"É melhor praticar para a nota" - Como avaliar comportamentos em contextos de...
Os direitos do antivalor na UFF
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Os direitos do antivalor
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Autor: 01 iveira «Franciscc* de ♦
Título:Os direi-tos do antivalo r: a econo»
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2. Coleção Zero à Esquerda
Coordenadores: Paulo Eduardo Arantes e Iná Camargo Costa
- Desafortunados
D avid Snow e Leon Anderson
- Diccionario de bolso do almanaque philosophico zero à esquerda
Paulo E duardo A rantes
- Os direitos do antivalor
Francisco de O liveira
- Em defesa do socialismo
Fernando H ad d ad
- Geopolítica do caos
Ignacio R am on et
- Globalização em questão
Paul H irsí e G rabam e Thom pson
- A ilusão do desenvolvimento
G iovani Arrighi
- Os moedeiros falsos
Jo sé Luís Fiori
-As metamorfoses da questão social
Robert C astel
-Poder e dinheiro: Uma economia política da globalização
M aria da C onceição Tavares e Jo sé Luís Fiori (O rgs.)
- Terrenos vulcânicos
D o lf O ehler
- Os últimos combates
Robert Kurz
Conselho E ditorial da C oleção Zero à Esquerda:
Otília Beatriz Fiori Arantes
Roberto Schwarz
Modesto Carone
Fernando Haddad
Maria Elisa Cevasco
Ismail Xavier
José Luís Fiori
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Oliveira, Francisco de, 1933 -
Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita /
Francisco de Oliveira. -Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
ISBN 85-326-1996-7
1. Capitalismo 2. Social-democracia 3. Valor (Economia) I. Título.
98-0906 CDD-338.521
índices para catálogo sistemático:
1. Antivalor: Teorias: Economia 338.521
3. I
Francisco de Oliveira
Os direitos do antivalor
A economia política da hegemonia imperfeita
111
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%fá EDITORA
Y VOZES
Petrópolis
1998
5. À minha mãe, Joventina: Todas as gerações te
chamarão Jovem, Joventina.
Às minhas irmãs: Etelvina, Isabel, Iraci (in memoriam),
Conceição, Assunção, Tercina, Auxiliadora.
Aos meus irmãos: José (in memoriam), Antonio
(in memoriam), Luis (in memoriam), Guido, Tadeu
Para Victor Hugo, alegria.
6.
7. SUMÁRIO
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lB W otoi* ** tcoM nnt Jfcdmntstt
ttaçàa I
9 Introdução
1 7 PARTE I - DO MERCADO AOS DIREITOS
19 O surgimento do antivalor
49 A economia política da social-democrada
63 Políticas do antivalor, e outras políticas
77 PARTE II-A QUASE HEGEMONIA
79 A metamorfose da arribaçã
121 Crise e concentração
159 A quase-hegemonia
1 6 3 PARTE III - SUAVE É O TERROR
165 Quem tem medo da governabilidade?
197 Além da hegemonia, aquém da democracia
205 A vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda
223 Dominantes e dominados na perspectiva do milênio
8.
9. INTRODUÇÃO
Devo à generosa insistência de Paulo Arantes, amigo e co
lega da FFLCH-USIJ um dos coordenadores da Coleção Zero
à Esquerda, a sugestão para organizar e publicar este livro que,
além disso, deve-lhe também o título completo, recebido na
pia batismal de Paulo, sacerdote dos “zero à esquerda” pois,
como todos sabem, somos uma seita. Este livro se inscreve,
orgulhosamente, na linha imprimida à coleção , tentando so-
mar-se aos esforços dos que, no Brasil (e não apenas os que
têm seus trabalhos publicados nesta coleção), buscam manter-
se no terreno crítico de uma produção intelectual que recusa
o “pensamento único”, o conformismo bem remunerado e os
álibis para transitarem da esquerda para a direita, pretextos
bem pensantes por trás dos quais esconde-se uma nova posição
de classe, “et pour cause” quando proclamam a inexistência
das classes no capitalismo contemporâneo.
Este livro está organizado em três partes. A primeira, Do
mercado aos direitos, contém dois artigos que tratam do tema
da regulação do capitalismo - nada aver com achamada Escola
da Regulação, outrora capitaneada por Michel Aglietta - cons
truída através do conflito e cuja característica básica consti
tuiu-se , segundo a interpretação adotada, em um trânsito da
produção de mercadorias regulada sobretudo pelo mercado
para aquela cuja regulação dependeu basicamente dos direitos
da cidadania, alicerçados sobretudo nos novos direitos sociais
e do trabalho; é a regulação que o neolíberalismo especifica
mente combate e trata de destruir. No dizer de um François
9
10. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
Ewald, em seu L’État-Providence, trata-se de um trânsito do
paradigma do contrato mercantil, estruturado nos códigos na-
poleônicos, ao paradigma da segurança, estruturado pelo Wel-
fare State. Ao lado deles comparece uma entrevista à revista
Teoria & Debate, editada pelo Partido dos Trabalhadores, na
qual, pela boa organização e consistência das questões propos
tas por Fernando Haddad, volto aos temas do antivalor, me
lhorando, penso eu, a exposição de algumas de suas principais
proposições. Faltaria, para completar essa parte, um capítulo
que dialogasse com as críticas que “O surgimento do antivalor”
e “A economia política da social-democracia” receberam desde
que foram publicados. Menos que contestar, tratar-se-ia de
contrapor argumentos às críticas feitas por Francisco Paulo
Cipolla, em artigo publicado também na Noivos Estudos Ce-
brap, que remarca, por meio de uma rigorosa sistematizaçao
dos esquemas da produção da mais-valia e da reprodução do
capital em Marx, o impasse das proposições do “antivalor”.
A segunda crítica foi elaborada por Roseli Martins Coelho em
sua tese de doutorado “Social-democracia: A chantagem do
capitalismo”, defendida no Departamento de Filosofia da
FFLCH-US1? de cuja banca tive a honra de participar, e que
contesta a tese da desmercantilização da força de trabalho, um
dos elementos estruturantes do antivalor ou das antimercado-
rias, porque, segundo sua argumentação, os recursos fiscais
que constituem os fundos públicos, suportes do antivalor na
minha interpretação, são derivados de impostos pagos pela
população em geral e particularmente pelos trabalhadores.
Não havería, pois, a pretendida desmercantilização, mas, ao
invés, um aumento da exploração e da mais-valia por vias
indiretas. Infelizmente, a tese de Roseli Martins Coelho ainda
não foi publicada, e portanto assumo os riscos de fazer sua
síntese. A terceira crítica recebida partiu de Francisco José
Soares Teixeira, colega da Universidade Federal do Ceará, co
nhecido do público por seu Pensando com Marx, Editora En
saio, que em correspondência pessoal transmitiu-me o teor de
sua argumentação; creio que Soares Teixeira ainda não publi
cou o trabalho. A meu modo de ver, Teixeira critica o uso
10
11. INTRODUÇÃO
abusivo e incoerente das categorias e conceitos de Marx em o
Antivalor e emA economia política da social-democracia, que
me levaria, inapelaveImente, a juntar-me a Habermas, Offe,
Gorz e outros, esvaziando os conceitos de classe social, de luta
de classes e, por conseqüência, da mais-valia, tornando meu
esquema, portanto, insustentável em si mesmo. São três críticas
poderosas, bem estruturadas, com as quais tentarei dialogar
em artigo em preparo, que possivelmente poderá vir a integrar
este Os direitos do antivalor em alguma segunda edição, se a
recepção desta primeira assim aconselhar. Confesso antecipa
damente - com a liberdade do diálogo que me permite a gran
deza dos meus críticos, mas sem me estender, posto que não
apenas ainda não elaborei completamente as possíveis respos
tas aos mesmos, e, ainda, por decoro intelectual, já que duas
das críticas citadas ainda não são de um domínio público mais
amplo - que a crítica de Teixeira Soares me parece mais exe-
gética, do tipo “não foi assim que Marx escreveu e pensou” ;
decididamente, não sou marxista para manter-me nos limites
estritos, ainda que formidavelmente amplos, do que Marx pen
sou. Na melhor tradição do próprio Marx, ele próprio discí
pulo de algumas das mais importantes vertentes do
pensamento ocidental, e nas pistas de Antonio Negri, num de
seus mais importantes livros, sou marxista - eis o jurássico -
para ir “au-delá de Marx” . Além disso, não me incomoda, e
pelo contrário, muito me honra, estar na companhia dos cita
dos por Teixeira Soares. Faltaria fazer a pergunta de Garrincha,
isto é, se Habermas, Offe, Gorz eoutros se sentem confortáveis
com essa companhia? Penso que Teixeira Soares esqueceu-se
de juntar ao grupo Robert Kurz, mas talvez este esteja excluído
do grupo excomungado porque Kurz faz praça da mais rigo
rosa dialética, embora seja bastante claro que ele, sim, aban
donou e rejeita explicitamente o Marx da luta de classes.
Acontece, para adiantar um pouco o argumento anti-Teixeira
Soares, que não me considero fazendo parte do honorável
grupo porque, para mim, a perda da centralidade, para aceitar
o argumento de Teixeira Soares, ela própria é produto do con
flito. Em outras palavras, a perda da centralidade é uma luta
11
12. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
ideológica, produzida no centro do conflito, claríssima nos
tempos de neoliberalismo e globalização, que se dá pela ten
tativa de destruição do fundo público como mecanismo regu
lador do capitalism o. Para tanto, faz-se necessário
“desproletarizar” a sociedade, isto é, borrar o projeto de classe
da face da terra. Não se trata, pois, nem de determinismo
tecnológico, que, de algum modo, mesmo atenuadamente, en
contra abrigo no argumento dos autores citados, nem do con
flito entre o mundo da vida e o mundo sistêmico, ao modo de
Habermas, nem de uma desproíetarização pelo deslocamento
da divisão social do trabalho para os serviços, como em Offe
e em Gorz. Nem muito menos da predominância exclusiva do
“sujeito autônomo” de Kurz, uma espécie de piloto automático
do capitalismo. Este não percebe que a contradição latente na
obra de Marx , que não permite a resolução do problema que
.ele propõe, é entre o “sujeito autônomo” hegeliano e a luta
de classes empírica; esta, como realidade dos homens, perturba
a marcha do espírito, que no fundo é o “sujeito autônomo”
de Kurz, construção inteiramente idealista, por mais que ele
brinque de materialista dialético, como volta a fazê-lo em ar
tigo no Caderno Mais, Folha de S.Paulo, I o de fevereiro de
1998, sobre os cento e cinqüenta anos do O manifesto do
Partido Comunista, de Marx e Engels.
A primeira parte deveria conter, também, uma revisita ao
antivalor, para reavaliá-lo do ponto de vista da hegemonia
neoliberal e dos processos da globalização, que parecem, em
tudo e por tudo, ser o mais cabal desmentido às proposições
centrais do antivalor. Aqui também não terminei ainda esse
tipo de trabalho, que fica prometido também para uma pos
sível segunda edição deste livro, e faz-se necessária e urgente
mesmo se não houver essa segunda chance. A meu modo de
ver, abusando ainda desta introdução, o processo da globali
zação acentua as contradições da forma-valor ao limite do
quase-intransponível, e as sucessivas crises das quais não con
segue sair esse sistema vitorioso, hegemônico e aparentemente
sem negatividade, são as mostras mais aparentes de como a
tentativa neoliberal de desregulação e de destruição das anti-
12
13. INTRODUÇÃO
mercadorias requerem - hélas - o concurso de recursos pú
blicos cujo crivo não é o valor. Em outras palavras, para cons-
truir-se o pretenso mercado auto-regulado, que dispensaria
tudo o mais a não ser os próprios critérios da lucratividade,
faz-se necessário muito Estado, muitos recursos públicos. Tan
to no nível internacional quanto no nível nacional, essa con
tradição salta, cotidianamente, para as páginas dos jornais!
