2. A HISTORIA DE ISRAEL
A PARTIR DOS POBRES
Esta coleção recolhe estudos bíblicos que têm como preocupação
fornecer subsídios para os agentes de pastoral bíblica popular. Os
textos que dela fazem parte nasceram da experiência de leitura da
Bíblia com o povo. Preocupam-se em fazer a ligação entre o texto
da Bíblia e a vida de hoje. Relendo as experiências de vida comu
nitária do povo que escreveu a Bíblia, querem animar as lutas do
povo que hoje se sente chamado por Deus a viver em comunidade.
Da mesma série:
Projetos de esperança. Meditações sobre Gênesis 1-11 - Milton
Schwantes (no prelo)
Capa:
André
Esch
4. Jorge Pixley
A HISTÓRIA DE ISRAEL
A PARTIR DOS POBRES
TRADUÇÃO
Ramiro Mincato
2- Edição
/ A
lMDZES,
Petrópolis
1990
5. <c) do autor
Direitos de tradução cedidos à
Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
25689 Petrópolis, RJ
Brasil
Título do original espanhol:
Historia de Israel desde la perspectiva de los pobres
Diagramação
Valderes Barboza
ISBN 85.326.0282-7
Este livro foi composto e impresso
nas oficinas gráficas da Editora Vozes Limitada
— Rua Frei Luís, 100. Petrópolis, RJ — Brasil — CEP 25689
— Tel.: (0242) 43-5112 — Caixa Postal 90023 — End. Telegráfico: VOZES
— CGC 31.127.301/0001-04 — Inscr. Est. 80.647.050.
6. SUMÁRIO
AFRESENTAÇAO.................................................................. 7
I. Chaves de leitura ...................................................... 9
II. As origens de Israel como nação de tribos ... 13
III. Surgem os reis sobre as tribos de Israel ........ 22
IV. Revolta das tribos contra a dinastia davídica .. 37
V. A dinastia de Amri (884-841 a.C.) ...................... 44
VI. A dinastia de Jeú (841-752 a.C.). Ortodoxia e
exploração .................................................................... 48
VII. Enquanto isto, o reduto davídico, Judá ............ 54
V III. Os profetas no final do século VIII em Judá .. 59
IX. A Palestina sob a hegemonia assíria (738-630
a.C.) ................................................................................ 63
X. O projeto de um novo Israel (640-609 a.C.) ... 73
XI. O período da hegemonia babilônica (605-539 a.C.) 80
XII. O período da hegemonia persa (539-332 a.C.) ... 91
XIII. O período da dominação helenística (332-167 a.C.) 102
XIV. A insurreição macabéia e o governo hasmoneu
(167-63 a.C.) ................................................................ 110
XV. O período da dominação romana sobre Israel
(63 a.C. a 135 d.C.) .................................................. 119
APÊNDICES.......................................................... ................... 135
7. APRESENTAÇÃO
Esta é uma breve apresentação da história do período
bíblico de Israel. Israel, o objeto deste estudo, se define
por três coordenadas: 1 — Cronologicamente, pelo período
que vai de Moisés até Simão Bar Kokba (aproximada
mente do ano 1220 a.C. até 135 d.C.). Isto exclui, por um
lado, os antecedentes patriarcais, e, por outro, a derivação
desta história no povo e na igreja cristã. 2 — Geografica
mente, esta história redus-se aos limites do território da
Palestina. Exclui, portanto, as histórias dos antigos grupos
judaicos que viveram fora deste território, na Babilônia,
Pérsia, Egito e outros lugares. 3 — Sociologicamente, enten
demos que Israel durante estes mil e trezentos anos foi
um projeto da nação camponesa que lutava para sobre
viver e para conseguir as estruturas indispensáveis à sua
sobrevivência.
»
Esta definição de Israel não é evidente. O próprio
desenvolvimento do estudo deverá justificá-la.
O autor desta obra é professor de Bíblia em um se
minário teológico, e esta história foi escrita com fins pe
dagógicos. Seus destinatários privilegiados são pastores, pro
fessores de escolas bíblicas, ministros da palavra e semina
ristas. Quer oferecer às pessoas que possuem um conheci
mento mínimo dos livros bíblicos e fé no Deus da Bíblia
balizas históricas para ler com maior inteligência estes
8. livros que lhes são sagrados. Por esta razão dedicaremos
certo espaço para situar historicamente os livros bíblicos,
espaço além daquilo que seria necessário em uma história
de Israel religiosamente desinteressada. Estamos, porém,
convencidos de que a história de Israel é útil e valiosa
também para aqueles que não têm fé. O autor crê ter escri
to um livro que poderá ser lido com proveito e sem pre
juízo por aqueles que não acreditam na providência de
Deus.
A intenção pedagógica deste livro impõe critérios de
simplificação e brevidade. Os critérios científicos questio
nam alguns temas aqui apresentados sem a justificativa
necessária em uma obra dirigida a pesquisadores da histó
ria bíblica. Para facilitar o processamento destes assuntos
em ambientes acadêmicos, acrescentamos um apêndice onde
constam as dívidas mais importantes do autor com relação
aos historiadores científicos.
9. — I —
Chaves de leitura
Queremos entender o sentido dos fatos da história
de Israel. O sentido da história não é evidente na sua
superfície. Para descobrir seu sentido é necessário explo
rar a profundidade dos eventos. Nos documentos deixados
por qualquer história sempre existem interesses que ocul
tam o sentido dos acontecimentos. Nestas circunstâncias a
busca do sentido toma, às vezes, características “detetives-
cas”. A história de Israel não está isenta destes problemas.
Os livros da Bíblia, que são os principais documentos para
a história de Israel, também refletem o trabalho de ocul-
tamento a que nos referíamos.
Assim sendo, necessitamos de chaves de leitura para
interpretar os textos, como a chave que serve para decifrar
uma mensagem escrita em forma enigmática, ou como a
chave que pode abrir um espaço fechado por uma porta.
Propomos duas chaves, uma teológica e outra sociológica:
a) Uma chave de leitura teológica, o êxodo: A “saída
ou “êxodo” da escravidão do Egito não é na história
de Israel um evento qualquer. É o evento originário
do povo de Israel. Isto significa que Israel contava sua
história a partir do êxodo (lR s 6,1; Dt 9,7; Jz 19,30; Jr 7,25;
10. etc.). Porém, significa mais do que is to .^ H H B M M ^ g
êxodo é paraaterael um fato revelador. A partir do êxodoj
Israel conhecerá a Deus como Javé, o Deus que os liber
tou da escravidão. “Eu, Javé, sou teu Deus, que te fez sair
da terra do Egito, da casa da escravidão” (Ex 20,2; ver
também Os 11,1; 12,10; 13,4; Dt 6,12; 13,6; Jz 2,1; lRs 12,28;
etc.). Pois bem, Deus é uma palavra sumamente perigosa,
que se tem usado e se continua usando de forma enga
nosa para fazer referência ao “mesmo” criador e ser su-
premo concebido muito d i v e r s a m e n t e . r e
ferência correta sempre foi o Deus que redimiu Israel da^
escravidão do Egito. Todo deus que não fosse um salvador
dos pobres não era o Deus verdadeiro de Israel. |
Usaremos esta chave de leitura para desvendar a lin
guagem ideológica nos textos bíblicos. Um deus que legiti
ma a opressão dos camponeses, por mais solene que se
apresente seu culto, não é o Deus verdadeiro. Pois o Deus
verdadeiro é unicamente aquele que ouve o clamor dos
oprimidos e os liberta de sua opressão.
b) Uma chave de leitura sociológica, o modo de pro
dução asiático ou tributário: Na confissão formal do
israelita que oferecia a Javé os primeiros frutos da
sua colheita, ele reconhece que Israel era um povo que
fora libertado da escravidão e da opressão por Javé (Dt
26,6-9). A consciência de ser um povo pobre e oprimido
que, junto com Javé, luta por sua vida é fundamental.
Javé é o Deus verdadeiro que ouve o clamor dos oprimi
dos e Israel é o povo de Javé e que depende de Javé para
o êxito de suas lutas pela sua libertação.
Para identificar os oprimidos dentro das sociedades
da antiga Palestina é preciso conhecer a dinâmica que sus
tentava estas sociedades. Existiram ao longo dos séculos
da história de Israel muitas variantes sociais, porém todas
de um mesmo tipo de sociedade cuja estrutura é preciso
compreender logo.
Encontramos uma descrição sumária do tipo de so
ciedade que prevaleceu em todo o antigo Oriente Próximo
em Gn 47,13-25, referida ao Egito. Representaremos gra
ficamente as relações sociais no Egito em um esquema
sumário:
11. soberano
aparelhos
de Estado
aldeias
É freqüente no livro do Êxodo apresentar-se a so
ciedade egípcia com uma lista de três elementos: o rei, os
servos do rei e o povo (por exemplo, Ex 9,14). Vejamos
estes elementos comuns a todas as sociedades do antigo
Oriente Próximo.
O povo era a massa camponesa que compunha a
grande maioria da população. Vivia em pequenas aldeias,
representadas no diagrama com os círculos na base. As
aldeias eram as unidades produtivas da sociedade (e não
fazendas, famílias ou fábricas, para mencionar outras for
mas de organizar a produção básica de uma sociedade).
Cada aldeia era mais ou menos autônoma, produzindo o
que era necessário para satisfazer suas próprias necessi
dades. Tinha pouco relacionamento com as outras aldeias.
Cada uma cultivava seus cereais básicos e criava os ani
mais para o leite e a lã. A aldeia expressava sua unidade
como conseqüência de uma linhagem comum. Era gover
nada internamente pelos conselhos de “anciãos”, os chefes
de família. O comum nelas era a propriedade coletiva das
terras da aldeia. Estas eram distribuídas pelos anciãos de
acordo com a capacidade de trabalho de cada família.
O rei do Egito era o proprietário de todas as terras,
de todos os animais e de todas as pessoas do país. É
evidente, porém, que não podia exercer efetivamente a
posse sobre as terras, animais ou pessoas. O título de
propriedade se expressava concretamente no tributo que
exigia de cada aldeia (flechas “a” do diagrama), um tri
buto que no caso das terras era a quinta parte da colhei
ta da aldeia. No caso das pessoas, o tributo se cobrava
em trabalho nos projetos de construção do rei. Durante
o governo de um rei sábio o sistema oferecia uma certa
reciprocidade. Em troca dos tributos que as aldeias pa
gavam, recebiam a proteção do exército, o benefício das
“
rei
servos
do rei"
“povo
do Egito’
12. obras para o controle das inundações e estradas, e a sun
tuosa celebração das festas religiosas. Mas todo o poder
estava nas mãos do rei, de modo que um rei insensato
podia tornar-se tiranicamente opressor.
Os servos do rei eram os empregados da coroa e
como tais faziam a vontade do rei. Serviam à vontade ou
ao capricho do rei e em troca recebiam suas provisões
do tesouro real (flechas “b” do diagrama). Para manter
a estabilidade do reino, era necessário um forte exército
para defender o Estado contra os perigos externos e inter
nos da nação. Os oficiais do exército eram subservientes
ao rei, eram literalmente seus servos. Para cobrar e dis
tribuir os tributos era indispensável todo um aparelho de
administração civil. Também os administradores (minis
tros de Estado, contadores, escribas, etc.) eram servos
do rei.
Convém considerar com cuidado a absoluta necessi
dade de um aparelho religioso neste sistema (os “sacer
dotes” do diagrama). De algum modo, à exceção do rei,
todos eram escravos nesta sociedade. A própria família do
rei estava sujeita à sua vontade absoluta. Portanto, o rei
ocupava um lugar único dentro da sociedade.
A experiência dos súditos era de que seu rei era
um deus mortal. Porém esta limitação, a sua mortalidade,
revelava a fragilidade de sua posição divina e exigia um
aparelho religioso que celebrasse a grandeza da nação, e
dentro dela o lugar único e indispensável do rei-deus. O
aparelho religioso dentro de uma sociedade “asiática” ou
tributária está diretamente vinculado à pessoa do rei.
Assim como o rei é o general do exército, é também o
Sumo Sacerdote que ordena e controla toda atividade re
ligiosa. Necessita de profetas e teólogos para elaborar uma
teologia que justifique seu domínio absoluto.
Exige sacerdotes e templos suntuosos para celebrar
com grande aparato as festas que confirmam o êxito do
sistema.
Pode-se entender todas as sociedades que fazem
parte da historia bíblica de Israel como derivadas deste
sistema. Este esquema e o pequeno diagrama com o qual
o representamos serão a chave sociológica para ler a
Bíblia.
