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O Acrobata Cego
de Constantino Mendes Alves
“Os cegos são ao únicos inválidos que podemos gozar pois não podem vê-lo, e é por
isso que ninguém os goza.”
Boris Vian
Personagens:
Stan, Acrobata cego
Philip, Palhaço Maneta
Bonn, director do circo
Forster, empresário
Rita, bailarina
Morte
Homem
Vendedor de pastilhas
Saxofonista
Rooney, Mágico
3
Empregado do circo
A acção passa-se no circo Banley, algures no Leste dos Estados Unidos, no ano de
1935, em plena recessão económica e declínio do circo americano.
Tudo escuro
Voz off
Isto é um sonho! Nada do que vão ver na próxima hora existe. Por outras palavras: isto
é um sonho, um episódio de outra natureza que a realidade. Existe na dimensão dos
sonhos. Não é preciso acreditar nisso, basta imaginar que os sonhos de alguma maneira
cabem nalgum lugar. Não é pedir muito. Estão-me a ouvir? Hum, Pois, o contacto é
perfeito. Constato que o espectador é dotado de imaginação, óptimo!
Acende-se luz na cena
(Stan, o acrobata está pendurado num balouço de trapézio, pode fazer acrobacias,
pode-se eventualmente passar um vídeo de um acrobata no trapézio)
Voz off(voz de Stan) - “É agora o momento. Aplauso, conto até 3. as mãos prendem-me
à corda. Elevo-me, em baixo a arena. O louco vazio. O que é ver? Talvez compreender
o movimento’. É agora!”
(apagam-se e acendem-se as luzes)
4
1º Quadro
Stan e Philip(maneta) jogam ao braço de ferro
Stan – Não penses que me vais derrotar, sou muito forte neste jogo
Philip – (vestido de palhaço) – Escolhes sempre jogos onde tens
vantagem, não passas de um batoteiro.
Stan – Eu só quero vencer. Não tenho nada a perder.
Philip – Mais uma desvantagem para mim.
Stan – Este jogo é perfeito para mim. A acrobacia é um jogo de mãos e
de pés. Dá-lhe um pontapé debaixo da mesa
Philip – Este jogo não tem árbitro?
Stan – Não conheço nenhum árbitro neste jogo.
Philip – Nada te detém.
Stan – Não conheces a frase do nosso Roosevelt “A única coisa que
devemos ter medo, é ter medo de nós próprios”.
Philip – Os novos tempos…aposto que esse tal Hitler diz o mesmo.
Stan – Que receias…és um piegas!
Philip – Grandes homens…grandes desastres!
Stan – Escondes-te atrás do medo, não queres vencer.
Philip – É disso que se trata não é? Vencer…
Stan – Tens ideias, isso dificulta-te a vida.
Philip – Tenho cabeça para pensar, olhos para ver.
Stan – Estás a ver, estou em vantagem, ver só complica tudo.
Philip – Ver ou saber, dá-me a vantagem de optar.
Stan – Faz força, não te quero derrotar de repente.
5
Philip – Estou capaz de te enganar desta vez. Podia chamar um suplente
que me substituísse sem que tu desses por nada.
Stan – Nem tentes, estás no meu sonho, castigar-te-ia facilmente.
Ah!Ah! Força, tens a tua oportunidade.
Fazem força
Philip - Poderia fazer-te rir, afinal sou um palhaço.
Stan – Continua a fazer força, isso já me faz rir enormemente.
Philip – Acaba com isto, não demores mais o jogo. dói-lhe o braço
Porque te ris? Afinal és um deficiente como eu.
Stan – Não neste jogo…
Philip -Isto não pode ser considerado um jogo.
Stan – Também não é a vida, é tudo um sonho.
Philip – És cruel. perde
Stan – (levanta-se) tenho de ir treinar…
Philip – (dorido) Vai, nunca te esqueces de ti.
Stan – Como posso esquecer?
Philip – Claro, o vencedor, todos o aclamam, como pode ele esquecer-se
de si
Stan – Vencer não é uma palavra, é o final de um longo caminho
Philip – Pois, um corredor estreito e comprido, geralmente só lá cabe
uma pessoa .
Stan – Um corredor escuro no meu caso, deixa de me compreenderes, ias
dar cabo do que te resta.
Philip – o que me resta não é da tua conta.
Stan – Como queiras de resto isso não faz parte do meu exercício
6
Philip – Não voltarei a jogar contigo
Stan – Vai ser difícil esconderes-te, o circo é como uma ilha, mesmo que
caminharmos em linha recta voltamos ao ponto de partida
Philip – Sim, esse é o teu circo, tu és a própria ilha
Stan – os derrotados encontram conforto nas metáforas, o circo é mais
simples.
Philip – o circo é a própria vida, esqueces-te sempre disso
Stan – E o que achas que é o meu papel, nesse circo que é a vida?
Philip - Aviso-te simplesmente, mas isto é o teu sonho…(sai)
Stan – ( fica só sem se aperceber) Por isso devias respeitar-me…
(pausa + ou – longa)
Stan – onde estás? (vira-se para vários lados tentando perceber onde está o
seu interlocutor)
2º Quadro
Empregado do circo – Estas cordas…há mais de 2 anos que deveriam ser trocadas,
passamos a vida a fazer remendos… claro, faço o meu trabalho limpo, cumprimos todas
as normas de segurança, mas qualquer dia… não sei, isto não está bem, não está bem a
pouca comida no prato não está bem também, quando eu comecei tudo brilhava como
um Sol, o maior espectáculo do mundo, dizia-se por todo o lado, por onde passávamos,
pela rua, pelos bares, éramos respeitados, quase heróis, não, mais que heróis, artistas
pois então, agora, já não é a mesma coisa, as cordas velhas(indica as cordas), a pouca
tinta das roulotes, o pouco publico, o pouco dinheiro, não sei aonde vamos, aonde vou,
puxar cordas novas? (puxa a corda) Para quando? Por mais que se puxe, nem tudo se
7
pode levantar…O quê? (grita para dentro) a tenda, claro vou ainda remendá-la hoje…
(sai)
3º Quadro
Bonn ébrio chega com um carapuço de aviador e bigodes compridos
retorcidos/acrobata está pendurado no trapézio.
(Eventualmente pode-se passar um vídeo com o invento de Igor Sikorsky, primeiro
helicóptero (ver youtube))
Bonn - Srs! Apresento – vos o Mr. Helicóptero. Engraçada engenhoca não é? Este é um
protótipo que se propõe literalmente vencer a força da gravidade. Ah! A subida vertical
no ar. Num futuro breve poderemos ver máquinas semelhantes a esta paradas nos céus
das nossas cidades e nossos campos. Espantoso? Há uma década, semelhante feito não
era previsível. Hoje aqui o têm. Eu próprio o guiei, é uma máquina vibrante. Convido-
os, srs artistas a fazerem vós próprios uma pequena experiência. Assim poderão
testemunhar a própria ambição do invento. O futuro estará nas vossas mãos, poderão
sentir o extraordinário da criação.
Isto é o futuro. Pretendo que o futuro passe pelo nosso Banley circus, o maior
espectáculo do mundo, já não é o maior espectáculo do mundo, por todo o lado
aparecem novos inventos que promovem novos palcos. A rádio, hoje com um simples
click, qualquer família americana pode ouvir em directo as vozes dos seus maiores
ídolos, como testemunhar qualquer evento quase em directo, poucas horas ou minutos
depois de qualquer ocorrência, podemos ouvir em directo o relato de uma corrida de
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cavalos ou uma partida de basebol. O cinema evolui, agora com trilha sonora e imagens
coloridas. Por todo o lado novos inventos, automóveis, submarinos mais sofisticados ou
aparelhos que parecem de outro mundo como este, que acabaram de presenciar o seu
desempenho.
No nosso circo, no meu circo só há lugar para os melhores. Novos desafios estão aqui,
só os mais ambiciosos e criativos poderão ficar. O mundo necessita de se deslumbrar
outra vez no nosso show, de ver com os próprios olhos os novos limites da raça
humana, novos desafios para o corpo, imaginação, TALENTO essa rara qualidade que
faz ir mais longe, abre novos horizontes à condição humana.
Philip - Um aparelho voador, num circo?
Bonn- Porque não! O futuro é já o presente. A partir de agora tudo é possível, tudo não,
não podemos voltar atrás. É o progresso. Criatividade, engenho, ambição, competição
cada vez mais feroz.
(enche um globo terrestre) (brinca com ele)
Bonn – O mundo está partir –se em dois, por um lado ,uma meia dúzia de ditadorzecos
a nascer, por outro, o mundo livre. A escolha é óbvia, O nosso circo, é a vida.
Philip - O circo são pessoas, artistas, o talento humano.
Bonn - O talento humano, hoje, é um helicóptero (diz com dificuldade). Estou a pensar
seriamente em mudar algumas coisas…
Deambula pelo palco
Bonn - Por outro lado o circo já não comporta tanto pessoal. Há artistas a mais. E …
cachets muito elevados. O público já não vem cá como noutros, tempos, Hoje há outros
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espectáculos. Os tempos mudaram, temos que fazer alterações, só ficam aqueles que se
adaptarem aos novos desafios…
Stan - São grandes novidades.
Bonn – Mudar, temos de mudar de vida, não posso esperar mais (sai)
4º Quadro
Ficam Stan e Philip
Philip - Pois, é inevitável. O grande jogo anda à roda outra vez. Inventa-se o rádio, o
raios x, a penicilina mas a roda não pode parar…
Pois agora até inventaram um novo jogo para se jogar em casa, chama-se monopoly,
nome sugestivo não é?
Stan - Deixa-te de ideias, põe-te a trabalhar…
Philip – Com certeza Mr Certinho e direitinho. E também não devo beber? Logo agora
que acabou a lei seca…
Stan - Essa piada não é boa, arranja outra.
Philip - Há uma piada nova, sobre os Nazis da Alemanha
Stan - Já fizeram anedotas desses tipos?
Philip - “Goering e Hitler estão num barco. Há uma tempestade e o barco afunda-se.
Quem se salva primeiro? Resposta: a Alemanha».
Stan - E se calhar o mundo.
Philip - A última deles é que andam a queimar livros.
Stan - São muito modernos só usam as novas tecnologias.
Philip - Essa é boa! Acho que vou usá-la no espectáculo.
Stan - Vês, podia ser também um palhaço melhor que tu.
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Philip – Mais uma vitória, desculpe não lhe posso colocar uma medalha, tem a camisa
cheia delas.
Stan – Essa também é boa, a minha companhia faz-te bem.
Philip - Pois.
Stan – Tens que melhorar, todos temos de progredir, vê o que se passa a tua volta…
Philip – Novas máquinas, velhos homens.
Stan – Deixa-te disso, é o progresso.
Philip – Mais do mesmo.
Stan - Que disseste?
Philip - Mais, é o que tu chamas o progresso.
Stan - E isso é mau?
Philip - Tem sido bom?
Stan – És um idealista ou um conservador?
Philip – Não, sou um palhaço de circo.
Stan - Pois és. E isso que tem?
Philip - Estou habituado a preparar gags e piadas.
Stan - Pois…
Philip – As melhores piadas são aquelas que põem em ridículo aquilo que é falso ou o
que não é verdade.
Stan - Ah sim?
Philip - Pois, toda a gente reconhece o que é verdadeiro quando se demonstra. Não há
melhor maneira de pôr a nu uma mentira de como com uma piada.
Stan - Diz-lá uma piada dessas…
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Philip -É de um poeta, Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe
disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou
uma barbaridade.