Mas, é evidente que essa antecipação não dá conta de tudo,
questão que pretendemos abordar num futuro bem próximo.
A segunda parte, intitulada A quase-hegemonia muda o
registro do plano mais geral para o plano brasileiro. Ela é
constituída de material sobre as bases materiais e sociais da
dominação burguesa no Brasil, um artigo já antigo sobre os
novos poderes econômicos no Nordeste pós-Sudene, e outro
sobre concentração e centralização industrial em São Paulo.
Os dois foram publicados na Novos Estudos Cebrap, e são
artigos em colaboração com antigos colegas de pesquisa no
Cebrap. Em “A metaformose da arribaçã”, que se refere ao
Nordeste, eu sou o autor principal, enquanto em “ Quem é
quem na indústria paulista”, o autor principal é Alexandre
Comin. Mas, sem roubar nenhuma autoria, não apenas sou
também co-autor do referido artigo, como ele saiu de um pro
jeto desenvolvido no Cebrap sob minha coordenação e, sem
desmedro dos meus colegas, todos reconhecem minha respon
sabilidade na inspiração teórica do projeto de pesquisa e do
artigo. Por isso, o utilizo dentro desta coletânea.
A formação dessas bases sociais que, a meu ver, rompem
com a antiga segmentação das burguesias no Brasil, dariam
lugar à constituição de uma hegemonia burguesa, ausência que
pontua os formidáveis conflitos dos últimos sessenta anos de
desenvolvimento capitalista no Brasil, marcados por 35 anos
de ditadura, e uma freqüência de um golpe, dois bem-sucedi
dos, e os demais não evitados pela reação de forças populares
ou frustrados pela mesma incompletude das rivalidades intra-
burguesas, a cada três anos da história brasileira desde a Re
volução de Trinta. Essa é a história do país “cordial” ! Assumi
durante algum tempo essa hipótese, gramsciana, evidentemen
13
14. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
te, face ao sucesso da ampla coalizão política liderada por
Fernando Henrique Cardoso, unificando do centro para a di
reita, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, cuja base estaria no
“senso comum” das vantagens da estabilidade monetária al
cançada desde a “Regência” Fernando Henrique - na síndrome
de abstinência de Itamar - e que catapultou o presidente de
um quase provável limbo político até a presidência (imperial)
da República. Em outras palavras, em termos gramscianos, a
estabilidade monetária havia construído um amplo consenso
que entre dominantes e dominados, e seria esse consenso que
teria soldado, sobre as bases materiais da ampliação da domi
nação de classe no Brasil, matéria dos dois primeiros artigos-
capítulos, as antigas clivagens burguesas setoriais e regionais.
Essa hipótese é esboçada em entrevista à Folha de S. Paulo,
que é aqui utilizada.
A terceira parte do livro, “Suave é o terror: O neolibera-
lismo termidoriano no Brasil”, diz logo a que vem. Ela é aberta
com artigo publicado também na Novos Estudos Cebrap, ela
borado ainda antes da posse de Fernando Henrique Cardoso
na presidência, em que trato de esboçar o que me parecia,
segundo as indicações fornecidas pelos discursos políticos do
então candidato, pelo confronto durante a campanha eleitoral,
em que a cínica utilização da antiga prepotência de classe foi
ostensiva, pelas medidas já tomadas desde sua “regência” no
Ministério da Fazenda, pelas alianças políticas até a extrema
direita - sim, porque é comum considerar no Brasil a extrema
direita como sendo atributo exclusivo de Paulo Maluf, enquan
to a “ternura” de Antônio Carlos Magalhães o tem posto a
salvo de ser também incluído no lugar que, talvez mais que a
Paulo Maluf, de direito e de fato lhe pertence -, os rumos do
futuro governo. Parece que os fatos não desmentiram as con
jecturas discutidas no artigo. Enfim, trata-se, ao incluí-lo aqui,
não de mostrar quaisquer dotes proféticos, mas de procurar
encontrar a coerência do governo, em lugar de permanecermos
surpresos com a conversão de um antigo intelectual e militante
de esquerda.
14
15. INTRODUÇÃO
Em “Além da hegemonia, aquém da democracia” prepa
rado para um seminário sobre Gramsci no Instituto de Estudos
Avançados da USI^ rebato minha própria entrevista, que consta
da segunda parte, sobre o governo Fernando Henrique Car
doso como expressão da hegemonia burguesa, síntese de um
longo processo de ajustes de contas no interior do bloco do
minante. Minha hipótese, francamente frankfurtiana, é a de
que a burguesia já não trata de integrar os dominados ao seu
próprio campo de significados, mas, ao contrário, o processo
de destituição dos direitos sociais em curso nada tem a ver
com hegemonia, mas com exclusão. Esta tem um sentido forte,
e não apenas economicista, o de inclusão ou exclusão no mer
cado, um feito que, afinal de contas, a burguesia, mesmo que
se pretenda divina, não pode fazer. Porque mesmo o mendigo
mais miserável consome mercadorias. Mas é no campo dos
direitos, do conflito pelos direitos, da negação dos direitos,
que se plasma o que chamei o totalitarismo neoliberal.
“A vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda” texto-
base da conferência magistral proferida, por obra e graça da
generosidade do meu amigo Emir Sader, no XXI Congresso
da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS) e pu
blicado na revista Praga, elabora o que se anuncia no capítulo
anterior. Na verdade, como acontece comumente na elabora
ção de coletâneas, o texto da ALAS e revista Praga é anterior
ao do Instituto de Estudos Avançados, que procurou justificar
teoricamente o abandono da hipótese de hegemonia.
A terceira parte se fecha com um texto publicado em O
livro da profecia, editado pelo Senado Federal sob a presidência
do Senador José Sarney, intitulado “Dominantes e dominados
na perspectiva do milênio: Do Iluminismo para a reação”, no
qual procuro caracterizar o sentido da grande mudança, isto
é, o sentido da história brasileira, desde a Colônia, por sobre
as misérias que o escravismo perpetrou atualizadas, parcial
mente rompidas ou simplesmente reiteradas, num processo
profundamente contraditório, violento, cruel e sangrento, era
conduzido, apesar de tudo, sob o signo do Iluminismo, com
todas as contradições da modernidade fundamente denuncia
15
16. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
das e trabalhadas pela Escola de Frankfurt. “A marca da mal
dade” orsonwelliana é a mudança do sentido da história para
o signo da reação, do conservadorismo. No Brasil, como no
mundo, o que está em jogo é o próprio sentido da civilização.
Este livro, portanto, desde seu título, quer marcar essa
tentativa de ruptura que se opera à nossa vista e que, como
nos sugeriu Bergman, é como o ovo da serpente. Processa-se
transparentemente e, por isso, parece inofensivo. Dá-se pelos
mesmos mecanismos instituticionais formalmente democráti
cos: eleições diretas, alternância, poderes constitucionais in
dependentes. Mas, “suave é o terror” : essa transparência e essa
formalização mascaram o mais formidável ataque às próprias
instituições e aos direitos de que tem notícia a história brasi
leira. Digamos, para insistir no refrão do exagero e, assim, não
decepcionar meus críticos, que ele é mais letal do que o próprio
escravísmo: enquanto este foi a forma pela qual a construção
da mercadoria se elaborava sob as chicotadas mercantis, ins
tituindo regras pelas quais o escravo poderia ultrapassar o es
tatuto da “peça” para ingressar no mundo da mercadoria, ou
coletivamente, pela Abolição, ou individualmente, pelas di
versas formas de alforria, o “suave terror” neoliberal instaura
uma espécie de sociedade de castas, onde os “intocáveis” não
serão os personagens de Brian de Palma, mas todos os desti
tuídos dos direitos. Eles serão “intocáveis” pelos direitos.
Este livro, com toda sua heterogeneidade , incompletude
e mal-balanceamento, sabendo-se “zero à esquerda”, quer ser
parte da luta dos que pretendem barrar o caminho do “suave
terror” e construir uma alternativa democrática, imperfeita.
5. Paulo, fevereiro de 1998.
16
19. O Surgimento do Antivalor
Capital, força de trabalho e fundo público*
Introdução: A crise do Estado-providência
Nas últimas cinco décadas, acelerada e abrangentemente,
o que se chama Welfare State, como conseqüência das políticas
originalmente anticíclicas de teorização keynesiana, consti
tuiu-se no padrão de financiamento público da economia ca
pitalista. Este pode ser sintetizado na sistematização de uma
esfera pública onde, a partir de regras universais e pactadas,
o fundo público, em suas diversas formas, passou a ser o pres
suposto do financiamento da acumulação de capital, de um
lado, e, de outro, do financiamento da reprodução da força
* Publicado em Novos Estudos Cebrap, n° 22, outubro de 1988. Sem a
acolhida, quem sabe até entusiasmada demais, e a crítica de Rodrigo Naves,
José Arthur Giannotti, Roberto Schwarz, Luiz Felipe de Alencastro, Geraldo
Müller, Otacílio Nunes, Carlos Alberto Bello, Elson Luciano Pires e Hélio
Correia Lino, este ensaio não aparecería agora, permanecendo, talvez, numa
longa ruminação, que vem desde uma bolsa de pós-doutoramento patroci
nada pelo CNPq e CNRS em Paris. Para além dos agradecimentos formais
de praxe, meu reconhecimento não pode deixar de ancorar-se nos amigos e
instituições, particularmente, neste caso, minha casa -o CEBRAP-, dispostos
a patrocinar uma discussão que rema contra a maré montante do Moíoch
privatista neoíiberal, o “ai-jesus” de hoje no Brasil, que uma vez mais mostra
como as “idéias podem estar fora do lugar”.
19
20. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
de trabalho, atingindo globalmente toda a população por meio
dos gastos sociais.
A medicina socializada, a educação universal gratuita e
obrigatória, a previdência social, o seguro-desemprego, os sub
sídios para transporte, os benefícios familiares (quotas para
auxílio-habitação, salário família) e, no extremo desse espec
tro, subsídios para o lazer, favorecendo desde as classes médias
até o assalariado de nível mais baixo, são seus exemplos. A
descrição das diversas formas de financiamento para a acumu
lação de capital seria muito mais longa: inclui desde os recursos
para ciência e tecnologia, passa pelos diversos subsídios para
a produção, sustentando a competitividade das exportações,
vai através dos juros subsidiados para setores de ponta, toma
em muitos países a forma de vastos e poderosos setores estatais
produtivos, cristaliza-se numa ampla militarização (as indús
trias e os gastos em armamentos), sustenta a agricultura (o
financiamento dos excedentes agrícolas dos Estados Unidos e
a chamada “Europa Verde” da CEE), e o mercado financeiro
e de capitais através de bancos e/ou fundos estatais, pela uti
lização de ações de empresas estatais como blue chips, intervém
na circulação monetária de excedentes pelo open market, man
tém a valorização dos capitais pela via da dívida pública etc.
A descrição anterior pode ser refutada com a afirmação
de que toda a vasta gama de subsídios e auxílios públicos é
constitutiva do próprio capitalismo, não sendo marca especí
fica do Estado-providência. Mas essa objeção não capta a di
ferença de natureza entre esses dois momentos. De fato, a
formação do sistema capitalista é impensável sem a utilização
de recursos públicos, que em certos casos funcionaram quase
como uma “acumulação primitiva” desde o casamento dos
tesouros reais ou imperiais com banqueiros e mercadores na
expansão colonial até a despossessão das terras dos índios para
cedê-las às grandes ferrovias particulares nos Estados Unidos,
a privatização de bens e propriedades da Igreja desde Henrique
VIII até a Revolução Francesa; e, do outro lado, as diversas
medidas de caráter caritativo para populações pobres, de que
as “Poors Houses” são bem o exemplo no caso inglês. Contra
20
21. O SURGIMENTO 1)0 ANTIVAI.OK
esse caráter pontual, que dependia ocasionalmente da força e
da pressão de grupos específicos, o financiamento público con
temporâneo tornou-se abrangente, estável e marcado por re
gras assentidas pelos principais grupos sociais e políticos.
