivamente barroquizada.Nessaépocafoireconstruída,cremosqueapenasparcialmente, a capela-mor, que provavelmente conservou a planta e as paredes originais, alteando-as, porém, de modo a sustentarem uma típica abóbada de arestas, raríssima na região. Dois contrafortes super-dimensionados, aparentemente destamesmaépoca,pareceteremsidoconstruídosparaapoiarolançamento da abóbada. Estão dispostos simetricamente de cada lado da capela-mor, estando o do lado Norte incorporado na sacristia contígua, onde emparelha comumformosíssimolavabo,tipicamentebarroco,lavradonamaisfinapedra da região, epigrafado de 1751. Acapela-mor,deformasensivelmentequadrada,foiparcialmenterefeitaem meados do século XVIII, ganhando então a sua figuração actual. O pároco local, autor da memória de 1758, refere explicitamente que a igreja está então em obras, testemunhadas, aliás, no espelho do “tabuleiro” do altar- mor, epigrafado “ANNO D 1759” (Ano do Senhor de 1759) numa inscrição muito vistosa. Enfim, à Época Barroca remontam os complexos retabulares da igreja, todos datáveis de meados do século XVIII, como veremos. Merece referência a descrição do vigário de 1758, que para lá da referência às obras, testemunha também a progressiva deslocação do culto da velha igreja matriz, onde ainda se continuavam a fazer os baptizados, para esta: "Os mais sacramentos e funções paroquiais se fazem em outra igreja que está situada no meio do povo com a invocação de S. Sebastião, nesta está o Santíssimo Sacramento e dela se administra aos enfermos. Na capela maior queagoraseestáfazendodeabóbadaestáoSacramento,S.Sebastião,Santo António e o Menino Deus. Compondo-se mais esta igreja de quatro altares, no primeiro deles para a parte direita está a imagem de Nossa Senhora do Rosário, e no segundo, que é das Almas se acha a imagem de um Crucifixo a quem este povo tem grande devoção e a imagem da Mãe de Deus ao pé da Cruz e o Evangelista São João, e para a parte esquerda no primeiro se acha
  • 23. 44 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 a imagem de S. Jorge, e no segundo S. Tiago. Compõem-se [sic] também de quatro naves [sic] e seu coro" (CAPELA, MATOS, 2013: p. 276]. Cingindo-nos agora apenas ao exterior da igreja, nota-se à vista desarmada a barroquização da velha fábrica medieval, submetida a uma linguagem classicizante, declinada num gosto indiscutivelmente barroco. Assim surgem as novas aberturas, enquadradas por pilastras e cornijas e sinalizadas por vistosas urnas decorativas de composição diversa. Porém, o elemento mais vistoso deste processo de barroquização manifesta-se sobretudo na belissima empena da fachada principal, com as suas curvas e contracurvas belamente lançadas e recortadas no horizonte (FIG 12) – e que ganhariam uma presença e uma dignidade arquitectónica ímpares, se tivessem mantido os rebocos e as caiações originais – que são de lei numa fachada como esta. 2.4 - CAPELA DO SANTO CRISTO Dada a sua localização, a sua morfologia e até a sua invocação, a capela de Santo Cristo de Mata de Lobos é uma típica ermida de peregrinação, embora de âmbito estritamente local. Nada sabemos da sua origem, possivelmente muito antiga, embora, tal como chegou até nós, pareça ter sido construída (ou totalmente reconstruída) algures nos séculos XVII ou XVIII. A sua construção, num lugar aprazível e relativamente afastado da povoação, assegurava a sacralização do território, tão típica da espiritualidade das sociedades tradicionais. Com efeito, essa sacralização incidia não só sobre a capela e o seu muito desafogado adro, mas também sobre os próprios caminhos que outrora ligavam a primitiva matriz de Santa Marinha a esta ermida, sinalizados pelos cruzeiros de pedra correspondentes aos diversos passos da Via Sacra, celebrada outrora processionalmente ao ar livre por todos os devotos de Santo Cristo. O percurso sagrado tinha o seu ponto alto no “Calvário” fronteiro, onde os devotos celebravam a própria Paixão e Morte de Cristo encerrando-se a devoção, já dentro da capela, com a celebração do passo do “Enterro do Senhor”, que