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UMA MULHER À FRENTE DO SEU TEMPO
COORDENAÇÃO GERAL
SCHUMA SCHUMAHER
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
FLÁVIA DIAB
STANLEY WHIBBE
COORDENAÇÃO DE ADMINISTRAÇÃO
CLÉO ASSIS
TEXTO
CONSTÂNCIA LIMA DUARTE
REVISÃO DE TEXTOS
BEATRIZ DI PAOLI
PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE IMAGENS
LULA RICARDI – XYZDESIGN
ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO
NOÊMIA INOHAN
PRODUÇÃO
MERCADO CULTURAL
FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL
PRESIDENTE
JACQUES DE OLIVEIRA PENA
DIRETORES EXECUTIVOS
ELENELSON HONORATO MARQUES
FRANCISCO ASSIS MACHADO SANTOS
DIRETOR DE EDUCAÇÃO E DESPORTOS
MARCOS FADANELLI RAMOS
ASSESSORES
ADEMIR VIEIRA DOS SANTOS
CLAUDIO ALVES RIBEIRO BRENNAND
GERMANA AUGUSTA DE M. M. L. MACENA
PETROBRAS
PRESIDENTE
JOSÉ SERGIO GABRIELLI
GERENTE EXECUTIVO DA COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL
WILSON SANTAROSA
GERENTE DE RESPONSABILIDADE SOCIAL
LUIS FERNANDO NERY
GERENTE DE PATROCÍNIOS
ELIANE COSTA
GERENTE DE PATROCÍNIOS CULTURAIS
GILBERTO BARROS
COORDENADOR DE TECNOLOGIAS SOCIAIS
LENART NASCIMENTO
REDEH – REDE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO
COORDENADORA GERAL
THAIS RODRIGUES CORRAL
COORDENADORA EXECUTIVA
SCHUMA SCHUMAHER
CONSELHO CONSULTIVO
BETH VARGAS, EDUARDO CUSTÓDIO MARTINS,
HELENA TEODORO, JOIS ORTEGA,
LUCIA XAVIER, MARISTELA BEZERRA BERNARDO,
MOEMA VIEZZER
Duarte, Constância Lima
D812n		 Nísia Floresta: uma mulher à frente do seu tempo:
fotobiografia / Constância Lima Duarte; ilustrações de Luiz Fernando Ricardi. Brasília:
Mercado Cultural, 2006.		
	 120 p.
	 ISBN 978-85-98757-05-5
	 ISBN 978-85-98757-05-6
	 Projeto Memória
	 1. Literatura brasileira 2. Augusta, Nísia Floresta Brasileira – Biografia – Obras ilustradas
3. Augusta, Nísia Floresta Brasileira – Vida e obra – Fotografia 4. Augusta, Nísia Floresta
Brasileira - Genealogia
I. Título
								
		 CDD 21.ed. 869.092
Por que a ciência
nos é inútil? Porque
somos excluídas dos
cargos públicos; e por
que somos excluídas
dos cargos públicos?
Porque não temos
ciência.
Nísia Floresta,
em Direitos das mulheres e
injustiça dos homens.
O preço por tal pioneirismo foi alto: seu nome foi envolvido pelo esquecimento e durante al-
gumas décadas não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito
ou impregnado da surpresa dos que se deparavam com uma história de vida como a sua e a
novidade de suas reflexões. Viver à frente de seu tempo custou-lhe o não-reconhecimento de
seu talento e, por isso, até hoje não é citada na história da literatura brasileira, como escritora
romântica, nem na história da educação feminina, como educadora.
Seu pensamento, no que diz respeito à condição das mulheres, extremamente subjugadas em
seu tempo, ajudou na formação de uma consciência mais crítica em relação ao que era tido
como um dos maiores atrasos do País naquela época: a negação ao sexo feminino do direito a
uma educação tal qual a que era oferecida aos homens, impedindo assim seu acesso a espaços
de poder na sociedade.
Mais do que nunca se faz importante a escolha de Nísia Floresta como a homenageada da déci-
ma edição do Projeto Memória. A divulgação de suas idéias contribuirá, de forma inequívoca,
para nos fazer lembrar da história das mulheres brasileiras na luta pelo reconhecimento de seus
direitos e de sua capacidade intelectual.
Idealizado em 1997 pela Fundação Banco do Brasil, o Projeto Memória tem como objetivo ho-
menagear e levar ao conhecimento do público a trajetória de importantes nomes da história
do nosso país. A iniciativa conta desde 2004 com a parceria da Petrobras e nesta edição com a
Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano.
O Projeto é ainda composto por uma exposição itinerante, que percorre cerca de 800 municípios
brasileiros, um kit-pedagógico, que é distribuido em aproxidamente 18.000 escolas públicas,
um website, que pode ser acessado pelo link www.fundacaobancodobrasil.org.br, e, além deste
livro foto-biográfico, um vídeo-documentário, estes últimos enviados a 5 mil bibliotecas nos 27
estados da Nação.
Esperamos que por meio desta iniciativa possamos levar ao público o conhecimento acerca des-
sa ilustre norte-rio-grandense, com a certeza de estar contribuindo, de maneira decisiva, para o
fortalecimento da identidade cultural da Nação.
REDEH . PETROBRAS . FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL
Na história da mulher brasileira, o nome de Nísia Floresta se impõe e ocupa as primeiras pá-
ginas, tanto pela coragem revelada em seus escritos, como pelo ineditismo e ousadia de suas
idéias. No tempo em que a grande maioria das mulheres vivia recolhida em suas casas sem
nenhum direito, e o ditado popular dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor”, ela
dirigia colégios para moças, colaborava em jornais e escrevia livros e mais livros defendendo
os direitos das mulheres, dos índios e dos escravizados.
Nascida em 1810, em Papari, Rio Grande do Norte, Nísia Floresta publicou seu primeiro livro,
“Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”, em 1832, quando tinha apenas 22 anos. Abor-
dou também, em seus textos, temas como a opressão aos índios, iniciada com a colonização
portuguesa, a escravidão e a imagem distorcida e preconceituosa que o Brasil possuía em ou-
tros países, tendo escrito aquele que é considerado o primeiro artigo em defesa dos aspectos po-
sitivos do “gigante do porvir”, como ela definia a nação de extensão continental e com vocação
para se tornar uma das maiores potências do planeta.
.Nasce uma ilustre brasileira . 10
.O primeiro livro feminista de que se tem notícia . 18
.A educadora . 24
.A indianista . 32
.A viajante ilustrada . 38
.O retorno à pátria, – novas publicações . 42
.A abolicionista . 46
.A nacionalista . 52
.Mais viagens... França, Alemanha,
Itália, Grécia... . 56
.Obras da maturidade – os livros em
língua estrangeira . 62
.Última viagem ao Brasil . 68
.Retorno à Europa – os últimos anos . 72
.A redescoberta da escritora . 78
.Primeiras homenagens . 82
.O Rio Grande do Norte acolhe a filha ilustre . 88
.Por uma história da mulher brasileira: suas
	 lutas e conquistas . 98
.Rumo à cidadania . 108
.Referências Bibliográficas . 122
SUMÁRIO
Em um longínquo 12 de outubro de 1810, às nove horas da noite, nascia a primeira
filha do casal Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa e Antônia Clara Freire, no sítio Floresta,
em Papari, interior do Rio Grande do Norte. A menina ganhou o nome do pai: Dionísia
Gonçalves Pinto, conforme consta no Assento de Batismo da Igreja de Papari.
O pai, um advogado português de idéias liberais que ali havia chegado nos primeiros
anos do século XIX, também fazia esculturas, como a figura de uma índia sustentando
na cabeça a pia batismal, que realizou para a antiga igreja de Papari. Como ele chegou a
essa povoação do nordeste brasileiro não se sabe. Apenas, que ali conheceu e desposou
uma jovem viúva de nome Antônia, filha do Capitão-mor Bento Freire do Revorêdo e
de Mônica da Rocha Bezerra, mãe de Maria Izabel do Sacramento, fruto do primeiro
matrimônio. Além de Dionísia, o casal teve ainda dois filhos: Clara e Joaquim. Sobre
a mãe, sabe-se muito pouco: apenas o que ficou nos escritos da filha – que era uma
mulher carinhosa, inteligente e enérgica nos momentos necessários.
NASCE UMA
ILUSTRE
BRASILEIRA
11
Nísia vai levar consigo as imagens da Floresta de sua meninice não só no nome, mas em inúmeras
referências que faz em seus livros. Os “jardins balsâmicos” da “risonha” Floresta a acompanham em
reminiscências até o Velho Mundo e contribuem para impregnar seu espírito de saudades da terra
natal. Em alguns anos, grandes mudanças sofrerá a próspera Floresta e os dias tranqüilos da infância
estavam no fim. A pequena Dionísia logo saberia disso.
Nos primeiros meses de 1817, chegaram notícias de uma rebelião iniciada em Recife contra
os abusos do poder estrangeiro, mais tarde conhecida como Revolução de 17, que visava
principalmente ao estabelecimento de um governo local e autônomo. Cansado das perseguições,
Dionísio muda-se com a família para Goiana – um centro cultural do interior pernambucano – e
lá espera o fim dos acontecimentos.
Segundo alguns historiadores, a Revolução de 17 fracassou por excesso de idealismo dos dirigentes.
Mas há quem não pense assim. E a repressão não tardou: corpos foram mutilados e cabeças dos
líderes exibidas nas praças. Dentre os revoltosos, o nome de Bárbara Pereira de Alencar (1767-1837?)
tornou-se conhecido, por ter sido encarcerada com os filhos e sofrido privação. Em Alagoas, Ana Lins
também aderiu à causa liberal e foi ardorosa defensora da revolução pernambucana de 17.
VLADEMIRALEXANDRE
Em novembro de 1810, quando Dionísia contava um mês de vida, o sítio Floresta recebeu a ilustre
visita de Henry Koster. Em sua viagem pelo interior do Rio Grande do Norte, o inglês travou
conhecimento com o pai de Dionísia e se hospedou em sua residência, conforme consta no livro
Viagens ao Nordeste do Brasil:
Senhor Dionísio apresentou-me a sua mulher.
Ele é português e ela brasileira. Têm uma
pequena propriedade no vale, que me pareceu
prosperamente colocada. (...) Jantei à moda
brasileira, numa mesa colocada a seis polegadas
do solo, ao redor da qual nos sentamos ou
melhor, nos deitamos, sobre as esteiras. Não
havia garfos e as facas, em número de duas ou
três, eram destinadas a cortar unicamente os
maiores pedaços de carne. Os dedos deviam
fazer o resto. (KOSTER: 1978, 85)
À direita, a igreja matriz da cidade de
Papari, que, desde 1948, passou a
chamar-se Nísia Floresta em homenagem
à ilustre filha da terra.
Na página ao lado, vista parcial da praça e
do antigo casario da cidade,
em foto de 2006.
VLADEMIRALEXANDRE
12 13
No Rio Grande do Norte, as demonstrações de ódio aos portugueses se aproximam da residência do
senhor Dionísio, que decide deixar definitivamente o sítio. Após rápida passagem por Goiana, ele se
instala em Olinda, onde passa a exercer a advocacia. E não era sem tempo. Ao final de 1824, um grupo
depreda a propriedade e saqueia os bens da família. O sítio, que tanta admiração causou a Koster, palco
dos primeiros anos de Nísia Floresta, não existia mais. Permanecerá vivo apenas no nome da escritora e
em sua memória.
Após a Independência, era preciso criar uma identidade
própria para o Brasil. Assim como Pedro Américo, na tela
“O Grito do Ipiranga”, Nísia se utiliza da estética romântica
para criar uma imagem grandiosa do país.
MUSEUPAULISTA-UNIVERSIDADEDESÃOPAULO
Dona Leopoldina (1797-1826),
primeira imperatriz do Brasil,
desempenhou importante papel
nos rumos do Brasil.
Em Goiana, Nísia ouviu as primeiras vozes liberais que a marcariam por toda a vida. Além de um centro
intelectual irradiador de novidades, a cidade abrigava o Convento das Carmelitas, onde as jovens de
famílias abastadas podiam estudar e aprender trabalhos manuais. É provável que Nísia tenha usufruído
dessas regalias, pois logo estará dominando línguas estrangeiras e se oferecendo como mestra de
primeiras letras.
Em 4 de maio de 1819, nascia o irmão Joaquim Pinto Brasil, na vila de Goiana. A irmã Clara já havia
nascido, não se sabe se em Floresta ou em Goiana. De Joaquim teremos mais informações porque o livro
Fragments d’un ouvrage inédit: notes biographiques [Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas]
(Paris, 1878) revela traços de sua personalidade. Meses depois a família voltava para Floresta. O ambiente
em Pernambuco, mesmo abafada a revolução, tornou-se pesado aos portugueses.
Um fato pouco esclarecido marcará o ano de 1823. Aos treze anos, Dionísia casa-se com Manuel Alexandre
Seabra de Melo, mas logo se separa e volta a residir com os pais. Tal atitude, inédita para a época, vai
contribuir para as opiniões desabonadoras de conterrâneos a seu respeito.
A Província de Pernambuco é foco de mais uma tentativa de separatismo de caráter republicano –
conhecida como Confederação do Equador –, dois anos após a Independência do Brasil. A retórica de Frei
Caneca inflamava os pernambucanos, dando-lhes forças para resistir, mesmo quando as tropas imperiais
invadiam as cidades.
PUBLICAÇÃOUMRIODEMULHERES/REDEH
1514
O destino de Dionísio estava por se cumprir e, em 17 de agosto de 1828, ele era assassinado quando
retornava para casa, após haver ganho a causa de um cliente. Segundo Nísia, os poderosos de Olinda não
toleravam aquele advogado agindo contra seus interesses e o mandaram matar.
Mas a vida não será só luto e dor. Enamorada de um jovem acadêmico, Manuel Augusto de Faria Rocha,
Nísia passa a residir em sua companhia. Mais tarde, quando a escritora vai viver na França e viajar pela
Europa, ela será conhecida como Mme. de Faria, como, ainda hoje, a Biblioteca Nacional de Paris registra
seu nome.
Em 12 de janeiro de 1830, nascia Lívia Augusta de Faria Rocha, a filha a quem a mãe dedicará livros, a
companheira de viagens e futura tradutora. No ano seguinte, 1831, nasceria um segundo filho, mas “cedo
arrebatado pela morte”, segundo suas palavras, e do qual não existem outras informações.
Vista de Recife às margens
do Rio Capiberibe, em fins
do século XIX.
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
16 17
O ano de 1831 foi o ano da estréia de Nísia Floresta nas letras. No Espelho das Brasileiras, um
jornal dedicado às pernambucanas, ela publica os primeiros artigos sobre a mulher em antigas
culturas. As reflexões sobre a condição feminina estavam, portanto, entre as primeiras que
motivaram e levaram Nísia Floresta a escrever. E essas mesmas questões – utilidade social
das mulheres, atitude injusta dos homens – serão retomadas em diversos outros escritos.
Em 1832, vem a público Direitos das mulheres e injustiça dos homens, assinado com o nome
que tornará famosa a norte-rio-grandense: Nísia Floresta Brasileira Augusta, que, ao invés
de ocultar sob o pseudônimo, revela as opções existenciais da autora. Nísia, de Dionísia;
Floresta, para lembrar o local de sua infância; Brasileira, para afirmar o sentimento nativista;
e Augusta, em homenagem ao companheiro Manuel Augusto.
Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi inspirado na obra de Mary Wollstonecraft –
Vindication of the rights of woman [Reivindicação dos direitos da mulher], de 1792 –, conforme
ela mesma declarou, mas também em livros de outros autores europeus. A novidade é que, ao
invés de simplesmente fazer uma tradução, Nísia assimila antropofagicamente as concepções
estrangeiras e escreve um livro denunciando os preconceitos existentes no Brasil contra a
mulher e desmistificando a idéia dominante da superioridade masculina.