Criou-se, como já se assinalou, uma esfera pública ou um mer
cado institucionalmente regulado.
Entretanto, a mudança mais recente das relações do fundo
público com os capitais particulares e com a reprodução da
força de trabalho representa uma “revolução copernicana”.
Para resumir uma tese que se desdobrará ao longo deste ensaio,
o fundo público é agora um ex-ante das condições de repro
dução de cada capital particular e das condições de vida, em
lugar de seu caráter ex-post, típico do capitalismo concorren
cial. Ele é a referência pressuposta principal, que no jargão de
hoje sinaliza as possibilidades da reprodução. Ele existe “ em
abstrato” -antes de existir de fato: essa “revolução copernicana”
foi antecipada por Keynes, ainda que a teorização keynesiana
se dirigisse à conjuntura. A per-equação da formação da taxa
de lucro passa pelo fundo público, o que o torna um compo
nente estrutural insubstituível.
Do lado da reprodução da força de trabalho, a ascensão
do financiamento público não foi menos importante. “As des
pesas públicas, destinadas à educação, à saúde, pensões e ou
tros programas de garantia de recursos aumentaram, durante
os vinte últimos anos no conjunto dos países da OCDE, quase
duas vezes mais rapidamente do que o PIB, e elas foram o
elemento dominante no crescimento das despesas públicas to
tais: desde 1960, elas passaram, no conjunto dos sete maiores
países da OCDE, de cerca de 14% a mais de 24% do PIB”
(“Dépenses sociales: érosion ou evolution?”, UObservateur de
1’OCDE, n° 126, janvier 1984, OCDE, Paris, trad. do autor).
Essa média resultou de evoluções, país por país, de 19% para
26% na República Federal da Alemanha, de 16% para 25%
na França, de 16% para 23% na Itália, de 16% para 30% na
Holanda, de 16% para 28% na Bélgica; entre 1969 e 1981,
de 18% para 27% na Dinamarca e de 15% para 22% na In
glaterra. Entre 1965 e 1981, as despesas sociais públicas, como
21
22. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
porcentagem da renda disponível domiciliar, passaram de 28%
para 46% na República Federal da Alemanha, de 24% para
42% na Holanda, de 25% para 33% na França, de 22% para
27% na Itália, de 22% para 33% na Bélgica e, na Inglaterra,
entre 1969 e 1981, de 24% para 33%. Quer dizer que em sete
grandes países industrializados, nata do Primeiro Mundo, com
exceção dos Estados Unidos e do Japão, o salário indireto tem
uma importância, em relação ao salário direto (assimilando a
renda domiciliar a este conceito), que vai de um mínimo de
33% ao máximo de 45%, até o último ano para o qual se
dispõe de dados (Ch. André, “Les evolutions spécifiques des
diverses composants du salaire indirect à travers de la crise”,
Critiques de EÉconomie Politique, h. 26-27, janvier-juin, 1984,
Paris). Aliás, a transferência para o financiamento público de
parcelas da reprodução da força de trabalho é uma tendência
histórica de longo prazo no sistema capitalista; a expulsão
desses custos do “custo interno de produção” e sua transfor
mação em socialização dos custos foi mesmo, em algumas so
ciedades nacionais, uma parte do percurso necessário para a
constituição do trabalho abstrato; nas grandes economias e
sociedades capitalistas contemporâneas, o Japão parece ser a
única exceção a esse respeito, no momento de decolagem da
industrialização japonesa, e, pelo menos, até há muito pouco
tempo: o específico “exército cativo de mão-de-obra” ligado
a cada empresa - pelo menos às grandes empresas - parece
um caso insólito na tradição capitalista.
O crescimento do salário indireto, nas proporções assina
ladas, transformou-se em liberação do salário direto ou da
renda domiciliar disponível para alimentar o consumo de mas
sa. O crescimento dos mercados, especialmente do de bens de
consumo duráveis, teve, portanto, como uma de suas alavancas
importantes, o comportamento já assinalado das despesas so
ciais públicas ou do salário indireto. Modificações dessa monta
no rapport salariel são, pois, como tem sido repetidamente
assinalado pelos autores da corrente teórica da regulação (MÍ-
chel Aglietta, Robert Boyer, Alain Lipietz, entre outros), fato
res dos mais importantes no longo período de expansão, que
22
23. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
vai desde os fins da II Guerra Mundial até hoje. Noutras pa
lavras, para a ascensão do consumo de massa, combinaram-se
de uma forma extraordinária o progresso técnico, a organiza
ção fordista da produção, os enormes ganhos de produtividade
e o salário indireto, estes dois últimos fatores compondo o
rapport salariel. A presença dos fundos públicos, pelo lado,
desta vez, da reprodução da força de trabalho e dos gastos
sociais públicos gérais, é estrutural ao capitalismo contempo
râneo, e, até prova em contrário, insubstituível.
O padrão de financiamento público do Estado-providên-
cia é o responsável pelo continuado déficit público nos grandes
países industrializados. E este padrão que está em crise, e o
termo “padrão de financiamento público” é preferível aos ter
mos usualmente utilizados no debate, tais como “estatização”
e “ intervenção estatal” . O primeiro destes últimos leva a supor
que a propriedade é crescentemente estatal, o que está muito
longe do real, e o segundo induz a pensar-se numa intervenção
de fora para dentro, escamoteando o lugar estrutural e insubs
tituível dos fundos públicos na articulação dos vetores da ex
pansão econômica. Uma série de 1971 a 1985 (International
Financial Statistics - Yearbook 1987. International Monetary
Fund, Washington) mostra que o déficit público nos países
industrializados (incluindo EUA, Canadá, Austrália, Japão,
Nova Zelândia, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Fran
ça, Alemanha Federal, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda,
Noruega, Espanha, Suécia, Suíça e Inglaterra), cresceu, média
desses países, de 2,07% do PIB em 1972 para 4,93% do PIB
em 1984. Os Estados Unidos situaram-se na média, enquanto
outros países, como Canadá, Nova Zelândia, Bélgica, Irlanda,
Itália, Holanda e Suécia ultrapassaram a média entre uma e
três vezes. E interessante notar que a média do déficit público
como porcentagem do PIB foi geralmente dos mesmos valores
em quase todas as partes do mundo, por grupos de países, o
que sugere que as internacionalizações produtiva e financeira
estão obrigando praticamente todos os países a adotarem o
padrão de financiamento público do Estado-providência.
23
24. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
A crise do Estado-providência - e o termo freqüentemente
é mais associado à produção de bens sociais públicos e menos
à presença dos fundos públicos na estruturação da reprodução
do capital, revelando pois um indisfarçável acento ideológico
na crítica à crise - tem levado à “crise fiscal do Estado” nos
termos de James 0 ’Connor (The Fiscal Crisis of the State. St.
Martin’s Press, New York, 1973) devido à disputa entre fundos
públicos destinados à reprodução do capital e fundos que fi
nanciam a produção de bens e serviços sociais públicos; ou,
na versão de Lester Thurow, a um impasse ricardiano, jogo de
soma zero, em que “o que um perde é o que o outro ganha”
(The Zero-Sum Society. Basic Books, New York, 1981).
As receitas dos governos centrais como porcentagem do
PIB têm se elevado sistematicamente desde níveis de 23% em
1971 a 27% em 1984 (International Financial Statistics- Year-
book 1987, IMF) para o conjunto dos países industrializados,
com os níveis máximos de 45,1% na Bélgica, 42,23% na Fran
ça, 43,1% na Irlanda, 40,8% na Itália, 52,2% na Holanda,
42,8% na Noruega e 41,4% na Suécia. Paradoxalmente, paí
ses mais potentes como os Estados Unidos estão num nível
de 30%, a Alemanha Federal situa-se em 29% e a Inglaterra
em 38,1% , esses últimos dados referindo-se a 1984. Os gas
tos dos governos centrais situam-se, média do conjunto dos
países mais industrializados, acima de 1/3 do PIB, de novo
com uma grande heterogeneidade, ressaltando-se que os Es
tados Unidos mantêm-se em torno da média. Não há dados
para o Japão, tanto no que se refere às receitas governamen
tais quanto às despesas.
Ao lado do déficit público e das receitas e despesas estatais
como proporção do PIB - pelo menos 1/3 dos PlBs mais im
portantes transitam pelos tesouros nacionais -, as proporções
e o lugar da dívida pública dos principais países confirmam o
lugar estrutural do fundo público na sociabilidade geral. Nos
últimos anos, de 1982 a 1986, variando de país a país, segundo
o último dado disponível nas International Financial Statistics
(1987, IMF), nos níveis mais baixos da dívida pública interna
e externa como porcentagem do PIB agrupavam-se países
24
25. O SURGIMENTO DO ANTIVAI.OK
como Bélgica (10,2%) e Suíça (11,6% ); no patamar imediata
mente posterior, países como a Alemanha Federal (20,6%) e
França (22,7%); no patamar posterior, países como Suécia
(56,6%), Flolanda (55,5%), EUA (43,4%), Inglaterra (47,8%)
e Japão (53,8%); nos níveis máximos, países como Nova Ze
lândia (73,1%) e Itália (81,2%), Flá, pois, uma razoável dis
persão, mas importa notar que países da talha dos EUA, Japão,
Inglaterra, Holanda e Suécia situaram-se num patamar em que
a dívida pública corresponde à metade de seus produtos inter
nos brutos. Salvo Alemanha Federal, França e Suíça, que se
situam nos segundo e primeiro níveis anteriormente descritos,
os países em que a dívida é metade do PIB são, indiscutivel
mente, as mais notáveis lideranças industriais, tecnológicas e
financeiras do capitalismo contemporâneo. A Suíça é reconhe
cidamente uma exceção, pela concentração de recursos finan
ceiros de outros países no seu sistema bancário e financeiro.
Ainda que não perfeita, há uma indisfarçáveí relação entre a
dívida pública dos países mais importantes, suas posições no
sistema capitalista e suas dinâmicas.
O argumento da direita é que essa estatização dos resulta
dos da produção social levaria a uma espécie de socialismo
burocrático e estacionário, diminuindo, de um lado, os recur
sos privados destinados ao investimento e, de outro, pela ele
vação da carga fiscal sobre pessoas e famílias, diminuindo a
propensão para o consumo; utilizando-se o esquema keyne-
siano da depressão da demanda efetiva tanto por parte das
empresas quanto das famílias, a estatização dos resultados da
produção social teria tudo para conduzir o capitalismo a um
estado estacionário, congruente com a previsão estagnacionis-
ta da maioria dos clássicos da economia, sobretudo Smith,
mais resolutamente Ricardo e secundariamente Stuart Mill.
O coração do impasse ricardiano de Thurow ou da “crise
fiscal” de 0 ’Connor - e as versões da direita são menos teo
rizadas, salvo Hayek - não é de nenhum modo uma tendência
estagnacionista. E apenas e esse apenas é muito forte, a ex
pressão da abrangência da socialização da produção, num sis
tema que continua tendo como pedra angular a apropriação
25
26. OS DIREITOS DO ANT1VALOR
privada dos resultados da produção social. Mas, de certo
modo, ela expressa também a retração da base social da ex
ploração, em termos marxistas, questão que será desdobrada
mais adiante.
