Dilma Rousseff deu um depoimento pessoal comparando as formas de tortura que sofreu em três estados brasileiros durante a ditadura militar. Ela descreveu em detalhes como a tortura variava entre Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, incluindo diferentes métodos de castigo e isolamento. Anos depois, encontrou um de seus torturadores em Minas Gerais e o confrontou sobre os abusos que sofreu.
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4 POLÍTICA
Dilma Rousseff explica no depoimento ao Conselho de Direitos Humanos em 2001 como
variavam as formas de castigo nos porões de Minas, São Paulo e Rio, onde ela ficou presa
Fac-símile de trechos do depoimento de Dilma, comparando a repressão nos estados
SANDRA KIEFER
Os sotaques três estados . No Rio de Janeiro, levei
N
um ano e um mês (de prisão), por ter
da tortura
o depoimento pessoal militado oito meses. Em Minas, levei
prestado à jovem equi- um ano, por cinco anos de militância.
pe do Conselho de Di- Por que isso?”, pergunta Dilma, peran-
reitos Humanos de Mi- te a jovem equipe do Conedh-MG, en-
nas Gerais (Conedh- viada ao Rio Grande do Sul em 2001, na
MG), há uma década, intenção de tentar convencer a então
Dilma Rousseff teve paciência de com- secretária das Minas e Energia, entre
parar os tipos de tortura e as condições seis outros militantes políticos, a pres-
a que foi submetida nos cárceres onde tar depoimento no processo mineiro.
ficou em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Dilma foi condenada a um ano de
São Paulo, por dois anos e 10 meses, en- prisão no Inquérito Policial Militar
tre 1970 e 1972, durante a ditadura ver- seguia ficar em pé no chão. Tive de ser das as mulheres presas no Tiradentes mente. O delegado Fleury tinha gran- (IPM) em Minas, pelo artigo 36 (perten-
de-oliva no Brasil. Segundo pincelou carregada no colo pelo meu tortura- sabiam que (eu) estava presa: uma, de poder, que perdeu, depois, para os cer a organização de luta armada), e a
Dilma, dentro da Penitenciária Barão dor, o tenente Marcelo (Araújo Pai- por exemplo, Maria Celeste Martins…”, militares”, disse. Em Minas, segundo a um ano e um mês no do Rio. Segundo
de Mesquita, no Rio, ninguém via nin- xão), com a cabeça apoiada no ombro relata. A amiga citada nominalmente presidente, eles trabalhavam em con- o livro A vida quer é coragem, lançado
guém. “Havia um buraquinho, na por- dele. Tive ódio de mim nesse dia”, de- pela presidente faria companhia a Dil- junto. Ela completa a distinção entre em janeiro, contando a trajetória de
ta, por onde se acendia cigarro”, contou. sabafa Emely, que chega a ter pesade- ma na chamada Torre das Donzelas, as forças da repressão dos três estados: Dilma Rousseff, a primeira presidente
O procedimento carioca era semelhan- los até hoje com este episódio. É o onde eram abrigadas as presas políti- “O processo de subordinação da Polí- do Brasil, o jornalista mineiro Ricardo
te ao mineiro: ela ficava sempre sozi- mais marcante pinçado de sua longa cas no Presídio Tiradentes, mais tarde cia Civil pelo Exército não tinha se Batista Amaral revela que, “em São
nha, sendo colocada em uma solitária temporada de quase dois anos na pri- demolido em São Paulo. completado. Já no RJ estava completa- Paulo, o juiz auditor carregou a mão na
em Juiz de Fora. “Muitas vezes usavam são, só que no Dops, em BH. Outra característica “marcante”, se- mente alijada a PC: era a Marinha, denúncia – chamou Dilma de “papisa
em mim palmatória. Usaram em mim Em São Paulo, a vida nas masmor- gundo adjetivo empregado na época Exército e Aeronáutica”. da subversão”, “uma das molas mes-
muita palmatória. Em São Paulo, usa- ras também não era fácil. Pelo menos, por Dilma, dos interrogatórios de Mi- tras e um dos cérebros dos esquemas
ram pouco esse método”, explicou. a então subversiva Dilma tinha a com- nas é que não eram feitos por milita- NÚMEROS Como velha e boa militan- revolucionários postos em prática pe-
Contemporânea de militância estu- panhia das outras presas políticas, que res. Os militares apenas acompanha- te, em determinado trecho de seu de- las esquerdas radicais” – e obteve a pe-
dantil de Dilma (codinome Estela) em dividiam a ala. “Na Oban (Operação vam. A presidente prossegue: “Em SP, poimento pessoal, Dilma passa a ques- na máxima: quatro anos. Em novem-
Belo Horizonte, mas de vertente opos- Bandeirantes, que mais tarde passaria era diferente, os militares interroga- tionar os termos de sua própria conde- bro de 1972, o Superior Tribunal Mili-
ta, ligada aos movimentos sociais da a se chamar Doi-Codi), as mulheres fi- vam e o Dops acompanhava. Em SP, nação. Com calo de ativista, Dilma sub- tar (STM) reavaliou os processos, fixou
Igreja Católica, como a Pastoral de Di- cavam junto às celas de tortura”, expli- chegou a ponto da Oban invadir o verte os números, questionando a ló- a pena total em dois anos e um mês e
reitos Humanos, a psicóloga Emely Sa- ca Dilma em outro trecho do depoi- Dops. Durante um certo tempo, quem gica dos militares. “Tive participação determinou a soltura da ré. Quando
lazar, de 74, confirma o uso da palma- mento, publicado com exclusividade controlou a repressão foi a Polícia Ci- política em três estados: comecei em desceu a Torre das Donzelas, Dilma ti-
tória em Minas. “Um dia levei tanta, pelo Estado de Minas, desde domin- vil, através dos Dops. Na minha época, Minas Gerais 90% da minha militância. nha completado dois anos e 10 meses
tanta palmatória, que meus pés e go. O mesmo ocorria, segundo a presi- o Dops era muito forte e os órgãos mi- Só no último ano ficaria a metade (do no cárcere. No saldo, nove meses além
mãos viraram uma bola. Eu não con- dente, em outro presídio paulista. “To- litares se encaixavam subordinada- tempo) no Rio e SP. Fui condenada nos da pena imposta pelo tribunal militar.