Ao mesmo tempo em que constrói a defesa de seu sexo, ela denuncia e desmascara os artifícios
masculinos de dominação. E indaga:
Se este sexo altivo quer fazer-nos acreditar
que tem sobre nós um direito natural de
superioridade, por que não nos prova
o privilégio, que para isso recebeu da
Natureza, servindo-se de sua razão para se
convencerem? (FLORESTA: 1989a, 24)
O PRIMEIRO LIVRO
FEMINISTA DE QUE
SE TEM NOTÍCIA
19
Têm por ventura eles alguns títulos para justificar
o direito com que reclamam os nossos serviços,
que nós igualmente não tenhamos contra eles?
(FLORESTA: 1989a, 42)
Por isso Direitos das mulheres e injustiça dos homens deve ser considerado o texto fundante do feminismo
brasileiro, pois não há notícia de outro anterior. Quando Manuel de Macedo publica A moreninha, em
1844, romance de valor documental pela hábil fixação de tipos humanos e da vida social da época, ele
faz referências explícitas ao Direitos das mulheres, o que comprova sua divulgação.
Em novembro de 1832, Manuel Augusto conclui o bacharelado em Direito na Academia de Olinda e se
transfere com Nísia, a filha, D. Antônia, Clara e Izabel, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Apenas
Joaquim Pinto Brasil permaneceu em Olinda, pois estava ingressando na Faculdade de Direito.
A mudança aparentemente repentina de Olinda para Porto Alegre deu motivo a muitas especulações. Uns
acharam que Nísia foi obrigada a sair de Pernambuco devido às ameaças do primeiro marido de processá-
la por adultério. Outros divulgaram que Manuel Augusto foi para o sul a convite de um irmão que lá
Capa da quarta edição,
São Paulo, 1989.
Capa da segunda edição de
Direitos das mulheres e injustiça
dos homens, publicado em
Porto Alegre em 1833.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
(FLORESTA: 1989a, 42)
2120
O espírito revolucionário – Nísia logo o saberia – não era privilégio dos nordestinos. O pensamento liberal
se espalhava com rapidez e chegava aos campos gaúchos, semeando o descontentamento e aguçando
a rivalidade entre portugueses e nativistas, simpatizantes do partido republicano. Era a guerra civil,
pejorativamente chamada Farroupilha, por alusão aos farrapos com que os rebeldes se vestiam. Em 20 de
setembro de 1835, os revolucionários ocupam Porto Alegre e Rio Grande, as mais importantes vilas da
região, obrigando a população a se posicionar a favor ou contra um dos lados.
É desse período o início da amizade de Nísia com Anita e Giuseppe Garibaldi, o italiano responsável pelo
comando da marinha da República Rio-Grandense. Muitos anos depois, Nísia reencontrará Garibaldi na
Itália e, no livro escrito na ocasião, dedicará páginas elogiosas ao herói.
Com o o avanço da Revolução, o clima tenso na capital gaúcha torna-se difícil para uma mulher chefe
de família. Por isso, em fins de 1837, Nísia se transfere com os filhos e a mãe para o Rio de Janeiro. Mais
uma vez, nova cidade, nova vida.
Anita Garibaldi (1821-1849), natural de Santa
Catarina, participou ao lado de seu companheiro,
o italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882), da Revolta
dos Farrapos, no sul do País, iniciada em 1835.
Neste período Nísia manteve amizade com eles,
que, mais tarde, ficariam conhecidos como
“heroína e herói de dois mundos”.
“Proclamação da
República de Piratini”,
de Antônio Parreira
(1836), retrata um
momento importante da
Revolução Farroupilha.
Com a guerra, o clima
em Porto Alegre torna-
se hostil para uma
família de mulheres
e crianças, e Nísia se
muda, em 1837, para
o Rio de Janeiro.
MUSEUANTÔNIOPARREIRA,NITERÓI,RJ
A inglesa Mary Wollstonecraft
(1759-1797) é autora do livro
Vindication of the rights of
woman, de 1792, que defende
a igualdade entre os sexos. Essa
foi uma das obras que inspirou
as reflexões de Nísia Floresta
sobre o papel da mulher
na sociedade.
morava. Mas não importa se foi este ou aquele o motivo da mudança. Importa que, em Porto Alegre, nova
vida a aguardava. E, em 12 de janeiro de 1833, nascia o outro filho, Augusto Américo de Faria Rocha,
coincidentemente no mesmo dia em que Lívia havia nascido três anos antes. O fato de no Assento de
Batismo ele estar registrado como filho legítimo do casal – Nísia e Manuel Augusto – parece confirmar a
existência do segundo casamento da escritora.
Em 29 de agosto, um infeliz acontecimento marcará Nísia Floresta: Manuel Augusto morre repentinamente,
aos vinte e cinco anos, deixando-a com os filhos pequenos. A dor pela morte prematura do marido e as
saudades da mulher apaixonada pontuarão seus escritos, como a testemunhar a fidelidade ao companheiro
morto. Muitos anos depois, e vivendo em terras italianas, ela escrevia:
Dia de eterno luto para o meu coração. Esta aurora surge
aos meus olhos depois de uma série de longos anos,
sempre carregada de tristeza! É excessivo deplorar a
perda, mesmo prematura, de um esposo, pensarão talvez.
Mas eu sinto com toda a minha alma que é cedo demais
para esquecer um anjo que não fez mais do que passar
um momento sobre a terra para difundir em minha alma
o encanto de uma felicidade cujo segredo ele levou para
o céu! (FLORESTA: 1871, 48)
A vida continua. Nos quatro anos em que reside em Porto Alegre, Nísia dedica-se ao magistério e reedita
Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Uma das irmãs, Maria Izabel, casa-se com um jovem da
família Silva Arouca; o irmão, Joaquim Pinto Brasil, casa-se com uma moça de Pernambuco; e Clara vai
casar-se no Rio de Janeiro com o Dr. José Henrique de Medeiros, um português fidalgo da Casa Real de
Portugal, depois convertido à homeopatia.
2322
O Rio, apesar de ser a capital do país, tinha graves problemas. O lixo se acumulava nas ruas,
a iluminação era deficiente, os chafarizes eram poucos, e volta e meia a cidade era assolada
por epidemias. Em compensação, havia grande interesse pelo ensino, o que se constata nas
dezenas de escolas que aí funcionavam, dirigidas em sua maioria por estrangeiros. Nísia
não perdeu tempo. Em 31 de janeiro de 1838, estampa, no Jornal do Comércio, o anúncio
do estabelecimento de ensino que estava inaugurando:
D. Nísia Floresta Brasileira Augusta tem a honra de
participar ao respeitável público que ela pretende abrir
no dia 15 de fevereiro próximo, na rua Direita n° 163,
um colégio de educação para meninas, no qual, além
de ler, escrever, contar, coser, bordar, marcar e tudo o
mais que toca à educação doméstica de uma menina,
ensinar-se-á a gramática da língua nacional por um
método fácil, o francês, o italiano, e os princípios mais
gerais da geografia. Haverão igualmente neste colégio
mestres de música e dança. Recebem-se alunas internas
e externas. A diretora, que há quatro anos se emprega
nesta ocupação, dispensa-se de entreter o respeitável
público com promessas de zelo, assiduidade e aplicação
no desempenho dos seus deveres, aguardando ocasião
em que possa praticamente mostrar aos pais de família
que a honrarem com a sua confiança, pelos prontos
progressos de suas filhas, que ela não é indigna da árdua
tarefa que sobre si toma.
A EDUCADORA
25
Em 18 de dezembro de 1846
era publicada no Jornal do
Comércio, do Rio de Janeiro,
a lista da banca examinadora
e das alunas que se
destacaram nos exames
finais do Colégio Augusto.
A filha Lívia aparece
como uma das premiadas
em latinidade.
ao Rio de Janeiro com a família. Após residir em várias cidades, decide-se pela capital, onde exerce a
advocacia e leciona no Colégio D. Pedro II. Mais tarde, torna-se chefe de Secretaria do Ministério da
Agricultura e fundador do Instituto Psicológico.
Esses serão anos particularmente agitados para a jovem escritora. Em plena capital do Império, Nísia
Floresta fez conferências defendendo a emancipação dos escravos, a liberdade de cultos religiosos e a
federação das províncias. Todos que escreveram sobre ela referiram-se a tais palestras, com elogios ao seu
liberalismo. Segundo Ignez Sabino, em Mulheres Illustres do Brazil, os espectadores:
Saíam dali deslumbrados não só pela presença
agradável da jovem senhora, como pela audácia
da sua inteligência de primeira água e ainda
mais... um horror para aquele tempo!... por
ousar a ilustre dama falar em abolição e em
federalismo. (SABINO: 1996, 172)
Fachada do Colégio Augusto,
que ficava situado no centro
do Rio de Janeiro.
Desenho retirado do Mapa
Arquitetural da Cidade do
Rio de Janeiro, 1874.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
A Rua Direita foi o primeiro endereço do Colégio Augusto, cujo nome revela uma homenagem ao
companheiro falecido. Depois foi transferido para a Rua Dom Manuel nº. 20, com entrada pela Travessa
do Paço, nº. 23, bem em frente ao Palácio da Justiça. As novidades pedagógicas adotadas pela diretora
enfrentavam resistências, e não foram poucas as notas anônimas nos jornais ironizando o ensino do
latim, por exemplo, e a ênfase no estudo de línguas estrangeiras. Os mais conservadores relutavam em
aceitar uma mulher que ousava competir com as estrangeiras, que escrevia livros defendendo os direitos
de seu sexo e, ainda, publicava em jornais. Um dia, um jornalista, surpreso com a qualidade do ensino
que ali era ministrado, escreveu o seguinte: “Trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no
escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos”.
Em 1839, surge no Rio de Janeiro a terceira edição de Direitos das mulheres e injustiça dos homens,
conforme o anúncio do Jornal do Comércio de 25 de abril desse ano, informando que o livro se encontrava
à venda na Casa do Livro Azul, na rua do Ouvidor, 121, por 55 réis.
Em janeiro de 1840, o irmão Joaquim Pinto Brasil, tendo terminado o Curso de Direito em Olinda, chega
CONSTÂNCIALIMADUARTE
2726
Capa da edição italiana de
Conselhos à minha filha,
publicada em Florença, em 1858.
À esquerda, segunda edição
brasileira, de 1845.
É de 1842 a publicação de Conselhos à minha filha, dedicado a Lívia como presente de aniversário. Ao
concebê-lo, a mãe-escritora com certeza não imaginou que esse seria seu livro mais editado e traduzido.
Em 1845, saía a segunda edição acrescida de quarenta pensamentos em versos; mais tarde, surgem
duas em italiano, em 1858 e em 1859, e outra em francês, em 1859. As virtudes e os deveres filiais aí
apresentados podem ser assim resumidos: a menina educada deve ser simples, modesta, obediente aos
pais, respeitosa com os idosos e decidir-se sempre pelo oprimido.
Em 1847, três novas publicações vêm à luz no Rio de Janeiro, e todas dirigidas às alunas do Colégio:
Daciz ou a jovem completa, Fany ou o modelo das donzelas e o Discurso que às suas educandas dirigiu
Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nos anos seguintes, surgem mais escritos dedicados à educação, como
Opúsculo humanitário, de 1853, “O abismo sob as flores da civilização”, “Um passeio no Jardim de
Luxemburgo” e “A mulher”, sendo que os três últimos foram escritos em italiano e publicados no volume
Scintille d’un’anima brasiliana [Cintilações de uma alma brasileira], de 1859.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
CONSTÂNCIALIMADUARTE
29
Por fim, trata do Brasil e defende a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação
oferecida à mulher. E provoca:
“Um passeio no Jardim de Luxemburgo” é o único que contém referências explícitas à doutrina positivista,
por valorizar a função social da mulher, e expressões elogiosas ao filósofo Auguste Comte, justamente por
tê-la concebido. E em “A mulher” Nísia trata do costume francês de se enviar os filhos para serem criados
longe da casa materna, em casa de mulheres pagas para isso. Os altos índices de mortalidade infantil,
ou as tristes histórias de crianças abandonadas, não eram suficientes para sensibilizar as famílias, que
continuavam enviando os filhos para as amas-de-leite. Ao condenar com veemência tal costume e valorizar
a função materna, Nísia se antecipa ao debate que só ocorrerá na França nas últimas décadas do século
XIX e dá uma contribuição para a reflexão e para a mudança de comportamento da mulher francesa.
Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados!
Governo, que vos dizeis liberal! Onde está
a doação mais importante dessa civilização,
desse liberalismo? (FLORESTA: 1989b, 43).
Capa da segunda edição do
Opúsculo humanitário, de 1989.
Edição bilíngüe de
Cintilações de uma alma
brasileira, de 1997.
Opúsculo humanitário consiste na reunião de artigos que foram publicados nos jornais do Rio e contém a
síntese do pensamento de Nísia Floresta sobre a educação formal e informal de meninas. Revela ainda a
erudição da autora, sua experiência no magistério e na direção de escolas. Neste livro, ela recupera parte
da história da condição feminina em diversas civilizações, relacionando o desenvolvimento intelectual e
material do país – ou o seu atraso – com o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
30 31
Outros temas – como a causa indígena e o negro escravo – também mobilizaram Nísia
Floresta e foram tratados com paixão em seus escritos. O poema intitulado “A lágrima
de um Caeté”, de 1849, que assinou com o pseudônimo de Telesila, por exemplo, revela
o posicionamento da autora frente à questão indígena. Nele encontram-se alguns
traços inconfundíveis da estética romântica, como o elogio da natureza e a exaltação
de valores indígenas. Sua grande novidade é trazer o ponto de vista do índio vencido
e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor e não a visão do índio
herói, como a maioria dos textos indianistas do período romântico.
Era da natureza o filho altivo,
Tão simples como ela, nela achando
Toda a sua riqueza, o seu bem todo...
O bravo, o destemido, o grão selvagem,
O Brasileiro era... – era um Caeté!
(FLORESTA, 1997a, 36)
No livro A lágrima de um Caeté, a
escritora retrata o índio inconformado
com a colonização de suas terras,
em flagrante rompimento
com os ideais românticos da época.
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
A INDIANISTA
33
Além disso, o poema reúne ainda duas tendências românticas – a questão indígena e os conflitos
político-sociais – ao tratar também da derrota dos liberais na Revolução Praieira, ocorrida em
Pernambuco, em 1848. A Lágrima de um Caeté lamenta tanto a dizimação das tribos, como o
fim melancólico da revolução, a partir de uma mesma perspectiva: a do oprimido pela força dos
dominantes. E o discurso da narradora – às vezes até se confundindo com o do índio – acentua um
dado fundamental, que é o da perda de identidade do “silvícola”:
Indígenas do Brasil, o que sois vós?
Selvagens? os seus bens já não gozais...
Civilizados? não... vossos tiranos
Cuidosos vos conservam bem distantes
Dessas armas com que ferido tem-vos.
De sua ilustração, pobres caboclos!
Nenhum grau possuís!... Perdestes tudo,
Exceto de covarde o nome infame...
(FLORESTA, 1997a, 39)
Capa da primeira edição
do poema A Lágrima de
um Caeté, de 1849.
A terceira edição
ocorreu em 1897.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
3534
O índio de Nísia Floresta não é inocente, nem personifica a bondade natural idealizada nas teorias
filosóficas européias. E seu pranto representa não apenas o epitáfio poético da Revolução Praieira, mas,
principalmente, o fim da resistência indígena frente ao branco invasor.
Onde estão, fero Luso ambicioso,
Estes bens, que eram nossos?
Porangaba perdi, perdi os filhos...
Ai de mim! Inda vivo!
Com a Pátria lá foram esses tesouros!
O pranto só me resta!
(FLORESTA, 1997a, 42)
Ao assinar esse trabalho como Telesila, Nísia parece revelar a intenção de sempre resistir, como fez a
heroína grega de quem tomou de empréstimo o nome. Como ela, Nísia também era uma guerreira que
lutava contra a opressão do colonizador, pela liberdade dos povos oprimidos e pelos direitos da mulher.
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
Antes de 1500, os índios no
Brasil possuíam uma cultura de
interdependência com a natureza.
Com a colonização, começaram a ser
expulsos de suas terras, provocando
até hoje conflitos territoriais
e a ameaça aos importantes
valores culturais indígenas.