13. — II —
As origens de Israel
como naçao de tribos
Canaã pré-israelítica. A data que colocamos para o
começo da história de Israel foi o ano 1220 a.C., a data
estimada do êxodo. Porém, de acordo com qualquer das
três principais teorias sobre a origem das tribos de Israel,
o que veremos a seguir, os antepassados das tribos, ou
pelo menos uma boa parte, já viviam em Canaã. Convém,
pois, examinar a população da Palestina antes da formação
de Israel, no século XIV (de 1400 a 1300 a.C.).
Existem dois meios para se conhecer a Palestina
desta época. De um lado, pelas escavações das colinas das
antigas cidades das quais é possível avaliar quantas eram
habitadas e o número de habitantes. A outra fonte é uma
coleção de cartas da chancelaria egípcia, descobertas numa
localidade do Egito chamada Tell-el-amarna. Parte desta
correspondência diplomática é decorrente do intercâmbio
entre os reis das cidades-estados da Palestina, que, neste
período, era dominada pelo império egípcio.
A revelação mais importante destas fontes é a con
centração dos habitantes da Palestina nas áreas baixas do
país, na planície que acompanha o Grande Mar ou mar
Mediterrâneo e no vale de Jezrael que corta a cordilheira
14. central nas alturas do monte Carmelo e do mar da Ga-
liléia. Estas eram as regiões mais férteis do país, e eram,
além do mais, o lugar por onde cruzavam os caminhos
percorridos pelas caravanas de comerciantes. A cordilhei
ra central, conhecida do Norte ao Sul como montes da
Galiléia, Efraim e Judá, era neste período uma região de
bosques e matagais, povoados por animais selvagens inclu
sive leões. Havia raras cidades nas montanhas, entre as
quais as mais importantes eram (de norte a sul) Hasor,
Siquém e Jerusalém. O mapa ao lado tenta apresentar esta
situação.
As cartas de Tell-el-amarna dão uma idéia da situa
ção política do séc. XIV ha Palestina. O território era di
vidido em numerosos e pequenos reinos. A maioria deles
apresentava uma única cidade (como Dor ou Tanac) que
controlava as aldeias vizinhas das quais recolhia os tri
butos. Outra fonte de receita eram os direitos de alfândega
ou passagem cobrados aos comerciantes que transitavam
pelas estradas que cortavam o território. Todos os reis
eram súditos do Egito, ao qual pagavam tributos. Existia,
porém, entre eles um estado de conflito quase permanen
te. Além do mais, todos estavam ameaçados por levantes
de hapirus, rebeldes que refletiam o descontentamento
& ^K t/**eientttieas da emergência de Israel tribal. Os
exegetas ou estudiosos da Bíblia propõem basicamente três
teorias científicas para explicar o surgimento de Israel
como uma aliança de tribos até o final do séc. XIII a.C.
Antes de analisá-las, convém assinalar que todos reconhe
cem uma diversidade de elementos na formação da nação
de Israel e que, portanto, todas as teorias têm uma par
cela de verdade. O que está em jogo ao optar por uma
delas é saber qual o elemento que contribuiu na forma
ção da unidade da nação tribal de Israel. Isto quer dizer
que é óbvia a diversidade das várias tribos. Porém, como
sua organização tribal carecia de um Estado que pudesse
consolidar uma unidade nacional, de onde surgia esta cons
ciência da unidade que sem dúvida era um fato?
15.
16. primitiva. Alguns
exegetas, entre os quais se destacam Yehezkel Kauf-
mann de Israel e John Bright dos EUA, consideram
que havia suficientes vínculos familiares entre as tribos
para explicar a união das mesmas. As histórias dos patriar
cas Abraão, Isaac e Jacó já supõem uma consciência de
família entre as tribos, que se dizem descender dos doze
filhos de Jacó (Gn 30). Ao examinarem relatos sobre a
incorporação de Gabaon (Js 9), Siquém (Gn 34), e Jeru
salém (2Sm 5), os exegetas verificam logo que importan
tes elementos das tribos não descendiam do tronco fami
liar comum representado por Abraão. Com tudo isto,
estes exegetas crêem que ainda é possível explicar a uni
dade nacional por um parentesco comum dos grandes ele
mentos das tribos.
Partindo da perspectiva dos pobres, deve-se suspei
tar da aparência apolítica desta teoria. O povo de Deus
teria tido uma origem “natural”, não derivada de ações
humanas. Humanamente falando, dever-se-ia explicar a hos
tilidade entre Israel e Canaã como um conflito racial.
Excluindo o fato de que tanto Israel como os cananeus
falavam o mesmo idioma, “a língua de Canaã” (Is 19,18),
isto torna o privilégio de Israel como povo de Deus uma
decisão arbitrária de Deus.
2. Teoria que encontra a unidade de israel em sua
prática do pastoreio de animaigc Esta teoria socio
lógica da unidade primitiva de Israel foi desenvol
vida na Alemanha por Albrecht Alt, seguido de imediato
por Martin Noth. Postula a oposição Canaã e Israel como
conflito entre os que cultivavam a terra e os que se dedi
cavam ao pastoreio. As tribos de pastores se uniram com
o tempo por um comum estilo de vida para poderem
enfrentar os camponeses que usavam a terra para culti
var vegetais.
As histórias patriarcais revelam uma coexistência
em Canaã de criadores de gado como Abraão com reis
de populações camponesas, como o rei de Gerara (Gn 20).
A história sobre conflitos e entendimentos em tomo de
poços de água entre Isaac e os habitantes de Bersabéia
seria um reflexo desta coexistência normalmente pacífica
17. (Gn 26,15-25). No início bastavam acordos para que du
rante o verão (tempo de seca) os pastores usassem os
campos depois da colheita, enquanto que durante o inver
no, quando os campos são semeados, eles se retirariam
para as zonas desertas do país. Podiam usar também os
morros sem cultivo para o pastoreio de seus rebanhos.
Com o passar do tempo e o aumento da população, surge
o conflito com a disputa pelo controle das melhores terras
dopaís. Estes conflitos são os descritos em Josué 1—11
e ao longo do livro dos Juizes.
Esta teoria tem seu atrativo pois explica a base
social do conflito entre israelitas e cananeus. As críticas
feitas a esta teoria se baseiam na observação de que, pra-
M BBM HHM paM aceio, tarefa que geralmente combina
com o cultivo da terra. Também é problema para esta
teoria explicar por que estes pastores da Palestina aco
lheram os hebreus que chegavam do Egito depois do
êxodo da escravidão.
^■ttMMBilRO camponesa. Recentemente se elaborou
com base científica uma teoria que^propõe a uni-
comum contra os reis da Palestina. A teoria está asso
ciada ao nome do exegeta norte-americano Norman K.
Gottwald.
Para entender esta teoria convém voltar ao nosso
modelo do modo de produção tributário. As aldeias que
formavam a base da sociedade podiam perfeitamente sub
sistir sem o rei e seus aparelhos de Estado. A insurreição
camponesa que se postula como a 4SSBaíela.tunidade tribal
teria sido a reação contra a domitoação dos
de uma sociedade camponesa igualitária. As condições que
provocaram a rebelião em diferentes partes do território
da Palestina foram os conflitos perpétuos. Os reis não
podiam garantir a segurança das aldeias.
A possibilidade de rebeliões existia pelo fato de
haver zonas despovoadas nas montanhas da Palestina. Uma
pequena migração podia estabelecer uma aldeia em zona
despovoada que podia ser preparada e cultivada. Além do
19. mas um setor da classe social que formava a base da so
ciedade egípcia, os camponeses. Eram “hebreus” que se
rebelaram contra os trabalhos de construção que lhes im-
pusera o rei Ramsés II.
Sua saída da servidão realizou-se sob a direção de
Moisés, profeta de Javé, o Deus que tomava partido com
os oprimidos em vista da sua libertação. Provavelmente
estes camponeses não teriam tido a coragem de enfrentar
uma migração revolucionária sem uma religião deste tipo.
A revolução converteu-se num ato religioso. A luta
contra o rei transformou-se numa luta entre deuses: de
um lado, o Faraó com direitos sobre a vida de todos os
egípcios; e do outro, Javé que escutava o clamor dos opri
midos. A fidelidade ao movimento revolucionário exigia
lealdade exclusiva a Javé. Qualquer outro deus podia re
presentar um retrocesso à escravidão enquanto que Javé
era o Deus que os libertava.
Quando chegaram à Palestina, os “levitas” — assim
eram chamados os seguidores de Javé e Moisés — encon
traram uma multiplicidade de movimentos camponeses que
se refugiavam nas montanhas para escapar da dominação
exercida pelos reis nas planícies e vales. O resultado deste
encontro foi proveitoso para a criação de Israel como
nação de tribos com consciência de ser o povo de Javé,
o Deus que libertara “seus pais” da escravidão do Egito.
A organização da nação. A resistência aos reis foi
uma característica comum de todos os movimentos de
insurreição e migração que formaram a nação de Israel
(cf. Jz 8,22-23; 9,7-15). A monarquia era na época a única
forma de estado conhecida. Rechaçar o rei significava
então rechaçar o próprio Estado. Para os cananeus isto
fazia dos israelitas “servos fugidos dos seus senhores”
(ISm 25,10). A vida dos israelitas, porém, já era organi
zada. As leis populares que garantiam a ordem eram atri
buídas a Javé que se revelara a Moisés no Monte Sinai.
Chamamos de populares as leis de Israel porque na
falta de autoridades estatais eram os anciãos dos povoa
dos que as administravam. Chamamos de populares tam
bém porque não se conservavam através da forma escrita
20. mas pela tradição oral. O caso de Booz e a herança de
Elimelec de Belém é um magnífico exemplo (Rt 4,1-12).
A lei popular de Israel proibia a venda de terras de um
israelita a uma outra pessoa (isto foi codificado em Lv
25,23-31). Também tomava medidas especiais para que a
propriedade de alguém que morresse sem filhos não pas
sasse para outra família (Dt 25,5-10). Este é o caso de
Elimelec que morrera sem deixar filhos. Seu parente Booz
assumiu o direito e a responsabilidade de perpetuar a fa
mília. Mas para isto teve que comparecer diante de um
tribunal de anciãos para comprovar seu direito e demons
trar suas intenções.
A inter-relação entre os israelitas e a organização
interna das aldeias em todas as sociedades daquela época
se dava de um mesmo modo, por parentesco. As tribos
não eram senão enormes famílias. Além do mais, ao
menos em teoria, as tribos se entrelaçavam pela descen
dência comum de Jacó. A unidade familiar, portanto, era
real. Mas, ao contrário do que afirma o Professor Kauf-
mann, a unidade tribal é o resultado de uma unidade re
volucionária prévia e não a sua causa.
Para defender-se das ameaças exteriores, as tribos
convocavam um exército de guerreiros voluntários. O caso
mais típico é o das milícias convocadas por Débora para
lutar contra os cananeus comandados por Sísara (Jz 5).
Porém, as guerras lideradas por Gedeão (Jz 6—8) e Jefté
(Jz 10—11) são do mesmo tipo. Isto contrastava, no plano
da organização, com os exércitos profissionais dos reis
cananeus e estabelecia uma desvantagem militar para os
israelitas que não contavam com cavalos e carros de com
bate, impossíveis de serem sustentados por um exército
de voluntários como o das tribos.
O Deus Javé era o rei das tribos de Israel (Jz
8,22-23; ISm 8,7; Nm 23,22; Dt 33,4-5). Em termos práti
cos isto significava que os camponeses israelitas não pa
gavam tributos a ninguém. O único tributo era a oferta
a Javé dos primogênitos dos rebanhos e as primícias do
campo. Nos sacrifícios mais comuns, os Zebahim e os
Shelamim, o animal sacrificado era dividido entre o sacer
dote, o ofertante e seus convidados, e Deus (a parte con
21. sumida no fogo). Uma descrição mais detalhada dos sacri
fícios em Israel se encontra em Lv 1—7. Os tributos, por
tanto, não eram pagos para benefício de outros, mas parti
lhados em uma grande celebração na qual Deus também
tomava parte.
Em resumo, podemos apresentar graficamente da se
guinte maneira a organização social de Israel no seu está
gio tribal:
JAVÉ
Aldeias
Os patriarcas pré-israelíticos. Quando as tribos israe-
líticas em Canaã aceitaram como própria a história da
libertação da escravidão (o êxodo), não rechaçaram sua
própria pré-história. As tradições patriarcais de Abraão,
Isaac e Jacó conservam a memória dos líderes, anterior
à formação da aliança tribal, que deu origem a Israel.