ainda hoje aí jaz exposto no seu esquife. OCalváriomonumentaldoadrodacapela (FIG13)éumasingelaevocaçãodo Calvário de Cristo, crucificado no topo de uma colina, entre os dois ladrões da narrativa sagrada. Aqui encontramos apenas, como em tantas localidades além e aquém- -fronteira, as três cruzes, localizadas no topo de uma pequena colina, aplainada e airosa, dispostas simetricamente: a cruz de Cristo, maior, no centro, ladeada pelas duas cruzes mais pequenas correspondentes às dos dois ladrões dos Evangelhos da Paixão. A fim de dar visibilidade e monumentalidade ao Calvário, as cruzes estão erguidas sobre altos plintos de feição barroca. Construído em 1722 (BORGES, 1989: p. 56), há todos os motivos para considerar, dado o carisma do sítio, a existência de um calvário anterior, muito mais antigo, provavelmente de madeira, implantado no mesmo sítio, mas cuja vetustez implicou a sua substituição e a sua monumentalização,realizadanaexcelentepedradolocal.Aactualcapelado Santo Cristo também pode resultar da reconstrução integral de uma capela anterior, porventura mais pequena e mais modesta. Ligeiras prospecções arqueológicas poderão esclarecer esta questão. O elemento arquitectónico mais distintivo da capela é a sua fachada principal, muito original e muito rara, onde se abrem duas portas, dispostas simetricamente, uma de cada lado, ladeando um amplo janelão horizontal FIGURA 12 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: fachada principal. FIGURA 13 — Adro da Capela de Santo Cristo: Calvário.
  • 24. 46 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 velado por típicos mas raríssimos balaústres de pedra de cunho barroco ou mesmo pré-barroco. (FIG 14) Aquelas duas portas, ao serviço de uma capela tão pequena, atestam a naturezadoseuuso,nomeadamentenasviassacrasedemaiscerimóniasda SemanaSanta,poisasuadisposiçãofacilitavaasentradasesaídasordenadas dos devotos, à semelhança das igrejas e dos santuários de peregrinação. Para lá destas insólitas aberturas, dominando a sua fachada principal, o outro elemento arquitectónico que dá singularidade a esta bela ermida é o seu típico alpendre (galilé), aposto à fachada principal: Trata-se de um micro-adro coberto, mais ou menos quadrado, circunscrito por guardas ou poiais de pedra, como vemos em tantas velhas ermidas portuguesas. De planta sensivelmente quadrada, a capela outrora era coberta por um forro em masseira, porventura muito aparatoso, isto é, de formato piramidal rebaixado, de secção quadrangular ou mais provavelmente octogonal,talvezrealizadoemcaixotõesarticuladosunsnosoutros,sendo o todo devidamente pintado com motivos decorativos e sobretudo com motivos religiosos. Dada a invocação da capela, podemos imaginar que o tecto fosse decorado com brutescos classicistas (ornatos vegetalistas tipicamente enrolados) a enquadrarem os símbolos da Paixão de Cristo (coroa de espinhos, cruz, pregos, martelo, etc, etc.). Este tecto, mais ou menos rico, foi substituído em obras recentes por um forro algo pretensioso, também em masseira, mas realizado com prosaicas ripas de forro corrente, nos antípodas das pompas barrocas que há que intuir no interior primitivo desta tão formosa capela. Dignificando a singela capela, a sua caiação sobrevive intacta no exterior. Porém, o não entendimento quer da sacralidade do espaço, quer da sua monumentalizaçãoevidente,levouàrelativamenterecenteremoção,escusada emuitoinfeliz,dorebocoedacaiaçãointeriores,queeramelementosinerentes à linguagem arquitectónica desta e de todas as igreja e capelas erguidas na época barroca que, ao contrário do que pudéssemos pensar hoje, não tolerava e era incompatível com a estética pseudo-minimalista da “pedra à vista”. Para acentuarodesconfortovisualelitúrgico,actualmentesentidoporentreassuas vetustasparedes,assimtristeeescusadamentedecapadase“depenadas”,tem quesereferirqueasjuntasinterioresentreaspedrasdasparedesforamtratadas em cimento industrial comum – materiais, técnicas e efeitos absolutamente impróprios, que temos que classificar de muito “rascas”, passe o plebeísmo da expressão–soluçãoquesepodeesperarnumqualquerarmazém,garagemou mesmonumrestaurantetípicomasnuncanumaermidacomoesta,comasua história,asuaantiguidadeeasuaextremacategoriaarquitectónica! 