O rompimento do círculo perfeito do Estado-providência,
em termos keynesianos, é devido, em primeira instância, à
internacionalização produtiva e financeira da economia capi
talista. A regulação keynesiana funcionou enquanto a repro
dução do capital, os aumentos de produtividade, a elevação
do salário real, se circunscreveram aos limites - relativos, por
certo da territorialidade nacional dos processos de interação
daqueles componentes da renda e do produto. Deve-se assi
nalar, desde logo, que aquela circuiàridade foi possível graças
ao padrão de financiamento público do Welfare State, um dos
fatores, entre outros aliás, que levaram à crescente internacio
nalização. Ultrapassados certos limites, a internacionalização
produtiva e financeira dissolveu relativamente a circularidade
nacional dos processos de retro-alimentação. Pois des-territo-
rializam-se o investimento, e a renda, mas o padrão de finan
ciamento público do Welfare State não pôde - nem pode, até
agora - des-territorializar-se. Em outras palavras, a circulari
dade anterior pressupunha ganhos fiscais correspondentes ao
investimento e à renda que o fundo público articulava e finan
ciava; a crescente internacionalização retirou parte dos ganhos
fiscais, mas deixou aos fundos públicos nacionais a tarefa de
continuar articulando e financiando a reprodução do capital
e da força de trabalho. Daí que, nos limites nacionais de cada
uma das principais potências industriais desenvolvidas, a crise
fiscal ou “o que um ganha é o que o outro perde” emergiu na
deterioração das receitas fiscais e parafiscais (previdência so
cial, por exemplo), levando ao déficit público. O anterior fica
muito claro quando se pensa numa multinacional com antenas
em vários países: o país-sede original não é contemplado com
retornos fiscais e parafiscais proporcionais ao investimento e
renda (inclusive salários) gerados alhures por filiais das mul
tinacionais, enquanto o financiamento público que tenta arti
cular a demanda efetiva continua circunscrito a sua territo-
26
27. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
rialidade. Em países como os Estados Unidos, certas atividades
das multinacionais, substituindo suas próprias produções in
ternas, deixam ao fundo público nacional os encargos de fi
nanciar a reprodução do capital e da força de trabalho (y
compris o seguro-desemprego), o que gera uma crescente in
compatibilidade entre o padrão de financiamento público e a
internacionalização produtiva e financeira. Nasceu exatamen
te dos países em que essa performance de suas próprias mul
tinacionais é mais acabada, Estados Unidos e Inglaterra, a
reação conservadora contra o Estado-providência, pondo o
acento nos gastos estatais para a produção de bens e serviços
sociais públicos. A reação Thatcher e Reagan, que, procurando
cortar ou diminuir a carga fiscal e parafiscai (impostos e pre
vidência social), fiou-se num comportamento neovitoriano de
empresas e famílias, utilizando - presumia-se - o alívio daque
las cargas para fazer voltar à tona o impulso de investimento
e o consumo privados.
O fundo teórico da crise
O padrão de financiamento público do Welfare State
operou uma verdadeira “ revolução copernicana” nos fun
damentos da categoria do valor como nervo central tanto
da reprodução do capital quanto da força de trabalho. No
fundo, levado às últimas conseqüências, o padrão do finan
ciamento público “implodiu” o valor como único pressu
posto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o
parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da
sociabilidade em geral.
Na medida em que o padrão de financiamento público
constituiu-se em uma verdadeira esfera pública, as regras da
reprodução tornaram-se mais estáveis porque previsíveis, e da
competição anárquica emergiu uma competição segmentada.
Por certo, não deixou de haver competição no capitalismo,
mas essa se dá dentro de regras preestabeleddas e consensuais.
Essa universalização tem efeitos paradoxais, segmentando a
27
28. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
competição em pelo menos dois níveis; o primeiro, o circuito
dos oligopólios, e o segundo, o circuito dos capitais competi
tivos. A rigor, o fundo público é um Ersatz do capital finan
ceiro, indo além da teorização proposta por Hilferding.
Na forma dos títulos públicos e dos vários tipos de incen
tivos e subsídios, é o fundo público que agiliza a circulação
do capital, e em muitos casos cumpre o papel da famosa
ponte invisível keynesiana entre quem poupa e quem inves
te. Essa função demarca um setor oligopolista e um setor
concorrencial “ primitivo” (que não tem acesso ao fundo
público) na tradição teórica de Labini. Do ponto de vista da
teoria marxista, dissolveu-se a tendência à formação de uma
taxa média de lucro, para dar lugar, no mínimo, a duas taxas
médias: a do setor oligopolista e a do setor concorrencial
“ primitivo” . E o fundo público é decisivo na formação da
taxa média de lucro do setor oligopolista, e pelo negativo,
pela sua ausência, na manutenção de capitais e capitalistas
no circuito do setor concorrencial “primitivo” .
Imbricando-se diretamente na determinação da taxa mé
dia de lucro do setor oligopolista, o fundo público influi de
cisivamente, através de outros recortes, sobre a taxa de lucro
de setores inteiros e até de ramos especiais da reprodução no
interior do setor oligopolista. Recortes como “prioridades na
cionais de segurança”, “pesquisa de ponta”, “ programas espe
ciais de produção”, e inúmeros outros, tais como a sustentação
de produções agrícolas excedentárias, transformaram mais
uma vez a competição segmentada. O papel do fundo público
como pressuposto especial dessa segmentação retirou o capital
constante e o variável da função de parâmetro-pressuposto, e
colocou em seu lugar a relação de cada capital em particular
com o próprio fundo público. Em outras palavras, a taxa de
lucro de setores de ponta como a aeronáutica, as atividades
industriais espaciais, a informática, tem que se referir simul
taneamente aos seus próprios capitais e à fração dos fundos
públicos utilizados para sua reprodução; isto tem um efeito
paradoxal, pois enquanto aumenta a taxa de lucro de cada
capital em particular (pois na equação particular a fração do
28
29. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
fundo público utilizada não tem remuneração ou quando a
tem é francamente subestimada) diminui a taxa de excedente
global da economia.
A rigor, trata-se de uma relação ad hoc entre o fundo pú
blico e cada capital em particular. Essa relação ad hoc leva o
fundo público a comportar-se como um anticapital num sen
tido muito importante: essa contradição entre um fundo pú
blico que não é valor e sua função de sustentação do capital
destrói o caráter auto-reflexivo do valor, central na constitui
ção do sistema capitalista enquanto sistema de valorização do
valor. O valor, não somente enquanto categoria central, mas
práxis do sistema, não pode, agora, reportar-se apenas a si
mesmo: ele tem que necessariamente reportar-se a outros com
ponentes; no caso, o fundo público, sem o que ele perde a
capacidade de proceder à sua própria valorização. O fato de
que, finalmente, a mesma expressão monetária recubra o in
terior dessa contradição, apresentando-a externamente como
uma unidade, não deve levar a enganos: trata-se, no caso, da
“indiferença da moeda do banco central”, que expressa apenas
uma relação entre devedores e credores, subsumindo nesta a
moeda como expressão do tempo de trabalho médio social
mente necessário.
Do lado da reprodução da força de trabalho, que toma a
forma do financiamento público de bens e serviços sociais pú
blicos extensivos na prática à maioria da população, as políti
cas anticíclicas aceleradas e universalizadas - a rigor, a
social-democracia alemã e inglesa, e mesmo o Front Populaire
francês de 1936 e o New Deal rooseveltiano as precederam a
partir do fim da II Guerra Mundial foram no sentido da cres
cente participação do salário indireto no salário total. Esses
bens e serviços funcionaram, na verdade, como antimercado-
rias sociais, pois sua finalidade não é a de gerar lucros, nem
mediante sua ação dá-se a extração da mais-valia. Dizer, como
a maior parte da crítica marxista tem dito, que contribuem
para aumentar a produtividade do trabalho, é quase um truís-
mo, posto que qualquer gasto de bem-estar deve potencial
mente melhorar as condições de vida.
29
30. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
A questão teórica que se põe vai mais longe: recuperan
do-se Sraffa (Production of Commodities by Means of Com-
modities) é possível dizer que o salário - mercadoria-padrão
para Sraffa - agora data, determina a produção de um sem-
número de bens e serviços públicos sociais, e vai mais além,
atingindo mesmo a produção de bens e serviços explorados
privadamente. De fato, indexando os benefícios sociais ao sa
lário, o que se está fazendo é tornar o salário o parâmetro
básico da produção de bens e serviços sociais públicos. Isto é
o oposto da extração da mais-valia e, conseqüentemente, em
sua derivação, da determinação da taxa de lucro, onde os pa
râmetros não apenas do cálculo mas da razão da mais-valia
residem na relação capital constaiite-capital variável. Se to
marmos qualquer dos bens e serviços financiados e/ou produ
zidos pelo fundo público, ver-se-á que seu preço é determinado
como uma quota-parte do salário: isto é, a tarifa de um serviço
público como o metrô é calculada tendo-se como referência
uma parte do salário destinada a gastos de transporte. E, em
muitos casos, na fixação de preços de bens básicos produzidos
pelo próprio setor privado, o que se tem em vista é que seu
preço represente uma certa porcentagem dos gastos dos orça
mentos familiares.
A dialética instaurada pela função do fundo público na
reprodução do capital e da força de trabalho levou a inusitados
desdobramentos. Há, teoricamente, uma tendência à des-mer- ,
cantilização da força de trabalho pelo fato de' que os compo
nentes de sua reprodução representados pelo salário indireto
são antimercadortas sociais. De um lado, isto representou uma
certa homogeneização do mercado e do preço da força de
trabalho, levando à autonomização do capital constante, de
que já falava Belluzzo (“A transfiguração crítica”, in Estudos
CEBRÁP n. 24), e desatando, por sua vez, a reprodução do
capital das amarras de uma antiga dialética em que as inovações
técnicas se davam, sobretudo, como reação aos aumentos do
salário direto real. A brecha para a inovação técnica, despara-
metrizada do salário real total, posto que este agora tem no
salário indireto um componente não desprezível - no mínimo
30
31. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
um terço do salário total deslanchou um processo de ino
vações tecnológicas sem paralelo.
E simultânea a dupla operação de presença do fundo pú
blico na reprodução da força de trabalho e do capital; não se
pode, neste caso, buscar resolver o velho enigma da precedên
cia “da galinha ou do ovo”, mas o fato é que houve uma dupla
des-parametrização; tanto em relação ao valor ou preço da
força de trabalho quanto em relação aos valores dos capitais
originais, o capital se move agora numa relação em que o preço
da força de trabalho é indiferente do ponto de vista das ino
vações técnicas e o parâmetro pelo qual se mede a valorização
do capital é agora um mix, em que o fundo público não entra
como valor. A contradição, pois, é que se assiste a uma elevação
da rentabilidade, ou das taxas de retorno dos capitais, gerando
a enorme solvabilidade e liquidez dos setores privados, en
quanto o próprio fundo público dá visíveis mostras de exaus
tão como padrão privilegiado da forma de expansão capitalista
desde os fins da II Guerra Mundial.
Nesse rastro, inclusive as predições de pauperização, en
tendida absoluta ou relativamente, não se confirmaram. O que
se assiste é uma expansão do consumo de todas as classes nos
países mais desenvolvidos, e uma renovada e inusitada expan
são do investimento. É por essa razão que os esquemas key-
nesianos já não são capazes de explicar os fenômenos con
temporâneos, comprimidos entre as tenazes de uma oposição
entre propensão para consumir e propensão para poupar (ou
investir); sem incluir o fundo público em sua autonomia rela
tiva, o esquema keynesiano tende a perder sua capacidade
paradigmática. O que torna o fundo público estrutural e in
substituível no processo de acumulação de capital, atuando
nas duas pontas de sua constituição, é que sua mediação é
absolutamente necessária pelo fato de que, tendo desatado o
capital de suas determinações autovalorizáveis, detonou um
agigantamento das forças produtivas de tal forma que o lucro
capitalista é absolutamente insuficiente para dar forma, con
cretizar, as novas possibilidades de progresso técnico abertas.