É muito pouco o que se pode deduzir dos relatos
em torno da pré-história das tribos. Observamos que Isaac
está vinculado com a região semidesértica do sul da Pa
lestina. Como na distribuição tradicional das terras em Jz
13—19 este território é dado à tribo de Simeão, é provável
que estas tradições sejam dela.
Seguindo a mesma argumentação, Jacó pertence às
tradições centrais de Israel, Efraim e Manassés. Abraão
pertencia à tribo de Judá. O vínculo genealógico que fez
de Abraão pai de Isaac e avô de Jacó foi uma forma de
reafirmar a unidade das tribos.
oooooo
- -
oo
Tribo A Tribo B Tribo C Tribo Ü
22. -------III-----
Surgem os reis
sobre as tribos de Israel
Saul organiza um exército profissional. Reação profé
tica. Na segunda metade do século XI surgiram chefes
militares que tomaram o título de rei (melek). Segundo
os textos bíblicos, esta mudança foi uma resposta a
pressões internas e externas. A corrupção dos juizes na
administração da justiça foi um dos problemas internos
(ISm 8,5). Investigações recentes sobre a agricultura pra
ticada na época nas montanhas de Efraim e Judá (David
C. Hopklns, Frank S. Frick) sugerem porém outra causa
que nossos textos não mencionam. A intensa agricultura
praticada nas montanhas da Palestina exigia a difícil cons
trução e manutenção de patamares nas encostas. O pro
blema da falta de chuvas que nesta região não apresenta
suficiente regularidade para garantir a colheita anual são
características de sua precariedade. Além disto, há o pro
blema da mediana qualidade do solo que exigia depois de
cada ano um período de repouso. Esta situação obrigava
as aldeias a diversificar seus cultivos, combinando plantas
perenes, principalmente a oliveira e videira, com os cereais
básicos como trigo e cevada de cultivo anual. Somente
depois dos árduos e lentos trabalhos da construção dos
patamares e a escavação de cisternas na rocha se teria
23. uma produção mais ou menos estável. Obtidas estas con
dições, a produção da agricultura começa a originar o
acúmulo de excedentes que ocorrem de modo desigual. O
acúmulo seria maior em microzonas de maior fertilidade
com o solo em declive para o ocidente de onde vinham
as chuvas. Este é o contexto no qual surgem como chefes
militares os chefes das principais famílias destes povoa
dos. Por razões de ordem econômica (a distribuição dos
excedentes), políticas (a coesão familiar em torno do “pai’’)
e militares (defesa contra ataques de populações menos
favorecidas), esta situação favorece o surgimento de estru
turas proto-estatais. Processos análogos foram observados
por antropólogos também na África.
A razão principal apresentada pelos textos bíblicos
para explicar o surgimento da monarquia foi a pressão
externa causada pelos filisteus desde meados do séc. XI.
Os filisteus vinham do mar para implantar-se na planície
situada entre as montanhas e o mar, especialmente nas
cinco cidades de Gat, Gaza, Ascalon, Acaron e Azoto. Uma
vez nas cidades, organizaram exércitos fortes com carros
e cavalos e estabeleceram guarnições militares nas monta
nhas para recolher tributos dos israelitas. A defesa dos
israelitas com exército de voluntários teve dificuldades em
fazer frente à força dos filisteus. Esta pressão externa
juntou-se às forças internas para criar um clima favorável
à centralização política.
Foi o benjaminita Saul quem soube ganhar com esta
situação. Saiu do anonimato quando comandou os volun
tários das tribos na defesa contra os amonitas (ISm 11),
atuando, assim, como os “juizes” militares em tempos
anteriores, como Débora e Gedeão. Nesta ocasião, porém,
houve um forte movimento para convertê-lo em rei sobre
Israel. Assim se obteria um exército permanente para a
defesa da nação. Tudo culminou, segundo ISm 11, com
a sua coroação feita pelos representantes de todo o povo
em Guilgal.
Inicialmente Saul organizou um exército de três mil
homens. Desafiou os filisteus matando seu governador mi
litar, mantido nas montanhas de Efraim (ISm 13,2-3).
Como se pode constatar pelo texto de ISm 14,47-52, um
24. resum o da sua gestão, Saul incorporou a seu exército todos
03 bravos e valentes que conhecia. Com eles, durante todo
o seu reinado, dedicou-se à guerra.
Segundo nossos textos, Saul foi declarado rei pelas
tribos-. No entanto é importante notar os limites do seu
poder. Não tinha, como era comum aos reis daquela época,
nem um sacerdócio oficial nem um aparelho civil desen
volvido para cobrar impostos. A falta de uma capital do
reino manifesta esta carência. Saul continuou vivendo em
Gabaá de Benjamim, seu povoado, que nem sequer possuía
muralhas. A falta de uma capital segura impediria o de
senvolvimento de um aparelho completo de estado. A
interpretação comum de ISm 22,7 diz que Saul começo»
a acumular as terras reais, o que vem ao encontro do que
foi dito anteriormente quanto às condições para o surgi
mento dos chefes militares nas montanhas. É provável
que seu exército pôde manter-se, em boa parte, com o
resultado das guerras de conquista. Isto produziu um esta
do incipiente que podemos diagramar da seguinte maneira:
As flechas “b” representam linhas de autoridade.
Saul deve submeter-se às leis de Javé, que continua sendo
o Rei supremo, e ao profeta Samuel, seu mensageiro. As
flechas'“a” representam os tributos pagos mais ao exér
cito em forma de valentes jovens para a guerra, que ao
próprio rei. Não é evidente ainda a existência de classes
sociais. Havia porém uma diferença na divisão do traba
lho entre aqueles que produziam (as aldeias) e aqueles
que se dedicavam à defesa (o rei e o exército); uma classe
ociosa não aparece.
25. A reorganização das tribos para obter um exército
profissional representava, aos olhos de quem mantinha
viva a memória da revolução encabeçada por Javé e por
seu profeta Moisés, um perigoso passo de retrocesso na
direção da escravidão egípcia. Nossos textos bíblicos, que
não são documentos contemporâneos aos acontecimentos,
mas frutos de muitos anos de reflexão, apresentam o pro
feta Samuel como a voz dos que anunciaram este perigo.
Vale a pena estudar ISm 8 e ISm 12 para conhecer estas
advertências.
Em ISm 8 Samuel inicialmente rejeita o pedido
dos anciãos que lhe pediam um rei. Repetiu o argumento
de Gedeão, pois nomear um rei “como todas as nações”
era repudiar a monarquia de Javé (ISm 8,4-7). No entan
to, atuando como profeta em nome de Javé, autorizou a
nomeação de um rei, depois de advertir dos perigos de
tal empreendimento que podia levá-los de volta à escra
vidão (ISm 8,10-17).
ISm 12 apresenta-nos o discurso de despedida de
Samuel antes de sua morte (apesar de ter vivido mais
alguns anos). Neste texto Samuel e o povo reconhecem
que pedir um rei foi um grave pecado. Aceita, porém, que
tudo poderia prosseguir bem diante de Javé, se tanto o
rei como o povo “temerdes a Javé e o servirdes, se lhe
obedecerdes e não vos opuserdes ao que ele disser” (ISm
12,14). Saul, no entanto, o rei escolhido pelas tribos e aben
çoado por Samuel, será rejeitado mais tarde pelo mesmo
profeta Samuel, por ordem de Javé (ISm 15,28.34-35).
O esquema tenta demonstrar, conforme estes textos,
que Javé continua sendo o rei supremo de Israel. O rei
não é, ao contrário dos reis cananeus, um soberano abso
luto. Está sujeito às leis de Javé, reveladas ao seu servo
Moisés no Sinai, e à Palavra vivente que Javé lhe dirige
por seu servo Samuel.
Uma nação-Estado substitui a nação de tribos. Davi,
seu governo e sua nova teologia. Pouco antes do ano 1000
a.C. Davi de Judá surge como rei de Israel. Além de mi
litar foi um líder político que mudou profundamente a
índole da nação. É necessário estudá-lo com atenção.
26. Davi inicia sua vida pública como militar no exér
cito de Saul. A história da derrota do gigante filisteu
Golias provavelmente é um caso de transferência, pois a
mesma proeza é atribuída a Elcana em 2Sm 21,19. Sem
dúvida, no entanto, foram façanhas em campo de batalha
que levaram o povo a cantar: “Saul matou mil mas Davi
matou dez mil” (ISm 18,7). Casou-se com Micol, uma das
filhas de Saul, assunto que na memória popular está entra-
nhadamente unido às suas proezas militares (ISm 18,17-30).'
Chegou o momento em que Davi rompeu com Saul
e o exército de Israel para voltar a Judá e organizar seu
próprio exército (ISm 22,1-2). Enviou seus pais ao estran
geiro e empreendeu uma luta de guerrilhas nas montanhas
de Judá (ISm 22,3-5). ISm 25 revela a tática que Davi
usava para conseguir o sustento para seu exército: tribu
tos “voluntários”. Permite também perceber os limites
desta tática, pois este tributo resultava em mais um peso
para a população, retirando assim a base política de sus
tentação da sua causa. Por isto Davi se retira com seus
homens para o território filisteu e ali serve ao rei Aquis
de Gat que lhe dá, como feudo, a cidade de Siceleg (ISm
27,1-12).
Com a morte de Saul, seu filho Isbaal (ou Isboset)
passou a ser o rei de Israel, embora tivesse que retirar-
se na Transjordânia e governar desde a cidade de Maanaim
(2Sm 2,8-10). Davi aproveitou-se da morte de Saul e de
seu filho Jônatas, bem como da debilidade de Isbaal para
regressar abertamente a Judá, onde foi coroado rei de
Judá pelos anciãos do povo (2Sm 2,1-4). Por um breve
período teve Israel dois reis.
Isbaal foi assassinado pelos seus próprios homens
(2Sm 4,1-12) e Davi foi declarado rei por uma delegação
de anciãos das tribos que tinham vindo visitá-lo em
Hebron de Judá, onde mantinha sua capital (2Sm 5,1-5).
Com sua astúcia política, Davi soube tirar proveito da si
tuação. Seu primeiro ato foi conquistar uma nova capital,
e esse fato requer um momento de atenção de nossa parte.
Jerusalém é uma antiga cidade, já citada nas cartas
de Tell-el-amama no séc. XIV a.C. Seus habitantes eram
jebuseus. Não aceitaram unir-se às tribos de Israel e
27. nem essas puderam submetê-los. No tempo de Davi era
um enclave monárquico no interior das montanhas con
troladas pelas tribos de Israel, constituindo assim um
obstáculo às comunicações entre Judá ao sul e as demais
tribos do norte. Isto explica ao menos em parte a história
separatista de Judá. Imediatamente após sua nomeação de
rei de todo Israel, em tomo do ano 1000 a.C., Davi e seu
exército conquistaram a cidade que foi chamada “cidade
de Davi” (2Sm 5,6-12). Isto foi de transcendental impor
tância para o futuro de Israel.
Algumas razões de importância são: 1) Sua locali
zação geográfica entre as duas divisões de Israel, separan
do Judá ao sul e as demais tribos ao norte. 2) Sua loca
lização estratégica para a defesa, pois estava sobre uma
colina cujo único acesso fácil era pelo norte. Além disso,
estava cercada por muralhas. 3) Davi a conquistou com
seu próprio exército, fazendo-a a cidade de Davi. Isto
quer dizer que não havia nela os anciãos a quem Davi
deveria consultar; Davi foi o senhor absoluto de Jerusa
lém. 4) Os habitantes de Jerusalém, com a sua longa expe
riência monárquica, tornaram-se uma. fonte de oficiais de
governo para o novo rei de Israel, uma nação sem expe
riência de administração pública. Isto explica por que Davi
não tenha passado à espada seus habitantes, o que, segun
do algumas tradições, Javé ordenava para as cidades de
• Canaã (Dt 20,16-18).
Temos uma informação concisa sobre a cúpula admi
nistrativa estabelecida por Davi em 2Sm 8,15-18. Aqui se re
vela uma ansiosa dualidade, tanto no exército (com dois
generais, Joab e Banaías) como na administração religiosa
(Abiatar e Sadoc). Uma possível explicação, não totalmen
te segura, é que Joab e Abiatar representem forças tradi
cionais em Israel, enquanto que Banaías, comandando
uma elite militar de quereteus e peleteus, e Sadoc repre
sentavam a nova força monárquica, sem compromissos
com as tribos. Sadoc pode ter sido um sacerdote jebuseu
tomado por Davi para dividir a direção religiosa do seu
reino com Abiatar, um sobrevivente da família sacerdotal
de Silo e Nobe no território de Efraim.