3. Arte sacra em Mata de Lobos Como atrás se disse, a paróquia de Mata de Lobos herdou, para lá da sua extraordinária arquitectura religiosa, um vasto património de arte sacra, onde confluem as artes aplicadas, a pintura e sobretudo a escultura, atingindo esta culminâncias raras e inesperadas numa paróquia raiana. Por absoluta indisponibilidade de espaço não consideraremos as artes dos têxteis da paróquia (paramentaria, linhos e sedas; bandeiras e toalhas de altar e afins), nem a marcenaria, patente em excelentes peças de mobiliário sobreviventes . A ourivesaria11 e em particular a artes dos metais merece, porém, justo destaque. Assim, entre outras peças de qualidade, note- se a excelente cruz processional exposta na Capela de Santa Marinha, aparentemente flamenga. (FIG 15) FIGURA 14 — Capela de Santo Cristo: fachada principal. FIGURA 15 — Capela de Santa Marinha: Cruz processional. NOTA 11 — Num livro de despesas paro- quiais relativo ao ano de 1813 surge a verba de 3.200 réis que a paróquia “des- pendeu para quem levou e trouxe a prata da Igreja para a livrar do inimigo” (citado in BORGES, 1989: p. 48), tarefas relacio- nadas com a III Invasão Francesa, que ocorreuem1810equedevassouaregião.
  • 25. 48 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 Apoiada num globo e com os braços de secção circular, esta cruz, quase desprovida de ornatos, destaca-se pela elegância sóbria e austera que associamos a certas formas tardo-renascentistas, tão típica dos finais do século XVI e dos inícios do século XVII. 3.1 - A ESCULTURA SACRA DE MATA DE LOBOS Comoportodoolado,atalhaeaesculturasacradeMatadeLobosestavam ao serviço do culto e exerciam-se a dois níveis: retábulos e imaginária. A extraordinária colecção de imagens sagradas sobreviventes em Mata de Lobos, de origem medieval, quinhentista ou posterior, deixa intuir sucessivas gerações retabulares nas igrejas e capelas desta tão antiga paróquia. Nas linhas que se seguem procuramos dar uma apanhado quer dos dois mais importantes retábulos que chegaram até nós, quer da principal imaginária sobrevivente. 3.1.1 - A VIRGEM EM MAJESTADE ROMÂNICA DA IGREJA MATRIZ DE MATA DE LOBOS A belíssima e antiquíssima imagem da Virgem em Majestade que hoje se conserva na capela-mor da actual igreja Matriz (lado do Evangelho) é uma imagem de madeira em que a Virgem, com o Menino ao colo, de acordo com uma iconografia muito consolidada (FIG 16). Surge sentada num trono majestático, exposta à contemplação e à devoção dos fiéis12 . A Virgem usa túnica longa e está envolta no inevitável manto azul, muito repintado ao longo dos tempos. Embora de uma forma lacunar, esta imagem parece ser referida pelo vigário de Mata de Lobos de 1758, quando este, na sua memória, refere um “Menino Deus” que então se expunha ao culto na capela-mor da igreja, como atrás vimos, ao lado de S. Sebastião e de Santo António. Fora esta referência tão vaga, mais nada sabemos desta extraordinária imagem, da sua datação (século XIII? princípios do século XIV?) ou, muito menos do mestre santeiro queamodelou.Asuasobrevivênciaé,porém,ummilagredevocionalecultural, a fazer parelha com idênticos “Milagres” celebrados nas Cantigas de Santa Maria que devemos ao rei de Leão Afonso X, avô do rei D. Dinis de Portugal, onde a Virgem é cultuada intensivamente em imagens, algumas das quais temos que presumir muitos semelhantes a esta. Com efeito, na rudeza das fisionomias, na frontalidade da postura e até na rigidez geral da composição emerge uma dignidade e uma graça verdadeiramente transcendentes, que fazem desta bela imagem, que felizmente permanece exposta ao culto, uma obra-prima absoluta da escultura medieval portuguesa, filiável no ciclo do Românico, a merecer restauro condigno e urgente – e a merecer resguardo e dossel compatível com a sua antiguidade e a sua valia devocional e estética. 