Isto somente se torna possível apropriando parcelas crescentes
31
32. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
da riqueza pública em geral, ou mais especificamente, os re
cursos públicos que tomam a forma estatal nas economias e
sociedades capitalistas. A massa de valor em mãos dos capita
listas, sob a forma de lucro, de cuja abundância a circulação
monetária contemporânea é a expressão, não deve iludir: ape
sar da enorme liquidez, essa massa de valor é absolutamente
insuficiente para plasmar as novas possibilidades abertas em
acumulação de capital concreta.
O resultado desse longo processo é que o fundo público
passou a vincular-se a finalidades determinadas aprioristica-
mente, e ainda mais, pouco tem a ver com a taxa de lucro
original de cada capital. A rigor, é a partir da alocação de uma
parcela do fundo público que a taxa de retorno ou seu equi
valente, a taxa de lucro, é calculada. Concebido como instru
mento anticíclico, tornado permanente e insubstituível, essa
rigidez do fundo público escapa às regulações nacionalmente
territorializadas, Ela torna relativamente inócuas as políticas
econômicas em muitos aspectos, dando lugar à soberania das
políticas monetárias - e neste caso, apenas as de alguns países
- posto que a indiferença da moeda (Aglietta e Orléans. La
violence de la monnaie. PUF, Paris) do banco central é, no
fundo, a única abrangência que cobre tanto o setor de econo
mia de mercado quanto o setor hors marché (a economia pú
blica de bens e serviços sociais); e cobre precisamente porque,
em não sendo mais a moeda a expressão do tempo de trabalho
socialmente necessário - erodida nessa função pelo anticapital
e pela antimercadoria -, terminou por ser apenas a expressão
monetária - mas não necessariamente de valor - de uma rela
ção entre credores e devedores.
Um desdobramento teórico particular ao campo marxista
Em termos marxistas, a função do fundo público tende a
desfazer os conceitos e realidades do capital e da força de
trabalho, esta última enquanto mercadoria, ou nos termos de
Sraffa, a mercadoria-padrão, que determina o valor e o preço
32
33. 0 SURGIMENTO DO ANTIVA1.0R
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de qualquer outra (relevados os problemas da conversão de
valor em preços, que aliás com o fundo público tornam-se
praticamente intraduzíveis). A equação original de Marx é a
de D-M-D’ no que se refere ao circuito do capital-dinheiro.
O fundo público funcionando como pressuposto geral de cada
capital em particular transforma essa equação em anti-D-D-
M-D!(-D), sendo que o último termo volta a repor-se no início
da equação como anti-D, isto é, uma quantidade de moeda
que não se põe como valor. O último termo é uma quantidade
de moeda que tem como oposição interna a fração do fundo
público presente nos resultados da produção social, que se
expressa em moeda, mas não é dinheiro.
Do ponto de vista do circuito da mercadoria, a equação
original de Marx era a de M-D-M, e o fundo público como
estrutura imbricante transforma a equação para anti-M-M-D-
M’ (-anti-M), na qual os dois primeiros termos significam as
antimercadorias e as mercadorias propriamente ditas, e os dòis
últimos significam a produção de mercadorias e a produção
de antimercadorias. No fundo, a segunda equação fica subsu-
mida na primeira. As conseqüências teóricas dessa transfor
mação vão se expressar na composição do capital e na taxa de
exploração. A composição do produto, na equação C +V +M ,
sofre a seguinte transformação: -C+C+V(-V)+M , na qual a
taxa de mais-valia se reduz pela presença, na equação, das
antimercadorias sociais que funcionam como um Ersatz do
capital variável. Isto quer dizer que na equação geral do pro
duto, a taxa de mais-valia cai, enquanto na equação de cada
capital particular ela pode, e geralmente deve, se elevar.
Essa transformação repõe o problema, clássico na teoria
marxista, da tendência declinante da taxa de lucro. De fato,
em perspectiva estatística, procurando medir-se o aumento do
capital constante e o declínio do capital variável a partir da
soma dos capitais particulares, chega-se a uma incógnita sem
solução. Porque de fato já não se pode realizar teoricamente
essa soma. Tanto o capital constante não pode ser uma soma
dos capitais particulares, pois aí existe uma oposição operada
pelo fundo público para viabilizar aacumulação de cada capital
34. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
em particular, quanto não se pode mais medir o capital variável
sem considerar o salário indireto como uma forma oposta ao
salário direto (por isso, na equação transformada, o segundo
V tem sinal negativo). A diferença desta postulação com a
“queima de excedentes” da formulação teórica do capitalismo
monopolista de Estado, é que o fundo público não é capital,
não podendo, senão nominalmente, senão monetariamente,
ser identificado com ele; além disso, o fundo público não opera
como tendência contrarrestante à queda da taxa de lucro: de
fato, ele é uma expressão dela, e sua necessidade estrutural
insubstituível não se dá porque o capitalismo esgotou as pos
sibilidades de acumulação; ao contrário, o fundo público com
parece como viabilizador da concretização das oportunidades
de expansão, em face da insuficiência do lucro frente ao avas-
salador progresso técnico. Em suma, já não se pode falar mais
de “capital social total”, mas apenas de “capital em geral”. A
conseqüência teóríca mais profunda é que a lei da tendência
declinante da taxa de lucro se afirma pela retração da base
social global de exploração, enquanto, se tomarmos a velha
fórmula em seu sentido original, a base social de exploração
se ampliaria (se somássemos as antimercadorias com o salário
real direto), o que tornaria o patadigma da tendência decli
nante inteiramente inócuo. Nos termos de Kuhn, o poder ex
plicativo do paradigma teria perdido toda sua potência, e por
conseqüência ameaçaria o corpo teórico marxista por inteiro
(Thornas Kuhn. A estrutura das revoluções científicas. Perspec
tiva, São Paulo).
O caminho percorrido pelo sistema capitalista, e particu
larmente as transformações operadas pelo Welfare State, repõe
a velha questão dos limites do sistema. A famosa previsão de
Marx do fim do sistema foi lida literalmente, e interpretada
comumente como uma catástrofe ao estilo de Sansão derru
bando as colunas do templo. Ora, a história do desenvolvi
mento capitalista tem mostrado, com especial ênfase depois
do Welfare State, que os limites do sistema capitalista só podem
estar na negação de suas categorias reais, o capital e a força
de trabalho. Neste sentido, a função do fundo público no tra-
34
35. O SURGIMENTO DO ANT1VALOR
vejamento estrutural do sistema tem muito mais a ver com os
limites do capitalismo, como um desdobramento de suas pró
prias contradições internas. Dizendo em outras palavras, as
transformações mais importantes do sistema capitalista se
dão no coração, no núcleo duro das mais importantes eco
nomias capitalistas. O fundo público, em resumo, é o anti-
valor, menos no sentido de que o sistema não mais produz
valor, e mais no sentido de que os pressupostos da reprodu
ção do valor contêm, em si mesmos, os elementos mais fun
damentais de sua negação. Afinal, o que se vislumbra com
a emergência do antivalor é a capacidade de passar-se a outra
fase, em que a produção do valor, ou de seu substituto, a
produção do excedente social, toma novas formas. E essas
novas formas, para relembrar a asserção clássica, aparecem
não como desvios do sistema capitalista, mas como necessi
dade de sua lógica interna de expansão.
Permanece, no campo marxista, uma interrogação sobre
o fetiche da mercadoria. O percurso teórico até aqui sumari-
zado tem, como necessidade intrínseca de seu desdobramento,
a anulação do fetiche da mercadoria, se esta categoria está se
desfazendo no sistema capitalista; principalmente se a força
de trabalho está se desvestindo das determinações da merca
doria. De fato, a des-mercantilização da força de trabalho ope
ra no sentido da anulação do fetiche: cada vez mais, a
remuneração da força de trabalho é transparente, no sentido
de que seus componentes são não apenas conhecidos, mas
determinados politicamente. Tal é a natureza dos gastos sociais
que compõem o salário indireto, e a luta política se trava para
fazer corresponder a cada item do consumo uma partida cor
respondente dos gastos sociais. Não há fetiche, neste sentido;
sabe-se agora exatamente do que é composta a reprodução
social. Ou, em outras palavras, a fração do trabalho não-pago,
fonte da mais-valia, se reduz socialmente. Mas, parecería iro
nia dizer que o mundo contemporâneo é completamente des-
fetichizado, pois a sociedade de massas parece a fetichização
elevada à enésima potência. Pode-se, apenas, sugerir que no
lugar do fetiche da mercadoria colocou-se um fetiche do Es
35
36. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
tado, que é finaímente o lugar onde se opera a viabilidade da
continuação da exploração da força de trabalho, por um lado,
e de sua des-mercantilizaçao, por outro, escondendo agora o
fato de que o capital é completamente social.
Importa também observar que o Estado de bem-estar e
suas,instituições não são, agora, o “horizonte intransponível” ;
para além dele bate, latente, um modo social de produção
superior. Resta resolver um problema, intacto, que é o da apro
priação dos resultados desse modo social; por enquanto, a
capacidade de reprodução desatada pela atuação do fundo
público leva água ao moinho dos proprietários de capital,
numa situação em que este mesmo capital já é fundamental
mente socializado. Isto posto, a constituição das classes sociais
também não atingiu nenhum umbral intransponível; não há
uma “eternização” nem das classes nem das relações sociais.
Mas, decididamente, o acesso e o manejo do fundo público
são o nec plus ultra das formas sociais do futuro.
O que de fato se transformou foi a relação social de pro
dução; na literatura marxista, a relação social de produção foi
ganhando cada vez mais uma conotação restritiva, que termi
nou por assumir como essência aquilo que para Marx era apa
rência (o salário como ocultação da apropriação pelos
capitalistas do valor de uso do trabalho que a força de trabalho
tem). Dessa forma, sobretudo após a crítica leninista da so-
cial-democracia e da derrocada desta à época do fascismo, o
problema da transformação do capitalismo em socialismo ti
nha como condição prévia a derrocada da relação social de
produção em sentido restrito, quase no sentido de relação de
fábrica.
Mas a relação social de produção não se mede apenas nem
pela presença do salário nem da propriedade privada; ela in
clui, além disso, todas as esferas necessárias para a reprodução
do capital, como a circulação, a distribuição e o consumo,
além da esfera da produção. A “revolução copernicana” da
relação social de produção, antevista pela social-democracia
alemã de antes do nazismo - o renascimento político da so
cial-democracia não produziu nenhuma nova perspectiva dos
36
37. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
problemas teóricos principais - é a presença do fundo público
na reprodução simultânea do capital e da força de trabalho.
O bloqueio leninista, baseado no próprio Marx - ver a Critica
ao Programa de Gotha - relegou para um segundo plano quais
quer outras mudanças na relação gíobal-social da produção.
Ora, o desenvolvimento do Welfare State é justamente a revo
lução nas condições de distribuição e consumo, do lado da
força de trabalho, e das condições de circulação, do lado do
capital. Os gastos sociais públicos mudaram as condições da
distribuição dentro de uma relação social de produção que
parecia ter permanecido a mesma; o fundo público como fi
nanciador, articulador e “capital em geral” mudou as condi
ções da circulação de capitais, Estas transformações penetram
agora a esfera da produção pela via da reposição do capital e
da força de trabalho, transformados nas outras esferas. E, no
sentido de Giannotti (Trabalho e reflexão, sobretudo o capítulo
“Formas da sociabilidade capitalista”), a sociabilidade não se
constrói, apenas, pela projeção sobre os outros setores da vida
social dos valores do mercado, mas pelo contrário, tem nos
valores antimercado um de seus traços principais. Em outras
palavras, no terreno .marcadamente da cultura, da saúde, da
educação, são critérios antimercado os que fundamentam os
direitos modernos. E verdade que nestes tempos de reação
conservadora, em que parece ser o mercado, de novo, o único
critério válido, tal posição tem tudo para parecer romântica
ou fora da realidade.