Stan – Sim…
Philip – Como vez o progresso…pode ser muita coisa.
Stan – Grande palhaço, mas vais acabar mal…
Philip – Vou andando, acabei a lição.
Stan – Adeus, professor.
5ºQuadro
Stan – Um cavalo entra na pista, trota. Corro a seu lado, ouço a sua respiração, conto
até 10 sei que está a meu lado. Neste preciso momento coloco a mão direita na sela, 3
segundos, salto com a perna direita levantada, sento-me, a fase um completada, duas
voltas à pista, Sally dá-me sinal com um estalar de chicote, coloco-me em pé na sela.
Ao microfone Bonn entusiasma-se, promete o mito, o público rejubila, aplaude a
compasso a música. Mais duas voltas, o máximo de concentração nos pés. Sally avisa
que o próximo número é de extrema perigosidade, nunca antes tentado (gravação). Há
que respeitar o tempo, o subir e descer do dorso do cavalo, a progressão deste, a
velocidade. Não há que enganar, trabalhaste exaustivamente para este momento. Isso,
deixa passar na memória a tua história, o primeiro esforço de andar, sentir a face da tua
mãe, a tua vontade, aquele som, um clarim ao longe no quartel, é a tua chamada para a
vitória, é o teu momento, justamente. Salta!
O salto mortal na sela. Um segundo que é uma eternidade voo, o lento rodar dos pés em
360º. A sela do cavalo espera-te, contacto. Conseguiste, consegui. Aplausos, o circo
vem abaixo.
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Voz off (Stan)- Estou a ficar cego – uma falta de ar nos pulmões – um nó nos intestinos
– caramba é só uma tontura . O que sei de ficar sem luz? 1,2,3 – o meu salto agora.
6º Quadro
Stan segura duas latas de bebida
Stan - Água ou cerveja?
Qual delas é a cerveja? Não poderei saber sem provar o seu conteúdo.
Eis a diferença. Se o fabricante destas garrafas fosse como eu jamais faria dois
recipientes de forma igual para dois conteúdos diferentes. Água ou cerveja,
Nunca poderei saber o que contêm se não provar cada uma. É isto que me torna
também diferente, a imposição da experiência. O primordial da experiência. A minha
secreta vantagem.
Brinca com as latas, faz malabarismos com elas. Faz equilíbrios em posição de força
Força, Equilíbrio, tempo – uma harmonia do corpo no espaço. Concentração plena.
Força, precedo o corpo, avanço exacto para o equilíbrio no obstáculo, o tempo regula a
harmonia do acto. Tudo se resume a este treino, tudo o resto é uma variação do mesmo
trinómio.
O circo é o mundo. Na pista o artista joga com o mundo, com as coisas
A arte do circo. O homem joga com o mundo. As coisas
"Não somos mais os filhos da Natureza e sim os seus mestres..."
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7ºQuadro
Stan em cena ouve sons diferentes, como de sininhos e tambores. Como se tratasse de
um exercício de orientação, evolui no palco, detectando a origem dos sons, caminhando
para eles ou simplesmente virando a cabeça para o local de onde se dirigem os sons.
Stan - Tlim – esquerda, uma campainha- tlom- no alto à direita, qualquer coisa com
madeira.
Forster - Bravo Mr Stan, vejo que treina com intensidade. Vamos precisar de homens
como você. Homens de convicção, ambição, destreza, facilmente pode fazer o trabalho
de dois ou de três.
Stan – Procuro fazer o meu trabalho, bem feito.
Forster – Bem feito, bem feito, na verdade se eu o empregar pode até fazer o trabalho
por mim, apenas me dedicarei a vigiar a cotação das minhas acções.
Stan – Mas esse jogo não acabou em 29?
Forster – Sim,
Stan – Então? Pensava que agora as coisas iam ser diferentes.
Forster – Novos tempos, receitas velhas. O jogo da vida, está para durar
Stan – O velho jogo…
Forster – Da sobrevivência. Afinal de contas não somos animais domésticos
Stan -Mas isto não é a selva
Forster – Olha quem fala…
Stan – Eu sou mais complicado que isso.
Forster – Talvez, não sou filósofo. Para mim você é um vencedor.
Stan – Só posso vencer, não tenho outra solução para mim.
Forster – E há outra solução?
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Stan – Eu queria dizer…
Forster – Já ouvi o que preciso, vamos falar do seu contrato.
Stan – Não quero sair deste circo.
Forster – O circo não tem lugar, tem de estar onde o publico o quer.
Stan – Há um circo melhor ou maior?
Forster – Vamos para a rua, teremos todo o público.
Stan – Mas esse publico não paga bilhete
Forster – Ora aí está! Agora o público não paga nunca ouviu falar de patrocinadores?
Stan – Ah! Novas técnicas.
Forster – Vamos ter vários outdoors, teremos também uns flyers com o nome dos
patrocinadores…
Stan – Conseguiremos juntar muito publico?
Forster - Assim é que é pensar, claro, todo o público do mundo.
Stan - Do mundo…
Forster – Do mundo, isso, abrir as fronteiras. (dá toques na cabeça)
Stan – Aonde pararemos?
Forster – Não se pára, isto é uma roda.
Stan – Que não tem como parar…
Forster – Será uma grande estrela do espectáculo.
Stan – Nunca vi uma estrela…
Forster – Fique com o meu cartão…
Stan – Um bilhete para o Caos…
Forster – Voltamos sempre ao princípio.
Stan – Não quero recomeçar. Doer-me-ia ainda mais. O que quer fazer ainda mais de
mim?
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Forster - Uma estrela!
Stan - Nada percebo de estrelas, nunca vi uma
Forster - Eu digo-lhe, brilham continuamente
Stan - Continuamente
Forster - infinitamente
Stan - De onde vem o seu ilimitado brilho?
Forster - De uma inimaginável combustão interior
Stan - Não sou uma estrela, a minha combustão consumiu-me
Forster - Não faz mal, a sua imagem!
Stan - Qual imagem?
Forster - Um cego vencedor no meio da multidão! Vende milhões!
Stan - Um cego vencedor!
Forster - Claro! O herói que as multidões anseiam, o homem que não vê, vence todos
os obstáculos, está ver toda inverosimilhança….isso seria formidável…. A esperança
para milhões de desiludidos
Stan - Não sou um herói. Os heróis não vêm do circo.
Forster - E isso que interessa, quando fizermos um filme…
Stan - Você não compreende…
Forster- Compreendo, precisa de reflectir…
Stan - Eu procuro alguma coisa mais pequena, talvez um brilho mas de outra luz
Forster – Ora luz, ora luz, eu digo-lhe o que é a luz, boa vida!
Stan – Você disse que era um vendedor?
Forster – Não, empresário, promotor….
Stan – E promove a boa vida? Não conheço esse produto, boa vida?
Forster – Boa Vida
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Stan - Não é deus, pois não?
Forster - Não, nada disso
Stan - Pois, eu sei que não é deus, eu vejo!
Forster - Pois vê!
Stan - E cheiro…
Forster - Que conversa é essa? Está confuso
Stan - (afasta-o)
Forster – Não se esqueça de mim.
Stan – Não. O senhor das promessas e quando eu já for nada…
Forster – O êxito não é uma doença.
Stan – O êxito já o tenho eu, no circo, na pista, na dimensão real das coisas. Aqui sou
um homem, uma parte real de um todo. O artista e o seu publico, um equilíbrio real.
Forster – O mundo, o homem precisa de conquistar o mundo
Stan- Conquiste-o com a verdade, seria uma grande novidade para todos. Um grande
bálsamo para a humanidade.
Forster – Não sou um artista, não tenho esse talento.
Stan – Sou um artista mas também não tenho esse talento.
Forster – Como queira, quando precisar tem o meu cartão (sai)
Stan- O homem de cartão.
voz off(Stan) - “É agora o momento. Aplauso, conto até 3. as mãos prendem-me à
corda. Elevo-me, em baixo a arena. O louco vazio. O que é ver? Talvez compreender o
movimento’. É agora!”
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8º Quadro
Stan - Para que quer o autógrafo? Já ninguém os pede.
Homem – Para o meu filho mais pequeno Mr., ele gosta muito de o ver actuar.
Stan - É apenas o meu nome.
Homem - Não, é uma relíquia de um mito que o fará sonhar.
Stan - Sonhar?
Homem – Sim, a melhor maneira de ver.
9º Quadro
Acrobata bate numa bola de boxe
Philip – Olá! Cá está o sereno acrobata cego, o super-herói, também experimenta a
violência?
Stan - Faz parte do meu treino
Philip – Sim um treino completo de sobrevivência
Stan - Não sejas provocador.
Philip – E pode-se saber a quem batias?
Stan - Em ninguém…
Philip – Em ninguém em particular, queres tu dizer, na humanidade em geral.
Stan - És irreverente!
Philip – A verdade é irreverente!
Stan - Não sabes nada de mim…
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Philip – Sei que és como todos nós, também odeias, também te queres vingar de alguma
coisa. Tu, quem odeias?
Philip – Ninguém em particular, o mundo em geral, a humanidade em particular.
Stan - A humanidade?
Philip – O defeito de fabrico, aquele ácido ribonucleico que gera a hipocrisia.
Stan - Talvez não percebas o mundo…a hipocrisia depende da perspectiva, há bons
motivos para ser hipócrita.
Philip – Ah sim? Cá temos uma novidade.
Stan - Cada um luta por os seus objectivos pessoais.
Philip – A tua imagem, é isso, tu zelas pela tua imagem de super astro, o super
diferente. Dizes o que não sentes. Juraria que há pouco desancavas aquele saco de boxe
como quem agride toda a humanidade, talvez até deus tu agredisses, talvez pela tua
cegueira…
Stan - És insuportável!
Philip – Não sei como te suportas a ti mesmo (sai)
Stan – Fui longe de mais.
Acrobata continua a bater no saco de boxe.
10º Quadro
Mágico faz um truque com lenços ou pombas
Stan - Como fazes?
Rooney - Como fazes as tuas piruetas?
Stan - Boa parte de trabalho e algum talento.
Rooney - Ora aí está, ainda não se inventou melhor truque.
Stan - Claro, a magia não existe.
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Rooney - Claro que existe, a magia foi a primeira explicação do mundo, ainda hoje do
que acontece e não se conhece a causa, o homem encontra na magia a resposta (enche
um copo com água e fica vermelha)
Stan - Na técnica quer dizer, na ciência e na técnica, um dia seremos essa espécie de
máquinas, os robots
Rooney - Com a Ciência e a técnica produziremos nova magia (enche um copo com
água e fica vermelha, depois passa-a para outro copo e fica transparente novamente)
Stan - A ciência matará o circo
Rooney - Talvez. O circo como o conhecemos
Stan - Aí está, tem razão, nessa altura precisarei de alguma magia
Rooney - Pois é. Para certas coisas não há outra solução. Eu faço-te um truque.
Mágico faz aparecer uma bailarina
Stan - Conheço este perfume…
Rooney - Talvez…(sai)
Stan - Há muito tempo, não pode ser…
Rita - Chamo-me Rita.
Stan - Rita? Fiz confusão
Rita - Se calhar mr. Rooney hipnotizou-o…
Stan - Onde está ele, quero acordar….
Rita - Acordar? Que engraçado uma pessoa acordada que quer acordar.
Stan - Hoje precisava de ver
Rita - Que lhe interessa isso a si, tem esse olho vermelho aí dentro de si
Stan - Sim, sinto-a e isso chega-me não é?
Rita - Claro, senão como estava aqui?
