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E STA D O D E M I N A S   ●   D O M I N G O ,     1 7       D E    J U N H O      D E   2 0 1 2
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                                                                                                                                                                      EDITOR: Baptista Chagas de Almeida
                                                                                                                                                               EDITOR-ASSISTENTE: Renato Scapolatempore
                                                                                                                                                                          E-MAIL: politica.em@uai.com.br
                                                                                                                                                                               TELEFONE: (31) 3263-5293




                                   SANDRA KIEFER                    desconhecida. Dilma voltou a apanhar
                                                                    dos agentes da repressão em Minas por-
                    presidente Dilma Vana Rousseff foi tor-         que havia a suspeita de que Estela teria
                    turada nos porões da ditadura em Juiz de        organizado, no fim de 1969, um plano pa-
                    Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas        ra dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-compa-
                    em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se       nheiro da organização Colina, que havia
                    pensava até agora. Em Minas, ela foi colo-      sido preso na ex-Colônia Magalhães Pin-
                    cada no pau de arara, apanhou de palma-         to, hoje Penitenciária de Neves. Os mili-
                    tória, levou choques e socos que causa-         tares haviam conseguido interceptar bi-
                    ram problemas graves na sua arcada den-         lhetinhos trocados entre Estela (Stela nos
                    tária. É o que revelam documentos obti-         bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral
                    dos com exclusividade pelo Estado de Mi-        (Ângelo), contendo inclusive o croqui do
                    nas , que até então mofavam na última           mapa do presídio, desenhado à mão (veja
                    sala do Conselho dos Direitos Humanos           reproduções ao lado).
                    de Minas Gerais (Conedh-MG). As instala-           Seja por discrição ou por precaução,
                    ções do conselho ocupam o quinto andar          Dilma sempre evitou falar sobre a tortu-
                    do Edifício Maletta, no Centro de Belo Ho-      ra. Não consta o depoimento dela nos ar-
                    rizonte. Um tanto decadente, sujeito a in-      quivos do grupo Tortura Nunca Mais,
                    cêndios e infiltrações, o velho Maletta foi     nem no livro Mulheres que foram à luta
                    reduto da militância estudantil nas déca-       armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só
                    das de 1960 e 70.                               mais tarde, em 2003, ele conseguiria que
                       Perdido entre caixas-arquivo de pape-        Dilma contasse detalhes sobre a tortura
                    lão, empilhadas até o teto, repousa o de-       que sofrera nas prisões do Rio e de São
                    poimento pessoal de Dilma, o único que          Paulo. Em 2005, trechos da entrevista fo-
                    mereceu uma cópia xerox entre os mais           ram publicados. Naquela época, a então
                    de 700 processos de presos políticos mi-        ministra acabava de ser indicada para
                    neiros analisados pelo Conedh-MG. Pela          ocupar a Casa Civil.
                    primeira vez na história, vem à tona o             O relato pessoal de Dilma, que agora se
                    testemunho de Dilma relatando todo o            torna público, é anterior a isso. Data de 25
                    sofrimento vivido em Minas na pele da           de outubro de 2001, quando ela ainda era
                    militante política de codinomes Estela,         secretária das Minas e Energia no Rio
                    Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana        Grande do Sul, filiada ao PDT e nem so-
                    (menos conhecido, que ressurge neste            nhava em ocupar a cadeira da Presidên-
                    processo mineiro). Ela contava então com        cia da República. Diante do jovem filóso-
                    22 anos e militava no setor estudantil do       fo Robson Sávio, que atuava na coordena-
                    Comando de Libertação Nacional (Coli-           ção da Comissão Estadual de Indenização              que teve três dias de prazo para colher se-
                    na), que mais tarde se fundiria com a           às Vítimas de Tortura (Ceivt) do Conedh-             te depoimentos na capital gaúcha. Na ava-
                    Vanguarda Popular Revolucionária (VPR),         MG, sem remuneração, Dilma revelou                   liação de Robson, Dilma teve uma postu-               Fac-símile de trechos
                    dando origem à VAR-Palmares.                    pormenores das sessões de humilhação                 ra humilde para a época ao concordar em
                                                                    sofridas em Minas. “O estresse é feroz,              prestar depoimento perante a comissão.                    dos bilhetes e do
                       As terríveis sessões de tortura enfren-
                    tadas pela então jovem estudante sub-           inimaginável. Descobri, pela primeira                “Com ou sem o depoimento dela, a comis-                  croqui do presídio
                    versiva já foram ditas e repisadas ao lon-      vez, que estava sozinha. Encarei a morte e           são iria aprovar a indenização de qualquer
                                                                                                                         jeito, porque já tinha provas suficientes.