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
36 37
Em novembro de 1849, Nísia embarcou com os filhos rumo ao Velho Mundo, a bordo da
galera Ville de Paris. Lívia havia sofrido um acidente com um cavalo nas comemorações
do 7 de setembro, e o médico aconselhou a mudança de ares. Houve quem dissesse que
a saúde da filha era um pretexto para que ela se ausentasse do país, incomodada com a
campanha difamatória dos jornais contra seu colégio, e o sucesso do livro que elogiava uma
revolução contrária aos interesses do Imperador. Pode ser. Afinal, a mãe preocupada era
também a escritora polêmica.
Assim, após cinqüenta e dois dias em alto mar, Nísia Floresta chegava na mais importante
capital européia daquele tempo, e, na Seção de Passaportes dos Arquivos Nacionais da
França, entre os passageiros estrangeiros, ainda hoje lê-se o seguinte: “Mme. Augusta, Nísia
Floresta Brasileira – 39 anos, acompanhada de seu filho e sua filha. Origem: Rio de Janeiro.
Domicílio real: Rio de Janeiro. Destino: Paris. Profissão: Rendas”.
O romance Dedicação
de uma amiga, publicado
em Niterói, em 1850, em
dois volumes, assinados
com as iniciais B.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
A VIAJANTE
ILUSTRADA
39
No início de 1850, apesar de a autora estar a milhares de quilômetros do Brasil, era publicado em
Niterói um romance seu – Dedicação de uma amiga – em dois volumes, assinado com as iniciais B.
A. Segundo Inocêncio, no Dicionário Bibliográfico, esta obra devia se compor de quatro volumes, mas
apenas dois teriam sido publicados.
Entre os contatos com intelectuais, cientistas e aristocratas que Nísia fez no Velho Mundo, o mais
conhecido foi a amizade que manteve com Auguste Comte. Em 1851, a brasileira era uma das pessoas
que afluíam ao Auditório do Palácio Cardinal para assistir às conferências do Curso de História
Geral da Humanidade, que Comte ministrava para divulgar suas idéias. Mas apenas em 1856 ela se
aproxima do filósofo e pode manifestar suas impressões acerca da filosofia positivista. Em julho de
1851, decide visitar Portugal, onde permanece até janeiro do ano seguinte, quando embarca no navio
Treviot, rumo ao Brasil.
Vista do Rio Sena e da Catedral
de Notre Dame, de Paris, uma das
cidades onde Nísia residiu após 1849.
À direita, uma das poucas imagens
conhecidas da escritora.
CONSTÂNCIA LIMA DUARTE
4140
A chegada de Nísia não foi festejada apenas pelos familiares. O Jornal das Senhoras, de
Joana Paula Manso de Noronha, em 22 de fevereiro de 1852, saudou a escritora e deu
notícias de sua vida na Europa, nestes termos:
Sentimos vivo prazer em anunciar às nossas
assinantes a chegada da Sra. D. Nísia Augusta
Floresta, brasileira, tão conhecida entre nós pela
sua inteligência e ilustração; tão respeitada pelo
seu longo magistério, há 16 anos empregado
com desvelos na educação de suas patrícias; e
tão louvável e digna de nossa admiração por sua
dedicada constância ao amor e à sabedoria e ao
engrandecimento de sua pátria. A sra. D. Nísia
estava ausente de nós há dois anos e meio, viajando
neste intervalo à França e à Inglaterra, onde
visitou os melhores colégios de instrução, os mais
abalizados literatos, donde voltou a nossos braços,
admirando os Herculanos, Garrets, Castilhos e
outros varões respeitáveis na ciência.
Está pois entre nós a Sra. D. Nísia, demos-lhe um
abraço de viva amizade e gratidão, em nome do
nosso sexo.
O RETORNO
À PÁTRIA, NOVAS
PUBLICAÇÕES
43
E ela permanece no país por alguns anos. Assim, quando sua mãe D. Antônia Clara Freire adoece, vindo
a falecer em 25 de agosto de 1855, ela estava a seu lado. Esta morte, somada à do pai e à do companheiro,
será constantemente lembrada pela autora como a “tríplice perda”, que passa a considerar o mês de
agosto um mês funesto para si. No texto intitulado “O pranto filial”, depois publicado em O Brasil
Ilustrado, de 1856, Nísia expõe abertamente a sua dor. Aliás, tornar público o que é privado será
uma constante na vida desta autora.
Lágrimas de íntima dolorosa saudade, correi
livremente na solidão deste quarto funerário,
santuário de meus tristes pensamentos, onde
ofereço em holocausto as dores de um coração
contraído, de um espírito torturado, depois que
não respira mais aquela que me amamentou na
infância e me consolou na vida de mulher!
Correi até que a alma encontre em vós um lenitivo
às angústias que a oprimem!...
Nessa época, a febre amarela mais uma vez se abatia sobre a cidade do Rio de Janeiro, interrompendo as
atividades sociais. Movida pela solidariedade, Nísia Floresta se apresenta como voluntária e trabalha por
todo o semestre na Enfermaria do Hospital de Nossa Senhora da Conceição, situada na rua da Quitanda,
nº. 40. Também foi enfermeira, neste mesmo hospital, Maria Josephina Matilde Durocher – a primeira
parteira a se formar em Obstetrícia pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1832.
E em 1856 é editado um livro de versos intitulado “Pensamentos”.
Nísia retorna ao Rio de Janeiro
em 1852, onde permanece por
quase três anos.
Vista da cidade em que se
vêem a Praia de Botafogo e
antigas edificações.
FOTOMARCFERREZ-ACERVOBIBLIOTECANACIONAL
44 45
Entre os títulos atribuídos a Nísia Floresta, encontra-se com destaque o de abolicionista.
Aliás, foi justamente este – junto com o de defensora dos direitos das mulheres – o que mais
lhe granjeou estima e admiração.
Realmente, o repúdio à
escravidão e a denúncia das
injustas relações entre senhores
e escravizados constituem um
dos temas mais frequentes de sua
obra e também das conferências
que teria realizado no Rio de
Janeiro, na década de 1840.
A ABOLICIONISTA
47
Inês Sabino, em 1899, Henrique Castriciano, em 1909, e Oliveira Lima, em 1919, por exemplo, destacaram
seu ineditismo em pregar publicamente o abolicionismo naqueles tempos tão remotos. Infelizmente,
são apenas estes os registros sobre o fato, pois não há notícias na imprensa, nem se as conferências
teriam sido publicadas. Restam seus escritos para testemunhar que Nísia Floresta foi realmente uma das
primeiras mulheres no Brasil a se manifestar contra o sistema escravocrata, ao lado apenas da professora
negra maranhense Maria Firmina dos Reis, autora de Ursula, de 1859.
O potiguar Henrique
Castriciano era admirador
de Nísia Floresta e foi quem
iniciou as pesquisas sobre a
trajetória da escritora.
Abaixo:
Caderno manuscrito que
pertenceu a Henrique Castriciano,
contendo o texto “Páginas de uma
vida obscura”, de Nísia Floresta,
entre outras anotações.
ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN
ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN
Tela de Johann Moritz Rugendas,
pintor alemão que retratou o Brasil
no século XIX. Em sua obra, Nísia
também chamou a atenção para
a crueldade com que os
negros eram tratados.
FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
49
seguidos de uma viagem à Grécia, de 1864 e 1871 –, ela faz referências ao cativeiro. Mas é natural que a
autora, em tão grande espaço de tempo – de 1849 a 1871 –, tenha alterado substancialmente seu modo
de ver o problema. Enquanto no poema de 49 há uma condenação rápida ao tráfico dos africanos e, no
Opúsculo humanitário, as referências já são extensas, a pregação explícita da abolição só ocorrerá em Três
anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia, quando a escravidão será considerada “a vergonha da
civilização moderna”.
Ó minha pátria querida, Éden desse mundo imenso
e extraordinário, reaparecido ao olhar deslumbrado
de Colombo, deixa, ah! deixa livremente explodir
de teu nobre peito o grito humanitário, que sufocas
penosamente, por força dos deploráveis preconceitos
transmitidos por teus antigos dominadores de além-
mar! Sê conseqüente com as instituições livres que te
regem, com a religião que professas: quebra, oh! quebra
os grilhões de teus escravos! (FLORESTA: 1998b, 41)
A tragédia da escravidão retratada por Rugendas no século XIX.
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
Outras mulheres – como Narcisa Amália, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Luciana de Abreu, Benedita
Bormann, Maria Amélia de Queiróz, Ismênia Santos, Revocata de Melo, Luiza Regadas, Corina Coaracy,
Chiquinha Gonzaga e Maria Josephina Mathilde Durocher, por exemplo – também denunciaram
literariamente o cativeiro ou participaram de campanhas abolicionistas. Mas, apesar do empenho
dessas autoras, e da repercussão que seus trabalhos alcançaram na época, nenhuma logrou obter o
reconhecimento público, como aconteceu com os escritores homens, que inscreveram seus nomes no
movimento, independentemente até do mérito dos trabalhos realizados. Mas quando essa mobilização
ocorreu, a década de 1870 estava no fim e se aproximava a de 1880. A opinião pública internacional havia
se posicionado contra a escravatura e era evidente a contradição do Império, que se dizia liberal mas
mantinha o regime escravocrata.
E aí está o mérito de Nísia Floresta e de Maria Firmina dos Reis, como vozes precursoras contra a
escravatura, ainda em 1840 e 1850. No caso de Nísia, desde os primeiros escritos – A lágrima de um Caeté,
de 1849; Opúsculo humanitário, de 1853; Passeio ao Aqueduto da Carioca, de 1855; e Páginas de uma
vida obscura, de 1855 –, ela toca na questão nevrálgica da escravidão. Também nos livros que se seguiram
– Cintilações de uma alma brasileira, de 1859; O Brasil, de 1871; os dois volumes de Três anos na Itália,
Ama de leite, uma das atividades
desempenhadas pelas mulheres escravizadas,
preocupação constante na obra de Nísia.
Acima, Ursula, da maranhense negra Maria
Firmina dos Reis, considerado um dos
primeiros romances escrito por uma mulher
brasileira, em 1859.
FOTOGRAFIADECONSTANTINOBARZA,PE,C.1880.ACERVOFUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
CONSTÂNCIALIMADUARTE
50 51
Nísia viveu intensamente o seu tempo. Como os demais escritores, ela também se
considerava portadora de uma “missão” e queria contribuir para dotar o país de uma
literatura, mesmo residindo fora e escrevendo em línguas estrangeiras. A opção pelo
nacional era ostentada com orgulho tanto na forma como assinava os escritos como no
título – Mme. Brasileira – com que se tornou conhecida na Europa.
Desenho feito por
Manuel Bandeira, publicado em
Livro do Nordeste, Pernambuco,
em 1925.
A NACIONALISTA
53
Nísia projetava um Brasil de futuro grandioso –
o “gigante do porvir”. Apesar de todos os contrastes
e desigualdades, o país pode se orgulhar hoje de ser
uma das maiores economias do mundo.
Todos os povos civilizados da terra precisam conhecer
este amplo e rico país da América meridional, que se
estende desde o majestoso Amazonas, o maior rio do
mundo, até o Prata. Aí se encontram, além de uma
infinidade de outros rios navegáveis, grandiosas
florestas, reclinadas, a maior parte, por todo o seu
perímetro em forma de admiráveis curvas: excelsos
montes, cujos cumes parecem tocar o céu; pradarias
risonhas de uma eterna vegetação: cheios uns e
outras de quanto têm de flores e frutos o antigo e
o novo mundo. A essas magnificências da natureza
juntam-se os prazeres de uma civilização progressiva,
espalhada em muitas de suas partes.
(FLORESTA: 1997b, 09)
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
Uma narrativa resume essa declaração de amor à pátria. Conhecedora dos equívocos e preconceitos
divulgados no exterior sobre o Brasil e os brasileiros, ela publica um texto – primeiro em italiano, depois
em francês – intitulado “O Brasil”, com entusiasmadas descrições da natureza, das lutas pela libertação,
e com projeções de um futuro grandioso para o país. A intenção era influenciar o leitor estrangeiro e
também se alinhar aos que construíam uma imagem positiva para a pátria, mediante o tom ufanista na
abordagem das coisas do Brasil.
O Brasil de hoje em dia não inveja
nenhuma nação do mundo; já
que, tal como observamos, ele
encerra em seu seio todos os
materiais para tornar-se uma
das mais importantes entre
elas. (FLORESTA: 1997b, 53)
“Entrada do Porto por
Laranjeiras”, obra de
William Gore Ouseley, diplomata
e pintor inglês que também
retratou o Brasil no século XIX.
FUNDAÇÃOBIBLIOTECANACIONAL
5554
Em 10 de abril de 1856, Nísia Floresta seguiu com a filha Lívia para a segunda viagem
por terras estrangeiras. Seu filho Augusto Américo permaneceu no Rio estudando.
Naquele momento, talvez ela não imaginasse como seria longa essa ausência, pois
só depois de dezesseis anos tornará a ver a paisagem carioca de que tanto gostava,
bem como os parentes que ficavam no cais. O Colégio Augusto anunciou pela última
vez os seus cursos e, após dezessete ou dezoito anos de funcionamento, fechava
finalmente as portas.
No ano de 1856, e no seguinte, a escritora se aproximará de Auguste Comte, recebendo-
o algumas vezes em sua residência: primeiro à Rua d’Enferm, 11, e depois à Rua Royer
Collard, 9, que, por sinal, ficava próxima do Jardim de Luxemburgo, da Universidade
de Sorbonne e da Rua Monsieur Le Prince, 10, endereço de Comte. Também é dessa
época a correspondência trocada entre eles, zelosamente guardada pelos adeptos do
Positivismo no Brasil e na França.
Auguste Comte (1798-1857),
fundador da filosofia positivista
– que, no seu início, atribuía
à mulher um papel de
destaque junto à família –
e um dos grandes amigos de
Nísia na Europa.
MAIS VIAGENS...
FRANÇA, ALEMANHA,
ITÁLIA, GRÉCIA...
57
O parque que ficava próximo das
residências de Nísia e Comte, em Paris,
que serviu de cenário para
“Um Passeio ao Jardim de Luxemburgo”,
de 1859, um dos poucos textos
em que ela se utiliza de
conceitos positivistas.
CONSTÂNCIA LIMA DUARTE
Na Igreja da Humanidade, ou Apostolado Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, encontram-se as sete
cartas que Comte dirigiu a Nísia Floresta, datadas de 19 de agosto, 9 de dezembro e 18 de dezembro de
1856, 18 de abril, 24 de maio, 24 de agosto e 29 de agosto de 1857. E, em Paris, na Maison d’Auguste
Comte, antiga residência do filósofo, hoje transformada em museu, estão as respostas de Nísia, com as
seguintes datas: 19 de agosto e 17 de dezembro de 1856, e 5 de abril, 17 de abril, 23 de maio e 1º de julho
de 1857, num total de seis cartas. Essa correspondência – motivo de orgulho para os positivistas – resume-
se a cartas de cortesia, com agradecimentos pela remessa de um retrato ou de um livro, de pêsames pelo
aniversário de morte de Clotilde de Vaux, a mulher por quem Comte foi apaixonado, e alusões a doenças e
a tratamentos. São, sem dúvida, amistosas e revelam a amizade que existiu entre os dois, mas estão longe
de serem cartas íntimas de cunho amoroso, como muitos sugeriram.
Último endereço de
Nísia Floresta em Paris, à rua
Royer Collard, nº 9.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
58 59
A presença de Comte numa reunião em casa de Nísia Floresta, em Paris, foi relatada ao positivista Antônio
Pereira Simões por um senhor de engenho pernambucano que aí estava. O registro é de Ivan Lins, em
História do Positivismo no Brasil. Segundo o relato, o filósofo:
era recebido sempre com testemunhos de profunda
consideração e respeito pelos que freqüentavam o salão
da escritora brasileira. Esta ia pessoalmente recebê-lo à
entrada de seu apartamento e dizia aos presentes, com visível
entusiasmo, formulando um gesto de silêncio: “Aí está o Sr.
Comte, a maior glória da França. Procurem ouvi-lo e me
darão razão. Não é um homem como os outros. É um gênio.