Stan - É magia!
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Rita - A magia de estarmos os dois aqui.
Stan - Está-se a sorrir, eu sei como se sorri..
Rita - Como é o meu sorriso?
Stan - Como uma fresca manhã
Rita - Uma fresca manhã? E porque não uma tarde mais quente ou uma noite amena
luareja?
Stan - Uma fresca manhã, quando o dia se abre e torna tudo possível outra vez
Rita - Ah!Ah! Boa sorte para a manhã (vai a sair)
Stan - Não se vá embora, quem é você?
Rita - Sou uma bailarina (ri-se) voltaremos a encontrar-nos
Stan - Não vá! Eu sei, nunca mais me vou esquecer do seu riso…
11º Quadro
Palhaço com uma pistola persegue o acrobata
Philip - Passa para cá a carteira isto é um assalto
Stan - Eu sei que és tu, não consegues disfarçar a voz. Isto é ridículo, persegues-me
para sempre?
Philip - Vou dar-te um tiro.
Stan - Atira espécie de Dillinguer, morrerei na arena, que melhor morte para um
gladiador.
Philip - Vou disparar (dispara a pistola de brinquedo dela sai uma bandeira bang)Ah!
Ah! Era só uma piada, gostaste do Bang da bandeirita?
Stan – Idiota, esqueceste-te que sou cego. Não tens piada e não conheces o público, cá
pra mim és o próximo a ser despedido.
21
Philip – Por gente da tua laia, vencer é disso que fazem a vossa vida. Eu tenho amigos,
até tenho uma família, tu, tu não tens nada…
Stan – Esta conversa é ridícula.
Philip - Tu é que és ridículo, mas não sabes… tenho pena de ti…
Stan - O que sabes sobre mim?
Philip - Que és um cego, sempre o foste?
Stan - Para que queres saber isso?
Philip – Fazes-me impressão…tenho curiosidade.
Stan - Porque diabo contaria a minha vida a um adversário, ou espécie de
inimigo…como tu?
Philip - Eu por exemplo perdi o braço nas trincheiras em França? Na guerra na Europa.
Fui um desses que não tinha onde cair, alistei-me em 17.
Stan - Continuas na mesma…
Philip - Talvez…Só quando não temos certas coisas é que lhes damos real valor…
Stan - Perdeste um braço e depois?
Philip - Perdi um braço…? Um braço e uma mão…sentir-me –ei sempre um coitado.
Perder a mão? Li em qualquer lado que a mão é o elemento que melhor caracteriza a
espécie humana…elemento de extrema importância…olha por exemplo tu se não
tivesses mão não poderias ser acrobata.
Stan – Poderia ser outra coisa, até palhaço.
Philip – Não compreendes… uma mão é um instrumento fino, especializado
(demonstra com a outra mão) 5 dedos articulados entre si e que agem independentes
igualmente com um oponível aos outros, característica única na espécie animal.
Stan – (repete enfastiado) Característica única da espécie animal.
22
Philip – Pois, com ela segura-se um guarda-chuva, um lápis, escreve-se a quem se ama,
segura-se um escudo, acaricia-se uma mulher, aperta-se a mão a outro, afaga-se os
filhos, segura-se um ceptro!
Stan – Pois, uma quantidade de coisas!
Philip – Deves ser daquele planeta daquele Flash Gordon, Ah! tu não lês o jornal, és
cego.
Stan – Fui um bebé prematuro nascido 12 semanas mais cedo. Isto significa que meu
coração e meus pulmões não estavam desenvolvidos adequadamente. Por causa disso,
recebi oxigénio através de um pequeno tubo que o levava directamente aos meus
pulmões. Infelizmente, eu recebi oxigénio puro demais e isto danificou a minha visão.
Do pouco que vi, não tenho a mínima hipótese de me lembrar. O que é a luz?
Philip – Pois, não sabia. (ignora a pergunta)
12º Quadro
Stan - Sabes mãe?... Eu vejo, sinto o público. Às vezes atrás da cortina eu oiço os risos,
as tosses, os pequenos comentários, os bravos, a intensidade dos aplausos, desse escuro
de onde vêm os sons, eu sei que há gente que sente, o medo, a ansiedade, a tensão. É
mais do que ver, tenho o mundo no coração, como se o mundo estivesse cá dentro. A
vida está dura mãe! Enquanto voo no meu salto mortal eu sinto que o mundo roda
comigo, e eu vibro. De pés firmes no chão recebo os aplausos, abro os braços, o mundo
foge-me do coração. Do lado de lá o mundo parece-me que fica melhor, do lá de cá
simplesmente o vazio. É esse vazio que me prende ao circo. Aqui tenho qualquer coisa a
fazer com ele, noutro sítio este vazio seria solidão.
23
Quando choravas ao pé de mim e fingias que estavas feliz por mim, eu sabia mãe, que
este vazio poderia ser alguém!
13º Quadro
Stan está encostado num alvo com facas espetadas à volta dele
Stan – Porque me escolheu a mim?
Morte – Porque não vê.
Stan - Mais uma vantagem de ser cego.
Morte - Quem não vê não teme.
Stan - Não tenho medo de morrer…
Morte - Nada receie, sou um lançador experimentado.
Stan – Conheço-lhe a voz…
Morte – Ouve o silêncio?
Stan - Claro é você! É agora?
Atira uma faca, espeta-se ao lado de Stan
Morte - Nada disso, você engana-se, isto não é uma questão de tempo.
Stan - Ah não?
Morte - Não. Vai-se lançando facas a toda a hora, é um treino.
Stan - Treinamos sempre…
Morte - Está-me a entender, temos de treinar muito, até à hora do grande show.
Stan - Treino-me para domingo, será a estreia do meu novo número.
Morte - Showtime!
Stan – Não me atira mais facas? (ninguém responde)
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14º Quadro
Anda às cegas com uma bengala branca, encontra o palhaço com outra pintura
Philip – Também andas às cegas.
Stan - Cala-te não sejas imbecil, sabes que sou cego.
Philip – Agora a Acrobacia é outra, mais penosa, é a vida.
Stan - Não, isto é um sonho.
Philip – Podia copiar-te a andar às cegas, toda a gente no circo ir-se-ia rir.
Stan - Faz isso, talvez recebas uma medalha.
Philip - E quem me iria dar essa medalha?
Stan – Um desses homens poderosos de que gostas de dizer mal, a fraqueza dos outros
é o seu ganha pão. Tu também poderias ser o palhaço mais idiota do mundo.
Philip - Tens sempre resposta para tudo. (prende a perna do acrobata com o pé).
(acrobata cai). És cego, não vês nada. Ah! Ah!
Cai e levanta-se várias vezes com rasteiras do palhaço.
Stan - Vingas-te…no outro jogo…
Philip - Os teus jogos! estou farto de te dizer, isto tudo que não vês, não é um jogo, isto
não é um desafio, uma competição.
Stan - Não, não é.
Philip - Isto é a vida real, faremos tudo para sobreviver.
Stan - O que é isso que chamas de tudo?
Philip - Qualquer coisa, não te faças de ingénuo. (passa-lhe nova rasteira)
Stan - Afinal também és cruel.
Philip – Não, sou um sobrevivente.
Stan - Como vão as coisas com o teu novo número?
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Philip - Estás interessado em saber…
Stan - Há novos palhaços no circo…
Philip – Sim.
Stan - Como são eles? Bons?
Philip - São palhaços acrobatas… todos dizem que são espectaculares. São chineses.
Stan - Acrobatas?
Philip - Sim, parece que também chegou a tua hora…(passa-lhe outra rasteira)
Stan - Estou a trabalhar no meu novo número.
Philip – Felicidades,
Stan - E tu o que vais fazer? Um novo número?
Philip - Vou juntar-me a eles, fazer qualquer coisa que complete o número.
Stan - Eu não me vou ficar…
Philip - Claro , és o campeão, a grande estrela do circo(ironia) …(passa-lhe outra
rasteira)
Stan – Aceito a derrota, vocês são mais!
Philip – Somos mais, não te esqueças (sai)
Stan – (levanta-se) Amanhã farei este percurso sem bengala.
15º Quadro
(vídeo da Betty boop dançando)
26
Rita brinca com Stan. Vai de um lado para o outro batendo palmas. Stan dirige-se para
ela. Depois de algum jogo, a bailarina bate palmas de um lado e de outro da cabeça de
Stan, ele não se deixa enganar e fica sempre com a cara virada para onde ela está.
Stan –Rita!
Rita – Como sabes…
Tu..! Tu afinal vês!
Stan - O teu perfume, não me poderia enganar. Para mim és maravilhosa. Quando sinto
o teu aroma, o espectáculo é para ti.
Rita - (bailarina apalpa-o acrobata descreve-a) Obrigado, ia a passar…
Stan - Passaste duas vezes por mim
Rita - Sinto curiosidade, admiração
Stan - Pena, para ser mais exacto
Rita - Magoas-te a ti próprio. Nem todos pensam da mesma maneira.
Stan - Talvez, não me importa.
Rita - Ter pena afinal também é ter um sentimento de carinho pelo outro.
Stan - Não sou igual a outro qualquer.
Rita - Também penso o mesmo.
Stan tenta beijá-la, ela acaba por lhe dar um beijo e foge
Rita - Quero saber como é um acrobata, de que é feito, como é a arte, o que faz ele,
quem é ele…
Stan – (Tenta persegui-la ela foge e ele acha-a sempre) Um acrobata? É como um
bailarino, dança no trapézio.
Rita – (sempre fugindo) Uma dança? Disso percebo eu mas não me parece.
27
Stan – O acrobata dança com o próprio aparelho. O corpo e o trapézio, um par
inseparável.
Rita – Não sabia que já tinhas par.
Stan – Só no espectáculo. Porque me foges?
Rita – Quero ver-te dançar…
Stan – Provocas-me… (pára)
Rita – (aproxima-se) Nunca perco o teu número, no trapézio pareces um deus, a tua
precisão, a tua coragem, tens qualquer coisa de especial, nunca te disseram?
Stan – Talvez mas só agora ouvi com atenção.
Rita – Não sei se vou continuar no espectáculo…
Stan – Não te podes ir embora…
Rita – Eu não sou uma bailarina…
Stan – Não?
Rita – Sou um sonho.
Stan – Não, não pode ser.
Rita – Na verdade tu já me esqueceste há muito tempo…
Stan – Como? És tu?
Rita – Tu sabes…
Stan – Mas éramos muito novos, eu pensava de maneira diferente, a minha vida era o
circo sabes bem que…
Rita – Sei. Estive sempre no mesmo lugar.
Stan – Não sabia…
Rita – Há muita coisa que o teu coração não sabe.
Stan – Vens cobrar-me…
Rita – Não, tu é que me procuras, embora o negues.
28
Stan – A minha vida foi o trapézio…a acrobacia.
Rita – O mundo também anda a girar…
Stan – Este acaso…
Rita – Fizeste-te um belo acrobata….tanto treino onde queres chegar? Neste mundo,
mesmo sem o ver há muito mais que admirar.
Stan – És um sonho (perturbado) vai a sair
Rita – Já te vais embora?
Stan – Tenho de ir treinar.
Rita – Vais-te esquecer de mim.
Stan – Não, farás parte da minha vitória.
Rita –
“…Até que ele há-de chegar
À tristíssima vitória
De não ter mais que avançar.”
16º Quadro
Philip – Vou ser despedido, o meu número foi um fiasco.
Stan – O que pensas fazer?
Philip – Voltar ao Alabama, terei de descobrir algo para fazer por lá.