LEANDRO COURI/EM/D.A PRESS
Anos mais tarde, cheguei a encontrar com o tenente Marcelo
(Paixão Araújo – que a torturou) em uma festa de casamento.
Comecei a chorar e não acreditei que estava respirando o mesmo
ar que ele. Cheguei perto dele e perguntei: ‘Lembra de mim,
tenente Marcelo?’ Ele fez que não sabia e eu emendei: ‘Quem
bate, esquece. Quem apanha, não esquece jamais.’”
❚ Emely Salazar, psicóloga, militante estudantil no período da ditadura
Quando Dilma era só mais uma vítima
assinatura não inviabilizou a indeniza- res.“Anosmaistarde,chegueiaencontrar
ção de R$ 30 mil a Dilma, que receberia com o tenente Marcelo (Paixão Araújo)
a quantia em março de 2002. em uma festa de casamento. Comecei a
“Quem entrou com o pedido de inde- chorar e não acreditei que estava respi-
Aos 74 anos, Emely Salazar perma- cesso de Dilma, entre dezenas de ca- sonhava ser eleita presidente do Brasil. nização dentro do prazo teve direito a rando o mesmo ar que ele. Meu marido
nece até hoje na ativa na Faculdade sos analisados por ela. “Tinha de esquecer de assinar logo o abrir processo. No meio da trabalheira, (que morreu há 10 anos, de um câncer)
de Medicina da UFMG, onde era mais “Da turma de esquerda presa naque- processo da presidente? Só podia ser a ainda tivemos de convencer os colegas a memandouficarquieta.Masnãoaguen-
forte a militância política mineira. la época, quase ninguém conhecia Dil- Emely”, brinca o filósofo Robson Sávio, fazer o pedido. Muitos estavam desiludi- tei.Chegueipertodeleeperguntei:‘Lem-
Ela chegou a ficar quase dois anos ma. Ela era a namorada do Galeno (jor- hoje professor da PUC Minas e respon- dos ou ficavam com medo de falar e de brademim,tenenteMarcelo?’Elefezque
presa na carceragem do Dops de BH. nalista Cláudio Galeno Lobato), que sai- sável na época por colher o depoimento aquilo virar contra eles. Quer saber? não sabia e eu emendei: ‘Quem bate, es-
Décadas mais tarde, convidada a pre- ria do país no sequestro do avião para de Dilma Rousseff. “Na verdade, todos Quem sofreu tortura não acredita mais quece. Quem apanha, não esquece ja-
sidir a Comissão Especial das Vítimas Cuba e mora hoje na Nicarágua). Ele foi os ex-militantes tinham a mesma im- napossibilidadedereparaçãodoEstado”, mais.Osenhorjácontouparasuafamília
de Minas Gerais (Ceivt-MG), em 2001, preso ao mudar para o Rio”, justifica portância histórica. Nosso trabalho não desabafa Emely. Ela e o então namorado que foi torturador na ditadura?’”, revela
Emely deu pouca atenção ao proces- Emely. Além disso, na época Dilma era era identificar celebridades, mas sim as de 22 anos, o médico Herculano Mourão emocionada Emely, que parece uma gi-
so de Dilma. Para se ter uma ideia, apenas secretária das Minas e Energia no verdadeiras vítimas da ditadura”, pon- Salazar, que mais tarde se tornaria seu gante do alto de pouco mais de um me-
Emely esqueceu-se de assinar o pro- Rio Grande do Sul, filiada ao PDT, nem tua Robson, lembrando que a falta da marido,sofreramnasmãosdetorturado- tro e meio de altura. (SK)