A originalidade de suas concepções é tão sedutora como o
cavalheirismo de que é feito o seu coração. Os clarões de sua
inteligência transfiguram-no num homem belo, quando ele
expõe seus grandes pensamentos sobre a moral, sobre política,
sobre medicina. Sabe tudo, e todos o respeitam como a maior
cabeça do século. Orgulhemo-nos de apertar-lhe a mão. Voilà
un titre de gloire [Eis um título de glória]!”(LINS: 1964, 21-2)
Nísia Floresta foi uma das quatro mulheres que acompanhou o cortejo fúnebre do filósofo até o Cemitério
Père Lachaise, ao lado de Sophie Bliaux, filha adotiva de Comte, de Mme. Laveyssière, irmã de Sophie, e
de Mme. Maria Robinet, casada com um positivista.
Residência de
Auguste Comte, em
Paris, situada na rua
Monsieur Le Prince, 10,
hoje transformada
em museu.
Reprodução de uma
das cartas de Nísia
Floresta dirigida a
Auguste Comte, datada
de 17 de abril
de 1857.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
CONSTÂNCIALIMADUARTE
60 61
Em 1857, quando Flaubert publicava Madame Bovary, Baudelaire, As flores do mal, e, no
Brasil, Alencar trazia a público O Guarani, Nísia editava em Paris Itinéraire d’un voyage en
Allemagne [Itinerário de uma viagem à Alemanha], assinando Mme. Floresta A. Brasileira. O
livro foi organizado sob a forma de cartas dirigidas ao filho e aos irmãos e contém o relato da
viagem que ela realizou através de cidades alemãs. A primeira carta foi escrita em Bruxelas,
em 26 de agosto de 1856, e a última, em Estrasburgo, em 30 de setembro do mesmo ano,
num total de trinta e quatro cartas. Nísia privilegia em seu relato não a história das cidades
que visita, ou a descrição de cada etapa do percurso, mas a própria subjetividade, pois se
coloca de tal forma no centro da narrativa, que tudo o mais parece girar à sua volta.
Viajar, repito-lhes, é o meio mais seguro
de aliviar o peso de uma grande dor
que nos mina lentamente. Desde que
deixei Paris para visitar a Bélgica e a
Alemanha, os dias não mais parecem
ter a lentidão que me matava.
(FLORESTA: 1998a, 129)
O castelo de Heidelberg,
descrito por Nísia em
Itinerário de uma viagem à
Alemanha, em 1857.
OBRAS DA
MATURIDADE, OS
LIVROS EM LÍNGUA
ESTRANGEIRA
63
O que realmente importa – para ela e, por conseqüência, para os leitores – são as suas impressões diante
do que vê. E, como ocorre em quase todos os seus livros, a narradora confunde-se com a autora e não
esconde a condição biográfica da escritura. Ao contrário, revela-a com informações precisas de sua vida,
como o nome dos filhos e irmãos, as datas de morte da mãe e do esposo, além de inúmeras outras
referências passíveis de serem confirmadas em sua biografia.
E Nísia toma gosto pelas viagens. Nos anos seguintes, ela visita Roma, Nápoles, Florença, Veneza, Verona,
Milão, Torino, Livorno, Pádua, Mântua, Pisa, Mombasilio e Mandovi. Também conheceu várias cidades
da Sicília e da Grécia, detendo-se sempre nas que mais lhe agradavam.
Aos cinqüenta anos de idade, instalou-se em Florença e assistiu a cursos de Botânica ministrados por
Parlatore, um antigo colaborador de Humboldt. Em Paris ela já havia assistido aulas dessa matéria no
Colégio da França e no Museu de História Natural, segundo menciona no livro de viagem. Em Florença,
publicou Scintille d’ un’ anima brasiliana [Cintilações de uma alma brasileira], em 1859, assinando
Floresta Augusta Brasileira, que contém cinco ensaios: “O Brasil”, “O abismo sob as flores da civilização”,
“A mulher”, “Viagem magnética”, “Um passeio no jardim de Luxemburgo”. Alguns deles receberão
traduções para outras línguas e edições independentes. No ano seguinte, saía a edição italiana de Le
lagrime de un Caeté [A lágrima de um Caeté], cujo tradutor – Ettore Marcucci –, além de um prefácio
elogioso, anexou quarenta e uma notas sobre o vocabulário, relacionando o poema nisiano com versos de
Dante, de Ariosto, e com a Bíblia.
À esquerda, capa da primeira
edição de Itinéraire d’un voyage en
Allemagne, de 1857. Abaixo e página
ao lado, traduções de 1982 e 1998.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
6564
Páginas de Mulher, um dos
ensaios de Cintilações de
uma alma brasileira, traduzido
para o inglês por sua filha
Lívia Augusta e publicado em
Londres, em 1865.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
Em junho de 1861, Nísia Floresta decide regressar a Paris e montar residência na cidade após três anos
ausente. Alguns anos depois, em 1864, surge o primeiro volume de Trois ans en Italie, suivis d’un voyage
en Grèce [Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia], assinado “par une Brèsilienne” [por uma
brasileira]. Neste livro, escrito como um diário de viagem, Nísia descreve o modo de vida, a história e as
manifestações culturais da Itália. Como sua excursão ocorreu justamente no período da revolução pela
unificação do país, o texto se constitui também em importante testemunho de uma estrangeira a respeito
dos principais acontecimentos da história italiana.
Em Londres, em 1865, era publicado Woman [Mulher], um dos ensaios de Cintilações de uma alma
brasileira, traduzido pela filha. Em 1867, surge em Paris o romance Parsis, que, apesar de citado em
todas as bibliografias da autora, nunca teve um exemplar localizado. Em 1871, também em Paris, outro
ensaio de Scintille é traduzido por Lívia Augusta – Brésil [Brasil], que, aliás, assina neste livro como
Lívia Augusta Gade. Entre as inúmeras lacunas relativas a Nísia e seus familiares, uma diz respeito ao
casamento de Lívia com um alemão de sobrenome Gade. Apenas foi possível saber que ela ficou viúva
com quatro meses de casada, não teve filhos e nem se casou novamente.
Edição italiana de
Cintilações de uma alma
brasileira, 1859.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
66 67
A vida em Paris estava ameaçada. A Comuna chega ao poder formando um governo
republicano e socialista, e a monarquia reage ordenando o bombardeio da capital.
Após sangrenta luta, a Comuna é aniquilada em 29 de maio de 1871, com a execução
de centenas de revolucionários. Em Fragmentos de uma obra inédita, Nísia Floresta dá
seu testemunho:
Sendo minha querida filha e eu testemunhas de
uma guerra sem igual nos tempos modernos, das
peripécias e das calamidades de um cerco atroz,
sobre o qual eu escrevera dia após dia os tristes
detalhes que minha afeição pela França me impede
de divulgar ao público, e vendo, enfim, todos os
horrores do que chamávamos indevidamente a
Comuna, deixamos Paris, as boas amigas e tantas
outras pessoas distintas, cuja convivência suavizara
de alguma forma nossa angústia durante esse longo
cerco que nos privara das notícias de nossos entes
queridos do Brasil. (FLORESTA: 2001, 33)
Fragmentos de uma obra
inédita, de 1878, último
livro publicado por
Nísia Floresta.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
ÚLTIMA VIAGEM
AO BRASIL
69
Após tantos anos ausente, as novidades eram muitas. A campanha abolicionista, por exemplo, estava
bem articulada em associações e contava com líderes e jornais importantes. Mas, a despeito do esforço
dos abolicionistas, os avanços em direção à liberdade dos negros eram lentos. A Lei Rio Branco, assinada
em 28 de setembro de 1871 em favor do filho do escravizado, era mais uma lei “para inglês ver”, pois ele
só seria livre após trabalhar vinte e um anos para o “dono de sua mãe”, como forma de compensação.
Também o movimento republicano se organizava e os liberais não se cansavam de revelar que o Brasil era
o único império entre tantas repúblicas na América Latina. A pioneira destes anseios estava ali e talvez se
lembrasse de Pernambuco dos anos trinta, quando já falava em liberdade para o negro e para os povos.
E, em 31 de maio de 1872, Nísia desembarcava no Rio de Janeiro.
Ver, escutar, sentir, foi tudo aquilo que eu pude nos
primeiros momentos de minha chegada e, todavia, eu
tinha tanto para contar depois de um período de 16
anos passados no estudo da Europa e dos seus povos!
(FLORESTA: 2001, 38)
A precipitação dos acontecimentos levou Nísia a aceitar a hospedagem de amigos no interior do país
para se afastar dos conflitos. Ao retornar, é dramática a situação em que encontra seu apartamento,
com janelas e portas quebradas e os móveis despedaçados. Desgostosa com a situação, e pressionada
pela família, Nísia deixa definitivamente Paris. Primeiro segue para Londres e, após alguns meses, para
Lisboa, onde embarca para o Rio de Janeiro. Desta vez Lívia não a acompanha e resolve ficar na Europa:
estava tão acostumada ao Velho Mundo que não sentia vontade de rever o país onde nascera.
No início de 1872, assinado Une Brésilienne [Uma brasileira], o segundo volume de Trois ans en Italie,
suivis d’un voyage en Grèce [Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia] era publicado em
Paris. Em 23 de maio desse mesmo ano, a revista O Novo Mundo, de J. C. Rodrigues, de New York, traz
uma extensa notícia biográfica da autora acompanhada de um retrato, que contribuiu para torná-la ainda
mais conhecida.
D. Nísia Augusta, ao que nos dizem, conta perto de sessenta e dois
[anos], e é realmente um prazer fazer-se um retrospecto da sua
vida e achar-se-á toda ocupada de trabalhos elevados e úteis, que
bem mostram que ainda entre nós a mulher não foi feita somente
para criar filhos e encerrar todas as suas aspirações no círculo
das afeições domésticas e que, portanto, “a mulher não precisa
saber muito”. Se há um “direito das mulheres” que de todo o bom
grado lhe concederíamos em toda parte, se pudéssemos, é o de
se ilustrarem, como lhes aprouver, e atirarem aos ares o jugo da
ignorância em que nós, os casacas, as queremos conservar. (...)
Na sua mocidade, foi professora por mais de vinte anos em várias
cidades do Brasil, tendo sempre lutado contra a “rotina” do ensino
das meninas. Em 1854 foi para a Europa, onde tem residido desde
então e onde tem adquirido renome por seus talentos superiores
revelados em muitos escritos publicados em várias línguas.
No artigo “Passeio ao Aqueduto da Carioca”, de
1855, Nísia convida o leitor a conhecer as belezas
do Rio de Janeiro, porém sem deixar de lado
críticas à falta de saneamento básico na capital
do Império e também à escravidão.
PINTURADELEANDROJOAQUIM,1790
7170
A estada em terras brasileiras passa rápida e, em 24 de março de 1875, Nísia Floresta
retorna à Europa. Seu primeiro destino foi Londres, onde a filha a aguardava; após
alguns meses, seguiu para Lisboa. Assim, quando, em 9 de novembro desse mesmo
ano, o irmão Joaquim Pinto Brasil morre de pleuropneumonia no Rio de Janeiro, sua
irmã estava longe e só receberia a notícia semanas depois em Ventnor, uma cidade
conhecida como a “Nice britânica”.
É de 1878 o último trabalho da escritora: Fragments d’un ouvrage inédit – notes
biographiques [Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas], publicado em Paris
com a assinatura Mme. Brasileira Augusta. Neste livro, dedicado à irmã Clara, ela
trata principalmente da infância e da juventude de Joaquim Pinto Brasil, mas fornece
também dados biográficos seus até então desconhecidos.
Tradução de Fragmentos
de uma obra inédita, feita
por Nathalie Bernardo da
Câmara, publicada
em 2001.
RETORNO
À EUROPA, OS
ÚLTIMOS ANOS
73
Talvez tenha sido nesse ano que ela decidiu transferir sua residência para Rouen, cidade medieval
francesa, conhecida pelo desfile de índios brasileiros no século XVI, por ter sido o palco da morte de
Joana D’Arc e onde nasceu o escritor Gustave Flaubert.
Em 24 de abril de 1885, numa quarta-feira de muita chuva, às nove horas da noite, Nísia Floresta Brasileira
Augusta morria vitimada por uma pneumonia, sendo enterrada semanas depois em um jazigo perpétuo
do Cemitério de Bonsecours. E é inútil procurar nos jornais da cidade notícias sobre o fato, pois não
há nenhuma linha sobre a morte de Nísia Floresta. Rouen foi o refúgio perfeito. Acolheu a mulher e a
escritora cansada de viajar, protegeu-a de olhos estranhos e escondeu-a até dos jornais. Em sua laje, a
filha gravou a seguinte inscrição:
Aqui jaz
Minha Mãe
Nísia Floresta Brasileira Augusta
Nascida em 12 de Outubro de 1810
Falecida em 24 de Abril de 1885
À esquerda:
Atestado de óbito de
Nísia Floresta fornecido
pela Prefeitura de
Bonsecours, França, em
27 de setembro de 1988.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
74
Alguns biógrafos insistem que Nísia Floresta teria deixado trabalhos inéditos e dão até os seus títulos:
Inspirações maternas, Viagens na Itália, Sicília e Grécia em 1858-1859 e Memórias de minha vida. Mas
tais manuscritos nunca foram encontrados, nem se teve qualquer notícia mais concreta. Nos Arquivos
Departamentais de Rouen, por exemplo, mais precisamente na seção de Registro de Falecimentos,
encontram-se escassas informações sobre o inventário de Mme. de Faria:
Certificado de Indigência
Viúva Faria, Manuel Augusto
Profissão: rendas
Local de falecimento: Bonsecours
Idade: 74
Data de falecimento: 24 de abril de 1885
A informação de indigência contida no atestado de óbito, bem como a ausência de herança, representa
novidade, pois muitos julgaram que ela tivesse grandes fortunas até o fim da vida. Provavelmente, as
rendas que sustentaram mãe e filha, em terras estrangeiras, eram resultado das terras que a família
possuía no Nordeste. Sabe-se apenas que seu último endereço – Grande Route, nº. 121 – pertence ainda
hoje a uma casa simples de pedras, rodeada por outras de pequeno porte.
Último endereço
de Nísia Floresta:
Grande Route, 121, em
Rouen, França.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
A notícia da morte de Nísia Floresta demorou a chegar ao Brasil, pois certamente veio por vias marítimas
e não por cabograma, um outro meio de comunicação usado na época. Apenas na segunda quinzena de
maio aparecem nos jornais cariocas anúncios de missas encomendadas pela família e notícias curtas
sobre seu passamento:
O País, 27 de maio de 1885
A 24 do passado faleceu em Rouen, França, a nossa
compatriota e distinta escritora Nísia Floresta Brasileira
Augusta, senhora de um espírito esclarecido, de coração
generoso e que dedicou a maior parte de sua existência à
educação da infância de seu sexo.
O Jornal do Comércio, 26 de maio de 1885
Faleceu em Ruão, França, onde desde alguns anos se
achava, D. Nísia Floresta Brasileira Augusta, escritora
cujo nome é conhecido nas letras pátrias. Por muitos
anos exerceu aqui no Rio de Janeiro o mister de
educadora da mocidade do sexo feminino, e da operosa
tarefa a que se impusera, larga foi a compensação que
encontrou nas muitas discípulas que lhe fizeram e ainda
lhe fazem honra.
A Província de São Paulo, 29 de maio de 1885
Brasileira notável. Faleceu em França uma escritora
distinta, nossa patrícia, a sra. D. Nísia Floresta Brasileira
Augusta. Deixa trabalhos de valor, entre os quais livros
de viagem e romances escritos em francês.
76 77
Mas a história de Nísia Floresta não terminou em 24 de abril de 1885, nem mesmo
seu corpo permaneceu onde foi enterrado. Se em vida percorreu uma longa trajetória,
após a morte o destino se repete. E a memória da escritora enfrentará dificuldades
para se impor, tornar-se conhecida, fazer-se respeitar.
Em 1888, o Centro do Apostolado do Brasil publica Sete cartas inéditas de Auguste
Comte a Nísia Floresta, no Rio de Janeiro. Era o início de um trabalho de divulgação
da escritora por parte dos positivistas, sempre orgulhosos da conterrânea que
conheceu Auguste Comte. Também é desse ano a lei que finalmente abolia o regime
escravocrata no Brasil. Nísia Floresta, que tanto desejou ver o Brasil sem escravos e
independente, num regime democrático, não estava mais presente para comemorar
essa conquista.