Stan – Podias tentar noutro circo arranjar trabalho.
Philip – Já não tenho nada para fazer rir.
Stan – Eu disse-te que um dia as piadas acabam.
Philip – É verdade o mundo agora é sério, ninguém deve rir.
Stan – Não sei, há profissões que são agora difíceis.
29
Philip – Compreendo, algo mudou, não sei se para melhor.
Stan – A vida é um barco à deriva é preciso saber navegar…
Philip - Sim, eu nunca tive jeito para marinheiro.
Stan – Acabei por vencer a nossa partida, mas não me sinto melhor por isso.
Philip - Vitória não é sinónimo de felicidade.
Stan – Aonde vai tudo dar?
Philip – A lado nenhum, isto não é um caminho.
Stan – Não?
Philip – Isso, talvez seja apenas uma pergunta.
Stan - Uma pergunta?
Philip – Sem resposta.
Stan – Não sabes a resposta, palhaço filósofo sabe tudo?
Philip – Se soubesse porque ta diria?
Stan – Porque no fundo admiras-me, gostas de mim, reconheces-me como um
vencedor.
Philip – Pois, não vês e também não sentes, não sei como ainda estás vivo.
Stan – Ouvirás falar de mim…
Philip – Talvez… e lembrar-me-ei desta conversa…pensarei assim: aí está um homem
completamente sozinho.
Stan – Terei o meu público…
Philip – No teu camarim estarás só tu, adeus!
Stan – Adeus! (tenta cumprimentá-lo, este sai por outro lado)
Philip – Tudo vai acabar, prepara-te! Também haverá um dia destes para ti.
30
17º quadro
Stan - Rita, não sei escrever, não posso escrever-te, não posso dar-te um ramo de flores,
não posso ver-te, não posso encontrar-te fora do sonho, estou só, irremediavelmente só,
o meu lugar é no topo do circo mas daqui não vejo a paisagem, não sou deus, nem tão
pouco sou um rei, não tenho reino nenhum, o meu único súbdito é a memória. Aqui
guardo os aplausos, a minha única companhia, o meu único alimento. Os aplausos,
pássaros migrantes das emoções, que voam conforme o tempo. Dos sentimentos só te
tenho a ti, como uma cotovia abrindo cada manhã….mas tudo em mim não tem um fim,
por mais que o dia se prometa, por mais que eu alcance, não consigo chegar ao fim, há
uma barreira de luz que eu não sei, que não posso ultrapassar. Uma cambalhota, um
salto mortal espectacular
É tudo quanto me posso aproximar da luz. Os teus olhos não os esqueço na tua voz,
estão lá sempre, no trapézio naquele silêncio de luz. Mas é tão pouco, tudo é tão pouco
por cá.
18º Quadro
Um saxofonista toca um tema de circo
Stan - Lembro-me dessa música desde pequeno.
Saxofonista - Toco-a há mais de 30 anos.
Stan - Eram outros tempos do circo, The greatest Show on earth!
Saxofonista - Assim mesmo, também sou desse tempo.
Stan - Quando passávamos todo o ano em digressão.
31
Saxofonista - Íamos a todo o lado, até à mais pequena cidade.
Stan - Em todos os estados.
Saxofonista - As fanfarras nesse tempo eram enormes.
Stan - Iam à frente de grandes paradas de circo, anunciando o espectáculo.
Saxofonista - Parecia que tudo isto nunca iria acabar.
Stan - Você não esteve sempre aqui pois não?
Saxofonista - Não, já trabalhei em outras companhias.
Stan - Agora são poucas.
Saxofonista - Quase a única. Você sempre esteve aqui?
Stan - Sim, desde miúdo, um tio meu era domador de leões no Ringling Bros, e como
eu tinha jeito para a ginástica. Acho o que me chamou para o circo foi a música.
Saxofonista - Como é ouvir música sendo cego, nada de especial não é?
Stan - Não sei! Para mim a musica diz-me tudo, informa-me, diz o que é o mundo é
como a rádio agora, diz-me tudo o que não sei.
Saxofonista - Deve ser tramado (coça a cabeça) isso da cegueira.
Stan - Nem por isso, é uma maneira de estar só, aprende-se a viver.
Saxofonista - Viver, isto já não dá para viver, agora querem pôr gravadores a fazer o
meu trabalho.
Stan - Isso é impossível, o circo precisa de música ao vivo.
Saxofonista - O circo precisa é de dinheiro, o sr Bonn que o diga.
Stan - Pois, dinheiro, parece que se escoa por todo o lado.
Saxofonista - Não em todo o lado, a terra é inclinada, o dinheiro vai mais para um lado
que para o outro.
Stan - Eu acho que temos de fazer o nosso trabalho bem feito, é só isso que é preciso,
dinheiro?
32
Saxofonista - O nosso trabalho bem feito. Conheço um tipo meu amigo que trabalha na
siderugia, oito horas diárias a apanhar aquele calor das fornalhas. Faz mais de trezentos
eixos/dia para automóveis. Não acha que isso é trabalho bem feito?
Stan - Sim, mas…
Saxofonista - Qual mas, o que recebe mal dá para alimentar a família.
Stan - Podia procurar outro trabalho.
Saxofonista - Podia ser outro no seu lugar, nem todos nascem músicos ou acrobatas.
Stan - Outro a mudar o mundo.
Saxofonista - Não, estamos só a falar, adoro o meu saxofone, conheço todo o país à
custa dele.
Stan - Pois se eu não fosse cego não seria atracção…
Saxofonista - Está a ver…?
Stan - Vejo, vejo, não sou cego.
19º Quadro
Vendedor de pastilhas - Chewming gum, cheming gum, ora três por preço de um
Stan – Três por preço de um?
Vendedor de pastilhas - Cada vez mais as pessoas compram menos.
Stan - Estamos a dar-lhes o nosso trabalho
Vendedor de pastilhas - Era bom que isso fosse verdade, dar-lhes trabalho, coisa que a
maioria não tem
Stan – A casa está boa?
33
Vendedor de pastilhas - Que é lá isso? Meia dúzia de gatos-pingados, todos com os
filhos, as crianças são as únicas pessoas que ainda gostam de circo.
Stan – As crianças? Pois, só elas ainda vêem.
Vendedor de pastilhas - O que disse?
Stan - Nada, coisa de cego, não tem importância para quem vê, os vossos olhos estão
sempre ocupados com qualquer coisa em movimento.
Vendedor de pastilhas - Eu de filosofias nada percebo, mas que isto está mal, lá isso é
verdade. No próximo Verão piro-me para Nova Iorque, vou para as corridas de cavalos,
ali nunca falta o dinheiro.
Stan - Pois, quem me dera realmente ver, poderia pensar numa alternativa a isto.
Vendedor de pastilhas - Claro, assim é que é pensar. Precisa de ser optimista, ter
esperança em qualquer coisa que apareça.
Stan - Não sei, há muito tempo que faço isto. Especializei-me, sou um especialista de
circo.
Vendedor de pastilhas – Azar para os especialistas, por isso é eu preferi a carreira
geral.. Ah! Ah! Desculpe-me a piada.
Stan - De nada. Três por um, para mim também?
Vendedor de pastilhas - Claro e para si até vendo a crédito. Olhe eu sou um admirador
seu.
Stan - Obrigado. Boa Sorte lá em Nova Iorque!
Vendedor de pastilhas - Três por um! Três por um! Três por o preço de um.
.
34
20º Quadro
(entra no palco com um cão agarrado ao pé)
Stan – Este cão que não me larga, que pretendes de mim? Quem és? (continua a correr
de um lado para o outro, cai, segura o cão, tenta afastá-lo) Só agora decidiste atacar-me,
esperaste o teu momento não foi? Já sei, tens inveja de mim. De eu ser um campeão,
tens raiva do que consigo sem ti. Sempre contei contigo, não te via mas sabia da tua
existência. És um cão, serás sempre um cão, nunca encimarás um cartaz, nunca dirão o
teu nome, o que tens serve-te apenas para o teu dono te chamar. Não me largas? Olha
toma um bife, vai Ah não tens fome, foste atacado por outro infortúnio, Deves ser
medonho, talvez como dizem da cor preta, escuro temos isso em comum, mas tu tens a
vergonha de ver e és cego, eu não sei a luz, mas podes estar certo que vejo.
Sou inteiro, uma unidade perfeita, equilíbrio de força, sabes eu sou um som uma
harmonia de técnica e de talento, ambição, não, não sabes o que é isso, és um cão,
coitado de ti!
Cão raivoso, só agora conseguiste, mataste-me.
…
Voz off(Stan) – Estou pronto. Vou tirar esta venda negra, não verei luz, mas mais uma
vez no meu salto terei ar, voarei, ninguém estará à minha espera, serei eu no nada,
concluirei o salto com os pés firmemente na terra.
35
21ºQuadro
Bonn – O seu número é belo, como sempre você atingiu o máximo, mas tenho uma má
notícia para si: os números da bilheteira assim o dizem, estamos à beira da falência. Não
posso manter o circo como está. Terá de haver despedimentos.
Stan – Eu sou o seu melhor número.
Bonn – Um número que não altera a contabilidade.
Stan – Fiz-lhe ganhar muito dinheiro.
Bonn – Dinheiro que já não existe.
Stan – Não percebo de dinheiro.
Bonn – Pois não, para dizer a verdade eu também não, mas em Wall Street sabem bem
disso. Acabei de contratar uma nova atracção, Gargântua, o gorila.
Stan – Ouvi falar dele, um gorila desfigurado…
Bonn – Tem sido rodeado da maior curiosidade pela parte do público. É de um número
destes que este circo estava precisado. Os números tradicionais estão ultrapassados. O
público quer sangue, aterrorizar-se, experimentar novas emoções.
Stan- Serei portanto trocado por uma besta sanguinária.
Bonn - Não veja as coisas desse modo… o público…
Stan – Terei de ir embora.
Bonn – (pausa) Talvez possa tentar outros palcos, o cinema por exemplo…
Stan – A pista é a minha vida.
Bonn – A vida, hoje está noutro lugar…Adeus!
Stan – Não serei um cego na multidão.
Bonn – Não sei quem vê hoje em dia…
36
22º Quadro
(A morte à frente de uma moldura vazia de espelho de camarim, de frente para o
acrobata)
Stan – Tu és a morte.
Morte - Não, sou um espelho.
Stan - Não compreendo…
Morte – Não queres compreender…
Stan – Eu não te posso ver.
Morte - Se calhar não existo para ti.
Stan – Nunca vou saber…será sempre tudo escuro assim?
Morte – Podes imaginar…
Stan - Tudo o que sei está, nos voos que percorro no vazio do alto da tenda, nas pessoas
sem rostos que me rodeiam a toda a hora.
Morte - És um fiel companheiro.
Stan - Tu, sejas quem fores , eu sei que estás sempre comigo, em todos os corredores
escuros, nas estradas infinitas, nos longos silêncios sem luz, nas minhas angústias, nos
momentos em que o meu corpo está suspenso no tempo, tu deves saber a minha
pergunta…
Morte - Essa pergunta …..
Stan - O que é a luz…
Morte - Essa pergunta não te posso responder.
37
Stan - Porque não sabes…
Morte - Não sou dessa condição
Stan - Sim, temos semelhanças. Dizes-me quem és?
Morte – Sou um espelho… (afasta-se)
Stan – Isso diz-me tão pouco,
Morte – …E um relógio
Stan – Ah és do tempo?
