Carta de uma lusoitaliana reflete sobre mudanças linguísticas
1. Carta de uma lusoitaliana
Quando tia Elnice me perguntou o que eu queria ganhar de Páscoa,
não hesitei em responder: “uma nega maluca!”. Desde que fui
apresentada a este doce, não mais peço outra coisa para a tia, que
faz de uma forma tão especialmente gostosa quanto o bairro inteiro
jamais provou igual! Pois antes mesmo de a ressurreição de Cristo ter
sido anunciada no calendário, fui condenada pela professora da
faculdade, ao relatar meu diálogo com a tia Nice, como é chamada lá
em casa.
Recebi advertência por ter sido flagrada cometendo o que para ela
soou como pecado ou difamação. O Andrade já havia comentado
comigo, mas dei de ombros para a prosa dele na época. Foi em maio
de 2006: quando o pai dele chamou ao cego de cego, foi repreendido
por uma turma de meninas e rapazes, desses que parecem se
reproduzir das telas de TV. Não sei se me fiz clara: o pai do Andrade
chamou de cego o cego. Disseram a ele, em uníssono: “- Deficiente
visual”. Surpreso, o pai do Andrade, que sofre de miopia, pensou “de
onde me conhecem?”.
De uns tempos pra cá, o cult é ser um tanto quanto exageradamente
bondoso com o outro – é ser falsamente caridoso com a desgraça
alheia. Palavras bonitas pipocam, em alusão a doenças que existiam
desde o tempo em que ser educado era tão somente respeitar – e
não cortejar – o próximo. Virou elegante falar em “portador de
necessidades especiais” e, antes mesmo que se reflita o que
exatamente diz a expressão, abre-se um sorriso, como se estivesse
ouvindo a nona sinfonia de Bethoven. Isso sem falar nas condições
dos deficientes físicos que foram elevados ao nível de “cadeirantes”.
Já não sei mais o que responder quando o oftalmologista questiona
sobre minhas queixas. Não sou cega, porém tenho grande deficiência
visual. Ou será que quase sete graus de astigmatismo também já
2. foram premiados com um vocábulo espetacularmente erudito e nulo,
no holl dos eufemismos patológicos?
Negros não podem mais assim ser chamados, como se o nome da
raça fosse ofensa. Uma vez que se fala em “afrodescendentes”, devo,
então, ser chamada de lusoitaliana? O curso da vida que deveria
seguir normalmente ficou mais complicado, como se já não fosse
tortuoso o caminho de quem precisa andar de cadeira de rodas, ou
tenha cegueiras, deficiências mentais ou psicológicas. Negam-se tais
circunstâncias por meio de palavras dissimuladas. Na próxima
Páscoa, espero que a tia Nice compreenda quando eu disser: “quero
uma afrodescendente portadora de necessidades especiais, tia!”.