Em 12 de março de 1889, morria o filho Augusto Américo, que se tornou conhecido
como educador e diretor do Colégio Santo Agostinho e Colégio Augusto. Este último,
de nome igual ao que sua mãe dirigiu, costuma ser citado como o único ginásio
particular do Rio de Janeiro que teve como aluno um Presidente da República:
Washington Luis Pereira de Sousa, que aí foi interno entre os anos de 1885 e 1887.
Um contemporâneo descreveu assim o filho de Nísia Floresta, no Diário de Notícias
de 22 de outubro de 1950: “de pequena estatura, gordo, com barba e cabelos ruivos
e anelados, andava sempre apoiado em uma bengala. Muito afável, todos gostavam
dele por sua bondade, que, às vezes, dava lugar a uma firme energia e autoridade”.
A REDESCOBERTA
DA ESCRITORA
79
Em 1909, por um equívoco, os conterrâneos comemoraram o centenário de nascimento de Nísia Floresta.
O Congresso Literário e o Ateneu Norte-Rio-grandense, com o apoio do Governo de Alberto Maranhão,
ergueram em 12 de outubro um monumento em Papari, a poucos passos de onde teria existido sua primeira
residência. Nas palavras de Câmara Cascudo, em crônica publicada em A República, de 17 de janeiro de
1940, “aí se emplumara a grande ave de arribação, cujas asas não cabiam nos limites do ninho...”.
Tradução da
correspondência
completa entre Comte
e Nísia Floresta, editada
em 2002.
Cartas de
Auguste Comte
para Nísia Floresta,
publicadas pelos
positivistas em 1888.
Em 1908, o norte-rio-grandense Henrique Castriciano escrevia no Almanaque Garnier sobre Nísia: “Poucos
brasileiros conhecem este nome. Entretanto, ele é o de uma das mais fortes mentalidades femininas
deste país”. Apesar de ter realizado uma extensa pesquisa sobre a conterrânea, e visitado Lívia em sua
residência em Cannes, Henrique Castriciano não realizou o livro com os resultados de sua investigação.
Segundo ele, Nísia “teve a existência atormentada, intensa e gloriosa”.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
80 81
Foram muitas as homenagens à escritora. Entre elas, um artigo de Constâncio Alves,
publicado no Jornal do Comércio em 21 de outubro de 1909. Apesar de reproduzir
notícias contidas na Revista O Novo Mundo, de 1872, e no Dicionário Bibliográfico
Brasileiro, de Sacramento Blake, este trabalho tornou-se importante fonte de consulta
para os pesquisadores, principalmente por revelar o teor de livros da autora que eram
desconhecidos de todos.
Em 19 de março de 1911, foi inaugurado, na Praça Augusto Severo, em Natal, um
medalhão de bronze feito em Paris pelos escultores Corbiniano Vilaça e Edmond Baboche,
por encomenda de Henrique Castriciano. O medalhão continha a efígie da escritora, uma
estrela de granito, incrustações de bronze e as datas de nascimento e morte. “Pequena
obra-prima de delicadeza, de expressão, de arte”, nas palavras de Nilo Pereira. Também
nesse mesmo ano era publicado outro artigo sobre Nísia no Almanaque Garnier, de autoria
de Constâncio Alves.
Em 26 de abril de 1912, sua filha Lívia Augusta Gade morre e é enterrada no mesmo túmulo
do Cemitério de Bonsecours. Lívia morava na Europa desde 1849 e residiu em diferentes
países, como França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Portugal, trabalhando muitas vezes
PRIMEIRAS
HOMENAGENS
Medalhão com a efígie da
escritora, Natal, RN, 1911.
83
Alunas da Escola Doméstica de Natal, RN, criada por
Henrique Castriciano em 1915, considerada na época
uma referência para a formação feminina.
Extrato de publicações positivistas, no Rio de Janeiro. E no Monumento de Benjamin Constant, instalado
na Praça da República do Rio de Janeiro, foi incluída uma imagem de Nísia Floresta entre os paladinos da
extinção da escravatura, como Toussaint-Louverture, a princesa Isabel, José Bonifácio e Castro Alves.
Em Paris, em 1928, vem à luz Auguste Comte et Mme. Nísia Brasileira – Correspondance [Auguste Comte
e Nísia Floresta – Correspondência]. E no Rio de Janeiro, em 1933, Roberto Seidl publicava o ensaio Nísia
Floresta – 1810/1885 – A vida e a obra de uma grande educadora, precursora do abolicionismo, da República e
da emancipação da mulher no Brasil, que, na realidade, não corresponde à abrangência do título, pois se trata
de um texto que apenas reproduz dados biográficos e tece reflexões ligeiras sobre a autora. Em Porto Alegre,
Fernando Osório publica em seu Mulheres farroupilhas um precioso manuscrito de Nísia que recebeu do Dr.
Antônio Augusto Borges de Medeiros. Tratava-se da novela Fany ou o modelo das donzelas, de 1847, cuja
edição estava desaparecida.
Em 1938, A lágrima de um Caeté é editado pela Revista das Federações das Academias de Letras, com estudo
crítico de Modesto de Abreu. Mas a publicação contém graves erros tipográficos, que comprometem a leitura de
alguns versos, e ainda veicula uma opinião desabonadora ao trabalho poético da escritora, em seu prefácio.
Henrique Castriciano, em carta a Adauto da Câmara, datada de 25 de julho de 1938, dá uma valiosa
informação a respeito do paradeiro da correspondência de Nísia Floresta com escritores europeus:
segundo a filha de Nísia, a edição da correspondência da mãe havia se perdido toda em um naufrágio.
ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN
como preceptora. Na França, além de Paris, morou ainda em Cannes, Nice e Rouen. Lívia parece ter
vivido sempre à sombra da mãe ilustre, pois não existe nenhuma notícia a seu respeito que não tome
como ponto de referência a figura de Nísia Floresta.
Em novembro de 1919, por ocasião da formatura da primeira turma da Escola Doméstica, de Natal,
Oliveira Lima fez um discurso sobre Nísia, em que a considerava “a mais notável mulher de letras que
o Brasil produziu, quer pela amplitude da visão, quer pela suavidade do estilo”. Sua única crítica foi
ao “nome disparatado (...) e esdrúxulo na sua mistura do arcádico e patriótico”, que, felizmente, para o
conferencista, ela o ocultava, deixando seus escritos anônimos ou assinados com abreviaturas, conforme
“a moda dos disfarces e meios disfarces” (Jornal A República, 28/11/1919).
Em 1924, o escritor maranhense Reis de Carvalho faz uma palestra sobre Nísia no Centro de Cultura
Brasileira no Rio de Janeiro. Também essa palestra, por reunir as poucas informações conhecidas sobre
a escritora, teve boa repercussão e foi reproduzida por outros estudiosos. Em Goianinha, interior do Rio
Grande do Norte, o Dr. Joaquim Grillo fez uma conferência no aniversário de morte da escritora, em
24 de abril de 1924, em que reitera boatos, comete equívocos e manifesta opinião desabonadora a seu
respeito. A intenção era homenageá-la, mas o preconceito se encarregou de transformar a homenagem
numa acusação sem fim.
Passados apenas quarenta anos de sua morte, Nísia era um mito em sua terra. O desconhecimento de
seus livros contribuía para que as pessoas se detivessem apenas nas questões biográficas. E a ausência
de dados mais completos sobre sua vida permitia, por outro lado, que a fantasia popular a imaginasse e
preenchesse os vazios conforme os interesses (e preconceitos) de cada um.
Em 1926, em comemoração ao 38º Aniversário da Lei de 13 de Maio de 1888, foram traduzidas páginas
de Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia, por Raimundo Teixeira Mendes, e publicadas em
Monumento onde foi
aplicado o medalhão de
bronze feito a Nisia.
INSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE
8584
Monumento de Benjamin Constant
na Praça da República, Rio de
Janeiro, em que foi incluída a
imagem de Nísia Floresta ao lado da
Princesa Isabel, Castro Alves, José
Bonifácio, entre outros considerados
defensores da abolição.
Adauto da Câmara organizou,
em História de Nísia Floresta, de
1941, as informações existentes
sobre a escritora, dando início ao
reconhecimento de sua importância
e divulgação de sua obra.
E tem início o resgate da escritora. Adauto da Câmara, que publica em 1941 o livro História de Nísia
Floresta, com o resultado de sua investigação junto a arquivos e bibliotecas, tenta obter o atestado de
óbito de Nísia Floresta por meio do Itamarati, sem sucesso. O Consulado Geral do Brasil no Havre, apesar
do empenho, nada encontra na Prefeitura de Rouen, com relação ao registro de morte da escritora.
Em 23 de dezembro de 1948, o decreto-lei de número 146 muda o nome de Papari para Nísia Floresta, em
justa homenagem à filha ilustre. E o Marechal Rondon, também positivista, dá o nome de Nísia Floresta
a um posto indígena de Pernambuco. Mas, enquanto uns a homenageiam, outros agem em sentido
contrário, e, em 25 de outubro de 1949, ladrões roubam em Natal o medalhão que Henrique Castriciano
havia encomendado e destroem o monumento em que ele estava assentado. Tal fato vai merecer matérias
de indignação nos jornais da cidade, que, embora veementes, nada podem fazer. Anos mais tarde, o
medalhão será localizado e entregue ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, onde se
encontra ainda hoje.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
Ao lado, primeira edição
de Trois ans en Italie, suivis
d´un voyage en Grèce,
de 1864 e, abaixo, sua
tradução de 1998.
8786
Em fevereiro de 1950, o jornalista Orlando Ribeiro Dantas, fundador do Diário de
Notícias do Rio de Janeiro, vai à França e, após semanas de pesquisa, localiza o
túmulo em Bonsecours, arredores de Rouen. Por meio da lei de número 1.892 de 23
de junho de 1953, do Ministério da Educação, o governo brasileiro fica autorizado
a fazer o traslado dos despojos da escritora para o Brasil, e o Dr. Marciano Alves
Freire, presidente do Centro Norte-Rio-grandense, é encarregado de acompanhá-la
nesta última viagem. Em 9 de agosto de 1954, ele embarca com a urna funerária
em Marselha no navio Loide-Brasil, que chega em Recife no dia 5 de setembro.
Os funcionários da alfândega se atrapalham com a mercadoria inusitada, e é
preciso a intervenção direta do Presidente Café Filho para cessarem as exigências
alfandegárias em torno dos restos mortais de Nísia Floresta.
Ocorre mais um problema. Ao invés de uma simples urna vem um ataúde, muito
maior que o espaço previsto no mausoléu, que teve de ser rapidamente refeito. Nísia
havia sido embalsamada e a explicação talvez seja porque quisesse ser enterrada
em sua pátria.
Documento atestando o
traslado dos despojos de
Nísia Floresta, de Rouen
para Paris.
ACERVOLUISCARLOSFREIRE
O RIO GRANDE DO
NORTE ACOLHE A
FILHA ILUSTRE
89
Imagem do evento coordenado pelo
pesquisador Luis Carlos Freire, que
reconstituiu, em 1997 – após quatro décadas
– a chegada dos despojos de Nísia Floresta
à sua terra natal.
Em 11 de setembro de 1954, a imprensa de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte
registra as solenidades pela chegada dos despojos da escritora em Natal. Houve homenagens na Base
Naval, bandas de música e exposição do caixão perante a população e as autoridades locais. Dr. Alfredo
de Moraes, comandante do navio que trouxe os restos mortais da escritora, depois presidente da Igreja
da Humanidade no Rio de Janeiro, descrevia com orgulho a urna no convés e a pomposa chegada em
Natal. Monsenhor João da Mata Paiva rezou missa e deu absolvição litúrgica. Nísia Floresta finalmente
era notícia em todos os jornais e nos programas de rádio do Rio Grande do Norte e de Recife. No discurso
que pronunciou na ocasião, Dr. Nilo Pereira assim disse:
O fim dessa peregrinação aí o temos. É ela afinal que
volta. E todos nós voltamos com ela, porque fomos
buscá-la no seu último retiro solitário e dizer-lhe
que era tempo de repousar. O corpo quase intato
denota – quem sabe! – a espera longa e ansiosa.
(Revista Bando, janeiro de 1955, p. 135.)
LUISCARLOSFREIRE
Dr. Nilo Pereira, importante testemunha dos acontecimentos, fez o relato do episódio:
haviam dois caixões, um de zinco e outro de ébano.
Ao abrirmos este último, subiu um cheiro que eu
chamei de múmia: mofo concentrado. Cheiro de
morte velha. Ela estava levemente reclinada. Os
cabelos passavam dos seios. Dava para ver bem
a fisionomia. Não devia ter sido bonita a nossa
Nísia. Bonita por dentro, isso sim. (Jornal Tribuna
do Norte, 26/5/1985.)
Notícias relacionadas à
identificação e traslado dos
despojos da escritora.
INSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE
90 91
Foi neste dia o lançamento nacional do selo comemorativo do retorno de Nísia Floresta, que o Departamento
dos Correios e Telégrafos mandou cunhar com seu retrato. Em 12 de setembro, o ataúde chegava em
Papari, que, aliás, já se chamava Nísia Floresta. Grande multidão aguardava. Houve outra celebração de
missa de corpo presente e muitos discursos. E, desde esta data, a escritora repousa em seu mausoléu, que
fica próximo, dizem, do local da antiga residência do sítio Floresta.
As homenagens continuaram. Na terra natal, seu nome foi dado a uma escola primária; em Natal, Porto
Alegre, Recife e Rio de Janeiro, seu nome virou nome de rua, sempre por intermédio de um admirador
de seus méritos. Na Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, é patrona da Cadeira 17; na Ala
Feminina da Casa de Juvenal Galeno, em Fortaleza, sua Cadeira é a 6; na Academia Norte-Rio-grandense
de Letras, em Natal, é patrona da Cadeira nº. 2. E também possui uma Cadeira na Academia Nacional
de Letras e Artes, a antiga Academia Feminina de Letras e Artes do Rio de Janeiro. Seu nome ainda foi
lembrado por ocasião do Concurso realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 1988,
sobre a questão do preconceito no livro didático.
Em 29 de abril de 1977, na Galeria de Honra da Fundação Joaquim Nabuco do Recife, foi inaugurado
um retrato seu feito pelo pintor Balthasar da Câmara. Nísia Floresta era a primeira mulher a adentrar
nesta Galeria, em que já estavam Duque de Caxias, José de Alencar, Santos Dumont, Dom Vital e outros
personagens históricos.
Panfleto lançado por
avião sobre a cidade
de Nísia Floresta,
na cerimônia de
sepultamento,
em 1954.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
Notícia da homenagem
que os Correios prestaram
à escritora, por ocasião
da chegada de seus
despojos em 1954. CONSTÂNCIALIMADUARTE
LUISCARLOSFREIRE
9392
FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO
Mausoléu da escritora
construído na cidade de
Nísia Floresta, próximo
de onde teria sido sua
residência, no antigo
sítio Floresta.
Na página ao lado, retrato
de Nísia Floresta, feito
pelo pintor Balthasar da
Câmara, que se encontra
na Galeria de Honra na
Fundação Joaquim Nabuco,
em Recife.
VLADEMIRALEXANDRE
94 95
Jornal O Poti, Natal, 26 de maio de 1985.
Foi preciso este embate intelectual para que o encanto se quebrasse e a escritora se tornasse finalmente
conhecida e admirada por todos. E que trabalhos acadêmicos surgissem divulgando aspectos inusitados
de sua vida e obra. O reconhecimento de seu papel fundante na história da mulher brasileira e na literatura
de autoria feminina parece ser coroado agora, com a escolha de seu nome para o Projeto Memória 2006.
Artigo de Socorro Trindad,
publicado em 28 de abril de 1985,
no Jornal Tribuna do Norte, de
Natal, RN.
CONSTÂNCIALIMADUARTEINSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE
Em 1981, a escritora Socorro Trindad, também nascida na antiga Papari, publica Feminino feminino, pela
Editora Universitária de Natal, com a intenção de incluir o nome de Nísia Floresta como precursora na
recente história do movimento feminista brasileiro. Em 1982, a publicação de Itinerário de uma viagem
à Alemanha, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, com tradução do professor
Francisco das Chagas Pereira, torna-se o primeiro livro de Nísia Floresta a ser traduzido para o português.