Morte – Sou! Como quiseres…
Stan – Não te vás embora… (caminha para ela)
Morte – Isso, vem comigo…
Sai lentamente do baloiço
Voz de Stan – Isto é sempre um sonho, um pesadelo é um sonho,
nunca verei a luz do dia, mas do sonho poderei acordar.
23º Quadro
Stan veste-se lentamente com a ajuda do empregado do circo e sai com uma mala de
viagem. Rita corre para ele
Rita – Espera, vou contigo.
Stan – És um sonho, tenho de apanhar um autocarro.
Rita – Os sonhos gostam de companhia.
O acrobata tateia-a devagar, beija-lhe as mãos, ela dá-lhe o braço, saem.
Fim

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  • 2. 2 O Acrobata Cego de Constantino Mendes Alves “Os cegos são ao únicos inválidos que podemos gozar pois não podem vê-lo, e é por isso que ninguém os goza.” Boris Vian Personagens: Stan, Acrobata cego Philip, Palhaço Maneta Bonn, director do circo Forster, empresário Rita, bailarina Morte Homem Vendedor de pastilhas Saxofonista Rooney, Mágico
  • 3. 3 Empregado do circo A acção passa-se no circo Banley, algures no Leste dos Estados Unidos, no ano de 1935, em plena recessão económica e declínio do circo americano. Tudo escuro Voz off Isto é um sonho! Nada do que vão ver na próxima hora existe. Por outras palavras: isto é um sonho, um episódio de outra natureza que a realidade. Existe na dimensão dos sonhos. Não é preciso acreditar nisso, basta imaginar que os sonhos de alguma maneira cabem nalgum lugar. Não é pedir muito. Estão-me a ouvir? Hum, Pois, o contacto é perfeito. Constato que o espectador é dotado de imaginação, óptimo! Acende-se luz na cena (Stan, o acrobata está pendurado num balouço de trapézio, pode fazer acrobacias, pode-se eventualmente passar um vídeo de um acrobata no trapézio) Voz off(voz de Stan) - “É agora o momento. Aplauso, conto até 3. as mãos prendem-me à corda. Elevo-me, em baixo a arena. O louco vazio. O que é ver? Talvez compreender o movimento’. É agora!” (apagam-se e acendem-se as luzes)
  • 4. 4 1º Quadro Stan e Philip(maneta) jogam ao braço de ferro Stan – Não penses que me vais derrotar, sou muito forte neste jogo Philip – (vestido de palhaço) – Escolhes sempre jogos onde tens vantagem, não passas de um batoteiro. Stan – Eu só quero vencer. Não tenho nada a perder. Philip – Mais uma desvantagem para mim. Stan – Este jogo é perfeito para mim. A acrobacia é um jogo de mãos e de pés. Dá-lhe um pontapé debaixo da mesa Philip – Este jogo não tem árbitro? Stan – Não conheço nenhum árbitro neste jogo. Philip – Nada te detém. Stan – Não conheces a frase do nosso Roosevelt “A única coisa que devemos ter medo, é ter medo de nós próprios”. Philip – Os novos tempos…aposto que esse tal Hitler diz o mesmo. Stan – Que receias…és um piegas! Philip – Grandes homens…grandes desastres! Stan – Escondes-te atrás do medo, não queres vencer. Philip – É disso que se trata não é? Vencer… Stan – Tens ideias, isso dificulta-te a vida. Philip – Tenho cabeça para pensar, olhos para ver. Stan – Estás a ver, estou em vantagem, ver só complica tudo. Philip – Ver ou saber, dá-me a vantagem de optar. Stan – Faz força, não te quero derrotar de repente.
  • 5. 5 Philip – Estou capaz de te enganar desta vez. Podia chamar um suplente que me substituísse sem que tu desses por nada. Stan – Nem tentes, estás no meu sonho, castigar-te-ia facilmente. Ah!Ah! Força, tens a tua oportunidade. Fazem força Philip - Poderia fazer-te rir, afinal sou um palhaço. Stan – Continua a fazer força, isso já me faz rir enormemente. Philip – Acaba com isto, não demores mais o jogo. dói-lhe o braço Porque te ris? Afinal és um deficiente como eu. Stan – Não neste jogo… Philip -Isto não pode ser considerado um jogo. Stan – Também não é a vida, é tudo um sonho. Philip – És cruel. perde Stan – (levanta-se) tenho de ir treinar… Philip – (dorido) Vai, nunca te esqueces de ti. Stan – Como posso esquecer? Philip – Claro, o vencedor, todos o aclamam, como pode ele esquecer-se de si Stan – Vencer não é uma palavra, é o final de um longo caminho Philip – Pois, um corredor estreito e comprido, geralmente só lá cabe uma pessoa . Stan – Um corredor escuro no meu caso, deixa de me compreenderes, ias dar cabo do que te resta. Philip – o que me resta não é da tua conta. Stan – Como queiras de resto isso não faz parte do meu exercício
  • 6. 6 Philip – Não voltarei a jogar contigo Stan – Vai ser difícil esconderes-te, o circo é como uma ilha, mesmo que caminharmos em linha recta voltamos ao ponto de partida Philip – Sim, esse é o teu circo, tu és a própria ilha Stan – os derrotados encontram conforto nas metáforas, o circo é mais simples. Philip – o circo é a própria vida, esqueces-te sempre disso Stan – E o que achas que é o meu papel, nesse circo que é a vida? Philip - Aviso-te simplesmente, mas isto é o teu sonho…(sai) Stan – ( fica só sem se aperceber) Por isso devias respeitar-me… (pausa + ou – longa) Stan – onde estás? (vira-se para vários lados tentando perceber onde está o seu interlocutor) 2º Quadro Empregado do circo – Estas cordas…há mais de 2 anos que deveriam ser trocadas, passamos a vida a fazer remendos… claro, faço o meu trabalho limpo, cumprimos todas as normas de segurança, mas qualquer dia… não sei, isto não está bem, não está bem a pouca comida no prato não está bem também, quando eu comecei tudo brilhava como um Sol, o maior espectáculo do mundo, dizia-se por todo o lado, por onde passávamos, pela rua, pelos bares, éramos respeitados, quase heróis, não, mais que heróis, artistas pois então, agora, já não é a mesma coisa, as cordas velhas(indica as cordas), a pouca tinta das roulotes, o pouco publico, o pouco dinheiro, não sei aonde vamos, aonde vou, puxar cordas novas? (puxa a corda) Para quando? Por mais que se puxe, nem tudo se
  • 7. 7 pode levantar…O quê? (grita para dentro) a tenda, claro vou ainda remendá-la hoje… (sai) 3º Quadro Bonn ébrio chega com um carapuço de aviador e bigodes compridos retorcidos/acrobata está pendurado no trapézio. (Eventualmente pode-se passar um vídeo com o invento de Igor Sikorsky, primeiro helicóptero (ver youtube)) Bonn - Srs! Apresento – vos o Mr. Helicóptero. Engraçada engenhoca não é? Este é um protótipo que se propõe literalmente vencer a força da gravidade. Ah! A subida vertical no ar. Num futuro breve poderemos ver máquinas semelhantes a esta paradas nos céus das nossas cidades e nossos campos. Espantoso? Há uma década, semelhante feito não era previsível. Hoje aqui o têm. Eu próprio o guiei, é uma máquina vibrante. Convido- os, srs artistas a fazerem vós próprios uma pequena experiência. Assim poderão testemunhar a própria ambição do invento. O futuro estará nas vossas mãos, poderão sentir o extraordinário da criação. Isto é o futuro. Pretendo que o futuro passe pelo nosso Banley circus, o maior espectáculo do mundo, já não é o maior espectáculo do mundo, por todo o lado aparecem novos inventos que promovem novos palcos. A rádio, hoje com um simples click, qualquer família americana pode ouvir em directo as vozes dos seus maiores ídolos, como testemunhar qualquer evento quase em directo, poucas horas ou minutos depois de qualquer ocorrência, podemos ouvir em directo o relato de uma corrida de
  • 8. 8 cavalos ou uma partida de basebol. O cinema evolui, agora com trilha sonora e imagens coloridas. Por todo o lado novos inventos, automóveis, submarinos mais sofisticados ou aparelhos que parecem de outro mundo como este, que acabaram de presenciar o seu desempenho. No nosso circo, no meu circo só há lugar para os melhores. Novos desafios estão aqui, só os mais ambiciosos e criativos poderão ficar. O mundo necessita de se deslumbrar outra vez no nosso show, de ver com os próprios olhos os novos limites da raça humana, novos desafios para o corpo, imaginação, TALENTO essa rara qualidade que faz ir mais longe, abre novos horizontes à condição humana. Philip - Um aparelho voador, num circo? Bonn- Porque não! O futuro é já o presente. A partir de agora tudo é possível, tudo não, não podemos voltar atrás. É o progresso. Criatividade, engenho, ambição, competição cada vez mais feroz. (enche um globo terrestre) (brinca com ele) Bonn – O mundo está partir –se em dois, por um lado ,uma meia dúzia de ditadorzecos a nascer, por outro, o mundo livre. A escolha é óbvia, O nosso circo, é a vida. Philip - O circo são pessoas, artistas, o talento humano. Bonn - O talento humano, hoje, é um helicóptero (diz com dificuldade). Estou a pensar seriamente em mudar algumas coisas… Deambula pelo palco Bonn - Por outro lado o circo já não comporta tanto pessoal. Há artistas a mais. E … cachets muito elevados. O público já não vem cá como noutros, tempos, Hoje há outros
  • 9. 9 espectáculos. Os tempos mudaram, temos que fazer alterações, só ficam aqueles que se adaptarem aos novos desafios… Stan - São grandes novidades. Bonn – Mudar, temos de mudar de vida, não posso esperar mais (sai) 4º Quadro Ficam Stan e Philip Philip - Pois, é inevitável. O grande jogo anda à roda outra vez. Inventa-se o rádio, o raios x, a penicilina mas a roda não pode parar… Pois agora até inventaram um novo jogo para se jogar em casa, chama-se monopoly, nome sugestivo não é? Stan - Deixa-te de ideias, põe-te a trabalhar… Philip – Com certeza Mr Certinho e direitinho. E também não devo beber? Logo agora que acabou a lei seca… Stan - Essa piada não é boa, arranja outra. Philip - Há uma piada nova, sobre os Nazis da Alemanha Stan - Já fizeram anedotas desses tipos? Philip - “Goering e Hitler estão num barco. Há uma tempestade e o barco afunda-se. Quem se salva primeiro? Resposta: a Alemanha». Stan - E se calhar o mundo. Philip - A última deles é que andam a queimar livros. Stan - São muito modernos só usam as novas tecnologias. Philip - Essa é boa! Acho que vou usá-la no espectáculo. Stan - Vês, podia ser também um palhaço melhor que tu.