As numerosas conquistas de Davi exigem uma refle
xão política (2Sm 8,1-14). Davi construiu um império. Por
28. quê? Uma suspeita que parece bem fundada é que desta
forma Davi podia sustentar um significativo aparelho de
Estado sem impor tributos às tribos de Israel. Estas
tinham uma longa história de resistência a qualquer tipo
de tributo, e impô-los teria sido, politicamente, explosivo.
Mantendo sob seu domínio os edomitas, os moabitas, os
filisteus, os amonitas e os arameus, e extorquindo-lhes tri
butos, Davi podia manter seus palácios, seu exército e sua
capital, aliviando assim as tribos de Israel deste grande
peso.
Davi, não obstante isto, teve que enfrentar vários
movimentos de rebeldia surgidos no meio das tribos. O
mais importante foi encabeçado por Absalão, seu filho,
que conseguiu coroar-se rei em Hebron, a antiga capital,
judaica de Davi (2Sm 15,7-12) e tomar posse de Jerusalém
por um certo tempo (2Sm 15—17). Outro levantamento
importante foi encabeçado por Seba de Benjamim com um
lema que teria importância posteriormente: “Não temos
parte com Davi, nenhuma herança com o filho de Jessé!
Cada qual para suas tendas, ó Israel!” (2Sm 20,1). Ben
jamim fora o berço de Saul e havia quem suspeitasse da
inocência de Davi ante as mortes da descendência de Saul.
Apesar das inconformidades enfrentadas por Davi, ele é
recordado na Bíblia como um rei bom, provavelmente por
causa dos êxitos militares e cuidados em não passar por
cima das prerrogativas das tribos de Israel.
Do ponto de vista da religião, Davi introduziu algu
mas novidades que mudaram a natureza da religião de
Javé. A primeira foi trazer a arca da aliança, onde se
guardavam as tábuas da lei dadas por Deus a Moisés, para
sua nova capital. Organizou uma grande festa para cele
brar o traslado (2Sm 6). Comprou ademais um terreno
para colocar a tenda da arca em uma propriedade da
Coroa (2Sm 24). Isso e a nomeação do sacerdote-chefe como
funcionário da Coroa indicam que Davi estava seguindo o
caminho dos reis das nações, instituindo um culto contro
lado diretamente pelo rei: Nas sociedades tributárias, como
as de Canaã, isto era decisivo. Era necessário justificar
ao povo a dominação total que os reis exerciam. O rei
devia ser reconhecido como deus ou como filho de deus
29. para poder legitimar seu controle absoluto sobre as terras,
sobre os animais e sobre seu povo.
É natural, portanto, que Davi queira construir um
templo a Javé, o Deus de Israel (2Sm 7). É natural do
ponto de vista do rei, porém o profeta Natã, provavel
mente reconhecendo o perigo em deixar ao rei o controle
do culto a Javé, o Deus libertador dos pobres, se opôs
falando da parte de Deus: “Durante todo o tempo que
andei com os filhos de Israel, porventura disse a um só
dos juizes de Israel instituídos por mim como pastores
do meu povo Israel: ‘Por que não edificais para mim uma
casa de Cedro?’ ” (2Sm 7,7). Davi não se sentiu em liber
dade para desconhecer as palavras do profeta de Javé e
se absteve de tal empreendimento.
Sua abstenção durou somente uma geração, pois Sa
lomão, seu sucessor, construiu o templo para Javé no
terreno adquirido por seu pai em Jerusalém. Foi no tempo
de Salomão, certamente, que se acrescentaram as palavras
de 2Sm 7,13, modificando a proibição limitando-a unica
mente ao rei Davi e não aos seus sucessores.
Podemos representar a sociedade israelita, organiza
da por Davi como nação-Estado, da seguinte maneira:
JAVÉ
Sob muitos aspectos o Estado davídico era similar
aos estados cananeus rechaçados anteriormente pelas tri
bos. Existia, como entre os cananeus, um exército, um
sacerdócio e uma administração civil que dependia direta
mente da vontade do rei e de seu apoio econômico. Estes
aparelhos não eram representativos das tribos; a relação
30. r)a<; tribos era direta com o rei e somente através dele
com os aparelhos de Estado.
Ficaram, contudo, alguns freios à tirania. O primei
ro era sem dúvida a organização popular. As aldeias não
enfrentavam individualmente o rei, como acontecia no Egi
to e em Canaã. As aldeias organizadas em tribos tinham
mais força para enfrentar o rei. Outro limite à tirania foi
o reconhecimento geral da autoridade suprema de Javé,
exercida através da lei do Sinai, válida também para o
rei (como no caso de Betsabéia cujo marido Davi eliminou
com o propósito de possuí-la, 2Sm 11—12), e através do
profeta de Javé, Natã, no tempo de Davi: Este segundo
limite é de natureza estritamente espiritual. Natã não dis
punha de exércitos. Porém o apoio popular lhe deu força
política considerável.
A nação de Israel nascida como sociedade revolu
cionária voltou a ser, sob o reinado de Davi, uma socie
dade de classes. Seu governo, porém, não foi opressivo.
Podia viver, em grande parte, com os tributos pagos pelos
povos conquistados. Davi, além disso, respeitou as tradi
ções das tribos. Preparou, no entanto, as condições para
Salomão, seu filho, oprimir o povo, após sua morte.
Do ponto de vista teológico foi de grande relevo o
surgimento, a partir do sacerdócio do rei, de uma nova
teologia: a ideologia real ou teologia davídica. Essa nova
teologia não foi, provavelmente, toda elaborada no tempo
de Davi. Foi ele, porém, quem a iniciou. Os Salmos, por
exemplo, expressão máxima desta teologia, até o dia de
hoje são atribuídos majoritariamente à autoria de Davi.
Para uma leitura a partir dos pobres a teologia davídica
é muito ambígua, podendo servir, como aconteceu, para
amparar e legitimar sua opressão. Não quer dizer que se
deva rechaçar a teologia davídica como um todo. Ela
contém elementos autênticos da fé em Javé, o Deus do
êxodo, e pôde servir de fonte importante para o messianis
mo de Jesus. Desde o tempo de Davi a teologia em Israel
teve dois focos: o Êxodo como libertação do povo de Deus
e a eleição de Davi como filho de Javé e defensor de seu
povo.
31. O campo ideológico
em Israel
(teologia bíblica)
A teologia davídica foi elaborada pelos sacerdotes do
rei na cidade de Jerusalém. Os Salmos compõem o livro
de orações e celebrações do templo daquela cidade. Ex-
plica-se assim a importância dos temas da teologia daví
dica nos Salmos. Eis alguns temas:
• O estabelecimento de um pacto eterno entre Javé
e Davi — é o coração desta teologia. Encontramos
esta teologia no Salmo 89. Na teologia do Êxodo a
aliança entre Javé e Israel foi feita no Sinai com a media
ção de Moisés. Javé seria Deus para o povo enquanto este
observasse seus mandamentos (Ex 19,3-8). Na teologia da
vídica, ao invés, neste e noutros salmos, a aliança é esta
belecida entre Javé e Davi (SI 89,4-5). Ademais, esta alian
ça é eterna e inquebrantável porque fundada sobre um
juramento de Javé (SI 89,35-36). Se o rei violar seus man
damentos será castigado, porém Javé jamais romperá sua
aliança (SI 89,31-34).
• Expressão da eleição de Davi é a declaração de
que os reis de Jerusalém são filhos de Javé (por
uma espécie de adoção). O Salmo 2 é uma liturgia
de entronização de novos reis cujas palavras centrais são
o decreto de Javé: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei.
Pede, e eu te darei as nações como herança” (SI 2,7-8).
Este elemento da ideologia real das nações vizinhas sur
preendentemente entrou na teologia de Jerusalém.
• Um corolário da eleição do rei era a eleição da
cidade de Jerusalém por Javé para ser seu “repou
so” (SI 132,13-14). O Salmo 132 demonstra a dili
gência de Davi em buscar um lugar para a arca de Javé.
32. A teologia davídica não esquece que Javé é o Deus
dos pobres. Javé escolhe para Sião um rei benfeitor e
defensor dos pobres. Para isto Javé o põe sobre o trono.
Este aspecto essencial da teologia davídica é desenvolvido
no Salmo 72. Desde os tempos antigos até hoje este Salmo
pode ser usado contra tiranos exploradores dos pobres,
como Somoza. Os Salmos de Ernesto Cardenal mostram
este potencial popular da ideologia real.
Na Igreja cristã estes Salmos foram lidos como
anúncio da vinda do Messias, realizado na pessoa de
Jesus. Esta leitura messiânica dos Salmos lhes dá uma
perspectiva bem diferente.
Esta leitura, no entanto, não apaga seu significado
original de ideologia de Davi e sua descendência.
Salomão: um templo de Javé legitima a opressão do
povo. A narração da história do reinado de Salomão deve
começar com a disputa pelo trono com seu irmão maior
Adonias. Quando o rei Davi estava velho e incapaz de go
vernar, Adonias, com o apoio de Joab, chefe do exército,
e de Abiatar, um dos sacerdotes principais, declarou-se rei
(lR s 1,1-10). Ele parece representar o partido mais tradi
cionalista entre os membros da corte.
O partido mais identificado com o novo projeto de
monarquia conseguiu, através de uma intriga palaciana, que
o ancião Davi declarasse seu apoio a Salomão (lR s 1,11-40).
Juntos no partido de Salomão estavam Natã, cujo oráculo
sobre a promessa de Javé a Davi foi decisivo para a con
solidação da teologia davídica (2Sm 7,8-16), Banaías, chefe
dos quereteus e peleteus, e Sadoc, o sacerdote.
Com a morte de Davi, o novo rei fez um expurgo
dos seus rivais. Mandou matar Adonias e Joab. Exilou
Abiatar em Anatot no território de Benjamim. Parece que
eles conseguiram manter-se como família sacerdotal de
oposição. Deles surgirá, mais tarde, o profeta Jeremias.
Este expurgo de pessoas da corte permitiu a Salo
mão um governo mais eficiente que o de Davi. Não foi
obrigado a respeitar as antigas estruturas tribais. lRs
4,7-19 nos dá uma lista dos “governadores” que adminis
travam um sistema de doze distritos criados por ele.
Alguns distritos coincidem com os antigos territórios tri
33. bais, porém outros são formados por territórios conquis
tados por Davi ou pela integração de várias tribos. A no
meação de governadores sobre os territórios tradicionais
das tribos é uma novidade muito significativa. O rei deixa
de lado as autoridades do povo e impõe suas próprias
autoridades. O governo da nação tornou-se piramidal.
Cada governador era responsável pelo levantamento
de tributos suficientes para a manutenção do aparelho do
Estado pelo período de um mês por ano. Deviam forne
cer víveres para a numerosa família do rei, para os “servos
do rei” e para os cavalos de guerra (lR s 5,1-8). (Em algu
mas Bíblias a numeração destes versículos é 4,21-28).
Além dos tributos em bens materiais Salomão intro
duziu o tributo em trabalhos forçados, a corvéia. É signi
ficativa a maneira de sua introdução. O oráculo de Natã
proibira a construção de um templo. Este oráculo, agora
emendado, serviu de apoio a Salomão para realizar o que
o pai Davi não pudera concretizar: a construção de um
templo suntuoso para Javé Deus de Israel.
Para isso organizou a população por turnos de tra
balho. Trinta mil para transportar madeira desde o Líba
no, setenta mil carregadores e oitenta mil canteiros (lR s
5,15-32) (= 5,1-18). Sobre esta população que trabalhava
um mês de cada três nas obras da construção, pôs três
mil e trezentos capatazes dos servos do rei. O administra
dor geral de toda a corvéia do país era um certo Adoniram
ou Adonisam filho de Abda (lR s 4,6).
Terminada esta obra, Salomão empregou a corvéia na
construção de melhores defesas para Jerusalém, de palá
cios para suas esposas, de cidades armazéns e guarnições
como Gazer, Bet-Horon Baixa, Baalat e Tamar, e de está
bulos para seus cavalos de guerra (lR s 9,15-24). (A afir
mação de lRs 9,22 de que não empregou israelitas na
corvéia não concorda com a evidência do capítulo 5 nem
com lRs e deve ser uma tentativa para encobrir a realidade.
A riqueza derivada da exploração da população de
Israel Salomão acrescentou o lucro obtido do comércio
por ele estimulado. Construiu uma frota para navegar o
mar Vermelho (lR s 9,26-28). Servia de intermediário entre
os exércitos daquele tempo: comprou cavalos da Cilícia
34. para vendê-los aos egípcios, e carros do Egito para vendê-
los aos arameus (lR s 10,26-29). Aparelhou também seu
próprio exército com numeroso contingente de carros.