3.1.2. A ESCULTURA QUINHENTISTA DE MATA DE LOBOS AparóquiadeMatadeLobosconserva–maisumavezalgomilagrosamente – três conjuntos escultóricos da maior categoria, de origem desconhecida mas datáveis de momentos diversos do século XVI: o grupo da Paixão de Cristo (Cristo Crucificado, a Virgem e S. João Evangelista) num altar lateral (lado do Evangelho) da actual igreja matriz; um baixo relevo em madeira representando S. Jorge a combater o dragão, presentemente exposto na capela-mor da mesma igreja, também do mesmo lado e, enfim, uma portentosa, inesperada e surpreendentemente pouco notada imagem de Santa Marinha, de madeira, mutilada e muito mal conservada, que se continua a expor na capela da mesma invocação, já atrás referida. FIGURA 16 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: Virgem em Majestade românica. NOTA 12 — Inês Mineiro Abreu refere es- pecifica embora muito fugazmente a Virgem em Majestade de Mata de Lobos na sua recente tese (ABREU, 2023: Vol. I: p. 89; Vol. II: Fig.s 51, 52, 53). A autora identifica este tipo iconográfico como “o modelo da Sedes Sapientiae”, que asso- cia ao tipo da “Virgem em Majestade ou Trono de Sapiência – isto é, Maria seden- te que serve de trono ao Menino, ambos hieráticos e frontais em relação ao ob- servador, e sem demostrações de afecto entre ambos, ou seja, duas personagens pertencentes ao universo estritamente divino” (ABREU, 2023: p. 72). Na sua tese, muito interessante, a autora regista a antiguidade e a popularidade, mesmo internacional, desta iconografia (Ibidem, p. 147) e também intui as afinida- des deste modelo iconográfico com algu- mas das Virgens invocadas nas Cantigas de Santa Maria de Afonso o Sábio (Id., Ibi- dem, p. 52 e seg.s). Noutra passagem da sua tese, a autora regista a longevidade deste modelo iconográfico: “o modelo da Sedes Sapientiae é o que mais permane- ce imutável até ao séc. XIV, mantendo-se o gosto, em Portugal, por esta tipologia, mesmo após 1300, embora introduzin- do novidades formais e iconográficas ao mesmo” (Id., Ibidem, P. 147). Nota: agradeço ao amigo Ruy Ventura esta referência bibliográfica tão recente, bem como outras considerações e su- gestões sobre o conjunto de esculturas quinhentistas de Mata de Lobos.
  • 26. 50 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3 A abordagem destas três peças suscita a questão da sua origem e da sua datação e também a da sua localização original, certamente em máquinas retabulares relativamente aparatosas e estruturalmente diferentes entre si, tendo em conta a morfologia diferente destes três conjuntos. 3.1.2.1 - O CALVÁRIO QUINHENTISTA DE MATA DE LOBOS Para quem entra, o Calvário expõe-se no primeiro retábulo da igreja, à esquerda de quem olha para o altar-mor. Relativamente mal adaptado num excelente retábulo tardo-barroco, demasiado acanhado para receber um conjunto escultórico tão monumental. O Calvário é constituído pela cruz comoCrucificadoe,embaixo,dispostossimetricamente,umdecadalado,a Senhora das Dores e, do outro lado (direito), S. João Evangelista (FIG 17). Surpreende a evidente monumentalidade do conjunto, que ostenta as imagensdemaiortamanhodetodaaigrejaesurpreendetambémacategoria estética global das figuras sagradas, a merecerem estudo aprofundado. O Calvário, dominado pela figura tão majestosa quanto dramática de Cristo na Cruz, representado de acordo com convenções iconográficas pouco correntes, sobrepõe-se a uma figuração da cidade e das muralhas de Jerusalém, aqui providas de ameias. Odevotoéconvidadoafecharosolhosàsrepinturasmaisoumenosrecentes do retábulo e sobretudo aos repintes sucessivos que embonecaram tão escusadamente estas imagens. Impõe-se, consequentemente, uma criteriosa limpeza do retábulo e das esculturas, a fim de estas reganharem o seu brilho, a sua autenticidade e a sua dignidade originais, ocultadas por repintes aplicados ao longo dos últimos séculos. Tudo é extraordinário neste Calvário: o tamanho excepcional e a evidente escala monumental do conjunto, de há muito menorizado na tribuna acanhadadeumretábuloque,deacanhadaemesmoestreita,ocultaasmãos