  • 10. 10 Philip – Mais uma vitória, desculpe não lhe posso colocar uma medalha, tem a camisa cheia delas. Stan – Essa também é boa, a minha companhia faz-te bem. Philip - Pois. Stan – Tens que melhorar, todos temos de progredir, vê o que se passa a tua volta… Philip – Novas máquinas, velhos homens. Stan – Deixa-te disso, é o progresso. Philip – Mais do mesmo. Stan - Que disseste? Philip - Mais, é o que tu chamas o progresso. Stan - E isso é mau? Philip - Tem sido bom? Stan – És um idealista ou um conservador? Philip – Não, sou um palhaço de circo. Stan - Pois és. E isso que tem? Philip - Estou habituado a preparar gags e piadas. Stan - Pois… Philip – As melhores piadas são aquelas que põem em ridículo aquilo que é falso ou o que não é verdade. Stan - Ah sim? Philip - Pois, toda a gente reconhece o que é verdadeiro quando se demonstra. Não há melhor maneira de pôr a nu uma mentira de como com uma piada. Stan - Diz-lá uma piada dessas…
  • 11. 11 Philip -É de um poeta, Era uma vez um czar naturalista que caçava homens. Quando lhe disseram que também se caçam borboletas e andorinhas, ficou muito espantado e achou uma barbaridade. Stan – Sim… Philip – Como vez o progresso…pode ser muita coisa. Stan – Grande palhaço, mas vais acabar mal… Philip – Vou andando, acabei a lição. Stan – Adeus, professor. 5ºQuadro Stan – Um cavalo entra na pista, trota. Corro a seu lado, ouço a sua respiração, conto até 10 sei que está a meu lado. Neste preciso momento coloco a mão direita na sela, 3 segundos, salto com a perna direita levantada, sento-me, a fase um completada, duas voltas à pista, Sally dá-me sinal com um estalar de chicote, coloco-me em pé na sela. Ao microfone Bonn entusiasma-se, promete o mito, o público rejubila, aplaude a compasso a música. Mais duas voltas, o máximo de concentração nos pés. Sally avisa que o próximo número é de extrema perigosidade, nunca antes tentado (gravação). Há que respeitar o tempo, o subir e descer do dorso do cavalo, a progressão deste, a velocidade. Não há que enganar, trabalhaste exaustivamente para este momento. Isso, deixa passar na memória a tua história, o primeiro esforço de andar, sentir a face da tua mãe, a tua vontade, aquele som, um clarim ao longe no quartel, é a tua chamada para a vitória, é o teu momento, justamente. Salta! O salto mortal na sela. Um segundo que é uma eternidade voo, o lento rodar dos pés em 360º. A sela do cavalo espera-te, contacto. Conseguiste, consegui. Aplausos, o circo vem abaixo.
  • 12. 12 Voz off (Stan)- Estou a ficar cego – uma falta de ar nos pulmões – um nó nos intestinos – caramba é só uma tontura . O que sei de ficar sem luz? 1,2,3 – o meu salto agora. 6º Quadro Stan segura duas latas de bebida Stan - Água ou cerveja? Qual delas é a cerveja? Não poderei saber sem provar o seu conteúdo. Eis a diferença. Se o fabricante destas garrafas fosse como eu jamais faria dois recipientes de forma igual para dois conteúdos diferentes. Água ou cerveja, Nunca poderei saber o que contêm se não provar cada uma. É isto que me torna também diferente, a imposição da experiência. O primordial da experiência. A minha secreta vantagem. Brinca com as latas, faz malabarismos com elas. Faz equilíbrios em posição de força Força, Equilíbrio, tempo – uma harmonia do corpo no espaço. Concentração plena. Força, precedo o corpo, avanço exacto para o equilíbrio no obstáculo, o tempo regula a harmonia do acto. Tudo se resume a este treino, tudo o resto é uma variação do mesmo trinómio. O circo é o mundo. Na pista o artista joga com o mundo, com as coisas A arte do circo. O homem joga com o mundo. As coisas "Não somos mais os filhos da Natureza e sim os seus mestres..."
  • 13. 13 7ºQuadro Stan em cena ouve sons diferentes, como de sininhos e tambores. Como se tratasse de um exercício de orientação, evolui no palco, detectando a origem dos sons, caminhando para eles ou simplesmente virando a cabeça para o local de onde se dirigem os sons. Stan - Tlim – esquerda, uma campainha- tlom- no alto à direita, qualquer coisa com madeira. Forster - Bravo Mr Stan, vejo que treina com intensidade. Vamos precisar de homens como você. Homens de convicção, ambição, destreza, facilmente pode fazer o trabalho de dois ou de três. Stan – Procuro fazer o meu trabalho, bem feito. Forster – Bem feito, bem feito, na verdade se eu o empregar pode até fazer o trabalho por mim, apenas me dedicarei a vigiar a cotação das minhas acções. Stan – Mas esse jogo não acabou em 29? Forster – Sim, Stan – Então? Pensava que agora as coisas iam ser diferentes. Forster – Novos tempos, receitas velhas. O jogo da vida, está para durar Stan – O velho jogo… Forster – Da sobrevivência. Afinal de contas não somos animais domésticos Stan -Mas isto não é a selva Forster – Olha quem fala… Stan – Eu sou mais complicado que isso. Forster – Talvez, não sou filósofo. Para mim você é um vencedor. Stan – Só posso vencer, não tenho outra solução para mim. Forster – E há outra solução?
  • 14. 14 Stan – Eu queria dizer… Forster – Já ouvi o que preciso, vamos falar do seu contrato. Stan – Não quero sair deste circo. Forster – O circo não tem lugar, tem de estar onde o publico o quer. Stan – Há um circo melhor ou maior? Forster – Vamos para a rua, teremos todo o público. Stan – Mas esse publico não paga bilhete Forster – Ora aí está! Agora o público não paga nunca ouviu falar de patrocinadores? Stan – Ah! Novas técnicas. Forster – Vamos ter vários outdoors, teremos também uns flyers com o nome dos patrocinadores… Stan – Conseguiremos juntar muito publico? Forster - Assim é que é pensar, claro, todo o público do mundo. Stan - Do mundo… Forster – Do mundo, isso, abrir as fronteiras. (dá toques na cabeça) Stan – Aonde pararemos? Forster – Não se pára, isto é uma roda. Stan – Que não tem como parar… Forster – Será uma grande estrela do espectáculo. Stan – Nunca vi uma estrela… Forster – Fique com o meu cartão… Stan – Um bilhete para o Caos… Forster – Voltamos sempre ao princípio. Stan – Não quero recomeçar. Doer-me-ia ainda mais. O que quer fazer ainda mais de mim?
  • 15. 15 Forster - Uma estrela! Stan - Nada percebo de estrelas, nunca vi uma Forster - Eu digo-lhe, brilham continuamente Stan - Continuamente Forster - infinitamente Stan - De onde vem o seu ilimitado brilho? Forster - De uma inimaginável combustão interior Stan - Não sou uma estrela, a minha combustão consumiu-me Forster - Não faz mal, a sua imagem! Stan - Qual imagem? Forster - Um cego vencedor no meio da multidão! Vende milhões! Stan - Um cego vencedor! Forster - Claro! O herói que as multidões anseiam, o homem que não vê, vence todos os obstáculos, está ver toda inverosimilhança….isso seria formidável…. A esperança para milhões de desiludidos Stan - Não sou um herói. Os heróis não vêm do circo. Forster - E isso que interessa, quando fizermos um filme… Stan - Você não compreende… Forster- Compreendo, precisa de reflectir… Stan - Eu procuro alguma coisa mais pequena, talvez um brilho mas de outra luz Forster – Ora luz, ora luz, eu digo-lhe o que é a luz, boa vida! Stan – Você disse que era um vendedor? Forster – Não, empresário, promotor…. Stan – E promove a boa vida? Não conheço esse produto, boa vida? Forster – Boa Vida
  • 16. 16 Stan - Não é deus, pois não? Forster - Não, nada disso Stan - Pois, eu sei que não é deus, eu vejo! Forster - Pois vê! Stan - E cheiro… Forster - Que conversa é essa? Está confuso Stan - (afasta-o) Forster – Não se esqueça de mim. Stan – Não. O senhor das promessas e quando eu já for nada… Forster – O êxito não é uma doença. Stan – O êxito já o tenho eu, no circo, na pista, na dimensão real das coisas. Aqui sou um homem, uma parte real de um todo. O artista e o seu publico, um equilíbrio real. Forster – O mundo, o homem precisa de conquistar o mundo Stan- Conquiste-o com a verdade, seria uma grande novidade para todos. Um grande bálsamo para a humanidade. Forster – Não sou um artista, não tenho esse talento. Stan – Sou um artista mas também não tenho esse talento. Forster – Como queira, quando precisar tem o meu cartão (sai) Stan- O homem de cartão. voz off(Stan) - “É agora o momento. Aplauso, conto até 3. as mãos prendem-me à corda. Elevo-me, em baixo a arena. O louco vazio. O que é ver? Talvez compreender o movimento’. É agora!”
  • 17. 17 8º Quadro Stan - Para que quer o autógrafo? Já ninguém os pede. Homem – Para o meu filho mais pequeno Mr., ele gosta muito de o ver actuar. Stan - É apenas o meu nome. Homem - Não, é uma relíquia de um mito que o fará sonhar. Stan - Sonhar? Homem – Sim, a melhor maneira de ver. 9º Quadro Acrobata bate numa bola de boxe Philip – Olá! Cá está o sereno acrobata cego, o super-herói, também experimenta a violência? Stan - Faz parte do meu treino Philip – Sim um treino completo de sobrevivência Stan - Não sejas provocador. Philip – E pode-se saber a quem batias? Stan - Em ninguém… Philip – Em ninguém em particular, queres tu dizer, na humanidade em geral. Stan - És irreverente! Philip – A verdade é irreverente! Stan - Não sabes nada de mim…
  • 18. 18 Philip – Sei que és como todos nós, também odeias, também te queres vingar de alguma coisa. Tu, quem odeias? Philip – Ninguém em particular, o mundo em geral, a humanidade em particular. Stan - A humanidade? Philip – O defeito de fabrico, aquele ácido ribonucleico que gera a hipocrisia. Stan - Talvez não percebas o mundo…a hipocrisia depende da perspectiva, há bons motivos para ser hipócrita. Philip – Ah sim? Cá temos uma novidade. Stan - Cada um luta por os seus objectivos pessoais. Philip – A tua imagem, é isso, tu zelas pela tua imagem de super astro, o super diferente. Dizes o que não sentes. Juraria que há pouco desancavas aquele saco de boxe como quem agride toda a humanidade, talvez até deus tu agredisses, talvez pela tua cegueira… Stan - És insuportável! Philip – Não sei como te suportas a ti mesmo (sai) Stan – Fui longe de mais. Acrobata continua a bater no saco de boxe. 10º Quadro Mágico faz um truque com lenços ou pombas Stan - Como fazes? Rooney - Como fazes as tuas piruetas? Stan - Boa parte de trabalho e algum talento. Rooney - Ora aí está, ainda não se inventou melhor truque. Stan - Claro, a magia não existe.
  • 19. 19 Rooney - Claro que existe, a magia foi a primeira explicação do mundo, ainda hoje do que acontece e não se conhece a causa, o homem encontra na magia a resposta (enche um copo com água e fica vermelha) Stan - Na técnica quer dizer, na ciência e na técnica, um dia seremos essa espécie de máquinas, os robots Rooney - Com a Ciência e a técnica produziremos nova magia (enche um copo com água e fica vermelha, depois passa-a para outro copo e fica transparente novamente) Stan - A ciência matará o circo Rooney - Talvez. O circo como o conhecemos Stan - Aí está, tem razão, nessa altura precisarei de alguma magia Rooney - Pois é. Para certas coisas não há outra solução. Eu faço-te um truque. Mágico faz aparecer uma bailarina Stan - Conheço este perfume… Rooney - Talvez…(sai) Stan - Há muito tempo, não pode ser… Rita - Chamo-me Rita. Stan - Rita? Fiz confusão Rita - Se calhar mr. Rooney hipnotizou-o… Stan - Onde está ele, quero acordar…. Rita - Acordar? Que engraçado uma pessoa acordada que quer acordar. Stan - Hoje precisava de ver Rita - Que lhe interessa isso a si, tem esse olho vermelho aí dentro de si Stan - Sim, sinto-a e isso chega-me não é? Rita - Claro, senão como estava aqui? Stan - É magia!