O templo de Javé, funcionando em Jerusalém na
propriedade real, com sacerdotes pagos pela Coroa, cons
tituía-se uma peça importante da estrutura social da época.
Assegurava, com a sua teologia e festas, a legitimidade de
Salomão.
Javé, o Deus libertador da escravidão egípcia, aben
çoava agora Salomão, e através dele o povo escolhido por
Deus. Para podermos ler criticamente as afirmações elo
giosas da Sagrada Escritura sobre Salomão, é necessário
recorrer à chave teológica de leitura a partir dos pobres:
o êxodo. Esta chave de leitura evidencia que o Javé de
Salomão não é o mesmo Deus que ouvira o clamor dos
oprimidos no Egito. O Deus dos pobres fora capturado
pelos seus dominadores para servir de legitimação da
opressão infligida aos camponeses de Israel.
A estrutura social do reino de Salomão assemelha-
se às estruturas clássicas do modo de produção tributá
rio, com a única diferença que o rei, em Israel, estava
formalmente submetido à lei de Javé. Nunca se afirma,
porém, que um profeta lhe tenha imposto limites em nome
da Palavra de Javé.
/
Classe
opressora
Camponeses
oprimidos
Este esquema acaba com a organização popular das
tribos, agora mudadas em distritos, que respondem à
administração do rei e não à organização popular. As
flechas com sentido ascendente indicam os tributos extraí-
SACERDÓCIO
35. dos das aldeias para o rei por meio dos governadores dos
distritos. Estes tributos se compõem tanto de bens mate
riais como de trabalho. As flechas com sentido descenden
te representam a autoridade do rei que fazia o que queria
com seus servos, cujos cargos dependiam do beneplácito
do rei.
Como havia dito Samuel: “Vós mesmos vos toma
reis seus escravos” (ISm 8,17).
A produção literária desta época. Os primeiros do
cumentos israelitas que se podem reconstruir provêm desta
primeira época monárquica. Tudo o que há de mais anti
go são poesias incrustadas em obras posteriores (os orá
culos de Balaão, o cântico de Débora, etc.). Durante esta
época surgem os primeiros produtos da literatura de
Israel, provavelmente sob o influxo da corte de Salomão,
recordado posteriormente como sábio devido ao ambiente
intelectual de sua corte. As obras literárias desta época
estão inseridas em obras maiores de uma época posterior.
Existe, contudo, um amplo acordo entre os investigadores
de que o relato Javista (J) do Pentateuco e a História
da Sucessão são deste período.
Há mais de cem anos os investigadores concordam
em identificar o relato do Pentateuco como resultado da
combinação de três versões da história nacional das ori
gens de Israel com um discurso atribuído a Moisés
(Deuteronômio).
A partir do trabalho de Julius Wellhausen, de pouco
mais de cem anos atrás, se reconhece a Javista como a
mais antiga das três fontes e a de melhor forma e beleza
narrativa.
O conteúdo do relato javista é fruto da tradição oral
da experiência do tempo da organização tribal. Compõe-se
de quatro temas: 1) promessa de terra e descendência aos
patriarcas; 2) êxodo da escravidão no Egito; 3) entrega
da lei de Javé no monte Sinai; 4) e peregrinação no de
serto com dupla ênfase: na graça de Javé e nas rebeliões
de Israel. Um quinto tema é o cumprimento da promessa
de terra, pouco desenvolvido por se limitar às derrotas
de Seon e Og na Transjordânia. Desde a brilhante análise
36. teológica de Gerhard Von Rad se reconhece que a criação
e toda a proto-história não fazia parte da tradicional his
tória de Israel, mas foi posta antes dessa história para
dar significado universal à história da nação.
A perspectiva, o ponto de vista, sob o qual se narra
a história de Israel, é judaíta, isto é, sulista. Na bênção
de Jacó (Gn 49) e nos oráculos de Balaão (Nm 24), há
indícios que apontam o reinado de Davi e Salomão como
a culminação da história primitiva de Israel, segundo o
Javista.
Leonhard Rost, em 1926, fez um estudo sobre a outra
grande obra literária deste período. É considerado um
clássico. Compõe-se de 2Sm 9—20 e lRs 1—2. Trata-se do
relato de uma testemunha ocular dos acontecimentos no
interior da corte de Davi que culminaram com a surpreen
dente sucessão de Salomão ao trono, embora não fosse o
filho maior e portanto o herdeiro. A obra é escrita num
estilo admirável e com uma consciência histórica extraor
dinária para a época. A teologia, em particular, não atri
buindo intervenções milagrosas a Javé, constitui-se numa
evidência da ilustração intelectual da corte salomônica.
Apesar de tudo, é uma sofisticada obra apologética bus
cando justificar a sucessão de Salomão ao trono de seu
pai Davi.
37. ---- IV ----
Revolta das tribos
contra a dinastia davídica
Antes da morte de Salomão, houve umJevante das
tribos encabeçado por Jeroboão de Efraim. Jeroboão era
um alto funcionário encarregado do recrutamento da “casa
de José”, provavelmente nos distritos de Efraim e Benja
mim (lR s 11,26-28). Com o fracasso da rebelião, Jeroboão
refugiou-se no Egito junto ao rei Sesac de quem recebeu
asilo (lR s 11,40).
A morte de Salomão no ano 931 a.C. e o desconten
tamento das tribos ofereciam ótima oportunidade a Jero
boão. Este voltou e organizou uma assembléia das tribos
em Siquém, antiga e importante cidade de Efraim. As
tribos convocaram o jovem rei Roboão, filho de Salomão,
“para proclamá-lo rei” (lR s 12,1). Antes, porém, de
proclamá-lo rei ofereceram ao jovem algumas condições:
“... agora, alivia a dura servidão de teu pai e o jugo pe
sado que ele nos impôs e nós te serviremos” (lR s 12,4).
Existem duas versões da Assembléia de Siquém em
931 a.C.: uma no texto massorético (TM), a antiga Bíblia
hebraica; a outra na versão dos Setenta (LXX), a antiga
Bíblia grega. Embora esta fosse usada pelos primeiros
cristãos, hoje, as Bíblias modernas preferem traduzir o
38. texto hebraico. Pois bem, parece que, depois de Jeroboão
e seus seguidores haverem feito suas exigências, Roboão
mandou consultar os anciãos das tribos que Salomão des
tituíra substituindo-os pelos governadores. Estes repetiram
as exigências de Jeroboão (lR s 12,24 q LXX). Reunido
depois com seus próprios conselheiros, “que comiam na
mesa com ele”, concordaram em manter a linha dura, pen
sando que de outro modo os pedidos não acabariam nunca
(lRs 12,24 r LXX). (A Bíblia hebraica reduz, de maneira
pouco provável, esta discussão a um debate interno da
corte, entre conselheiros anciãos e conselheiros jovens, lRs
12,6-15).
Diante da recusa de Roboão em atender seus pedi
dos, o povo recusou-se a proclamá-lo rei retirando-se das
negociações cantando em coro o antigo lema de Seba, o
Benjaminita: “Que parte temos com Davi? Não temos
herança com o filho de Jessé. Para as tuas tendas, ó Israel!
E agora cuida da tua casa, Davi!” (lR s 12,16). Completa
ram sua rebelião apedrejando até a morte Adoram, chefe
supremo dos trabalhos forçados (lR s 12,18). Roboão fugiu
para Jerusalém onde toda burocracia lhe continuara fiel.
Em torno a Jerusalém pôde agrupar toda a tribo de Judá
e, parece, a maior parte de Benjamim (lR s 12,21).
As tribos de Israel, enquanto isso, proclamaram rei
Jeroboão que fez de Siquém sua capital provisória (lR s
12,20.25) . No entanto, Siquém não era sua cidade no
mesmo sentido que Jerusalém era a cidade para os da
linhagem de Davi. Siquém era uma antiga cidade com
suas tradições próprias. Tinha, inclusive, a lembrança da
grande assembléia convocada por Josué nos tempos herói
cos da revolução (Js 24). Mais tarde Jeroboão transferiu
sua capital para Tersa, cidade localizada dentro da juris
dição dos anciãos de Manassés.
A „falta de uma capital própria reflete a natureza
deste reinado surgido como reação de protesto contra a
Jeroboão estava se transformando numa liderança
militar do tipo de Saul. Era responsável pelo exército de
Israel, porém não controlava um sistema., de arrecadação
de tributos com sua respectiva burocracia civil. Tampou
39. co mantinha um templo e o sacerdócio dependentes da
coroa.
Voltemos, um momento, a um dado importante que
é o apoio profético ao levantamento de Jeroboão. Tanto
o TM como a LXX, as duas Bíblias antigas, concorriam
com o apoio dos profetas à rebelião, ainda que difiram
nos detalhes. No TM, Aías de Silo incitou Jeroboão à sua
primeira rebelião que seria infrutuosa (lR s 11,26-40). Não
dá como motivo a opressão de Salomão mas o fato de
ele seguir os deuses estrangeiros, os deuses das suas espo
sas (lR s 11,33). Não é um motivo totalmente diferente da
opressão. Como vimos, Javé era um Deus que não tole
rava a opressão, enquanto que para outros deuses isto
não era um problema. Contudo, a LXX pode estar mais
próxima dos verdadeiros motivos históricos. Afirma que
foi o profeta Semeías de Elam a incitar Jeroboão, não
para a sua primeira rebelião, mas para convocar a assem
bléia de Siquém depois da morte de Salomão (lRs 12,24
o LXX).
De todos os modos é significativa a resposta dos
profetas ao gemido das tribos de Israel frente à apostasia
e à opressão. O levante das tribos contra a casa de Davi
teve o apoio de Javé e seu(s) profeta(s).
Examinar, com a chave de leitura teológica do êxodo,
as medidas religiosas que tomou Jeroboão é fundamental
para o entendimento dos livros dos reis (lR s 12,26-33).
Este texto foi escrito do ponto de vista de Jerusalém. O
templo de Jerusalém, como já vimos, é fruto de uma po
lítica de expropriação dos objetos sagrados do povo para
pô-los sob o controle e ao serviço dos opressores. Isto
levanta suspeitas com relação ao texto.
Jeroboão estabeleceu em Betei e Dã lugares de culto,
nos diz o texto. Se examinarmos as tradições das tribos
veremos claramente que tanto Betei como Dã eram anti
gos .centros de culto a Javé. Em Betei Javé aparecera ao
patriarca Jacó (Gn 28,10-22), e Dã é o lugar onde a tribo
homônima estabelecera seu centro religioso depois da sua
migração de Saraá e Estaol (Jz 18,28-31).
O refrão litúrgico “Eis o teu Deus (ou ‘teus deuses’
— pois se pode traduzir no singular ou no plural), Israel,
40. que te fez sair da terra do Egito” (lR s 12,28) é uma alusão
clara às tradições do êxodo. Não há nada de teologica
mente duvidoso nem no refrão, nem nos lugares de culto
renovados por Jeroboão.
Os bezerros podem ser entendidos como imagens de
Javé ou, mais provavelmente, como sua cavalgadura. Aarão
teria levado o povo a cometer um grave pecado quando
aceitou fabricar uma imagem de Javé para conduzir o
povo pelo deserto. Teria sido uma violação do mandamen
to do decálogo, “Não farás para ti imagens” (Ex 20,4).
Os bezerros são, pois, questionáveis. No templo de Jeru
salém, porém, também havia imagens: os querubins com
suas asas estendidas cobriam a arca da aliança (lR s 8,6-7).
Se Jeroboão violara com suas imagens um mandamento
da lei sinaítica, Davi e Salomão também o fizeram com
as suas. É mais provável que nem Jeroboão nem Davi ti
veram consciência de estar violando um mandamento.
Em resumo, o culto a Javé auspiciado por Jeroboão
não parece ter violado as tradições populares. Ao contrá
rio, devemos entendê-lo como uma tentativa de devolver
ao povo suas tradições agora usurpadas pelos reis em Je
rusalém. A freqüente condenação no Livro dos Reis aos que
“fizeram o mal aos olhos de Javé e imitaram a conduta
de Jeroboão e o pecado ao qual ele tinha arrastado Israel”
(lR s 15,34; 16,26; 2Rs 13,2; etc.) deve ser entendida como
um juízo de Jerusalém que não reflete a fé do povo em
Javé, o Deus do êxodo.
A política religiosa de Jeroboão não deve ser enten
dida como uma imitação dapolítica de Davi e sua linha
gem. Nem Betei nem Dã se encontravam em cidades reais,
nem seus santuários estavam sobre propriedades dos reis.
Certamente os reis exerciam alguma influência mas não
com o controle total como os reis tinham no templo de
Jerusalém. Sendo assim, com Jeroboão o povo reconquis
tou algum controle da fé em Javé.