Esfera pública e democracia
Mais que uma coincidência, a construção de uma esfera
pública, que é igual à “economia de mercado sociaímente re
gulada” (termo cunhado pela social-democracia alemã de antes
da ascensão do nazismo) identificou-se ou se ergueu sobre as
bases da regulação keynesiana. Esta esfera pública é, nos países
capitalistas, sinônimo da democracia, simultânea ou concomi
tante, e ao longo do tempo os avanços sociais que mapeavam
37
38. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
o acesso e a utilização do fundo público entraram num pro
cesso de interação com a consolidação de instituições políticas
democráticas. Para todos os efeitos, pode-se considerar a cons
trução da esfera pública e a democracia representativa como
irmãs siamesas.
Muitos críticos do Welfare State têm observado que, no
fundo, a resultante foram bastiões corporativistas, com cada
uma das classes sociais ou grupos específicos defendendo fe
rozmente seus interesses, que não se espraiam para os outros,
confinando a gestão do Estado e dos interesses sociais a guetos
particulares, a partir dos quais políticas de caráter geral tor
nam-se impossíveis. A direita vai mais longe, e aponta os di
reitos lato sensu trabalhistas como obstáculos ao investimento
e à acumulação. Trata-se de uma visão conservadora, que re
vela a aspiração de uma des-regulação total, a volta às práticas
de uma acumulação selvagem e o retorno das classes sociais,
neste caso os assalariados, à mera condição de pura força de
trabalho. Interpretações mais ingênuas vêem nas instituições
do Welfare State a harmonia total, a desaparição das classes
sociais, enquanto as interpretações mais pessimistas, vindas
estas sobretudo da esquerda comunista, viram nas instituições
e práticas da esfera pública e nas políticas do Welfare State
apenas a cooptação de largas parcelas do operariado e a anu
lação de seu potencial revolucionário. Um esquerdismo infan
til impenitente julga que no fundo a educação pública, a saúde
pública, a previdência social e outras instituições estruturado-
ras das relações sociais são apenas uma ilusão e contribuem
para reproduzir o capital.
O Estado de bem-estar não deixou, por isso, de ser um
Estado classista, isto é, um instrumento poderoso para a do
minação de classe. Mas está muito longe de repetir apenas o
Estado “comitê executivo da burguesia” da concepção original
de Marx, explorada a fundo por Lênin. Trata-se, agora, na
verdade, de um Estado que Poulantzas chamou de “conden
sação das lutas de classe”. Utilizando-se uma metáfora entre
o jogo de xadrez e o jogo de damas, pode-se dizer que o Es-
tado-providência é um espaço de lutas de classe, onde os ter
38
39. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
ritórios de cada peça - no caso, de cada direito - são previa
mente mapeados e hierarquizados, isto é, não se trata de um
campo isomorfo e isônomo. Os adversários sabem que ao in
vadirem determinada área, onde a hierarquia da dama, da torre
ou do cavalo é dada, a luta de classes consiste em buscar al
ternativas que anulem a posição previamente hierarquizada,
e o poder de fogo, das peças mais importantes. Somente entre
neófitos é que o jogo - ou a luta de classes - pode arrasar
impunemente o poder de cada peça previamente estabelecido.
Nas palavras de Przeworski, trata-se de um jogo de “ incertezas
previsíveis” . Ao contrário, o jogo de damas, onde a hierarquia
das peças é completamente horizontal - ea obtenção de “peças
coroadas” é o corolário dessa homogeneização - qualquer peça
do mesmo valor pode varrer completamente toda a formação
dejogo do adversário. A metáfora do xadrez serve para colocar
em pé o que é característico da construção da esfera pública:
a construção e o reconhecimento da alteridade, do outro, do
terreno indevassável de seus direitos, a partir dos quais se es
truturam as relações sociais. Enquanto em sociedades sem es
fera pública o jogo de damas é a metáfora mais pertinente: nos
Estados de mal-estar, com uma penada, o governo pode reduzir
salários, aumentar impostos a seu bel-prazer, confiscar bens -
mesmo os da burguesia.
A estruturação da esfera pública, mesmo nos limites do
Estado classista, nega à burguesia a propriedade do Estado e
sua dominação exclusiva. Ela permite, dentro dos limites das
“incertezas previsíveis” , avanços sobre terrenos antes santuá
rios sagrados de outras classes ou interesses, à condição de que
isto se passe através de uma re-estruturaçao da própria esfera
pública, nunca de sua destruição. Representa, de um ponto de
vista mais alto e mais abstrato, o fato de que agora “os homens
fazem a história e sabem por que a fazem” . E uma negação
dos automatismos do mercado e de sua perversa tendência à
concentração e à exclusão. E, apesar da descrença teórica nas
ciências sociais da existência de sujeitos - o que é, na verdade,
uma pobre confusão nascida da multiplicidade de sujeitos que
a própria estruturação da esfera pública permite e requer -, o
39
40. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
resultado surpreendente é que a esfera pública e a democracia
contemporânea afirmam, de forma mais peremptória que em
qualquer outra época da história, a existência dos sujeitos po
líticos e a prevalência de seus interesses sobre a pura lógica do
mercado e do capital.
A construção de uma esfera pública confunde-se com a
plenitude da democracia representativa nas sociedades mais
desenvolvidas, não só porque ela mapeia todas as áreas con-
flitivas da reprodução social; isto equivalería apenas a estender
ou projetar as regras das relações privadas aumaárea soi-disant
pública. O que é fundamental na constituição da esfera pública
e na consolidação democrática que lhe é simultânea, é que esse
mapeamento decorre do imbricamento do fundo público na
reprodução social em todos os sentidos, mas sobretudo crian
do medidas que medem o próprio imbricamento acima das
relações privadas. A tarefa da esfera pública é, pois, a de criar
medidas, tendo como pressupostos as diversas necessidades da
reprodução social, em todos os sentidos. Não é mais a valori
zação do valor per se: é a necessidade, por exemplo, da repro
dução do capital em setores que, por sua própria lógica, talvez
não tivessem capacidade de reproduzir-se. Necessidades que
podem ser de vários tipos, como já foi citado anteriormente:
desenvolvimento científico e tecnológico, defesa nacional, são
das mais comuns, ou, tal como nos oferece hoje o exemplo da
luta contra a Aids, necessidades sociais em escala mais ampla
que não podem depender unicamente da autocapacidade de
nenhum capital especial. Na área da reprodução da força de
trabalho, tais necessidades também se impõem: não se trata
agora de prover educação apenas para transformar a popula
ção em força de trabalho; são necessidades que são definidas
aprioristicamente como relevantes em si mesmas; que elas ter
minem servindo, direta ou indiretamente, para o aumento da
produtividade não dissolve o fato principal, que é o de que,
agora, aquele aumento da produtividade que pode ser seu re
sultado não é mais seu pressuposto.
Qual é a relação dessa esfera pública assim constituída com
a democracia representativa? Existe nessa constituição uma
40
41. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
transformação das relações entre as classes sociais; não é que
agora as classes sociais se subsumam no Estado, anulando a
velha irredutibilidade entre Estado e sociedade civil, que, des
de Hegel, é a grande revolução burguesa. O ponto essencial é
que as relações entre as classes sociais não são mais relações
que buscam a anulação da alteridade, mas somente se perfazem
numa perequação - mediada pelo fundo público -, em que a
possibilidade da defesa de interesses privados requer desde o
início o reconhecimento de que os outros interesses não apenas
são legítimos, mas necessários para a reprodução social em
escala ampla. A democracia representativa é o espaço institu
cional no qual, além das classes e grupos diretamente interes
sados, intervém outras classes e grupos, constituindo o terreno
do público, do que estkacima do privado. São, pois, condições
necessárias e suficientes. Neste sentido, longe da desaparição
das classes sociais, tanto a esfera pública como seu corolário,
a democracia representativa, afirmam as classes sociais como
expressões coletivas e sujeitos da história. Para tomar um caso
concreto, quando alguma necessidade mais alta se coloca,
como no caso de desativar certos setores industriais, as em
presas não podem simplesmente despedir seus trabalhadores
e empregados: essa operação é necessariamente precedida de
negociações que visam a responder à pergunta de como salva
guardar os empregos e a renda daqueles que estão nos setores
a serem desativados. O exemplo recente da Itália, onde fortes
centrais sindicais consentiram em desindexar a curva dos sa
lários da curva da inflação, mostra bem esse caso. "
Assim redefinidas as relações entre as classes, a capacidade
ile representação elevou-se notavelmente, e como seqüência,
<
>papel e a função dos partidos políticos. Não émais necessário
que os partidos se identifiquem, pelas suas origens sociais, com
terras classes sociais: o que é absolutamente necessário é que
des se identifiquem com tais ou quais modos de processar essa
relação social de preservação da alteridade. Por este processo,
e possível pois falar tanto de partidos de esquerda quanto de
direita, sem que isso remeta apenas a uma base social marca-
damcnte classista; mesmo assim, na história ocidental, os par
41
42. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
tidos que melhor processam a gestão dessa relação são noto
riamente partidos cuja origem foi marcadamente classista.
Tanto na organização da esfera pública quanto na da de
mocracia representativa, a função intermediadora do fundo
público alterou as relações entre as classes e deu lugar à am
pliação e fixação das funções das classes médias. E notável que
estas, contemporaneamente, são radicalmente novas, tendo
apenas um longínquo parentesco com a pequeno-burguesia,
sua matriz original. Como classe social, sua inserção geral na
matriz das relações sociais de produção do sistema capitalista
abrange uma série infindável de posições, que seria fastidioso
enumerar. Mas sua natureza de classe se demarca em relação
às outras, o operariado e a burguesia, pela fundação de sua
irredutibiíidade na relação social de produção; isto é, ela não
pode ser substituída nem técnica nem socialmente por nenhu
ma outra; ela não é intercambiável, o que é característico,
também, das outras classes sociais. Emergindo ao longo de um
imenso pano de fundo histórico, tendo como matriz original
a clássica separação entre produtores e meios de produção, ela
se especificou no decorrer dos processos do Welfare State
como a classe cuja “propriedade” reside na gestão da articula
ção entre o público e o privado; seus interesses não têm cor
respondência com os das outras classes sociais, mas nem por
isso deixam de ser reais. O processo de constituição da esfera
pública especificou essas funções de forma ainda mais radical:
para operar a articulação entre o público e o privado, foi ne
cessária a constituição de um grupo social especial, que se
converte em classe exatamente sem interesses dos tipos que
caracterizam as classes sociais clássicas, o proletariado e a bur
guesia. Isto não as torna “classes bonapartistas”, pois a cons
tituição da esfera pública exatamente demarca também seu
campo de atuação.
Esse longo processo instaurou novos modos de repre
sentação. Agora não se trata de uma representação que se arma
a partirapenas de interesses como pressupostos, mas sobretudo
como resultados. Em termos rousseaunianos, não éda vontade
geral que se trata, mas da articulação de pontos específicos
42
43. O SURGIMENTO DO ANTIVA1.0R
capazes de traçar a trajetória do resultado a ser obtido. E as
classes médias se constituem num desses pontos, ou em mais
de um, sem o que o resultado a ser obtido não tem condições
de ser projetado. Daí sua enorme importância nos partidos
políticos modernos. Essas classes médias modernas superam,
inclusive, o antigo lugar da burocracia. Esta sempre foi um
agente técnico da razão de Estado; as condições da regulação
contemporânea, fundamentalmente perpassada e estruturada
pelo fundo público, diluem uma única razão de Estado, subs
tituindo-a pelas razões particulares que ligam o fundo público
a cada movimento ou a cada capital, ou a cada condição es
pecífica da reprodução social, incluindo-se aí a reprodução da
força de trabalho e a sociabilidade geral. A burocracia continua
a existir, por certo, mas ela não mais constitui um agente téc
nico à parte, senão que se inclui por inteiro nas classes médias.