  • 20. 20 Rita - A magia de estarmos os dois aqui. Stan - Está-se a sorrir, eu sei como se sorri.. Rita - Como é o meu sorriso? Stan - Como uma fresca manhã Rita - Uma fresca manhã? E porque não uma tarde mais quente ou uma noite amena luareja? Stan - Uma fresca manhã, quando o dia se abre e torna tudo possível outra vez Rita - Ah!Ah! Boa sorte para a manhã (vai a sair) Stan - Não se vá embora, quem é você? Rita - Sou uma bailarina (ri-se) voltaremos a encontrar-nos Stan - Não vá! Eu sei, nunca mais me vou esquecer do seu riso… 11º Quadro Palhaço com uma pistola persegue o acrobata Philip - Passa para cá a carteira isto é um assalto Stan - Eu sei que és tu, não consegues disfarçar a voz. Isto é ridículo, persegues-me para sempre? Philip - Vou dar-te um tiro. Stan - Atira espécie de Dillinguer, morrerei na arena, que melhor morte para um gladiador. Philip - Vou disparar (dispara a pistola de brinquedo dela sai uma bandeira bang)Ah! Ah! Era só uma piada, gostaste do Bang da bandeirita? Stan – Idiota, esqueceste-te que sou cego. Não tens piada e não conheces o público, cá pra mim és o próximo a ser despedido.
  • 21. 21 Philip – Por gente da tua laia, vencer é disso que fazem a vossa vida. Eu tenho amigos, até tenho uma família, tu, tu não tens nada… Stan – Esta conversa é ridícula. Philip - Tu é que és ridículo, mas não sabes… tenho pena de ti… Stan - O que sabes sobre mim? Philip - Que és um cego, sempre o foste? Stan - Para que queres saber isso? Philip – Fazes-me impressão…tenho curiosidade. Stan - Porque diabo contaria a minha vida a um adversário, ou espécie de inimigo…como tu? Philip - Eu por exemplo perdi o braço nas trincheiras em França? Na guerra na Europa. Fui um desses que não tinha onde cair, alistei-me em 17. Stan - Continuas na mesma… Philip - Talvez…Só quando não temos certas coisas é que lhes damos real valor… Stan - Perdeste um braço e depois? Philip - Perdi um braço…? Um braço e uma mão…sentir-me –ei sempre um coitado. Perder a mão? Li em qualquer lado que a mão é o elemento que melhor caracteriza a espécie humana…elemento de extrema importância…olha por exemplo tu se não tivesses mão não poderias ser acrobata. Stan – Poderia ser outra coisa, até palhaço. Philip – Não compreendes… uma mão é um instrumento fino, especializado (demonstra com a outra mão) 5 dedos articulados entre si e que agem independentes igualmente com um oponível aos outros, característica única na espécie animal. Stan – (repete enfastiado) Característica única da espécie animal.
  • 22. 22 Philip – Pois, com ela segura-se um guarda-chuva, um lápis, escreve-se a quem se ama, segura-se um escudo, acaricia-se uma mulher, aperta-se a mão a outro, afaga-se os filhos, segura-se um ceptro! Stan – Pois, uma quantidade de coisas! Philip – Deves ser daquele planeta daquele Flash Gordon, Ah! tu não lês o jornal, és cego. Stan – Fui um bebé prematuro nascido 12 semanas mais cedo. Isto significa que meu coração e meus pulmões não estavam desenvolvidos adequadamente. Por causa disso, recebi oxigénio através de um pequeno tubo que o levava directamente aos meus pulmões. Infelizmente, eu recebi oxigénio puro demais e isto danificou a minha visão. Do pouco que vi, não tenho a mínima hipótese de me lembrar. O que é a luz? Philip – Pois, não sabia. (ignora a pergunta) 12º Quadro Stan - Sabes mãe?... Eu vejo, sinto o público. Às vezes atrás da cortina eu oiço os risos, as tosses, os pequenos comentários, os bravos, a intensidade dos aplausos, desse escuro de onde vêm os sons, eu sei que há gente que sente, o medo, a ansiedade, a tensão. É mais do que ver, tenho o mundo no coração, como se o mundo estivesse cá dentro. A vida está dura mãe! Enquanto voo no meu salto mortal eu sinto que o mundo roda comigo, e eu vibro. De pés firmes no chão recebo os aplausos, abro os braços, o mundo foge-me do coração. Do lado de lá o mundo parece-me que fica melhor, do lá de cá simplesmente o vazio. É esse vazio que me prende ao circo. Aqui tenho qualquer coisa a fazer com ele, noutro sítio este vazio seria solidão.
  • 23. 23 Quando choravas ao pé de mim e fingias que estavas feliz por mim, eu sabia mãe, que este vazio poderia ser alguém! 13º Quadro Stan está encostado num alvo com facas espetadas à volta dele Stan – Porque me escolheu a mim? Morte – Porque não vê. Stan - Mais uma vantagem de ser cego. Morte - Quem não vê não teme. Stan - Não tenho medo de morrer… Morte - Nada receie, sou um lançador experimentado. Stan – Conheço-lhe a voz… Morte – Ouve o silêncio? Stan - Claro é você! É agora? Atira uma faca, espeta-se ao lado de Stan Morte - Nada disso, você engana-se, isto não é uma questão de tempo. Stan - Ah não? Morte - Não. Vai-se lançando facas a toda a hora, é um treino. Stan - Treinamos sempre… Morte - Está-me a entender, temos de treinar muito, até à hora do grande show. Stan - Treino-me para domingo, será a estreia do meu novo número. Morte - Showtime! Stan – Não me atira mais facas? (ninguém responde)
  • 24. 24 14º Quadro Anda às cegas com uma bengala branca, encontra o palhaço com outra pintura Philip – Também andas às cegas. Stan - Cala-te não sejas imbecil, sabes que sou cego. Philip – Agora a Acrobacia é outra, mais penosa, é a vida. Stan - Não, isto é um sonho. Philip – Podia copiar-te a andar às cegas, toda a gente no circo ir-se-ia rir. Stan - Faz isso, talvez recebas uma medalha. Philip - E quem me iria dar essa medalha? Stan – Um desses homens poderosos de que gostas de dizer mal, a fraqueza dos outros é o seu ganha pão. Tu também poderias ser o palhaço mais idiota do mundo. Philip - Tens sempre resposta para tudo. (prende a perna do acrobata com o pé). (acrobata cai). És cego, não vês nada. Ah! Ah! Cai e levanta-se várias vezes com rasteiras do palhaço. Stan - Vingas-te…no outro jogo… Philip - Os teus jogos! estou farto de te dizer, isto tudo que não vês, não é um jogo, isto não é um desafio, uma competição. Stan - Não, não é. Philip - Isto é a vida real, faremos tudo para sobreviver. Stan - O que é isso que chamas de tudo? Philip - Qualquer coisa, não te faças de ingénuo. (passa-lhe nova rasteira) Stan - Afinal também és cruel. Philip – Não, sou um sobrevivente. Stan - Como vão as coisas com o teu novo número?
  • 25. 25 Philip - Estás interessado em saber… Stan - Há novos palhaços no circo… Philip – Sim. Stan - Como são eles? Bons? Philip - São palhaços acrobatas… todos dizem que são espectaculares. São chineses. Stan - Acrobatas? Philip - Sim, parece que também chegou a tua hora…(passa-lhe outra rasteira) Stan - Estou a trabalhar no meu novo número. Philip – Felicidades, Stan - E tu o que vais fazer? Um novo número? Philip - Vou juntar-me a eles, fazer qualquer coisa que complete o número. Stan - Eu não me vou ficar… Philip - Claro , és o campeão, a grande estrela do circo(ironia) …(passa-lhe outra rasteira) Stan – Aceito a derrota, vocês são mais! Philip – Somos mais, não te esqueças (sai) Stan – (levanta-se) Amanhã farei este percurso sem bengala. 15º Quadro (vídeo da Betty boop dançando)
  • 26. 26 Rita brinca com Stan. Vai de um lado para o outro batendo palmas. Stan dirige-se para ela. Depois de algum jogo, a bailarina bate palmas de um lado e de outro da cabeça de Stan, ele não se deixa enganar e fica sempre com a cara virada para onde ela está. Stan –Rita! Rita – Como sabes… Tu..! Tu afinal vês! Stan - O teu perfume, não me poderia enganar. Para mim és maravilhosa. Quando sinto o teu aroma, o espectáculo é para ti. Rita - (bailarina apalpa-o acrobata descreve-a) Obrigado, ia a passar… Stan - Passaste duas vezes por mim Rita - Sinto curiosidade, admiração Stan - Pena, para ser mais exacto Rita - Magoas-te a ti próprio. Nem todos pensam da mesma maneira. Stan - Talvez, não me importa. Rita - Ter pena afinal também é ter um sentimento de carinho pelo outro. Stan - Não sou igual a outro qualquer. Rita - Também penso o mesmo. Stan tenta beijá-la, ela acaba por lhe dar um beijo e foge Rita - Quero saber como é um acrobata, de que é feito, como é a arte, o que faz ele, quem é ele… Stan – (Tenta persegui-la ela foge e ele acha-a sempre) Um acrobata? É como um bailarino, dança no trapézio. Rita – (sempre fugindo) Uma dança? Disso percebo eu mas não me parece.
  • 27. 27 Stan – O acrobata dança com o próprio aparelho. O corpo e o trapézio, um par inseparável. Rita – Não sabia que já tinhas par. Stan – Só no espectáculo. Porque me foges? Rita – Quero ver-te dançar… Stan – Provocas-me… (pára) Rita – (aproxima-se) Nunca perco o teu número, no trapézio pareces um deus, a tua precisão, a tua coragem, tens qualquer coisa de especial, nunca te disseram? Stan – Talvez mas só agora ouvi com atenção. Rita – Não sei se vou continuar no espectáculo… Stan – Não te podes ir embora… Rita – Eu não sou uma bailarina… Stan – Não? Rita – Sou um sonho. Stan – Não, não pode ser. Rita – Na verdade tu já me esqueceste há muito tempo… Stan – Como? És tu? Rita – Tu sabes… Stan – Mas éramos muito novos, eu pensava de maneira diferente, a minha vida era o circo sabes bem que… Rita – Sei. Estive sempre no mesmo lugar. Stan – Não sabia… Rita – Há muita coisa que o teu coração não sabe. Stan – Vens cobrar-me… Rita – Não, tu é que me procuras, embora o negues.
  • 28. 28 Stan – A minha vida foi o trapézio…a acrobacia. Rita – O mundo também anda a girar… Stan – Este acaso… Rita – Fizeste-te um belo acrobata….tanto treino onde queres chegar? Neste mundo, mesmo sem o ver há muito mais que admirar. Stan – És um sonho (perturbado) vai a sair Rita – Já te vais embora? Stan – Tenho de ir treinar. Rita – Vais-te esquecer de mim. Stan – Não, farás parte da minha vitória. Rita – “…Até que ele há-de chegar À tristíssima vitória De não ter mais que avançar.” 16º Quadro Philip – Vou ser despedido, o meu número foi um fiasco. Stan – O que pensas fazer? Philip – Voltar ao Alabama, terei de descobrir algo para fazer por lá. Stan – Podias tentar noutro circo arranjar trabalho. Philip – Já não tenho nada para fazer rir. Stan – Eu disse-te que um dia as piadas acabam. Philip – É verdade o mundo agora é sério, ninguém deve rir. Stan – Não sei, há profissões que são agora difíceis.