Também em 1982, Zélia Maria Bezerra Mariz contribui para ampliar a bibliografia sobre a escritora norte-
rio-grandense publicando Nísia Floresta Brasileira Augusta, também pela Editora Universitária.
Finalmente, em 1985, o centenário de morte da escritora é lembrado em Natal. Nesta ocasião, além de um
ciclo de palestras organizado pela Fundação José Augusto, uma série de artigos divulgados na imprensa
enfrentam o mistério que ainda pairava sobre Nísia, fruto, principalmente, da escassez de informações.
Dentre os autores, João Batista Pinto, assim escreveu:
Medalha de Mérito
Nísia Floresta, criada pelo
Conselho Municipal dos
Direitos das Mulheres e
das Minorias de Natal,
para homenagear mulheres
que se destacaram nas
lutas por direitos.
Placa em
homenagem a
Nísia Floresta na
Escola Doméstica
de Natal.
O que sei sobre Nysia? Quase nada. O que o Rio Grande do Norte
sabe? Absolutamente nada. E é aí onde reside o mito. Suas origens
são remotas e não há previsão de um futuro. É uma obra acabada?
Monstro sagrado, Nysia é uma permanência no tempo, gerando idéias,
sugerindo interpretações, sempre na expectativa de novos caminhos
que possam desvendar o seu mistério, até que o último véu deslize e
caia sobre os seus pés.
Dela falaram bem e mal. Oliveira Lima traçou ligeiramente o seu perfil.
Chamaram-na de notável Gilberto Freyre, Luis da Câmara Cascudo,
Henrique Castriciano e tantos outros. Isabel Gondim prosaicamente
transformou-a numa dama de má fama... (Jornal O Poti, 29/9/1985.)
9796
A história do movimento feminista brasileiro – sua trajetória, as protagonistas mais ilustres e
as conquistas mais expressivas – ainda está por ser escrita. Ao lado de Nísia Floresta, outras
mulheres merecem ser lembradas pelas diferentes contribuições que hoje vivenciamos. A
bibliografia, além de limitada, costuma abordar fragmentariamente os anos de 1930, a luta
pelo voto, ou as conquistas mais recentes ocorridas a partir de 1970. Mas, se pensamos no
feminismo como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação
da mulher, ou que exija a ampliação de direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual
ou de grupo, é possível ampliar sua história e valorizar os momentos iniciais desta luta — contra
os preconceitos mais primários e arraigados —, assim como as mulheres que se expuseram à
incompreensão e à crítica: as primeiras e legítimas feministas.
Essa história teria então início nas primeiras décadas do século XIX — o momento em que
as mulheres despertam do “sono letárgico em que jaziam”, nas sábias palavras da escritora
paranaense Mariana Coelho (2003, 44) — e contará com pelo menos quatro momentos áureos.
Longe de serem estanques, tais momentos conservam uma movimentação natural em
seu interior, de fluxo e refluxo, e costumam, por isso, ser comparados a “ondas”, que
começam difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou de repente), avolumam-se em direção
POR UMA HISTÓRIA
DA MULHER
BRASILEIRA: SUAS
LUTAS E CONQUISTAS
99
Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua enorme maioria, viviam enclausuradas
em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira,
que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever, então reservado ao sexo
masculino. A legislação autorizando a abertura de escolas públicas femininas data de 1827, e as opções
até então eram os conventos, as aulas particulares ou o ensino individualizado. E foram aquelas primeiras
mulheres – como Nísia Floresta –, que se beneficiaram de uma educação diferenciada, que tomaram
para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras e abriram escolas,
publicaram livros e enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler
nem escrever.
Quando Nísia Floresta lança, em 1832, seu livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, eram raras
as brasileiras “educadas” e, em menor número ainda, as escritoras. A mineira Beatriz Brandão (1779-
1860) e as gaúchas Clarinda da Costa Siqueira (1818-1867) e Delfina Benigna da Cunha (1791-1857) eram
algumas dessas exceções hoje conhecidas. Mesmo entre os chamados jornais femininos, apenas existiam
uns poucos dirigidos por homens sensíveis às mudanças do comportamento social, e que se apressavam
em oferecer publicações especialmente “pasteurizadas” para o público feminino.
Mais tarde, em Porto Alegre, uma escritora de nome Ana Eurídice Eufrosina de Barandas publicava
A philosopha por amor (1845), que trazia, entre contos e versos, uma pequena peça teatral a respeito
das reivindicações femininas. Apenas em meados do século XIX começam a surgir os primeiros jornais
dirigidos por mulheres. Apesar das críticas de inconsistente e supérflua, esta imprensa amparou suas
leitoras no momento em que elas davam os passos iniciais em direção à superação de seus receios e à
conscientização de direitos.
O primeiro foi o Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, em 1852. Como Nísia Floresta,
Joana Manso também acusava os homens de egoísmo por considerarem as mulheres sua propriedade,
ou “crianças mimadas”, sempre disponíveis ao seu prazer. Outro, foi O Belo Sexo, editado por Júlia de
Albuquerque Sandy Aguiar, no Rio de Janeiro, em 1862. No primeiro número, ela declara estar consciente
do pioneirismo de sua iniciativa e sua crença inabalável na capacidade intelectual da mulher.
AS
PRIMEIRAS
LETRAS
ao clímax — o instante de maior envergadura, para então refluir numa fase de aparente calmaria,
e outra vez recomeçar.
As décadas em que esses momentos-onda teriam obtido maior visibilidade, ou seja, em que estiveram
mais próximos da concretização de suas bandeiras, seriam em torno de 1830, 1870, 1920 e 1970. Foram,
portanto, necessários cerca de cinqüenta anos entre uma e outra, com certeza ocupados por inúmeras
pequenas movimentações de mulheres, para permitir que as forças se somassem e mais uma vez
conseguissem romper as barreiras da intolerância, e abrir novos espaços.
Anos 30:
rompendo algumas
barreiras, as mulheres
começam a conquistar os
espaços públicos.
REVISTAABREALAS
100 101
SONHANDO
COM
O VOTO
A segunda onda surge por volta de 1870 e se caracteriza principalmente pelo espantoso número de
jornais e revistas de feição nitidamente feminista, que são editados no Rio de Janeiro e em outros
pontos do país.
Dentre tantos, O Sexo Feminino, dirigido por Francisca Senhorinha da Mota Diniz, de longa vida e muito
sucesso, empenhou-se em alertar as mulheres de que o grande inimigo era a ignorância de seus direitos,
e que era preciso “quebrar as cadeias que desde séculos de remoto obscurantismo nos rodeiam”. O jornal
surge em 1873 na cidade Campanha da Princesa (MG), transfere-se para o Rio de Janeiro e resiste até
1896, com o nome alterado para O Quinze de Novembro do Sexo Feminino. Em sua última fase, defende
com muita ênfase o direito das mulheres ao estudo secundário e ao trabalho.
Outros jornais também marcaram época: o Echo das Damas, de Amélia Carolina da Silva Couto, circulou
no Rio de Janeiro de 1875 a 1885, defendendo a igualdade e o direito da mulher à educação. O Domingo
e o Jornal das Damas, ambos de 1873, clamavam pelo ensino superior e pelo trabalho remunerado e
divulgavam idéias novíssimas, como “a dependência econômica determina a subjugação” e “o progresso
do país depende de suas mulheres”.
Dentre tantas jornalistas empenhadas, destaca-se Josefina Álvares de Azevedo (1851-?), que lucidamente
questiona a construção ideológica do gênero feminino e exige mudanças radicais na sociedade. A Família,
o jornal que dirigiu de 1888 a 1897, em São Paulo e no Rio de Janeiro, destacou-se pelo tom combativo
em prol da emancipação feminina. Josefina Azevedo escreveu ainda uma peça de teatro intitulada O voto
feminino, que teria sido representada com sucesso.
Outras regiões também tiveram seus periódicos, nem por isso menos significativos. Um deles foi
O Corimbo, de Porto Alegre, das irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro, de vida
surpreendentemente longa: de 1884 até 1944. Os editoriais traziam veementes apelos a favor do voto,
da educação superior e da profissionalização. Outro periódico foi A Mensageira, que circulou na capital
paulista de 1897 a 1900 e teve importante participação na história da mulher brasileira. Dirigido por
Presciliana Duarte de Almeida, esteve no cenário nacional tanto por sua ampla distribuição como pela
defesa incansável da educação superior e do direito ao trabalho.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
104 105
São dessa época as primeiras brasileiras que fazem cursos universitários no exterior e no país. A cada nova
médica ou nova advogada, a imprensa feminista expressava seu regozijo pela importante vitória “sobre
os conceitos brutais da educação atrofiante, ainda infelizmente em vigor”. (Jornal A Família, 30/11/1889).
Dentre as primeiras que se aventuraram no ensino superior, destacam-se Maria Augusta Generoso Estrela
(1860-1946) e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira (1864-?), que se formaram em uma faculdade
de medicina dos Estados Unidos – a New York Medical College and Hospital for Women. Maria Augusta
e Josefa criaram ainda o jornal A Mulher, em Nova York, cujo subtítulo era: “um periódico ilustrado de
literatura e belas-artes, consagrado aos interesses e aos direitos da mulher brasileira”.
Em 1879, a reforma do ensino finalmente liberou a matrícula de mulheres nas faculdades do país. E,
dentre as primeiras a se matricularem na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, estavam Ambrosina
Magalhães, Augusta Castelões e Rita Lobato Lopes. Mas a reação a estas iniciativas era grande e a
literatura, o teatro e a imprensa masculina se encarregavam de ridicularizar as doutoras, insistindo que
era impossível à mulher da classe alta, e mesmo à da média, manter um casamento, cuidar de filhos e
exercer ainda uma profissão. Apenas as moças pobres estavam liberadas para trabalhar nas fábricas e na
prestação de serviços domésticos.
Movida por uma mesma força e um mesmo idealismo, esta imprensa terminou por criar – concretamente
– uma legítima rede de apoio mútuo e de intercâmbio intelectual e por configurar-se como instrumento
indispensável para a conscientização feminina.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
BIBLIOTECANACIONAL
Josephina Alvares de Azevedo
fundou, em 1888, o jornal A
Família, que circulou por quase
dez anos, conquistando inúmeros
leitores e leitoras, e foi importante
instrumento na luta pela
emancipação feminina.
CONSTÂNCIALIMADUARTE
Na página ao lado, O Quinze de Novembro do Sexo
Feminino: título adotado pelo periódico O Sexo
Feminino, de Francisca Senhorinha da Mota Diniz,
após a proclamação da República.
A Mulher: jornal publicado em Nova Yorque, em
1881, por duas brasileiras estudantes de Medicina:
Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Agueda
Felisbela Mercedes de Oliveira.
107106
O século XX iniciou com uma movimentação inédita de mulheres mais ou menos
organizadas, que clamavam pelo direito ao voto, ao curso superior e à ampliação do
campo de trabalho, pois não queriam ser apenas professoras, mas também trabalhar no
comércio, em repartições, nos hospitais e nas indústrias.
Muitos nomes se destacam, como o de Bertha Lutz, formada em biologia pela
Universidade de Sorbonne, que se tornará uma expressiva liderança na campanha pelo
voto feminino e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no Brasil. Durante
alguns anos, Bertha foi incansável nos discursos, nas audiências com parlamentares
e na redação de textos inflamados. Com outras companheiras, fundou a Federação
Brasileira pelo Progresso Feminino, que se disseminou em praticamente todos os
Estados e resistiu por quase cinqüenta anos, propagando os direitos das mulheres.
A década de 1920 foi particularmente pródiga na movimentação de mulheres. Além
do movimento sufragista, algumas vezes chamado de feminismo burguês e bem
comportado, que logrou ocupar a grande imprensa, com inflamadas reivindicações em
Notícia sobre a atividade
desenvolvida pelas
sufragistas na luta pela
conquista do voto feminino.
PUBLICAÇÃOUMRIODEMULHERES/REDEH
RUMO À
CIDADANIA
109
(1924), que discutia a exploração sexual e trabalhista da mulher. E Diva Nolf Nazário, acadêmica de
Direito e secretária da Aliança Paulista pelo Sufrágio Feminino, que lançou em 1923 o importante livro
Voto feminino e feminismo.
Em 1927, o governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, antecipou-se à União e aprovou em
seu estado uma lei dando o direito ao voto às mulheres, para regozijo nacional das feministas. A terra de
Nísia Floresta saía na frente e impunha-se como provocação para os demais estados brasileiros. Mas, apesar
das muitas passeatas, artigos em jornais e conferências públicas, foi preciso esperar ainda alguns anos.
Enquanto isso, Alzira Soriano (1897-1963) era eleita, em 1929, prefeita do município de Lajes (RN), após
derrotar um conhecido coronel da região, tornando-se a primeira mulher prefeita da América do Sul.
Em 1932, Getúlio Vargas finalmente incorpora ao novo Código Eleitoral o direito de voto feminino, e o
Artigo de Socorro Trindad publicado
no jornal Tribuna do Norte, RN, em
5 de maio de 1985.
Bertha Lutz (1894-1976) liderou a
campanha nacional pelo voto feminino
no Brasil, durante duas décadas.
Antonieta de Barros (1901-1952)
foi a primeira mulher negra a
se eleger deputada estadual no
Brasil, em 1934, em
Santa Catarina.
ACERVOCENTRODEMEMÓRIAMULHERESDOBRASIL/REDEH
ARQUIVONACIONAL
defesa do voto feminino, viu ainda emergir nomes vinculados a um movimento anarco-feminista, que
propunham a emancipação da mulher nos diferentes planos da vida social, além a instrução da classe
operária e de uma nova sociedade libertária.
Dentre as personalidades destaca-se Maria Lacerda de Moura (1887-1945), que muito contribuiu para
polemizar esse debate. Sua luta pela “libertação total da mulher” tem início com a publicação do livro
Em torno da educação, em 1918. Colaborou com Bertha Lutz na fundação da Liga pela Emancipação
Intelectual da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, mas logo deixou o grupo
para abraçar a causa do operariado e a defesa da liberdade sexual. Entre outros, seu livro A mulher é
uma degenerada? (1924) provocou grande polêmica nos meios letrados do país, pois defendia o amor
livre, a educação sexual e questionava a moral vigente e as posições conservadoras da igreja. Destaca-
se também Leolinda Daltro, líder de um grupo de feministas que optou por chamar a atenção para suas
reivindicações por meio de panelaços. Ou Ercília Nogueira Cobra (1891-1938), autora de Virgindade
inútil – novela de uma revoltada (1922) e Virgindade anti-higiênica – Preconceitos e convenções hipócritas
Toda mulher deve:
1. Exercer seus direitos políticos e cumprir seus deveres cívicos.
2. Interessar-se pelas questões públicas do país.
3. Ter ocupação útil à sociedade.
4. Alistar-se e votar.
5. Votar conscientemente e criteriosamente.
6. Não entregar seu título eleitoral.
7. Dedicar-se à causa feminista, crente no triunfo dos seus ideais.
8. Votar somente em quem for feminista.
9. Bater-se pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos.
10. Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e cívico da mulher.
D E C Á L O G O F E M I N I S T A
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino — 1934
110 111
Nos anos setenta ocorre a onda mais exuberante, que vai alterar radicalmente os costumes e tornar as
reivindicações mais ousadas em fato normal. Pressionada pelas feministas, a ONU – Organização das
Nações Unidas, declara 1975 como o Ano Internacional da Mulher, logo estendido por todo o decênio
(de 75 a 85), num gesto de reconhecimento de que era preciso muitos esforços para superar a atual
condição feminina e implementar ações que eliminassem a discriminação. Congressos e encontros se
sucedem, cada qual com sua especificidade de reflexão, assim como surgem dezenas de organizações de
mulheres, muitas nem tão feministas, mas sempre reivindicando direitos e trabalho digno. O dia “8 de
Março”, em homenagem às tecelãs norte-americanas, assassinadas no interior de uma fábrica, quando
reivindicavam seus direitos, finalmente é declarado Dia Internacional da Mulher, por iniciativa da ONU,
RADICALIZANDO
AS
CONQUISTAS
Passeata em comemoração ao Dia Internacional
da Mulher, Rio de Janeiro, 8 de março de 1991.
