1) A autora pediu uma "nega maluca" para a Páscoa e foi repreendida por sua professora por usar esse termo.
2) Ela discute como as palavras usadas para descrever deficiências e minorias têm mudado para ser politicamente corretas, mas de uma forma exagerada e falsa.
3) A autora questiona como deve se referir a sua própria etnia de descendência portuguesa e italiana nesse contexto de novas palavras politicamente corretas.
1. Carta de uma lusoitaliana
Quando tia Elnice me perguntou o que eu queria ganhar de Páscoa,
não hesitei em responder: “uma nega maluca!”. Desde que fui
apresentada a este doce, não mais peço outra coisa para a tia, que
faz de uma forma tão especialmente gostosa quanto o bairro inteiro
jamais provou igual! Pois antes mesmo de a ressurreição de Cristo ter
sido anunciada no calendário, fui condenada pela professora da
faculdade, ao relatar meu diálogo com a tia Nice, como é chamada lá
em casa.
Recebi advertência por ter sido flagrada cometendo o que para ela
soou como pecado, leviandade ou difamação. Talvez tudo isso junto,
incrementado por ódio no coração de alguém – não do meu. O
Andrade já havia comentado comigo, mas dei de ombros para a prosa
dele na época. Aconteceu em maio de 2006: quando o pai dele
chamou ao cego de cego, foi repreendido por uma turma de meninas
e rapazes, desses que parecem se reproduzir das telas de TV. Não
sei se me fiz clara: o pai do Andrade chamou de cego o cego.
Disseram a ele, em uníssono: “- Deficiente visual”. Surpreso, o pai do
Andrade, que sofre de miopia, pensou “de onde me conhecem?”.
De uns tempos pra cá, o cult é ser um tanto quanto exageradamente
bondoso com o outro, ou melhor, é ser falsamente caridoso com a
desgraça alheia. Palavras bonitas pipocam, em alusão a doenças que
existiam desde o tempo em que ser educado era tão somente
respeitar – e não cortejar – o próximo. Virou elegante falar em
“portador de necessidades especiais” e, antes mesmo que se reflita o
que exatamente a expressão quer dizer, abre-se um sorriso, como se
estivesse ouvindo a nona sinfonia de Bethoven. Isso sem falar nas
condições dos deficientes físicos que foram elevados ao nível de
“cadeirantes”. Já não sei mais o que responder quando o
oftalmologista questiona sobre minhas queixas. Não sou cega, porém
2. tenho grande deficiência visual. Ou será que quase sete graus de
astigmatismo também já foram premiados com um vocábulo
espetacularmente erudito e nulo, no holl dos eufemismos patológicos?
Não sei como se foi chegar a esse patamar, em que negros não
podem ser assim chamados, como se o nome da raça fosse ofensa.
Não sei como me referir à minha própria condição, já que descendo
de portugueses e italianos. Uma vez que se fala em
“afrodescendentes”, devo, então, ser chamada de lusoitaliana?
O curso da vida que deveria seguir normalmente ficou mais
complicado, como se já não fosse tortuoso o caminho de quem
precisa andar de cadeira de rodas, ou tenha cegueiras, deficiências
mentais ou psicológicas. Negam-se tais circunstâncias por meio de
palavras dissimuladas. Na próxima Páscoa, espero que a tia Nice
compreenda quando eu disser: “quero uma afrodescendente
portadora de necessidades especiais, tia!”.