Dois elementos da estrutura social de Israel servi
ram como limites aos reis. O mais importante foi o exér
cito, que, segundo parece, era recrutado por tribos. Pro
vavelmente os batalhões eram organizados por tribos man
tendo assim contato com suas origens. Do seio do exér
41. cito saíram novos reis impossibilitando-lhes sua perpetua
ção através dos filhos. Assim Baasa de Issacar matou, no
acampamento militar, a Nadab, filho de Jeroboão, tomando-
lhe o trono (lR s 15,27), no ano 909 a.C. No ano 885 a.C.
Zambri, chefe da metade dos carros, matou o rei Ela,
filho de Baasa (lRs 16,9). Era uma forma violenta mas
Q outro elemento de controle sobre os reis foi a par
ticipação eficaz, dos profetas de Javé na vida pública. Aías
de Silo condenou Jeroboão em nome de Javé, preparando
assim o ambiente para o golpe de Baasa (lR s 14,1-18).
O profeta Jeú, filho de Hanani, fez o mesmo contra Baasa,
anos mais tarde (lRs 16,1-4). Desta forma em Israel (ao
contrário de Judá) se manteve viva a tradição do papel
público do profeta de Javé, papel que Samuel tinha ten
tado instituir.
A sociedade israelita regressara, então, a um regime
parecido com o de Saul e que podemos representar desta
maneira:
Aldeias
organizadas
por tribos
JAVÉ
00
o
o
ooo ooo
ünWB
carecendo de um corpo de administração civil
e mantendo pouca autoridade sobre os santuários religio
sos, era mais que outra coisa um chefe militar, o respofí-
UOs tributos das tribos, expres-
ü^JwWpteerviaJW^HRcipalmente para
a manutenção do exército. Não havia, pois, opressão. O
^ ■ ■ ■ ^ p ossu ía lé§HHM ^iHM £iosa como o
É fácil entender que as tribos pagassem, com o preço de
uma certa instabilidade política, o fato de manterem o
controle sobre as estruturas do governo. Os reis de Israel
42. não organizaram trabalhos forçados para construção de
obras públicas. Não fizeram nem palácios, nem templos
para os reis e nem sequer para Javé, seu Deus.
A versão do norte (eloísta) das tradições das origens.
O surgimento de uma corte real com participação de inte
lectuais, como vimos, permitiu que se escrevesse a histó
ria das origens da nação a partir das tradições orais das
tribos. Embora os escritos javistas no Pentateuco mostrem
um grande respeito pelas tradições, não deixam de refletir
um enfoque sulista. Era natural que quando as tribos de
Israel se separaram de Judá seus intelectuais sentissem a
necessidade de produzir, também eles, uma versão escrita
das tradições das origens.
A ciência bíblica reconhece a história nortista como
a versão eloísta, porque essa mostra uma clara preferên
cia pelo termo “Eloim” para designar Deus em lugar do
nome próprio Javé. Esta preferência facilitou muito o tra
balho de separação desta versão no Pentateuco, onde se
encontra combinada com a versão javista e sacerdotal (“P”).
A versãcnelSwfft das origens se caracteriza pela
«■Wttência dada-aos profetas. Nela Abraão e Moisés sãò
apresentados como profetas. O papel dos profetas na re
ligião das tribos do norte coincide com esta ênfase. Atra
vés deles a Palavra de Deus é dada a conhecer e não há
outra resposta adequada por parte dos homens senão a
obediência. A mediação dos profetas na história eloísta
tem o efeito de retirar a presença direta de Deus nos
assuntos terrenos, se se compara com a história javista.
Embora a história^BBsta não tenha sido preservada toda
no Pentateuco (é a mais fragmentária das três), evidencia-
se o fato de limitar-se aos temas da tradição, quer dizer,
patriarcas, êxodo, Sinai, peregrinações pelo deserto. Não
tomou a liberdade da história iavista que acrescentou a^
ííffetófta da criação e do dilúvio;.
Não há indícios na história eloísta, tal como se apre
senta no Pentateuco, que permitam precisar a data de sua
redação. É necessário conformar-se em saber que foi re-
copilada no norte, quiçá em Betei, no período do reinado
(931-722 a.C.), provavelmente mais para o começo do que
para o fim deste período.
43. QUADRO CRONOLÓGICO DA HISTÓRIA DE ISRAEL
Aprox. 1220
1000
931
884-841
841-752
722
640-609
597
586
538
520-515
445-?
332
301-198
167-164
63
66-70 d.C.
132-135 d.C.
Êxodo do Egito (Mernefta, 1224-
1204)
Davi conquista Jerusalém
Jeroboão com as tribos se revoltam
contra Roboão
A dinastia de Amri (Amri, Acab,
Ocozias, Jorão)
A dinastia de Jeú (Jeú, Joacaz,
Joás, Jeroboão II, Zacarias)
Destruição de Samaria pelos assírios
Reinado de Josias (Reforma)
Deportação de Joaquin à Babilônia
Destruição de Jerusalém
Retomo sob Sasabassar
Reconstrução do templo de Jeru
salém
Governo de Neemias
Alexandre Magno conquista a Pa
lestina
Domínio ptolomeu sobre a Palestina
Insurreição dos Macabeus
Pompeu conquista Jerusalém para
os romanos
Primeira guerra contra Roma: des
truição do templo
Segunda guerra contra Forra; fun
da história de Israel.
44. --- V ---
A dinastia de Amri
(884-841 a.C.)
Este é um período negro da história de Israel. É um
tempo em que os reis quiseram, por razões de estado,tf»
os grandes profetas Elias e Eliseu para fazer frente à crise.
O exército, como em outras vezes, pôs fim a esta
experiência que do ponto de vista do povo foi triste.
Amri era o chefe do exército quando Zambri matou
o rei Ela (lR s 16,16). Teve o apoio imediato das suas
tropas que queriam fazê-lo rei. Zambri se suicidou. Me
tade do povo seguiu Tebni, enquanto a outra metade apoiou
Amri. Esta situação pôde durar vários anos mas ao final
o partido de Amri prevaleceu.
Israel, nesta época, enfrentava sérios problemas de
defesa. Judá se aliara aos arameus de Damasco contra
Israel. Com isso Israel perdeu o controle de grandes exten
sões do seu território nacional. No sul, Judá conquistara
todo o território de Benjamim e parte de Efraim. A maior
parte da Galiléia caíra sob o domínio dos arameus assim
como toda a Transjordânia. Era prioritário, então, recupe
rar o território perdido.
45. Amri enfrentou a crise combinando uma política
interna de reforço do Estado com uma política externa
de alianças.
A base da política interior foi a compra de um ter
reno para a construção da capital como propriedade da
Coroa. A esta nova cidade deu o nome de Samaria (lRs
16,24). Povoou sua nova capital com pessoas que lhe eram
diretamente fiéis, em essência, uma nova burocracia de
governo. Fez construir um templo consagrado ao deus
Baal (lR s 16,32). Isto é surpreendente, porém se pode
entender pela “necessidade” de um sacerdócio que exalte
a figura do rei para fortificá-lo politicamente. Era-lhe
impossível domesticar a Javé que já rechaçara pretensões
similares na família de Davi.
A política exterior de Amri apoiou-se no reconheci
mento de Aram-Damasco. Para fortalecer-se estabeleceu
uma aliança com Tiro e Sidônia, cidades comerciais muito
ricas. Consolidou a aliança casando seu filho Acab com
Jezabel, princesa de Sidônia. Jezabel trouxe consigo, pare
ce, sacerdotes de Baal. Este casamento “diplomático” serviu
de apoio a sua política interior de fortalecer o Estado.
O quadro completou-se com a outra aliança estabe
lecida com Judá. Acabou-se meio século de guerras fron
teiriças. Atalia, filha de Acab, foi dada em casamento a
Jorão de Judá, filho de Josafá, para cimentar as novas
e boas relações entre dois países que tiveram um mesmo
passado na época tribal de Israel. Josafá e Acab comba
teram juntos contra Damasco para recuperar a Transjor-
dânia. Ambos os países (Israel e Judá) tinham interesse
neste território (lRs 22). Esta aliança antiaramaica con
tinuaria com Ocozias, filho de Jorão e Atalia, e Jorão de
Israel, neto de Acab (2Rs 8,28-29).
O conjunto das políticas de Amri teve muito êxito no
fortalecimento de Israel. A coalizão antiassíria deteve o exér
cito inimigo em Carcar. Juntando-se ao rei de Damasco e
de Emat, Acab levou ao combate uma tropa de dez mil
soldados de infantaria e dois mil carros. Isto é atestado
nos documentos de Salmanasar III da Assíria.
Os principais problemas para os Amridas, porém,
eram de caráter intemo. Javé não podia conviver pacifi-
46. camente com Baal. Javé é um Deus ciumento (Ex 34,14-17).
Não tolera que seu povo tenha outros deuses. Esta ca
racterística de Javé se deve sem dúvida às lutas do perío
do revolucionário. Combateram as cidades cananéias pre
sididas por deuses legitimadores da dominação. A estra
tégia política de Amri e sua linhagem foi praticamente
uma: estabelecer em Samaria, sua capital, um culto oficial
a Baal, sem impedir que os santuários de Javé em Betei
e Dã continuassem funcionando. Baal seria o deus da Sa
maria e Javé o Deus das tribos.
Porém isto não podia funcionar. O profeta Elias re
preendeu todo o povo nestes termos: “Até quando claudica-
reis das duas pernas? Se Javé é Deus, segui-o; se é Baal,
segui-o” (lRs 18,21). Houve conflitos sangrentos. Segundo
lRs 18,4, Jezabel “exterminou” os profetas de Javé. E se
gundo lRs 18,40, Elias degolou os profetas de Baal. A ver
dade é que houve conflitos de morte.
A história da vinha de Nabot (lR s 21) nos permite
entender o que estava em jogo para o povo neste conflito apa
rentemente religioso. O rei Acab cobiçara a vinha, herança
de Nabot, que confinava, por desgraça, com o palácio de
Jezrael. Apelando à lei sinaítica que proibia a alienação
de terras produtivas (Lv 25,23-31), Nabot recusou-se a
vendê-la. Ao rei não coube outra alternativa senão aceitar
a decisão amparada pela tradição legal de Israel. Jezabel,
no entanto, pelas tradições políticas de seu país, sabia que
não havia lei acima da vontade do rei e procedeu ao “con
fisco” da vinha de Nabot (lR s 21,4-16). Este era o fundo
social de um conflito entre Javé e Baal. Estavam em jogo
os interesses econômicos dos israelitas, suas próprias vidas
que dependiam de suas terras.
47. Elias e depois de sua morte Eliseu, profetas de Javé,
foram os líderes da oposição. Prepararam a queda dos
amridas em 841 a.C.
O esquema da p. 46 representa mais a intenção política
que a realidade do governo de Amri e sua descendência.
Seu propósito era estabelecer em Israel uma nação segun
do o modelo cananeu. Este é o modelo de sociedade exis
tente no Egito contra o qual Moisés e seus seguidores se
rebelaram. Não julgaram necessário eliminar de Israel o
culto a Javé, mas deixá-lo como culto popular ao lado do
culto oficial que na Samaria se tributava a Baal. Os pro
fetas não puderam aceitar este arranjo que permitia liber
dade de culto a Javé mas não afetava em nada as estru
turas de dominação. Os textos sugerem que foi Jezabel
quem iniciou a perseguição religiosa; parece-nos mais pro
vável, porém, que foram os profetas de Javé os primeiros
a rechaçar esta proposta. Baal não tinha razões para pe
lejar contra Javé; Javé tinha todos os motivos para pelejar
contra Baal. Este servia como legitimação religiosa da do
minação do povo de Javé. Este círculo flutuante de pro
fetas não aceitou ser retirado do cenário político. Ao con
trário, entrou em conflito com a administração religiosa
oficial.
Temos pouca informação sobre a organização das
aldeias, mas parece natural supor que estas continuaram
existindo. Não puderam ser instalados perfeitamente, por
tanto, os canais para a coleta de tributos das aldeias para
as funções da corte real.
48. ---- VI ----
A dinastia de Jeú
(841-752 a.C)
Ortodoxia e exploração
A dinastia de Amri teve seu ocaso no ano 841 a.C.
provocado por uma rebelião do exército, como acontecera
anteriormente com as dinastias de Jeroboão e Baasa. O setor
do exército, protagonista do golpe de estado, como nos
outros dois casos era sensível ao povo defraudado de
Israel. Sua intenção era acabar com a tirania dos reis que
não consideravam o bem-estar do povo, nem respeitavam
as tradições legais populares que defendiam os direitos
dos pobres.