CLAUDIAFERREIRA
Brasil passa a ser o quarto país nas Américas, ao lado do Canadá, Estados Unidos e Equador, a conceder
o voto às mulheres. Carlota Pereira de Queiroz, médica, será a primeira deputada federal. Um ano depois,
com a convocação de eleições gerais, nove mulheres conquistam o mandato de deputadas estaduais.
No campo literário, as escritoras feministas se destacam. Em 1921, Rosalina Coelho Lisboa (1900-
1975) conquista o primeiro prêmio no Concurso Literário da Academia Brasileira de Letras, com o
livro Rito pagão, e era saudada pela imprensa, principalmente a mais interessada, como um “triunfo da
intelectualidade feminina brasileira”. Gilka Machado (1893-1980) publica um livro de poemas eróticos,
Meu glorioso pecado (1918), considerado um escândalo por afrontar a moral sexual patriarcal e cristã.
Saindo do eixo do Rio de Janeiro, Mariana Coelho (1857-1954) se impõe pela lúcida contribuição que
fez à história intelectual da mulher brasileira, por meio do livro A evolução do feminismo: subsídios para
a sua história, de 1933. Rachel de Queiroz (1910-2003) se destaca como autora de instigantes romances
e de crônica jornalística, e se prepara para inaugurar a presença feminina na Academia Brasileira de
Letras, em 1977.
Leolinda Daltro
(c. 1860-1935),
indianista e sufragista,
acompanhada por índios
Cherentes de Tocantins.
Chiquinha Gonzaga
(1847-1935),
importante compositora,
maestrina e abolicionista,
com ousadia provocou
a sociedade da época.
Almerinda Farias
Gama (1899-19?),
advogada, feminista e
líder sindical, foi uma
das primeiras mulheres
negras a participar da
política no Brasil.
CPDOC/FUNDAÇÃOGETÚLIOVARGAS
ACERVOFUNARTE
ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA MULHERES DO BRASIL/REDEH
113112
surge o periódico Nós Mulheres, que logo se assume como feminista e circula por quase três anos. Ambos
enfrentam questões polêmicas como anistia, aborto, mortalidade materna, mulheres na política, trabalho
feminino, dupla jornada e prostituição, sem esquecer a sexualidade, o preconceito racial, a literatura, o
teatro e o cinema.
Em 1981, feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas de São Paulo criam o Mulherio, que alcança
enorme prestígio nos meios universitários. Em suas variadas seções, havia denúncias de violência, de
discriminação contra a mulher negra, a política do corpo, o trabalho feminino, a vida das operárias na
periferia das grandes cidades, e ainda a produção cultural de escritoras e artistas e endereços de grupos
feministas de todo o país.
Rose Marie Muraro destaca-se, entre tantos nomes, pelos muitos livros que publicou, inclusive em
pleno regime militar, e por sua atuação sempre firme, coerente e assumidamente feminista. Em 1975, ela
fundou, com outras companheiras, o Centro da Mulher Brasileira, entidade pioneira do novo feminismo
nacional. Dentre seus trabalhos, a pesquisa sobre a sexualidade da mulher tornou-se emblemática para
Lélia Gonzalez (1935-1994), antropóloga, feminista, uma das
fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), na década de 1970.
AGÊNCIAOGLOBO
e passa a ser comemorado em todo o país de forma cada vez mais organizada. Essa data foi proposta
pela feminista alemã Clara Zetkin, em 1910, que considerava importante que as mulheres do mundo
inteiro tivessem um dia para concentrar seus esforços na luta pela igualdade, assim como para dar
visibilidade às suas reivindicações.
Enquanto em outros países as mulheres se uniam contra a discriminação do sexo e pela igualdade de
direitos, no Brasil o movimento feminista teve marcas distintas, pois a conjuntura política nacional,
marcada pelo cerceamento das liberdades democráticas, levou-as a se posicionarem, também, contra a
ditadura militar e a censura, pela anistia e por melhores condições de vida. Ainda assim, ao lado de uma
agenda tão ampla, debateu-se muito sobre a sexualidade, o direito ao prazer e ao aborto. “Nosso corpo
nos pertence” era o grande mote, que recuperava, após mais de 60 anos, as inflamadas discussões que
socialistas e anarquistas do início do século XX haviam promovido sobre a sexualidade. A tecnologia
anticoncepcional permite à mulher igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre sexo e
maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso.
Novamente surge uma imprensa dirigida por mulheres para melhor aglutinar os grupos. Em 1975, é
fundado o jornal Brasil Mulher, porta-voz do recém criado Movimento Feminino pela Anistia; e, em 76,
Rose Marie Muraro, uma das
grandes escritoras feministas do
século XX.
À direita, Marina Silva, importante
líder ambientalista brasileira.
Senadora pelo estado do Acre, foi
nomeada, em 2003, Ministra do
Meio Ambiente.
COLEÇÃOPARTICULAR
JEFFERSONRUDY-MMA
114 115
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  • 3. UMA MULHER À FRENTE DO SEU TEMPO COORDENAÇÃO GERAL SCHUMA SCHUMAHER COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO FLÁVIA DIAB STANLEY WHIBBE COORDENAÇÃO DE ADMINISTRAÇÃO CLÉO ASSIS TEXTO CONSTÂNCIA LIMA DUARTE REVISÃO DE TEXTOS BEATRIZ DI PAOLI PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE IMAGENS LULA RICARDI – XYZDESIGN ASSISTÊNCIA DE PRODUÇÃO NOÊMIA INOHAN PRODUÇÃO MERCADO CULTURAL FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL PRESIDENTE JACQUES DE OLIVEIRA PENA DIRETORES EXECUTIVOS ELENELSON HONORATO MARQUES FRANCISCO ASSIS MACHADO SANTOS DIRETOR DE EDUCAÇÃO E DESPORTOS MARCOS FADANELLI RAMOS ASSESSORES ADEMIR VIEIRA DOS SANTOS CLAUDIO ALVES RIBEIRO BRENNAND GERMANA AUGUSTA DE M. M. L. MACENA PETROBRAS PRESIDENTE JOSÉ SERGIO GABRIELLI GERENTE EXECUTIVO DA COMUNICAÇÃO INSTITUCIONAL WILSON SANTAROSA GERENTE DE RESPONSABILIDADE SOCIAL LUIS FERNANDO NERY GERENTE DE PATROCÍNIOS ELIANE COSTA GERENTE DE PATROCÍNIOS CULTURAIS GILBERTO BARROS COORDENADOR DE TECNOLOGIAS SOCIAIS LENART NASCIMENTO REDEH – REDE DE DESENVOLVIMENTO HUMANO COORDENADORA GERAL THAIS RODRIGUES CORRAL COORDENADORA EXECUTIVA SCHUMA SCHUMAHER CONSELHO CONSULTIVO BETH VARGAS, EDUARDO CUSTÓDIO MARTINS, HELENA TEODORO, JOIS ORTEGA, LUCIA XAVIER, MARISTELA BEZERRA BERNARDO, MOEMA VIEZZER Duarte, Constância Lima D812n Nísia Floresta: uma mulher à frente do seu tempo: fotobiografia / Constância Lima Duarte; ilustrações de Luiz Fernando Ricardi. Brasília: Mercado Cultural, 2006. 120 p. ISBN 978-85-98757-05-5 ISBN 978-85-98757-05-6 Projeto Memória 1. Literatura brasileira 2. Augusta, Nísia Floresta Brasileira – Biografia – Obras ilustradas 3. Augusta, Nísia Floresta Brasileira – Vida e obra – Fotografia 4. Augusta, Nísia Floresta Brasileira - Genealogia I. Título CDD 21.ed. 869.092
  • 4. Por que a ciência nos é inútil? Porque somos excluídas dos cargos públicos; e por que somos excluídas dos cargos públicos? Porque não temos ciência. Nísia Floresta, em Direitos das mulheres e injustiça dos homens.
  • 5. O preço por tal pioneirismo foi alto: seu nome foi envolvido pelo esquecimento e durante al- gumas décadas não se ouviu falar dela. O pouco que se ouvia estava marcado pelo preconceito ou impregnado da surpresa dos que se deparavam com uma história de vida como a sua e a novidade de suas reflexões. Viver à frente de seu tempo custou-lhe o não-reconhecimento de seu talento e, por isso, até hoje não é citada na história da literatura brasileira, como escritora romântica, nem na história da educação feminina, como educadora. Seu pensamento, no que diz respeito à condição das mulheres, extremamente subjugadas em seu tempo, ajudou na formação de uma consciência mais crítica em relação ao que era tido como um dos maiores atrasos do País naquela época: a negação ao sexo feminino do direito a uma educação tal qual a que era oferecida aos homens, impedindo assim seu acesso a espaços de poder na sociedade. Mais do que nunca se faz importante a escolha de Nísia Floresta como a homenageada da déci- ma edição do Projeto Memória. A divulgação de suas idéias contribuirá, de forma inequívoca, para nos fazer lembrar da história das mulheres brasileiras na luta pelo reconhecimento de seus direitos e de sua capacidade intelectual. Idealizado em 1997 pela Fundação Banco do Brasil, o Projeto Memória tem como objetivo ho- menagear e levar ao conhecimento do público a trajetória de importantes nomes da história do nosso país. A iniciativa conta desde 2004 com a parceria da Petrobras e nesta edição com a Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano. O Projeto é ainda composto por uma exposição itinerante, que percorre cerca de 800 municípios brasileiros, um kit-pedagógico, que é distribuido em aproxidamente 18.000 escolas públicas, um website, que pode ser acessado pelo link www.fundacaobancodobrasil.org.br, e, além deste livro foto-biográfico, um vídeo-documentário, estes últimos enviados a 5 mil bibliotecas nos 27 estados da Nação. Esperamos que por meio desta iniciativa possamos levar ao público o conhecimento acerca des- sa ilustre norte-rio-grandense, com a certeza de estar contribuindo, de maneira decisiva, para o fortalecimento da identidade cultural da Nação. REDEH . PETROBRAS . FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL Na história da mulher brasileira, o nome de Nísia Floresta se impõe e ocupa as primeiras pá- ginas, tanto pela coragem revelada em seus escritos, como pelo ineditismo e ousadia de suas idéias. No tempo em que a grande maioria das mulheres vivia recolhida em suas casas sem nenhum direito, e o ditado popular dizia que “o melhor livro é a almofada e o bastidor”, ela dirigia colégios para moças, colaborava em jornais e escrevia livros e mais livros defendendo os direitos das mulheres, dos índios e dos escravizados. Nascida em 1810, em Papari, Rio Grande do Norte, Nísia Floresta publicou seu primeiro livro, “Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens”, em 1832, quando tinha apenas 22 anos. Abor- dou também, em seus textos, temas como a opressão aos índios, iniciada com a colonização portuguesa, a escravidão e a imagem distorcida e preconceituosa que o Brasil possuía em ou- tros países, tendo escrito aquele que é considerado o primeiro artigo em defesa dos aspectos po- sitivos do “gigante do porvir”, como ela definia a nação de extensão continental e com vocação para se tornar uma das maiores potências do planeta.
  • 6. .Nasce uma ilustre brasileira . 10 .O primeiro livro feminista de que se tem notícia . 18 .A educadora . 24 .A indianista . 32 .A viajante ilustrada . 38 .O retorno à pátria, – novas publicações . 42 .A abolicionista . 46 .A nacionalista . 52 .Mais viagens... França, Alemanha, Itália, Grécia... . 56 .Obras da maturidade – os livros em língua estrangeira . 62 .Última viagem ao Brasil . 68 .Retorno à Europa – os últimos anos . 72 .A redescoberta da escritora . 78 .Primeiras homenagens . 82 .O Rio Grande do Norte acolhe a filha ilustre . 88 .Por uma história da mulher brasileira: suas lutas e conquistas . 98 .Rumo à cidadania . 108 .Referências Bibliográficas . 122 SUMÁRIO
  • 7. Em um longínquo 12 de outubro de 1810, às nove horas da noite, nascia a primeira filha do casal Dionísio Gonçalves Pinto Lisboa e Antônia Clara Freire, no sítio Floresta, em Papari, interior do Rio Grande do Norte. A menina ganhou o nome do pai: Dionísia Gonçalves Pinto, conforme consta no Assento de Batismo da Igreja de Papari. O pai, um advogado português de idéias liberais que ali havia chegado nos primeiros anos do século XIX, também fazia esculturas, como a figura de uma índia sustentando na cabeça a pia batismal, que realizou para a antiga igreja de Papari. Como ele chegou a essa povoação do nordeste brasileiro não se sabe. Apenas, que ali conheceu e desposou uma jovem viúva de nome Antônia, filha do Capitão-mor Bento Freire do Revorêdo e de Mônica da Rocha Bezerra, mãe de Maria Izabel do Sacramento, fruto do primeiro matrimônio. Além de Dionísia, o casal teve ainda dois filhos: Clara e Joaquim. Sobre a mãe, sabe-se muito pouco: apenas o que ficou nos escritos da filha – que era uma mulher carinhosa, inteligente e enérgica nos momentos necessários. NASCE UMA ILUSTRE BRASILEIRA 11
  • 8. Nísia vai levar consigo as imagens da Floresta de sua meninice não só no nome, mas em inúmeras referências que faz em seus livros. Os “jardins balsâmicos” da “risonha” Floresta a acompanham em reminiscências até o Velho Mundo e contribuem para impregnar seu espírito de saudades da terra natal. Em alguns anos, grandes mudanças sofrerá a próspera Floresta e os dias tranqüilos da infância estavam no fim. A pequena Dionísia logo saberia disso. Nos primeiros meses de 1817, chegaram notícias de uma rebelião iniciada em Recife contra os abusos do poder estrangeiro, mais tarde conhecida como Revolução de 17, que visava principalmente ao estabelecimento de um governo local e autônomo. Cansado das perseguições, Dionísio muda-se com a família para Goiana – um centro cultural do interior pernambucano – e lá espera o fim dos acontecimentos. Segundo alguns historiadores, a Revolução de 17 fracassou por excesso de idealismo dos dirigentes. Mas há quem não pense assim. E a repressão não tardou: corpos foram mutilados e cabeças dos líderes exibidas nas praças. Dentre os revoltosos, o nome de Bárbara Pereira de Alencar (1767-1837?) tornou-se conhecido, por ter sido encarcerada com os filhos e sofrido privação. Em Alagoas, Ana Lins também aderiu à causa liberal e foi ardorosa defensora da revolução pernambucana de 17. VLADEMIRALEXANDRE Em novembro de 1810, quando Dionísia contava um mês de vida, o sítio Floresta recebeu a ilustre visita de Henry Koster. Em sua viagem pelo interior do Rio Grande do Norte, o inglês travou conhecimento com o pai de Dionísia e se hospedou em sua residência, conforme consta no livro Viagens ao Nordeste do Brasil: Senhor Dionísio apresentou-me a sua mulher. Ele é português e ela brasileira. Têm uma pequena propriedade no vale, que me pareceu prosperamente colocada. (...) Jantei à moda brasileira, numa mesa colocada a seis polegadas do solo, ao redor da qual nos sentamos ou melhor, nos deitamos, sobre as esteiras. Não havia garfos e as facas, em número de duas ou três, eram destinadas a cortar unicamente os maiores pedaços de carne. Os dedos deviam fazer o resto. (KOSTER: 1978, 85) À direita, a igreja matriz da cidade de Papari, que, desde 1948, passou a chamar-se Nísia Floresta em homenagem à ilustre filha da terra. Na página ao lado, vista parcial da praça e do antigo casario da cidade, em foto de 2006. VLADEMIRALEXANDRE 12 13