A crise da crise
A formalização das novas relações sociais de produção nas
instituições do Welfare State politizou a relação do fundo pú
blico com cada segmento da reprodução social. Trata-se, em
concreto, de uma relação adboc, cujo único pressuposto geral
é o fundo público em “abstrato”. Transportado para a esfera
pública, esse ad boc parece-se com um super-Estado ou Estado
máximo; a rigor, bem observado, o que há é uma miríade de
arenas de confronto e negociação, onde o aparente Estado
máximo se converte num Estado mínimo, emaranhado no pró
prio tecido das novas relações; se bem que, para a determina
ção abstrata do resultado geral, o fundo público seja aquele
pressuposto unificador, a obtenção dos resultados particulares
tem no mesmo fundo público apenas uma dentre outras de
terminações. Num terreno assim mapeado e esquadrinhado,
a autonomia do Estado relativiza-se cada vez mais, e está a
léguas de distância do suposto Estado Moloch, denunciado
pela direita.
43
44. I
L L
OS DIREITOS DO ANTIVALOR
A crítica da direita e a passagem à ação, na linha das po
líticas thatcheristas e reaganianas, dirige-se aparentemente ao
Estado Moloch, mas seu objetivo é dissolver as arenas especí
ficas de confronto e negociação, para deixar o espaço aberto
a um Estado mínimo, livre de todas as peias estabelecidas a
nível de cada arena específica da reprodução social. Trata-se
de uma verdadeira regressão, pois o que é tentado é a manu
tenção do fundo público como pressuposto apenas para o ca
pital: não se trata, como o discurso da díreita pretende
difundir, de reduzir o Estado em todas as arenas, mas apenas
naquelas onde a institucionalização da alteridade se opõe a
uma progressão do tipo “mal infinito” do capital. E típico da
reação thatcherista e reaganiana o ataque aos gastos sociais
públicos que intervém na nova determinação das relações so
ciais de produção, enquanto o fundo público aprofunda seu
lugar como pressuposto do capital; veja-se a irredutibilidade
da dívida pública nos grandes países capitalistas, financiando
as frentes de ponta da terceira revolução industrial.
A nova dinâmica da economia parte dessa nova situação.
Sem controles institucionais, a nova dinâmica pode exacerbar
o que é uma das características do oligopólio: a ereção de
barreiras à competição, entre as quais se inclui a não-difusão
como “mancha-de-óleo” do progresso técnico (Sylos Labini.
Oligopólio e progresso técnico. Forense - José Arthur Gian-
notti. Trabalho e reflexão. Brasiliense). Essas barreiras não ape
nas impedirão a regulação da concorrência entre os capitais,
mas em última análise podem seccionar o mercado de força
de trabalho em duas áreas irremediavelmente separadas, cru
zando-se como navios em silêncio. O efeito mais perverso se
dará, finalmente, na estrutura de rendas e salários, restabele
cendo uma dualidade que o próprio sistema capitalista há mui
to dissolveu.
O dramático é que essa possibilidade está inscrita na pró
pria forma mediante a qual o fundo público modificou o mer
cado de força de trabalho. Pois, pela relação salários dire-
tos/salários indiretos, a ação do fundo público homogeneizou
a estrutura do próprio salário direto num leque muito estreito.
44
45. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
Esta é a base que permitirá, por exemplo, a unificação quase
total do Mercado Comum Europeu, pois, tanto em nível do
salário indireto (gastos sociais públicos como porcentagem do
PIB e gastos sociais públicos como porcentagem da renda fa
miliar disponível) quanto em nível do próprio salário direto,
a estrutura de rendas e salários é mais homogênea do que em
qualquer dos outros grandes blocos econômico-sociais mun
diais. Isto não deve levar a pensar que o desenvolvimento ca
pitalista realizou a promessa igualitária. E inegável que o leque
de rendas e salários estreitou-se, mas assim mesmo as diferen
ças permanecem enormes: os dados disponíveis no Compen-
dium ofIncoming Distribution Statistics, ONU, 1985, mostram
que em 1979 a distância entre os 20% mais pobres da popu
lação e os 20% mais ricos, na Inglaterra, era de 5,67 vezes;
para a Bélgica, em 1979, era de 4,56 vezes; para a Itália, em
1977, de 7,08 vezes; para a Suíça, em 1978, de 5,76 vezes;
para a Holanda, em 1981, de 4,36 vezes; para a Suécia, em
1981, de 5,64 vezes; para o Japão, em 1979, de 4,31 vezes;
para os EUA, em 1980, de 7,53 vezes; para o Canadá, em
198 1, de 7,55 vezes; e, finalmente, para a França, em 1985,
de 7,67 vezes (Denis Clerc. “Première des injustices: Les
disparités de revenus” , Le Monde Diplomatique, juiílet
1988, Paris). Resta considerar ainda que a complexa articu
lação entre salários diretos e salários indiretos, tendo em
conta especialmente aqui o seguro-desemprego, tornou in-
compresstvel para baixo, ou inelástico à oferta de emprego,
o próprio salário direto. A nova dinâmica pode tomar essa
nova estrutura como um dado, um patamar a partir do-qual
tenta estabelecer novas diferenciações.
A baixa generalizada da taxa de sindicalização nos EUA e
na Europa parece que, entre os países mais importantes, a
Suécia é uma importante exceção -, um efeito não previsto da
nova estrutura de renda e salários pode desguarnecer os fronts
onde se trava, permanentemente, o conflito pela regulação
institucional do fundo público. A desestruturação dos grandes
sindicatos de trabalhadores é um dado tomado em conta pela
ofensiva da direita thatcherista e reaganiana. Isto pode levar
45
46. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
à desarticulação da alteridade, que é a condição primordial
para aquela regulação.
O ataque da direita aos gastos sociais públicos propõe,
outra vez, em lugar do Welfare State, o Estado caritativo ou
assistencialista. Tentando destruir a relação do fundo público
com a estrutura de salários, a correção das desigualdades e dos
bolsões de pobreza - que nos EUA já são imensos - será deixada
à caridade pública ou a uma ação estatal evasiva e eventual.
Isto é o melhor dos panoramas, pois convém não deixar de
pensar no pior, que seria uma mescla altamente perigosa de
assistencialismo e repressão.
Na crise atual, que re-define a própria crise do Welfare
State, a direita não propõe o desmantelamento total da função
do fundo público como antivalor. O que ela propõe é a des
truição da regulação institucional com a supressão das alteri-
dades entre os sujeitos sócio-econômico-políticos. A
privatização que ocorre na Inglaterra e a reprivatização ocor
rida na França durante o predomínio da direita, não são equi
valentes à desmontagem do suporte do fundo público à
acumulação de capital; pois essa relação estrutural não pode
ser desfeita, à condição de completa anulação da possibilidade
de reprodução ampliada do capital. Não se retirou o fundo
público como fundo geral para pesquisa e desenvolvimento
tecnológico; não se retirou o Estado como comprador quase
oligopsônico da indústria armamentista; sequer se retiraram
os andaimes da relação do fundo público com a estrutura de
rendas e salários. Apesar de toda a retórica, as políticas that-
cherista e reaganiana continuam a seguir os passos, de forma
tatibitate, de uma política keynesiana emsentido amplo. Quase
toda a política fiscal, e mais ainda, a política monetária, não
se libertou daquela ampla moldagem. Que o digam a persis
tência dos enormes déficits da economia norte-americana.
Dois pontos estão em xeque nessa ampla conjuntura. A
tese neoliberal é que, nesse passo, a ultrafiscalidade do Estado,
mantidos os controles institucionais do Welfare State, pode
ter chegado a limites que ameacem a acumulação de capital,
tolhendo as possibilidades de crescimento. O que está emjogo,
46
47. O SURGIMENTO DO ANTIVALOR
na aparência da ultrafiscalidade, é que o capitalismo pós-Wel-
fare State, por meio do fundo público, desatou umacapacidade
de inovações que não podem ser postas a serviço da produção
financiadas apenas pelo lucro; exigem e puncionam parcelas
crescentes do fundo público. Neste sentido, se reatualiza o
limite previsto por Marx para o sistema capitalista:o limite do
capital é o próprio capital. Mas essa voracidade não pode ser
deixada entregue a si mesma, sem controles públicos, sob pena
de transformar-se numa tormenta selvagem na qual sucumbi-
riam juntos a democracia e o sentido de igualdade nela inscrito
desde os tempos modernos. Não deve escapar à observação
que, em países como os EUA, o tamanho crescente da pobreza
já é um risco real nesse sentido.
A crise abala os fundamentos da democracia moderna. O
sistema representativo corre o risco de ser transformado numa
democracia de interesses, com mandato imperativo. Em mui
tas condições, a democracia de interesses já atua no interior
do sistema representativo mais amplo. A profusão de lobbies
é sua expressão. Levado à sua expressão ultramontana, o Es
tado pode se converter, realmente, num Estado completamen
te subordinado ao capital, o que seria uma homenagem a
Marx, vinda de seus mais ferrenhos adversários e detratores.
Por esse caminho, as relações se inverteríam: em lugar do Es
tado como organizador da incerteza da base, da infra-estrutura
em linguagem marxista, haveria uma base organizando o Es
tado, que se transformaria na mais brutal imagem-espelho do
banquete dos ricos e do despojo de todos os não-proprietários.
Nao existe fórmula feita nem acabada para solucionar a
crise. Não se trata de uma mera crise conjuntural. Trata-se, na
verdade, de levar às últimas conseqüências a verdadeira “re
volução copernicana” operada nas relações sociais de produ
ção neste século, sobretudo depois da II Grande Guerra. Ao
contrário das teses da direita, o pós-Welfare State consiste em
demarcar, de maneira cada vez mais clara e pertinente, os lu
gares de utilização e distribuição da riqueza pública, tornada
possível pelo próprio desenvolvimento do capitalismo sob
condições de uma forma transformada de luta de classes.
47
48. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
Quando todas as formas de utilização do fundo público esti
verem demarcadas e submetidas a controles institucionais, que
não é o equivalente ao superior-Estado ou ao Estado máximo,
então o Estado realmente se transformará no Estado mínimo.
Trata-se da estrutura de um novo modo de produção em sen
tido amplo, de uma forma de produção do excedente que não
tem mais o valor como estruturante. Mas os valores de cada
grupo social, dialogando soberanamente. Na tradição clássica,
é a porta para o socialismo.
48
49. A Economia Política da social-democracia*
O fundo público é um conceito construído para a investi
gação dos processos peíos quais o capitalismo perdeu sua ca
pacidade auto-regulatória; ao mesmo tempo, ele tem a
pretensão de sintetizar o complexo que tomou o lugar da auto-
regulação. No período mais recente da história das tentativas
de explicar essa perda, nas mãos e pela ótica liberal e neolibe-
ral, ela decorrería de uma “intervenção” estatal, que geralmen
te não ultrapassa o estágio descritivo, e não se alça, pois, a um
estatuto teórico-conceituai. A esquerda, mais precisamente a
marxista, deu muito mais importância à questão, procurando
teorizar num nível mais alto; o que não quer dizer que os
resultados tenham sido satisfatórios. O termo composto “in
tervenção estatal” é um pseudoconceito, que funciona como
panacéia. A sua simples enundação, tudo parece revelar-se, e
um processo dos mais complexos é acometido de reducionis-
*Artigo publicado na Revista USP, n. 17, mar-mai. 1993, p. 136-143. Este
texto corresponde à aula preparada como prova de erudição no Concurso
para Professor-titular da cadeira de Sociologia, do Departamento de Socio
logia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, prestado pelo autor em 19 de outubro de 1992. Ele se beneficia
tias críticas e observações dos eminentes professores membros da banca,
Manoel Corrêa de Andrade, Roberto Schwarz, Fernando Henrique Cardoso,
Paul Singer e José Reginaldo Prandi, aos quais este artigo é dedicado. Nunca
será demais agradecer suas presenças.