                                                                                                                                                                                         que foram
                    go dos últimos anos, mas os relatos sem-        a solidão. Lembro-me do medo quando
                    pre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, en-      minha pele tremeu. Tem um lado que                   Mas a gente insistia em colher os testemu-              interceptados pela
                    volvendo a Operação Bandeirantes, a te-         marca a gente pelo resto da vida”, disse.            nhos, pois tinha a noção de estar fazendo                      repressão e
                    mida Oban de São Paulo, e a cargeragem                                                               algo histórico”, afirma o filósofo.
                    na capital fluminense. Já o episódio da         HUMILDE Apesar de ser ainda apenas a se-                                                                    acabaram levando à
                    tortura sofrida por Dilma em Minas, on-         cretária das Minas e Energia, a postura de                                                                     tortura de Dilma
                    de, segundo ela própria, exerceu 90% de         Dilma impressionou Robson: “A secretária
                    sua militância durante a ditadura, tinha        tinha fama de durona. Ela já chegou ao                  LEIA TRECHOS DO DEPOIMENTO E A
                    ficado no esquecimento. Até agora.              corredor com um jeito impositivo, firme,                HISTÓRIA DE DILMA NOS CÁRCERES
                       Com a palavra, a presidente: “Algumas        muito decidida. À medida que foi contan-                DE MINAS NAS PÁGINAS 4 A 7
                    características da tortura. No início, não      do os fatos no seu depoimento, ela foi se
                    tinha rotina. Não se distinguia se era dia      emocionando. Nós interrompemos o de-
                    ou noite. Geralmente, o básico era o cho-       poimento e ela deixou a sala com uma
                    que”. Ela continua: “(...) se o interrogató-    postura diferente em relação ao momento
                    rio é de longa duração, com interrogador        em que entrou. Saiu cabisbaixa”, conta ele,
                    experiente, ele te bota no pau de arara al-
                    guns momentos e depois leva para o cho-
                    que, uma dor que não deixa rastro, só te
                    mina. Muitas vezes usava palmatória;
                    usaram em mim muita palmatória. Em
                    São Paulo, usaram pouco este ‘método’”.

                    BILHETES Dilma foi transferida em janeiro
                    de 1972 para Juiz de Fora, ficando presa
                    possivelmente no quartel da Polícia do
                    Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse
                    ponto do depoimento, falham as memó-
                    rias do cárcere de Dilma e ela crava ape-
                    nas não ter sido levada ao Departamento
                    de Ordem e Política Social (Dops) de BH.
                    Como já era presa antiga, a militante de-
                    veria ter ido a Juiz de Fora somente para
                    ser ouvida pela auditoria da 4ª Circunscri-
                    ção Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou
                    que, como havia ocorrido das outras ve-
                    zes, estava vindo de São Paulo a Minas pa-
                    ra a nova fase do julgamento no processo
                    mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém,
                    ela afirma ter sido novamente torturada
                    e submetida a péssimas condições carce-
                    rárias, possivelmente por dois meses.
                       Nesse período, foi mantida na clandes-
                    tinidade e jogada em uma cela, onde per-
                    maneceu na maior parte do tempo sozi-
                    nha e em outra na companhia de uma
                    única presa, Terezinha, de identidade
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Dilma revela tortura sofrida em Minas durante a ditadura

  • 1. E STA D O D E M I N A S ● D O M I N G O , 1 7 D E J U N H O D E 2 0 1 2 3 POLÍTICA EDITOR: Baptista Chagas de Almeida EDITOR-ASSISTENTE: Renato Scapolatempore E-MAIL: politica.em@uai.com.br TELEFONE: (31) 3263-5293 SANDRA KIEFER desconhecida. Dilma voltou a apanhar dos agentes da repressão em Minas por- presidente Dilma Vana Rousseff foi tor- que havia a suspeita de que Estela teria turada nos porões da ditadura em Juiz de organizado, no fim de 1969, um plano pa- Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas ra dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-compa- em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se nheiro da organização Colina, que havia pensava até agora. Em Minas, ela foi colo- sido preso na ex-Colônia Magalhães Pin- cada no pau de arara, apanhou de palma- to, hoje Penitenciária de Neves. Os mili- tória, levou choques e socos que causa- tares haviam conseguido interceptar bi- ram problemas graves na sua arcada den- lhetinhos trocados entre Estela (Stela nos tária. É o que revelam documentos obti- bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral dos com exclusividade pelo Estado de Mi- (Ângelo), contendo inclusive