de Cristo na Cruz e parece comprimir as imagens uma contra as outras. A par do tamanho e da escala, registe-se a presença visual única desta cena muda, mas tão dramática, dominada pela torsão intensa do corpo do Crucificado, de rosto voltado para a Virgem, ela própria retorcida, de olhos voltados para a base da cruz enquanto volta o corpo e as mãos suplicantes, agarradas uma na outra, para a esquerda e para cima, num gesto relativamente invulgar de dor e prece. No lado direito, o apóstolo S. João, numa posição frontal típica do contraposto, quebra a serenidade clássica que se esperaria desta pose ao voltar violentamente a cabeça para a cruz numa torsão que lhe dá uma amplitude de olhar capaz de captar e reflectir toda a dor da cena sagrada, dos joelhos, das chagas e do rosto do Crucificado, até à Mater Dolorosa que do outro lado da cruz volve o seu olhar para os pés do Calvário. Nada sabemos do complexo retabular primitivo que acolheu este Calvário porventura neste mesmo sítio, encaixado num muito vasto nicho incorporado na parede Norte da igreja, sobre uma predela perdida, pintada ou provavelmente esculpida, que servia de base à cena da Paixão e Morte de Cristo. Do mesmo modo, nada sabemos quer da autoria quer da datação deste sensacional conjunto escultórico que milagrosamente chegou até nós – e que já em 1758 era referido como objecto de grande devoção dos moradores, como atrás vimos. A dramaticidade das figuras e as suas torsões tão intensas, a par do silêncio eloquente das poses e dos gestos, que dispensa gritarias e se concentra todo nas expressões contidas e interiorizadas desta espécie de FIGURA 17 — Igreja Matriz de Mata de Lobos: Calvário quinhentista do altar das Almas.
  • 27. artes da Alemanha desde a Idade Média até aos nossos dias. Aqui em particular, estamos em pleno âmbito do “expressionismo nórdico” de que fala Fernando Checa, cuja “versão dulcificada” “se observa nos círculos em torno da Corte” castelhana, ao serviço de uma efectiva “extensão do modelo nórdico em Castela” (CHECA; 1983: p. 62). Não surpreenda a acção de oficinas de mestres escultores estrangeiros ou a importação de obras estrangeiras para terras de Riba-Côa, pois a categoria de “periferia”, que hoje associamos a estes territórios raianos, não existia no século XVI nem, de uma maneira geral, nas sociedade de Antigo Regime, quando (apesar da natureza dos transportes da época) o território do Reino era infinitamente mais equilibrado, mais coeso e mais homogéneodemográficaecultutalmentedoquehoje.Éestacircunstância que explica que uma paróquia, nada periférica, ao contrário do que pudéssemos pensar, antes muito abastada e influente, nomeadamente depois de, em 1514, se ter tornado cabeça de uma Comenda da Ordem de Cristo: a Comenda de Santa Marinha de Mata de Lobos, uma das comendas novas da Ordem de Cristo, criadas por D. Manuel I (BORGES, 1993: p. 91). Provável encomenda de prestígio de um comendador ou de um grande da época de algum modo ligado a Mata de Lobos, este Calvário é dos mais dramáticos, senão o mais dramático das Beiras. Seja qual for a sua datação e a sua origem efectiva, importado ou executado cá, as imagens do retábulo da Paixão de Mata de Lobos são obra de um grande mestre desconhecido ou ainda por identificar (infelizmente muita da velha arquitectura e da arte beirã está por documentar – e por documentar irá permanecer, devido à miséria franciscana dos arquivos históricos locais), de origem flamenga ou mais provavelmente alemã, como pensamos. As teatro sagrado, põem a questão da origem e da datação deste Calvário e o dosmestresouodaoficinaondefoifeito.Dadaaexpressividadeveemente do conjunto parece tratar-se de obra de uma oficina luso-flamenga, ou mesmo flamenga. Com efeito, sabemos que artistas flamengos – o escultor Mestre Arnao de Carvalho, ao lado do pintor porventura português Henrique Fernandes – trabalharam comprovadamente em 1524, na vizinha paróquia de Escalhão13 , nas esculturas do respectivo retábulo-mor quinhentista, de que nos ficaram importantes fragmentos14 . Com efeito, a elegância aristocrática e afectada das personagens sagradas bem como a sua expressividade - intensa e dolorosa até à saturação - parecem incompatíveis com as tradições culturais e religiosas próprias da arte e da sensibilidade portuguesa ou da italiana, mas também parece apresentar uma carga devocional e uma “temperatura” artística muito afastadas das espanholas ou francesas da época. Assim, restam duas opções para a plena identificação deste tão insólito e tão raro Calvário: ou tratar-se de um produto de importação – ou antes, tratar-se do produto de artista ou artistas luso-flamengos activos entre nós, provavelmente com oficina nas Beiras ou (hipótese mais provável ainda, dadas as características da figuraçãoglobal)serfrutodeumaoficinaoudeummestregermânico,activo entre nós15 . Notem-se as afinidades com as imagens comprovadamente alemãs da Virgem e de S. João, do próprio Museu Gulbenkian, datáveis “já do início do séc. XVI”. Com efeito, estas figurações tão dramáticas, e mesmo patéticas, na sua eloquência sobrecarregada até à saturação com oobjectivodesensibilizareresponderàsangústiasexistenciaisdecrentes acossados em tempos de mudança e de crise16 , integram-se plenamente nas pulsões “expressionistas” que se captam tão intensamente nas NOTA 13 — Pedro Dias refere explicita- mente que “Na Beira Alta, foi Arnao de Carvalho quem dominou toda a escultura, tendo-se associado a Vasco Fernandes, para quem fez as estruturas e estatuária dos retábulos das Sés de Viseu e Lame- go. Ainda hoje há obras suas nas igrejas de Escalhão e Castelo Rodrigo” (DIAS, 1997: p. 54). NOTA 14 — Fernando Grilo identifica as seguintes esculturas de Mestre Arnao no retábulo quinhentista da Matriz de Escalhão, readaptados no retábulo bar- roco que chegou até nós: “subsistem os quatro Evangelistas, e 4 apóstolos, estátuas de madeira de boa qualidade, assim como dois notáveis relevos, re- presentando o Caminho do Calvário e a Deposição de Cristo, esculturas integra- das actualmente num retábulo barroco” (GRILO, 1997:, p. 110), acrescentando que ao mesmo mestre ainda devem ser atri- buídas a Virgem e S. João de um Calvário de Castelo Rodrigo. Sobre Mestre Arnao de Carvalho ver GRILO, 1997: pp. 106-111. NOTA 15 — Referindo-se apenas à pintu- ra – disciplina onde se vive uma situação em tudo semelhante – Paulo Pereira pôde escrever que nas primeiras décadas do século XVI Portugal apresenta “uma marcada preferência pelas importações de peças de origem nórdica, flamenga e alemã”, acrescentando que “O grosso das importações marcaria, a partir de um mercado disponível ou de maior acesso fi- nanceiro,comooeraodaEuropadoNorte e sobretudo a Flandres, o gosto áulico. Este gosto manifestava-se não apenas em aquisições da Coroa mas também em encomendas feitas a partir dos principais centros políticos e religiosos portugueses (Lisboa, Coimbra, Braga, Viseu ou Évora)” (PEREIRA, 2011: p. 473). Paulo Pereira publica ainda (Id., Ibidem) um mapa da Europa com as “Rotas para fornecimento da indústria naval portuguesa na Europa”, que vai de Cádis e Sevilha até Riga, notan- doque“amesmarededecontactosservia paraotrânsitodeartistaseimportaçãode obras de arte”. Por sua vez, Fernando Grilo refere a im- portação de imagens e conjuntos reta- bulares como o retábulo da “Parentela de Santana”, de Antuérpia, c. 1500, que ainda hoje se expõe na Igreja Matriz de Torre de Moncorvo (GRILO, 1997: p. 87) Paralelamente à importação de obras flamengas e alemãs, o mesmo autor considera que “A permanência de es- cultores nórdicos em Portugal veio ao encontro da necessidade de dar resposta a um conjunto crescente de encomendas em madeira, que eram de mais fácil sa- tisfação,demaisrápidaexecução,menos onerosas e esteticamente notáveis pelas possibilidades expressivas e colorísticas que revelavam” (GRILO, 1997: p. 89). NOTA 16 — Segundo Maria Rosa Figuei- redo, trata-se de um período em que “a contemplação da Paixão de Cristo e do sofrimento dos Santos, destinada a au- mentar nos devotos os sentimentos de 52 CADERNOS DO PATRIMÓNIO 3