O golpe foi dirigido por um certo Jeú, oficial do
exército, que combatia contra Aram na Transjordânia. Foi
um golpe extraordinariamente sangrento. Jorão foi assas
sinado (2Rs 9,22-26), bem como sua mãe (2Rs 9,30-37) e
seus setenta filhos (2Rs 10,1-11). Ocozias, rei de Judá,
encontrando-se em Israel, possivelmente para participar na
guerra contra Aram, também morreu (2Rs 9,27-29). Ele
era filho de Atalia, a filha de Acab que se casara com o
rei de Judá. Morreu também um grupo da família real
de Judá (2Rs 10,12-14).
A religião, da mesma maneira que exercera um
papel importante no fortalecimento do Estado no tempo
49. de Amri e sua casa, desempenhou um papel não menos
importante na sua derrocada. O texto bíblico sublinha que
o levante de Jeú foi incitado pelo profeta Eliseu (2Rs
9,1-10) e é considerado a culminância das piofecias de
Elias contra Acab (2Rs 9,25-26.36). Pelas razões estudadas
podemos assegurar que a hostilidade dos profetas de Javé
contía os amridas era muito profunda e sua participação
na luta pela derrocada, entusiasta.
O livro de 2Reis ressalta a importância das medi
das religiosas tomadas por Jeú para eliminar da Sama-
ria o culto de Baal (2Rs 10,18-27). Não só matou seus
sacerdotes e profetas, mas também expurgou aqueles que
pôde identificar como adeptos de Baal.
O historiador do Livro dos Reis, com sua conheci
da tendência pró-jerosolimitana, ou melhor, apesar desta
tendência, disse: “Jeú extirpou de Israel o culto de Baal”
(2Rs 10,28). Não se pode tomar ao pé da letra esta sur
preendente afirmação. Jeú eliminou o culto oficial de Baal
na capital e dessacralizou o templo ali construído pelos
reis. Baal, porém, devido1 a sua identificação com a tão
desejada chuva, era também o Deus de muitos camponeses.
Joás de Manassés, pai de Gedeão, em plena época
tribal, tinha em sua propriedade um santuário de Baal
(Jz 6,25), e nem por isso era considerado um não israe
lita. Podemos supor que o culto clandestino ou privado
de Baal entre os camponeses era bastante comum. Isto
teria facilitado a introdução de Baal na Samaria, porém
ali a coisa era diferente. Jeú eliminou de Israel o culto
oficial de Baal, mas não consta que tenha tratado de erra
dicar seu culto mais privado.
Os historiadores, imediatamente depois de informar
da eliminação de Baal, acrescentam seu comentário habi
tual: “Porém Jeú não se afastou dos pecados com os quais
Jeroboão, filho de Nabot, tinha seduzido os israelitas, isto
é, os bezerros de ouro em Betei e Dã” (2Rs 10,29). Isso
vem confirmar nossa interpretação. Os atos religiosos de
Jeroboão não intencionavam apartar Israel de Javé, mas
do templo de Jerusalém. Os historiadores que escreveram
os Livros dos Reis encontraram nisto a matéria suficiente
para condená-lo. Na perspectiva dos pobres não é assim.
50. É preciso ter reserva quanto às apreciações dos historia
dores que não depositam nos pobres seu maior interesse.
As mortes na família real de Judá causadas pelo
golpe de estado de Israel provocaram o fim da aliança
entre os dois países, como era de se esperar. Este pro
blema é complicado pelas lutas internas em Jerusalém, o
que veremos no capítulo seguinte. A guerra só estourou
cinqüenta anos mais tarde, quando o rei Amasias de Judá
atacou o exército de Joás em Israel. Sofreu uma derrota
completa e foi levado cativo à Samaria (2Rs 14,8-14).
A vitória sobre Judá foi apenas um reflexo da força
construída por Jeú em Israel. Depois dos reveses aconte
cidos durante o reinado mesmo de Jeú (2Rs 10,32-33) e
continuados nos dias de Joacaz (2Rs 13,22), Joás pôde re
verter a situação e recuperar os territórios perdidos (2Rs
13,24-25). Jeroboão, filho de Joás, teve um longo reinado
(762-752), próspero e de expressão territorial (2Rs 14,25).
As escavações arqueológicas confirmam a prosperidade
obtida nesta época de Jeroboão.
Para entender a organização do Estado israelita sob
Jeú e seus descendentes, a função da religião continua
sendo determinante. Parecem ter devolvido a proeminência
aos santuários tradicionais de Javé, entre os quais Betei era
o mais importante. Dã provavelmente havia perdido muita
importância por encontrar-se numa zona territorial onde o
domínio israelita não foi estável.
Jeú teve que decidir o que fazer com a capital de
Amri. Samaria era uma cidade de estilo praticamente ca-
naneu. Dessacralizando seu templo e matando os compro
metidos com a ordem política de Amri e com o culto a
Baal, deixou-a sem dúvida despovoada. Embora os textos
não nos informem sobre medidas para o seu repovoamen-
to, Jeú tampouco a abandonou. Mesmo depois de Jeú e
seus filhos, Samaria continuou sendo a capital de Israel.
Com uma cidade real, os reis puderam estabelecer um
estado muito mais forte que o do primeiro Jeroboão. A
dinastia de Jeú não representa, portanto, somente a res
tauração do reinado anterior aos amridas. Como conse
qüência da política de Amri o estado de Israel ficou
fortalecido.
51. Jeú, no entanto, parece não ter construído um tem
plo a Javé na Samaria. O grupo formado ao redor dos
profetas Elias e Eliseu teve grande influência no seu mo
vimento. Isto talvez lhe tenha servido de freio. Eles bus
cavam a restauração de um reinado com autonomia dos
profetas em relação aos reis. Os profetas podiam, de acor
do com a vontade de Javé, retirar seu apoio ao rei. Po
demos representar Israel deste período (841-752) da se
guinte maneira:
JAVÉ
Aldeias
organizadas
por tribos OOQl IÕÕ1IÕÕÕIIÕÕ
A organização tribal continuou oferecendo uma certa
defesa aos camponeses israelitas. O profeta Amós ainda
fala, nesta época, da função judicial dos anciãos (Am 5,15:
“a porta” é o lugar de reunião dos anciãos). O exército
pode ter mantido seus vínculos com as tribos. Entre 752
e 722, ano da destruição de Samaria, houve mais dois
golpes de estado. A administração civil cresceu com sua
base de Samaria, provocando um aumento dos tributos
para sua manutenção. Os comerciantes, de cujos abusos
fala o profeta Amós, podem ter sido funcionários do Esta
do ou agentes livres (Am 8,4-8).
O sacerdócio de Javé mais autorizado estava em
Betei, principal santuário nacional. Amós (7,10-17) revela
a vinculação do santuário à Coroa. Os sacerdotes sentiam-
se endividados com o rei por causa da restauração feita
depois da perseguição desencadeada pela dinastia de Amri.
Não sobrou, porém, o menor traço de uma teologia real
elaborada em Betei. Isto indica que os sacerdotes não
eram simplesmente funcionários a serviço do rei. A reli
gião manteve uma certa medida de independência. Não
52. temos maiores informações. A ausência de profetas autô
nomos por mais de cem anos, ou pelo menos de informes
sobre profetas, levanta a suspeita de que as coisas não
iam tão bem do ponto de vista de uma vigorosa tradição
do Javé libertador. A tradição teria sido apagada.
Foi um profeta de Judá quem chegou a Betei, no
final do reinado de Jeroboão II, para assumir o manto
de Elias e de outros ilustres precursores. Amós profeti
zou em Betei. Fez uma análise profunda das injustiças
que desmentiam a profissão de fé em Javé, Deus do êxodo.
Na Samaria havia luxo e despreocupação com a mi
séria da maioria do povo (Am 6,1-7; 3,13-15; 4,1-3). Os co
merciantes vendiam mercadorias ruins e caras, traficando
assim com a necessidade do povo (Am 8,4-8; 2,6). Os
anciãos não julgavam segundo o direito (5,10-12.15). E tudo
isto era acompanhado de um culto entusiasta e aparente
mente correto (Am 4,4-5; 5,21-24).
Justamente por tê-los tirado da escravidão do Egito,
Javé seria severo em pedir as contas pelas suas culpas
(Am 3,1-2). Seu castigo não deixará nenhum sobrevivente
(Am 9,1-4). Se pensavam que Javé não poderia destruir
seu próprio povo, sabiam que Javé poderia igualmente ter
tomado os filisteus ou os sírios para abençoá-los (Am 9,7).
São palavras fortes. Contudo, Amós não tinha uma
proposta para transformar a vida nacional. Não tentou
afastar o rei Jeroboão nem propôs outro para seu lugar.
Quiçá por ser estrangeiro, ainda que partilhasse das tra
dições religiosas de Israel. Simplesmente anunciou o juízo.
Anos mais tarde, depois de Amós, surgia o último
grande profeta do reino de Israel, Oséias. Para ele a exis
tência de um governo monárquico em Israel era simples
mente a manifestação de um problema cuja causa era
mais profunda: a busca desenfreada de bens materiais.
Javé, conhecido desde o êxodo como Deus Salvador, con
tinuava sendo o Deus nacional, mas transformado agora,
pela ganância, em Baal, o deus da chuva e da fertilidade.
O povo dizia conhecer Deus, porém a rejeição do bem
demonstrava sua mentira (Os 8,1-3).
53. A esposa de Oséias tinha sido prostituta (Os 1,2).
A prostituição foi para ele a imagem que permitia enten
der a vida nacional. A vida de Israel reduzira-se a uma
corrida ao trigo, mosto, azeite, prata, lã e linho, sem re
conhecer que a provisão estável para as necessidades da
vida provinha da justiça e do culto a Javé, o justo (Os
2,10-11; em outras versões, 2,8-10). Para satisfazer seus ape
tites encheram a terra de mentiras, assassinatos e roubos
demonstrando assim o desconhecimento de Deus (Os 4,1-3).
Arrependimento e belas orações não bastavam a Javé que
buscava amor e não sacrifícios (Os 5,15—6,6).
Os reis eram a expressão deste mal profundo. Todo
mal começou em Guilgal (onde Samuel ungira Saul, o pri
meiro rei — Os 9,15). As injustiças derivavam de Gabaá,
o povoado de Saul (Os 10,9). No tempo da desgraça, os
reis, que o povo quis em desconsideração a Javé, não os
ajudarão (Os 8,4; 13,9-11).
Em conseqüência da vida prostituída, para Oséias,
Israel como Estado irá desaparecer. Javé chamá-lo-á ao
deserto e fará uma nova aliança na justiça, no direito, no
amor e na fidelidade (Os 2,16.21-22; em outras versões
2,14.19-20). Oséias vê neste futuro a unidade original de
Israel e Judá (Os 2,1-3; em outras versões, 1,10—2,1).
54. ----V II-----
Enquanto isto,
o reduto davídico, Judá
Ao longo destes dois séculos, desde a rebelião das
tribos contra a casa de Davi (931) até a destruição da
Samaria (722 a.C.), a antiga tribo de Judá manteve-se
como um pequeno estado à parte. Jerusalém, a cidade de
Davi, não se uniu à rebelião e pôde manter consigo Judá
e parte de Benjamim. Com a incorporação dos territórios
de Israel ao sistema de províncias da Assíria e a disper
são forçada de seus líderes com a tomada de Samaria,
Judá permaneceu o único vínculo histórico com a expe
riência revolucionária das tribos de Israel. Daí decorre a
importância dada a Judá e Jerusalém na Bíblia.
Uma comparação dos Livros dos Reis com os das
Crônicas ajuda a pôr esta história numa perspectiva.
Ambos descrevem a história dos reis. Os livros dos reis,
compostos nos últimos tempos do reino de Judá, em fins
do século VII e início do VI, são parte de uma grande
obra histórica; começa com Moisés e termina com a des
truição de Jerusalém. Os exegetas a chamam história deu-
teronomística; começa com o livro do Deuteronômio, in
cluindo Josué, Juizes, os dois Livros de Samuel e os doi?
Livros dos Reis. Para o período que nos interessa, 931
a.C.-722 a.C., os Livros dos Reis dão com acerto priori
55. dade a Israel sobre Judá, refletindo a realidade de Israel
que possuía a maior força política, e o fato de as origens
tribais encontrarem maior continuidade ali. Esta história
é escrita, no entanto, para preparar a destruição de Sa
maria e justificar a ação de Javé em acabar com Israel,
deixando somente Judá. O pecado-chave, segundo os histo
riadores deuteronomísticos, é o de Jeroboão em separar
Israel do templo de Javé. Já vimos que da perspectiva
dos pobres este juízo não se pode sustentar.