  • 29. 29 Philip – Compreendo, algo mudou, não sei se para melhor. Stan – A vida é um barco à deriva é preciso saber navegar… Philip - Sim, eu nunca tive jeito para marinheiro. Stan – Acabei por vencer a nossa partida, mas não me sinto melhor por isso. Philip - Vitória não é sinónimo de felicidade. Stan – Aonde vai tudo dar? Philip – A lado nenhum, isto não é um caminho. Stan – Não? Philip – Isso, talvez seja apenas uma pergunta. Stan - Uma pergunta? Philip – Sem resposta. Stan – Não sabes a resposta, palhaço filósofo sabe tudo? Philip – Se soubesse porque ta diria? Stan – Porque no fundo admiras-me, gostas de mim, reconheces-me como um vencedor. Philip – Pois, não vês e também não sentes, não sei como ainda estás vivo. Stan – Ouvirás falar de mim… Philip – Talvez… e lembrar-me-ei desta conversa…pensarei assim: aí está um homem completamente sozinho. Stan – Terei o meu público… Philip – No teu camarim estarás só tu, adeus! Stan – Adeus! (tenta cumprimentá-lo, este sai por outro lado) Philip – Tudo vai acabar, prepara-te! Também haverá um dia destes para ti.
  • 30. 30 17º quadro Stan - Rita, não sei escrever, não posso escrever-te, não posso dar-te um ramo de flores, não posso ver-te, não posso encontrar-te fora do sonho, estou só, irremediavelmente só, o meu lugar é no topo do circo mas daqui não vejo a paisagem, não sou deus, nem tão pouco sou um rei, não tenho reino nenhum, o meu único súbdito é a memória. Aqui guardo os aplausos, a minha única companhia, o meu único alimento. Os aplausos, pássaros migrantes das emoções, que voam conforme o tempo. Dos sentimentos só te tenho a ti, como uma cotovia abrindo cada manhã….mas tudo em mim não tem um fim, por mais que o dia se prometa, por mais que eu alcance, não consigo chegar ao fim, há uma barreira de luz que eu não sei, que não posso ultrapassar. Uma cambalhota, um salto mortal espectacular É tudo quanto me posso aproximar da luz. Os teus olhos não os esqueço na tua voz, estão lá sempre, no trapézio naquele silêncio de luz. Mas é tão pouco, tudo é tão pouco por cá. 18º Quadro Um saxofonista toca um tema de circo Stan - Lembro-me dessa música desde pequeno. Saxofonista - Toco-a há mais de 30 anos. Stan - Eram outros tempos do circo, The greatest Show on earth! Saxofonista - Assim mesmo, também sou desse tempo. Stan - Quando passávamos todo o ano em digressão.
  • 31. 31 Saxofonista - Íamos a todo o lado, até à mais pequena cidade. Stan - Em todos os estados. Saxofonista - As fanfarras nesse tempo eram enormes. Stan - Iam à frente de grandes paradas de circo, anunciando o espectáculo. Saxofonista - Parecia que tudo isto nunca iria acabar. Stan - Você não esteve sempre aqui pois não? Saxofonista - Não, já trabalhei em outras companhias. Stan - Agora são poucas. Saxofonista - Quase a única. Você sempre esteve aqui? Stan - Sim, desde miúdo, um tio meu era domador de leões no Ringling Bros, e como eu tinha jeito para a ginástica. Acho o que me chamou para o circo foi a música. Saxofonista - Como é ouvir música sendo cego, nada de especial não é? Stan - Não sei! Para mim a musica diz-me tudo, informa-me, diz o que é o mundo é como a rádio agora, diz-me tudo o que não sei. Saxofonista - Deve ser tramado (coça a cabeça) isso da cegueira. Stan - Nem por isso, é uma maneira de estar só, aprende-se a viver. Saxofonista - Viver, isto já não dá para viver, agora querem pôr gravadores a fazer o meu trabalho. Stan - Isso é impossível, o circo precisa de música ao vivo. Saxofonista - O circo precisa é de dinheiro, o sr Bonn que o diga. Stan - Pois, dinheiro, parece que se escoa por todo o lado. Saxofonista - Não em todo o lado, a terra é inclinada, o dinheiro vai mais para um lado que para o outro. Stan - Eu acho que temos de fazer o nosso trabalho bem feito, é só isso que é preciso, dinheiro?
  • 32. 32 Saxofonista - O nosso trabalho bem feito. Conheço um tipo meu amigo que trabalha na siderugia, oito horas diárias a apanhar aquele calor das fornalhas. Faz mais de trezentos eixos/dia para automóveis. Não acha que isso é trabalho bem feito? Stan - Sim, mas… Saxofonista - Qual mas, o que recebe mal dá para alimentar a família. Stan - Podia procurar outro trabalho. Saxofonista - Podia ser outro no seu lugar, nem todos nascem músicos ou acrobatas. Stan - Outro a mudar o mundo. Saxofonista - Não, estamos só a falar, adoro o meu saxofone, conheço todo o país à custa dele. Stan - Pois se eu não fosse cego não seria atracção… Saxofonista - Está a ver…? Stan - Vejo, vejo, não sou cego. 19º Quadro Vendedor de pastilhas - Chewming gum, cheming gum, ora três por preço de um Stan – Três por preço de um? Vendedor de pastilhas - Cada vez mais as pessoas compram menos. Stan - Estamos a dar-lhes o nosso trabalho Vendedor de pastilhas - Era bom que isso fosse verdade, dar-lhes trabalho, coisa que a maioria não tem Stan – A casa está boa?
  • 33. 33 Vendedor de pastilhas - Que é lá isso? Meia dúzia de gatos-pingados, todos com os filhos, as crianças são as únicas pessoas que ainda gostam de circo. Stan – As crianças? Pois, só elas ainda vêem. Vendedor de pastilhas - O que disse? Stan - Nada, coisa de cego, não tem importância para quem vê, os vossos olhos estão sempre ocupados com qualquer coisa em movimento. Vendedor de pastilhas - Eu de filosofias nada percebo, mas que isto está mal, lá isso é verdade. No próximo Verão piro-me para Nova Iorque, vou para as corridas de cavalos, ali nunca falta o dinheiro. Stan - Pois, quem me dera realmente ver, poderia pensar numa alternativa a isto. Vendedor de pastilhas - Claro, assim é que é pensar. Precisa de ser optimista, ter esperança em qualquer coisa que apareça. Stan - Não sei, há muito tempo que faço isto. Especializei-me, sou um especialista de circo. Vendedor de pastilhas – Azar para os especialistas, por isso é eu preferi a carreira geral.. Ah! Ah! Desculpe-me a piada. Stan - De nada. Três por um, para mim também? Vendedor de pastilhas - Claro e para si até vendo a crédito. Olhe eu sou um admirador seu. Stan - Obrigado. Boa Sorte lá em Nova Iorque! Vendedor de pastilhas - Três por um! Três por um! Três por o preço de um. .
  • 34. 34 20º Quadro (entra no palco com um cão agarrado ao pé) Stan – Este cão que não me larga, que pretendes de mim? Quem és? (continua a correr de um lado para o outro, cai, segura o cão, tenta afastá-lo) Só agora decidiste atacar-me, esperaste o teu momento não foi? Já sei, tens inveja de mim. De eu ser um campeão, tens raiva do que consigo sem ti. Sempre contei contigo, não te via mas sabia da tua existência. És um cão, serás sempre um cão, nunca encimarás um cartaz, nunca dirão o teu nome, o que tens serve-te apenas para o teu dono te chamar. Não me largas? Olha toma um bife, vai Ah não tens fome, foste atacado por outro infortúnio, Deves ser medonho, talvez como dizem da cor preta, escuro temos isso em comum, mas tu tens a vergonha de ver e és cego, eu não sei a luz, mas podes estar certo que vejo. Sou inteiro, uma unidade perfeita, equilíbrio de força, sabes eu sou um som uma harmonia de técnica e de talento, ambição, não, não sabes o que é isso, és um cão, coitado de ti! Cão raivoso, só agora conseguiste, mataste-me. … Voz off(Stan) – Estou pronto. Vou tirar esta venda negra, não verei luz, mas mais uma vez no meu salto terei ar, voarei, ninguém estará à minha espera, serei eu no nada, concluirei o salto com os pés firmemente na terra.
  • 35. 35 21ºQuadro Bonn – O seu número é belo, como sempre você atingiu o máximo, mas tenho uma má notícia para si: os números da bilheteira assim o dizem, estamos à beira da falência. Não posso manter o circo como está. Terá de haver despedimentos. Stan – Eu sou o seu melhor número. Bonn – Um número que não altera a contabilidade. Stan – Fiz-lhe ganhar muito dinheiro. Bonn – Dinheiro que já não existe. Stan – Não percebo de dinheiro. Bonn – Pois não, para dizer a verdade eu também não, mas em Wall Street sabem bem disso. Acabei de contratar uma nova atracção, Gargântua, o gorila. Stan – Ouvi falar dele, um gorila desfigurado… Bonn – Tem sido rodeado da maior curiosidade pela parte do público. É de um número destes que este circo estava precisado. Os números tradicionais estão ultrapassados. O público quer sangue, aterrorizar-se, experimentar novas emoções. Stan- Serei portanto trocado por uma besta sanguinária. Bonn - Não veja as coisas desse modo… o público… Stan – Terei de ir embora. Bonn – (pausa) Talvez possa tentar outros palcos, o cinema por exemplo… Stan – A pista é a minha vida. Bonn – A vida, hoje está noutro lugar…Adeus! Stan – Não serei um cego na multidão. Bonn – Não sei quem vê hoje em dia…
  • 36. 36 22º Quadro (A morte à frente de uma moldura vazia de espelho de camarim, de frente para o acrobata) Stan – Tu és a morte. Morte - Não, sou um espelho. Stan - Não compreendo… Morte – Não queres compreender… Stan – Eu não te posso ver. Morte - Se calhar não existo para ti. Stan – Nunca vou saber…será sempre tudo escuro assim? Morte – Podes imaginar… Stan - Tudo o que sei está, nos voos que percorro no vazio do alto da tenda, nas pessoas sem rostos que me rodeiam a toda a hora. Morte - És um fiel companheiro. Stan - Tu, sejas quem fores , eu sei que estás sempre comigo, em todos os corredores escuros, nas estradas infinitas, nos longos silêncios sem luz, nas minhas angústias, nos momentos em que o meu corpo está suspenso no tempo, tu deves saber a minha pergunta… Morte - Essa pergunta ….. Stan - O que é a luz… Morte - Essa pergunta não te posso responder.
  • 37. 37 Stan - Porque não sabes… Morte - Não sou dessa condição Stan - Sim, temos semelhanças. Dizes-me quem és? Morte – Sou um espelho… (afasta-se) Stan – Isso diz-me tão pouco, Morte – …E um relógio Stan – Ah és do tempo? Morte – Sou! Como quiseres… Stan – Não te vás embora… (caminha para ela) Morte – Isso, vem comigo… Sai lentamente do baloiço Voz de Stan – Isto é sempre um sonho, um pesadelo é um sonho, nunca verei a luz do dia, mas do sonho poderei acordar. 23º Quadro Stan veste-se lentamente com a ajuda do empregado do circo e sai com uma mala de viagem. Rita corre para ele Rita – Espera, vou contigo. Stan – És um sonho, tenho de apanhar um autocarro. Rita – Os sonhos gostam de companhia. O acrobata tateia-a devagar, beija-lhe as mãos, ela dá-lhe o braço, saem. Fim