o croqui do nas , que até então mofavam na última mapa do presídio, desenhado à mão (veja sala do Conselho dos Direitos Humanos reproduções ao lado). de Minas Gerais (Conedh-MG). As instala- Seja por discrição ou por precaução, ções do conselho ocupam o quinto andar Dilma sempre evitou falar sobre a tortu- do Edifício Maletta, no Centro de Belo Ho- ra. Não consta o depoimento dela nos ar- rizonte. Um tanto decadente, sujeito a in- quivos do grupo Tortura Nunca Mais, cêndios e infiltrações, o velho Maletta foi nem no livro Mulheres que foram à luta reduto da militância estudantil nas déca- armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só das de 1960 e 70. mais tarde, em 2003, ele conseguiria que Perdido entre caixas-arquivo de pape- Dilma contasse detalhes sobre a tortura lão, empilhadas até o teto, repousa o de- que sofrera nas prisões do Rio e de São poimento pessoal de Dilma, o único que Paulo. Em 2005, trechos da entrevista fo- mereceu uma cópia xerox entre os mais ram publicados. Naquela época, a então de 700 processos de presos políticos mi- ministra acabava de ser indicada para neiros analisados pelo Conedh-MG. Pela ocupar a Casa Civil. primeira vez na história, vem à tona o O relato pessoal de Dilma, que agora se testemunho de Dilma relatando todo o torna público, é anterior a isso. Data de 25 sofrimento vivido em Minas na pele da de outubro de 2001, quando ela ainda era militante política de codinomes Estela, secretária das Minas e Energia no Rio Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana Grande do Sul, filiada ao PDT e nem so- (menos conhecido, que ressurge neste nhava em ocupar a cadeira da Presidên- processo mineiro). Ela contava então com cia da República. Diante do jovem filóso- 22 anos e militava no setor estudantil do fo Robson Sávio, que atuava na coordena- Comando de Libertação Nacional (Coli- ção da Comissão Estadual de Indenização que teve três dias de prazo para colher se- na), que mais tarde se fundiria com a às Vítimas de Tortura (Ceivt) do Conedh- te depoimentos na capital gaúcha. Na ava- Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), MG, sem remuneração, Dilma revelou liação de Robson, Dilma teve uma postu- Fac-símile de trechos dando origem à VAR-Palmares. pormenores das sessões de humilhação ra humilde para a época ao concordar em sofridas em Minas. “O estresse é feroz, prestar depoimento perante a comissão. dos bilhetes e do As terríveis sessões de tortura enfren- tadas pela então jovem estudante sub- inimaginável. Descobri, pela primeira “Com ou sem o depoimento dela, a comis- croqui do presídio versiva já foram ditas e repisadas ao lon- vez, que estava sozinha. Encarei a morte e são iria aprovar a indenização de qualquer jeito, porque já tinha provas suficientes. que foram go dos últimos anos, mas os relatos sem- a solidão. Lembro-me do medo quando pre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, en- minha pele tremeu. Tem um lado que Mas a gente insistia em colher os testemu- interceptados pela volvendo a Operação Bandeirantes, a te- marca a gente pelo resto da vida”, disse. nhos, pois tinha a noção de estar fazendo repressão e mida Oban de São Paulo, e a cargeragem algo histórico”, afirma o filósofo. na capital fluminense. Já o episódio da HUMILDE Apesar de ser ainda apenas a se- acabaram levando à tortura sofrida por Dilma em Minas, on- cretária das Minas e Energia, a postura de tortura de Dilma de, segundo ela própria, exerceu 90% de Dilma impressionou Robson: “A secretária sua militância durante a ditadura, tinha tinha fama de durona. Ela já chegou ao LEIA TRECHOS DO DEPOIMENTO E A ficado no esquecimento. Até agora. corredor com um jeito impositivo, firme, HISTÓRIA DE DILMA NOS CÁRCERES Com a palavra, a presidente: “Algumas muito decidida. À medida que foi contan- DE MINAS NAS PÁGINAS 4 A 7 características da tortura. No início, não do os fatos no seu depoimento, ela foi se tinha rotina. Não se distinguia se era dia emocionando. Nós interrompemos o de- ou noite. Geralmente, o básico era o cho- poimento e ela deixou a sala com uma que”. Ela continua: “(...) se o interrogató- postura diferente em relação ao momento rio é de longa duração, com interrogador em que entrou. Saiu cabisbaixa”, conta ele, experiente, ele te bota no pau de arara al- guns momentos e depois leva para o cho- que, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes usava palmatória; usaram em mim muita palmatória. Em São Paulo, usaram pouco este ‘método’”. BILHETES Dilma foi transferida em janeiro de 1972 para Juiz de Fora, ficando presa possivelmente no quartel da Polícia do Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse ponto do depoimento, falham as memó- rias do cárcere de Dilma e ela crava ape- nas não ter sido levada ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de BH. Como já era presa antiga, a militante de- veria ter ido a Juiz de Fora somente para ser ouvida pela auditoria da 4ª Circunscri- ção Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou que, como havia ocorrido das outras ve- zes, estava vindo de São Paulo a Minas pa- ra a nova fase do julgamento no processo mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém, ela afirma ter sido novamente torturada e submetida a péssimas condições carce- rárias, possivelmente por dois meses. Nesse período, foi mantida na clandes- tinidade e jogada em uma cela, onde per- maneceu na maior parte do tempo sozi- nha e em outra na companhia de uma única presa, Terezinha, de identidade ARTE: JANEY COSTA