Os livros das Crônicas (ou Paralipômenos) narram
a mesma história, com a diferença que começam com Davi
para terminar, igualmente, com a destruição de Jerusalém.
Uma extensa lista genealógica (árvore das famílias) que
começa com Adão (lCr 1—9) prepara esta história. Quase
tudo que diz respeito ao Reino de Israel é omitido. É a
história do Reino de Judá como o verdadeiro Israel e de
Jerusalém como Cidade Santa. O Reino de Israel é consi
derado apóstata desde o início por ter-se rebelado con
tra Davi, o eleito de Javé (ler o discurso de Abia, (2Cr
13,4-12). Esta é a perspectiva histórica feita a partir dos
vencedores. Quando queremos ler a Bíblia a partir dos
pobres devemos ler com muito cuidado este tipo de lite
ratura. Pode trazer informações valiosas, mas seu enfoque
é teologicamente alheio aos pobres.
No ano 931 a.C., quando as tribos se levantaram
contra o jovem rei Roboão, ele pôde refugiar-se em Jeru
salém, cidade cercada de muros em que viviam majorita-
riamente seus próprios “servos”, os administradores do
reino. Desde Jerusalém ele e seus descendentes puderam
implantar um reino diferente de Israel que continuasse as
tradições políticas e religiosas de Davi. Como exército tinha
as tropas de elite, compostas em boa parte de soldados
mercenários, e os batalhões das tribos de Judá e de Ben
jamim. Como administradores civis tinha um contingente
imenso composto pelos que haviam administrado as gran
des extensões conquistadas por Davi. Muitos dos adminis
tradores reais colocados por Davi e Salomão sobre as
tribos de Israel, governadores de distritos e seus empre
gados, fugiram e se refugiaram em Jerusalém e Judá com
Roboão. Havia pois uma superabundância de administra
dores qualificados. Quanto ao sacerdócio, o pessoal do
56. templo de Jerusalém foi dos mais leais seguidores. Para
eles Javé tinha escolhido Davi e sua descendência para
governar o povo de Israel. O levantamento das tribos so
mente podia ser entendido como uma desobediência a Javé.
Instituiu-se pois em Jerusalém um governo tributário:
Durante os reinados de Roboão (931-913 a.C.), Abiam
(913-911 a.C.) e Asa (911-870), houve guerras com Israel,
causadas, tudo indica, pelas pressões judaítas em alargar
as fronteiras para o norte. Nos tempos do rei Josafá
(873-848 a.C.) estabeleceu-se a paz em Israel. Esta ficou
cimentada com o matrimônio de seu filho Jorão com
Atalia, filha do rei Acab. Israel e Judá juntos guerrearam
contra Aram para retomar toda a região da Transjordânia.
A paz foi abruptamente quebrada com a morte da
família real por Jeú durante o levantamento do ano 841
a.C. Ficou no trono de Judá Atalia, mãe do defunto rei
Ocozias e membro da família real assassinada por Jeú em
Israel. Atalia foi derrubada por uma coalizão dos sacer
dotes com o “povo da Terra”, os homens principais das
cidades de província (2Rs 11), e a notável ausência do
pessoal real de Jerusalém. Joás, filho de Ocozias e neto
de Atalia, foi colocado no trono. Este foi assassinado por
seus “servos” depois de um longo reinado de quarenta
anos (2Rs 12,21). Seu filho Amasias empreendeu novamen
te a guerra contra Israel, com resultados desastrosos (2Rs
14,8-14). Depois disto houve paz durante o século VIII,
até a destruição de Samaria.
Para entender a dinâmica da vida política de Judá,
é preciso examinar o pouco que nos dizem os livros dos
57. Reis acerca das muitas dificuldades políticas do século IX.
Ocozias foi assassinado no ano 841, mais por problemas
de Israel que do seu próprio país. O efeito foi lançar sua
mãe no poder. Ela contava com o apoio do pessoal real
mas os sacerdotes lhe faziam oposição, pois queria e de
fato colocou um templo de Baal em concorrência com o
templo oficial. Contra isto se levantou um movimento enca
beçado pelos sacerdotes e pelo povo da terra com o apoio
de um setor do exército em 835. Atalia foi assassinada
e seu neto Joás, com 7 anos de idade, coroado em seu
lugar.
Joás, durante seu longo reinado, entrou em conflito
com os sacerdotes que, segundo parece, desconheceram as
ordens reais de renovar o templo, preferindo gastar o di
nheiro (2Rs 12,5-17). Os servos do rei, desta vez com o
apoio dos sacerdotes, o assassinaram em 797. Amasias,
seu filho, governou poucos anos, porque no ano 792 caiu
prisioneiro de Israel. Depois de libertado, em data desco
nhecida, foi assassinado por gente de Jerusalém, provavel
mente no ano 767 (2Rs 14,18-21).
Esta informação permite descobrir a existência de
tensões permanentes entre os reis e seu próprio pessoal
em Jerusalém. Isto pode ser explicado pela burocracia de
Estado superinflada e a base demasiado pobre de tributos
para seu sustento. Eles teriam constituído a principal fonte
de pressões expansionistas levando Judá a uma política
exterior muito agressiva. O problema parece residir uni
camente no setor dos administradores. O exército com mais
*
facilidade podia reduzir-se a um tamanho mais conforme à
realidade de um Judá pequeno. O sacerdócio interessava-se
pela estabilidade da dinastia devido a sua própria teologia
davídica.
O povo da terra, os homens de maior poder e pres
tígio nas cidades de província, foram o principal apoio
para a casa de Davi. Eles apoiaram, ao longo da história
de Judá, reformas para reduzir o pessoal administrativo
e concentrá-lo na cidade capital. O primeiro esforço neste
sentido foi feito por Asa (911-870 a.C.): “Mandou eliminar
de todas as cidades de Judá os lugares altos” (2Cr 14,4),
que, além de centros religiosos, eram postos do governo.
58. Houve também as importantes reformas administra
tivas de Josafá (873-848 a.C.) (2Cr 17,6). Um século mais
tarde, o mais importante de todos os reformadores, Eze-
quias (716-687 a.C.), centralizou em Jerusalém muitas das
funções políticas e religiosas exercidas antes em diferentes
lugares (2Cr 29—31). Esta centralização deixava o campo
livre para o “povo da terra”, que em troca desta política
davam seu apoio decidido aos reis.
59. -------VIII-------
Os profetas
no final do século VIII em Judá
No reino de Israel uma série importante de profe
tas se sucederam. Depois da sua queda, surgiram pela vez
primeira profetas importantes em Judá. Nos tempos do rei
Ezequias houve dois grandes profetas cujas tendências
apresentavam grandes diferenças, um da capital e outro
do campo. Ambos pretendiam analisar a situação de Judá,
que na época era a única herdeira entre as tribos de Israel.
Suas análises são diferentes. Permitem penetrar na com
plexidade da fé num mundo concreto, onde as coisas nem
sempre são muito definidas.
Isaías era de Jerusalém. Teve uma visão de Javé
dentro do templo (Is 6). A partir desta visão assumiu
o papel de profeta, crítico dos reis de seu tempo. Con
denou os latifundiários do país (Is 5,8), os governantes
que não faziam justiça aos fracos (Is 10,1-4). Era-lhe par
ticularmente detestável o fato de as lideranças se apre
sentarem como gente muito religiosa, consagrada a Javé,
enquanto viviam da exploração do povo (Is 1,10-17).
A inovação encontrada em Isaías com relação aos
profetas anteriores é que para ele o marco referencial de
sua atividade era a teologia davídica e não tanto o êxodo.
60. Considerava Jerusalém uma cidade privilegiada, uma pro
teção para os pobres (Is 14,28-32). Isto apesar de no seu
tempo Jerusalém ter-se convertido em um refúgio de assas
sinos; Javé, porém, a purificaria “através do fogo” e ela
voltaria a ser uma cidade de justiça (Is 1,21-26).
A esperança para o povo de Israel (Judá), segundo
Isaías, é a vinda de um rei bom, o Messias. Isaías ditou
pelo menos três textos messiânicos importantes (9,1-6;
11,1-9; 32,1-5.15-20). Neles se pode observar que, mesmo
de dentro da teologia davídica, se pode denunciar as injus
tiças e proclamar a esperança. Para o culto em Jerusa
lém, o rei era o que trazia justiça para os pobres (SI 72).
Os reis do seu tempo, porém, Acaz e Ezequias, não podiam
controlar os desmandos dos oficiais que viviam à custa
dos bens dos pobres. Isaías anuncia pois que serão como
uma árvore desbastada (Is 6,13), mas do seu tronco sairá
um rei bom que defenderá a causa dos humildes (Is 11,1-9).
Isaías não chega à radicalidade de um Oséias. Este
vê o pecado na instituição dos reis. Para aquele o mal
não está na família de Davi nem na instituição monár
quica mas nos reis maus que Judá teria que suportar.
Há de chegar um rei bom para salvar o povo. A partir
dos pobres este ponto de vista produz uma análise curta.
Isaías não percebe que é o povo mesmo que deve organizar-
se para conseguir seus objetivos. Os interesses do povo
serão atendidos, segundo ele, desde cima, por obra do rei
messiânico.
Miquéias foi um profeta camponês e popular. Segun
do seu modo de ver, os chefes se alimentavam da carne
do povo (Mq 3,1-4). A cidade de Jerusalém fora construí
da com sangue e ali os chefes, sacerdotes e profetas eram
igualmente ladrões (Mq 3,9-12). Pecado não eram as más
obras dos governantes mas a própria existência da cidade
de Jerusalém (Mq 1,5 segundo a versão LXX).
A análise de Miquéias não podia ter esperança, como
Isaías, na purificação da cidade. A solução para o povo
seria a destruição da cidade, incluído seu templo (Mq 3,12).
O campo sofria as conseqüências da exploração da
cidade. Homens poderosos apropriavam-se das terras dos
camponeses (Mq 2,1-3).
61. Como saída, Miquéias propõe uma revolução cam
ponesa para recuperar as terras perdidas. “Meu povo se
levanta como inimigo” (Mq 2,8, conforme o texto hebraico;
todas as traduções em uso corrente mudaram seu senti
do). “Expulsai os chefes (seguindo o grego da LXX) do
meu povo das casas dos seus prazeres” (Mq 2,9). “Levantai-
vos e ide, pois esta não é hora de repouso” (Mq 2,10).
Haverá uma nova assembléia de Javé para repartir
novamente a terra, como fez, no seu tempo, Josué (Js
14—19). Então os latifundiários chorarão e gritarão por
serem despejados, mas não tomarão parte na repartição
das terras (Mq 2,4-5).
O problema social de Judá, para Miquéias, não se li
mitava à casa de Davi, aos reis. Em uma lamentação muito
difícil de se entender nos detalhes (Mq 1,10-16), o profeta
pede a destruição das cidades da província de Judá, ci
dades como Laquis, Aczib e Gat. Provavelmente estas
cidades eram a base do “povo da terra”, e estes eram
firmes apoios para a casa de Davi. Nelas viveriam os la
tifundiários açambarcadores das terras dos camponeses.
Não nos parece atrevido pensar os latifundiários e o “povo
da terra” como sendo uma mesma coisa.
Miquéias é o mais radicalmente popular de todos
os profetas da Bíblia. Ele entende que Javé não poderá
efetuar a libertação do povo sem uma ação organizada
do mesmo povo. O povo deverá entender que o templo
de Jerusalém, os reis davídicos e os senhores das cida
des provinciais são seus opressores. Deverão atrever-se, em
nome do Javé do êxodo, a destruir o templo que os sa
cerdotes dizem ser a morada de Javé e matar os reis que
os sacerdotes dizem ser os eleitos de Javé para “apascen
tar" seu povo. Isto significa um retomo revolucionário ao
Deus de Moisés.
É bom notar que as palavras de Miquéias foram
modificadas para não causar escândalo. Suas palavras se
encontram quase completamente nos capítulos 1 a 3 de
seu livro. A estas foram acrescentados outros ditos pro
féticos, não tão revolucionários, para dar uma impressão
global menos radical. A leitura da Bíblia a partir dos pobres
deverá ser, aqui como em todas as partes, uma leitura
62. das lutas dos pobres e da opressão infligida pelos pode
rosos. Este processo pode ser visto dentro da Bíblia
mesma, que é um livro dos pobres mas que foi manusea
do pelos opressores. Apesar de tudo isto, em um profeta
como Miquéias se entrevê o Deus libertador dos pobres
que levantou Moisés para conduzir seu povo à libertação.