49
50. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
mo empobrecedor que, de resto, denuncia sua matriz ideoló
gica. Pois postula imediatamente um estatuto de exterioridade
entre o Estado e a economia, que não é o reconhecimento da
radical separação entre o Estado e sociedade, metodologica-
mente correto e ideologicamente salutar. A proposição de ex
terioridade funciona desde logo no sentido de atribuir ao
Estado intencionalidade efinalidade econômicas próprias, ine
rentes e imanentes (uma formulação insolitamente estranha à
própria doutrina liberal). Em seu favor, poder-se-Ía pensar es
tar-se em presença de uma radical atualização do liberalismo,
o que significaria que as evidências sobre as transformações
do Estado não teriam atravessado o território da doutrina li
beral, deixando-a incólume, ao custo de deixá-la incapaz.
Mas a crítica neoliberal significa que o Estado transfor
mou-se num agente econômico com a mesma racionalidade
dos agentes privados, com o que a diferença qualitativa da
“ intervenção” perde todo sentido e eficácia. De que serviria
uma “intervenção” de um agente igual aos outros? Como con
seguiría ele escapar seja às determinações ou aos azares dos
ciclos de negócios? Apenas pelo tamanho? Mas existem em
presas que têm o tamanho “econômico” de Estados, e as maio
res empresas multinacionais manejam recursos superiores aos
da grande maioria dos Estados latino-americanos, asiáticos e
africanos. Mas mesmo Estados fracos são qualitativamente di
ferentes de uma empresa. A “intervenção” é eficaz, em pri
meiro lugar, porque em que pese a extraordinária trans
formação do Estado no século XX, sua radical separação com
relação à sociedade permanece (sendo o contrário também
verdadeiro of coursé) e é isso que a torna qualitativamente
diferente e imune aos azares dos negócios privados; sua racio
nalidade é de outro nível, formada por outros elementos e
sujeita a outras determinações e contradições. Este é o núcleo
da proposição keynesiana, que a tornou revolucionária.
O processo real que se dá não é de uma “intervenção”,
posto que não é tópico nem casual? Trata-se da extrapolação
dos espaços privados ou, dizendo de outro modo, da insufi
ciência da esfera privada para tramitar e processar novas rela-
50
51. A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA
ÇÕes sociais que, por essa razão, vê-se metamorfoseada em
esfera pública. A dialética do processo resulta em que ele é
urdido para assegurar os interesses privados, mas só o pode
fazer, somente se torna eficaz, se éles se transformam em in
teresses gerais, públicos. Não há, portanto, ao contrário do
que afirma a denúncia liberal e neoliberal, interesse do Estado
senão na medida em que este aparece como uma instância
necessária da publicização.
Por outro lado, a crítica de esquerda, particularmente a
crítica marxista ortodoxa, tampouco foi muito feliz ao inter
pretar a nova relação entre o Estado e a economia no capita
lismo contemporâneo, A esquerda não-marxista não logrou
sequer pensar a questão; sobretudo a sodal-democracia, na
verdade a grande parteira prática da nova relação, não a ela
borou teoricamente. Mais recentemente os trabalhos na linha
de Offe, Przerworski, Wallerstein, Gosta Esping-Andersen, tal
vez Habermas, para citar um pequeno e brilhante conjunto de
tóricos que se têm debruçado sobre o Welfare State (apenas
exemplares de uma vasta bibliografia, e discordantes entre si),
voltaram-se decididamente para preencher a lacuna que o va
zio social-democrata estava deixando quase irreparável. Mas
a maioria deles, como Offe e Habermas, talvez demasiada
mente tarde, assinala mais os limites do Welfare e anuncia uma
sociabilidade não estruturada sobre o trabalho, a morte do
trabalho, do que teoriza, propriamente, sobre a social-demo-
cracia. Przerworski, Wallerstein e Esping-Andersen, por outro
lado, pertencem a outra linhagem. Dedícam-se a uma cuida
dosa análise do Welfare e da social-democracia, estabelecem
tipologias, vêem seus limites, mas não os teorizam como for
mas diferentes do capitalismo; é isto que diz até o título do
conhecido livro de Przerworski.
Voltando à crítica do marxismo ortodoxo, este cometeu
equívocos mais ou menos simétricos aos da crítica liberal à
nova relação entre o Estado e o capitalismo. A mais articulada
foi proposta na forma da teoria do capitalismo monopolista
de Estado, que é um desdobramento, uma atualização e um
avanço sobre a teoria do imperialismo de Lênin. Resumida-
S1
52. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
mente, a crítica do CME incidiu num erro similar ao dos li
berais - mas com sinal trocado quando atribuiu ao Estado,
na fusão do capitalismo monopolista, o mesmo sentido, a mes
ma direção e a mesma lógica que a dos capitais privados, anu
lando, pois, a radical diferença entre Estado e economia e, no
fundo, entre Estado e sociedade. Em lugar da “intervenção”
liberal, a crítica marxista construiu o paradigma da unicidade
monolítica entre Estado e capitais monopolistas, isto é, a su
bordinação total do Estado ou, teoricamente, uma estranha
desnecessidade de um Estado que se fazia necessário para com
portar-se exatamente como os capitais privados.
Essa fusão entre Estado e capitais monopolistas não resiste
tanto à crítica sobre a indiferença que estabelece quanto àquela
voltada ao próprio conceito de monopólio. Este dificilmente
se sustenta no terreno do marxismo, pelas dificuldades que
cria no terreno da teoria da taxa média de lucro. A escola do
Capitalismo monopolista de Estado não pôde ultrapassar, nem
abandonar, o teorema da taxa média, porque permaneceu -
ou melhor, tinha necessidade de - no terreno da mercadoria,
sem o que sua própria teorização sobre a fusão entre Estado
e capitais monopolistas perderia todo e qualquer sentido. O
conceito de monopólio, se pretende dizer mais do que a evi
dência do crescimento do tamanho das empresas e do controle
por poucos grupos de ramos inteiros da produção, esbarra
definitivamente com o teorema da taxa média de lucro, que é
central para a dinâmica do capitalismo enquanto modo de
produção a partir da mercadoria. A literatura sobre a matéria
é abundante, e mais recentemente um excelente artigo de Alt-
vater na História do Marxismo a resumiu de forma exemplar.
Mas o CME não pôde superar o teorema da taxa média, que
requer, para tanto, uma superação da própria teoria do fetiche
da mercadoria, porque a teoria do CME necessitava dela para
demonstrar que o sistema seguia sendo capitalista, explorador
de mais-valia, portanto de uma parte de trabalho nao-pago,
cuja “ magia” reside na utilização ilimitada do valor de uso da
própria mercadoria força de trabalho.
)
53. A ECONOMIA POLÍTICA DA SOCIAL-DEMOCRACIA
O conceito de fundo público tenta trabalhar essa nova
relação na sua contraditoriedade. Ele não é, portanto, a ex
pressão apenas de recursos estatais destinados a sustentar ou
financiar a acumulação de capital; ele é um mix que se forma
dialetícamente e representa na mesma unidade, contém na
mesma unidade, no mesmo movimento, a razão do Estado,
que é sociopolítica, ou pública, se quisermos, e a razão dos
capitais, que é privada. O fundo público, portanto, busca ex
plicar a constituição, a formação de uma nova sustentação da
produção e da reprodução do valor, introduzindo, mixando,
na mesma unidade, a forma valor e o antivalor, isto é, um valor
que busca a mais-valia e o lucro, euma outra fração, que chamo
antivalor, que por não buscar valorizar-se per se, pois não é
capital, ao juntar-se ao capital, sustenta o processo de valori
zação do valor. Mas só pode fazer isso com a condição de que
ele mesmo não seja capital, para escapar, por sua vez, às de
terminações da forma mercadoria e às insuficiências do lucro
enquanto sustentação da reprodução ampliada. A metáfora
que usaria vem da física: o antivalor é uma partícula de carga
oposta que, no movimento de colisão com a outra partícula,
o valor, produz o átomo, isto é, o novo' excedente social.
O processo de produção desse movimento, que busco con
ceituar no fundo público, é o processo da luta de classes. Mas
é também o de seu deslocamento da esfera das relações priva
das para uma esfera pública ou, dizendo de outra forma, o da
transformação das classes sociais de privadas para classes so
ciais públicas. O que se quer dizer com isso? Seria mais fácil
dizer que há um deslocamento da luta de classes da esfera da
produção, do chão da fábrica ou das oficinas ou ainda dos
escritórios, para o orçamento do Estado. Mas, não apenas de
fato, mas teoricamente, não é isso que se passa, pois tanto para
que exista o fundo público quanto para que o processo de
publicização das classes sociais se dê, é absolutamente neces
sário que também continue a luta de classe na esfera da pro
dução ou, se quisermos dizer, no confronto imediato e direto
entre empregado e patrão, O fundo público só existe esomente
se sustenta como conseqüência da publicização das classes so
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54. OS DIREITOS DO ANTIVALOR
ciais, do deslocamento da luta de classes da esfera das relações
privadas para a das relações públicas: ele é uma espécie de
suma de todas essas transformações, as quais têm que ser re
novadas quotidianamente, sob pena de ele perder sua eficácia.
Evidentemente, a publicização, ou o processo desse desloca
mento, não é aleatória, conjuntural, e construiu suas institui
ções, as quais são, na maior parte dos casos, as instituições do
Estado de bem-estar.
Entretanto, as classes sociais, seus contornos, parecem de
saparecer. Offe, Habermas ou Giannotti (para citar os mais
rigorosos de uma vasta bibliografia, que incluiria também os
que deram “adeus”ao proletariado) anunciam o fim da socie
dade do trabalho, o que quer dizer o fim da sociedade de
classes. Ou, fukuianamente, embora os desagrade, o fim da
história, Minha interpretação é que ocorre, de fato, que, pa
rodiando Habermas, o máximo de publicização possível pa
rece privatizar tudo. Mas esta é uma ilusão da aparência, posto
que as classes sociais saíram de seus invólucros anteriores, pri
vados, e não são percebidas como públicas. Mas, quanto mais
parecem desaparecer do campo da visibilidade do confronto
privado, tanto mais são requeridas como atores da regulação
publica. Isto não é um paradoxo, mas a contradição das classes
sociais hodiernas, que é, também, a mesma do fundo público.
As conseqüências ou, dizendo de outro modo, as transfor
mações na esfera pública e no Estado, ao mesmo tempo causa
e efeito do mesmo processo, são extremamente relevantes. A
esfera pública aqui não é mais uma esfera pública burguesa:
mas, da mesma forma como a entrada da classe trabalhadora
na disputa eleitoral redefiniu a democracia, com o que as an
tigas desconfianças marxistas em relação à democracia perde
ram todo o sentido, também uma esfera pública burguesa,
penetrada por um fundo público que é o espaço do desloca
mento das relações privadas, deixa de ser apenas uma esfera
pública burguesa. Assim, de novo parafraseando Habermas,
no máximo de intransparência é possível distinguir, nitida
mente, a esfera pública, redefinida dessa forma, da esfera pri
vada. E isso, por exemplo, que torna possível uma campanha
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