  • 9. No Rio Grande do Norte, as demonstrações de ódio aos portugueses se aproximam da residência do senhor Dionísio, que decide deixar definitivamente o sítio. Após rápida passagem por Goiana, ele se instala em Olinda, onde passa a exercer a advocacia. E não era sem tempo. Ao final de 1824, um grupo depreda a propriedade e saqueia os bens da família. O sítio, que tanta admiração causou a Koster, palco dos primeiros anos de Nísia Floresta, não existia mais. Permanecerá vivo apenas no nome da escritora e em sua memória. Após a Independência, era preciso criar uma identidade própria para o Brasil. Assim como Pedro Américo, na tela “O Grito do Ipiranga”, Nísia se utiliza da estética romântica para criar uma imagem grandiosa do país. MUSEUPAULISTA-UNIVERSIDADEDESÃOPAULO Dona Leopoldina (1797-1826), primeira imperatriz do Brasil, desempenhou importante papel nos rumos do Brasil. Em Goiana, Nísia ouviu as primeiras vozes liberais que a marcariam por toda a vida. Além de um centro intelectual irradiador de novidades, a cidade abrigava o Convento das Carmelitas, onde as jovens de famílias abastadas podiam estudar e aprender trabalhos manuais. É provável que Nísia tenha usufruído dessas regalias, pois logo estará dominando línguas estrangeiras e se oferecendo como mestra de primeiras letras. Em 4 de maio de 1819, nascia o irmão Joaquim Pinto Brasil, na vila de Goiana. A irmã Clara já havia nascido, não se sabe se em Floresta ou em Goiana. De Joaquim teremos mais informações porque o livro Fragments d’un ouvrage inédit: notes biographiques [Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas] (Paris, 1878) revela traços de sua personalidade. Meses depois a família voltava para Floresta. O ambiente em Pernambuco, mesmo abafada a revolução, tornou-se pesado aos portugueses. Um fato pouco esclarecido marcará o ano de 1823. Aos treze anos, Dionísia casa-se com Manuel Alexandre Seabra de Melo, mas logo se separa e volta a residir com os pais. Tal atitude, inédita para a época, vai contribuir para as opiniões desabonadoras de conterrâneos a seu respeito. A Província de Pernambuco é foco de mais uma tentativa de separatismo de caráter republicano – conhecida como Confederação do Equador –, dois anos após a Independência do Brasil. A retórica de Frei Caneca inflamava os pernambucanos, dando-lhes forças para resistir, mesmo quando as tropas imperiais invadiam as cidades. PUBLICAÇÃOUMRIODEMULHERES/REDEH 1514
  • 10. O destino de Dionísio estava por se cumprir e, em 17 de agosto de 1828, ele era assassinado quando retornava para casa, após haver ganho a causa de um cliente. Segundo Nísia, os poderosos de Olinda não toleravam aquele advogado agindo contra seus interesses e o mandaram matar. Mas a vida não será só luto e dor. Enamorada de um jovem acadêmico, Manuel Augusto de Faria Rocha, Nísia passa a residir em sua companhia. Mais tarde, quando a escritora vai viver na França e viajar pela Europa, ela será conhecida como Mme. de Faria, como, ainda hoje, a Biblioteca Nacional de Paris registra seu nome. Em 12 de janeiro de 1830, nascia Lívia Augusta de Faria Rocha, a filha a quem a mãe dedicará livros, a companheira de viagens e futura tradutora. No ano seguinte, 1831, nasceria um segundo filho, mas “cedo arrebatado pela morte”, segundo suas palavras, e do qual não existem outras informações. Vista de Recife às margens do Rio Capiberibe, em fins do século XIX. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO 16 17
  • 11. O ano de 1831 foi o ano da estréia de Nísia Floresta nas letras. No Espelho das Brasileiras, um jornal dedicado às pernambucanas, ela publica os primeiros artigos sobre a mulher em antigas culturas. As reflexões sobre a condição feminina estavam, portanto, entre as primeiras que motivaram e levaram Nísia Floresta a escrever. E essas mesmas questões – utilidade social das mulheres, atitude injusta dos homens – serão retomadas em diversos outros escritos. Em 1832, vem a público Direitos das mulheres e injustiça dos homens, assinado com o nome que tornará famosa a norte-rio-grandense: Nísia Floresta Brasileira Augusta, que, ao invés de ocultar sob o pseudônimo, revela as opções existenciais da autora. Nísia, de Dionísia; Floresta, para lembrar o local de sua infância; Brasileira, para afirmar o sentimento nativista; e Augusta, em homenagem ao companheiro Manuel Augusto. Direitos das mulheres e injustiça dos homens foi inspirado na obra de Mary Wollstonecraft – Vindication of the rights of woman [Reivindicação dos direitos da mulher], de 1792 –, conforme ela mesma declarou, mas também em livros de outros autores europeus. A novidade é que, ao invés de simplesmente fazer uma tradução, Nísia assimila antropofagicamente as concepções estrangeiras e escreve um livro denunciando os preconceitos existentes no Brasil contra a mulher e desmistificando a idéia dominante da superioridade masculina. Ao mesmo tempo em que constrói a defesa de seu sexo, ela denuncia e desmascara os artifícios masculinos de dominação. E indaga: Se este sexo altivo quer fazer-nos acreditar que tem sobre nós um direito natural de superioridade, por que não nos prova o privilégio, que para isso recebeu da Natureza, servindo-se de sua razão para se convencerem? (FLORESTA: 1989a, 24) O PRIMEIRO LIVRO FEMINISTA DE QUE SE TEM NOTÍCIA 19
  • 12. Têm por ventura eles alguns títulos para justificar o direito com que reclamam os nossos serviços, que nós igualmente não tenhamos contra eles? (FLORESTA: 1989a, 42) Por isso Direitos das mulheres e injustiça dos homens deve ser considerado o texto fundante do feminismo brasileiro, pois não há notícia de outro anterior. Quando Manuel de Macedo publica A moreninha, em 1844, romance de valor documental pela hábil fixação de tipos humanos e da vida social da época, ele faz referências explícitas ao Direitos das mulheres, o que comprova sua divulgação. Em novembro de 1832, Manuel Augusto conclui o bacharelado em Direito na Academia de Olinda e se transfere com Nísia, a filha, D. Antônia, Clara e Izabel, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Apenas Joaquim Pinto Brasil permaneceu em Olinda, pois estava ingressando na Faculdade de Direito. A mudança aparentemente repentina de Olinda para Porto Alegre deu motivo a muitas especulações. Uns acharam que Nísia foi obrigada a sair de Pernambuco devido às ameaças do primeiro marido de processá- la por adultério. Outros divulgaram que Manuel Augusto foi para o sul a convite de um irmão que lá Capa da quarta edição, São Paulo, 1989. Capa da segunda edição de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, publicado em Porto Alegre em 1833. CONSTÂNCIALIMADUARTE (FLORESTA: 1989a, 42) 2120
  • 13. O espírito revolucionário – Nísia logo o saberia – não era privilégio dos nordestinos. O pensamento liberal se espalhava com rapidez e chegava aos campos gaúchos, semeando o descontentamento e aguçando a rivalidade entre portugueses e nativistas, simpatizantes do partido republicano. Era a guerra civil, pejorativamente chamada Farroupilha, por alusão aos farrapos com que os rebeldes se vestiam. Em 20 de setembro de 1835, os revolucionários ocupam Porto Alegre e Rio Grande, as mais importantes vilas da região, obrigando a população a se posicionar a favor ou contra um dos lados. É desse período o início da amizade de Nísia com Anita e Giuseppe Garibaldi, o italiano responsável pelo comando da marinha da República Rio-Grandense. Muitos anos depois, Nísia reencontrará Garibaldi na Itália e, no livro escrito na ocasião, dedicará páginas elogiosas ao herói. Com o o avanço da Revolução, o clima tenso na capital gaúcha torna-se difícil para uma mulher chefe de família. Por isso, em fins de 1837, Nísia se transfere com os filhos e a mãe para o Rio de Janeiro. Mais uma vez, nova cidade, nova vida. Anita Garibaldi (1821-1849), natural de Santa Catarina, participou ao lado de seu companheiro, o italiano Giuseppe Garibaldi (1807-1882), da Revolta dos Farrapos, no sul do País, iniciada em 1835. Neste período Nísia manteve amizade com eles, que, mais tarde, ficariam conhecidos como “heroína e herói de dois mundos”. “Proclamação da República de Piratini”, de Antônio Parreira (1836), retrata um momento importante da Revolução Farroupilha. Com a guerra, o clima em Porto Alegre torna- se hostil para uma família de mulheres e crianças, e Nísia se muda, em 1837, para o Rio de Janeiro. MUSEUANTÔNIOPARREIRA,NITERÓI,RJ A inglesa Mary Wollstonecraft (1759-1797) é autora do livro Vindication of the rights of woman, de 1792, que defende a igualdade entre os sexos. Essa foi uma das obras que inspirou as reflexões de Nísia Floresta sobre o papel da mulher na sociedade. morava. Mas não importa se foi este ou aquele o motivo da mudança. Importa que, em Porto Alegre, nova vida a aguardava. E, em 12 de janeiro de 1833, nascia o outro filho, Augusto Américo de Faria Rocha, coincidentemente no mesmo dia em que Lívia havia nascido três anos antes. O fato de no Assento de Batismo ele estar registrado como filho legítimo do casal – Nísia e Manuel Augusto – parece confirmar a existência do segundo casamento da escritora. Em 29 de agosto, um infeliz acontecimento marcará Nísia Floresta: Manuel Augusto morre repentinamente, aos vinte e cinco anos, deixando-a com os filhos pequenos. A dor pela morte prematura do marido e as saudades da mulher apaixonada pontuarão seus escritos, como a testemunhar a fidelidade ao companheiro morto. Muitos anos depois, e vivendo em terras italianas, ela escrevia: Dia de eterno luto para o meu coração. Esta aurora surge aos meus olhos depois de uma série de longos anos, sempre carregada de tristeza! É excessivo deplorar a perda, mesmo prematura, de um esposo, pensarão talvez. Mas eu sinto com toda a minha alma que é cedo demais para esquecer um anjo que não fez mais do que passar um momento sobre a terra para difundir em minha alma o encanto de uma felicidade cujo segredo ele levou para o céu! (FLORESTA: 1871, 48) A vida continua. Nos quatro anos em que reside em Porto Alegre, Nísia dedica-se ao magistério e reedita Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Uma das irmãs, Maria Izabel, casa-se com um jovem da família Silva Arouca; o irmão, Joaquim Pinto Brasil, casa-se com uma moça de Pernambuco; e Clara vai casar-se no Rio de Janeiro com o Dr. José Henrique de Medeiros, um português fidalgo da Casa Real de Portugal, depois convertido à homeopatia. 2322
  • 14. O Rio, apesar de ser a capital do país, tinha graves problemas. O lixo se acumulava nas ruas, a iluminação era deficiente, os chafarizes eram poucos, e volta e meia a cidade era assolada por epidemias. Em compensação, havia grande interesse pelo ensino, o que se constata nas dezenas de escolas que aí funcionavam, dirigidas em sua maioria por estrangeiros. Nísia não perdeu tempo. Em 31 de janeiro de 1838, estampa, no Jornal do Comércio, o anúncio do estabelecimento de ensino que estava inaugurando: D. Nísia Floresta Brasileira Augusta tem a honra de participar ao respeitável público que ela pretende abrir no dia 15 de fevereiro próximo, na rua Direita n° 163, um colégio de educação para meninas, no qual, além de ler, escrever, contar, coser, bordar, marcar e tudo o mais que toca à educação doméstica de uma menina, ensinar-se-á a gramática da língua nacional por um método fácil, o francês, o italiano, e os princípios mais gerais da geografia. Haverão igualmente neste colégio mestres de música e dança. Recebem-se alunas internas e externas. A diretora, que há quatro anos se emprega nesta ocupação, dispensa-se de entreter o respeitável público com promessas de zelo, assiduidade e aplicação no desempenho dos seus deveres, aguardando ocasião em que possa praticamente mostrar aos pais de família que a honrarem com a sua confiança, pelos prontos progressos de suas filhas, que ela não é indigna da árdua tarefa que sobre si toma. A EDUCADORA 25
  • 15. Em 18 de dezembro de 1846 era publicada no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro, a lista da banca examinadora e das alunas que se destacaram nos exames finais do Colégio Augusto. A filha Lívia aparece como uma das premiadas em latinidade. ao Rio de Janeiro com a família. Após residir em várias cidades, decide-se pela capital, onde exerce a advocacia e leciona no Colégio D. Pedro II. Mais tarde, torna-se chefe de Secretaria do Ministério da Agricultura e fundador do Instituto Psicológico. Esses serão anos particularmente agitados para a jovem escritora. Em plena capital do Império, Nísia Floresta fez conferências defendendo a emancipação dos escravos, a liberdade de cultos religiosos e a federação das províncias. Todos que escreveram sobre ela referiram-se a tais palestras, com elogios ao seu liberalismo. Segundo Ignez Sabino, em Mulheres Illustres do Brazil, os espectadores: Saíam dali deslumbrados não só pela presença agradável da jovem senhora, como pela audácia da sua inteligência de primeira água e ainda mais... um horror para aquele tempo!... por ousar a ilustre dama falar em abolição e em federalismo. (SABINO: 1996, 172) Fachada do Colégio Augusto, que ficava situado no centro do Rio de Janeiro. Desenho retirado do Mapa Arquitetural da Cidade do Rio de Janeiro, 1874. CONSTÂNCIALIMADUARTE A Rua Direita foi o primeiro endereço do Colégio Augusto, cujo nome revela uma homenagem ao companheiro falecido. Depois foi transferido para a Rua Dom Manuel nº. 20, com entrada pela Travessa do Paço, nº. 23, bem em frente ao Palácio da Justiça. As novidades pedagógicas adotadas pela diretora enfrentavam resistências, e não foram poucas as notas anônimas nos jornais ironizando o ensino do latim, por exemplo, e a ênfase no estudo de línguas estrangeiras. Os mais conservadores relutavam em aceitar uma mulher que ousava competir com as estrangeiras, que escrevia livros defendendo os direitos de seu sexo e, ainda, publicava em jornais. Um dia, um jornalista, surpreso com a qualidade do ensino que ali era ministrado, escreveu o seguinte: “Trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos”. Em 1839, surge no Rio de Janeiro a terceira edição de Direitos das mulheres e injustiça dos homens, conforme o anúncio do Jornal do Comércio de 25 de abril desse ano, informando que o livro se encontrava à venda na Casa do Livro Azul, na rua do Ouvidor, 121, por 55 réis. Em janeiro de 1840, o irmão Joaquim Pinto Brasil, tendo terminado o Curso de Direito em Olinda, chega CONSTÂNCIALIMADUARTE 2726
  • 16. Capa da edição italiana de Conselhos à minha filha, publicada em Florença, em 1858. À esquerda, segunda edição brasileira, de 1845. É de 1842 a publicação de Conselhos à minha filha, dedicado a Lívia como presente de aniversário. Ao concebê-lo, a mãe-escritora com certeza não imaginou que esse seria seu livro mais editado e traduzido. Em 1845, saía a segunda edição acrescida de quarenta pensamentos em versos; mais tarde, surgem duas em italiano, em 1858 e em 1859, e outra em francês, em 1859. As virtudes e os deveres filiais aí apresentados podem ser assim resumidos: a menina educada deve ser simples, modesta, obediente aos pais, respeitosa com os idosos e decidir-se sempre pelo oprimido. Em 1847, três novas publicações vêm à luz no Rio de Janeiro, e todas dirigidas às alunas do Colégio: Daciz ou a jovem completa, Fany ou o modelo das donzelas e o Discurso que às suas educandas dirigiu Nísia Floresta Brasileira Augusta. Nos anos seguintes, surgem mais escritos dedicados à educação, como Opúsculo humanitário, de 1853, “O abismo sob as flores da civilização”, “Um passeio no Jardim de Luxemburgo” e “A mulher”, sendo que os três últimos foram escritos em italiano e publicados no volume Scintille d’un’anima brasiliana [Cintilações de uma alma brasileira], de 1859. CONSTÂNCIALIMADUARTE CONSTÂNCIALIMADUARTE 29
  • 17. Por fim, trata do Brasil e defende a tese de que o progresso de uma sociedade depende da educação oferecida à mulher. E provoca: “Um passeio no Jardim de Luxemburgo” é o único que contém referências explícitas à doutrina positivista, por valorizar a função social da mulher, e expressões elogiosas ao filósofo Auguste Comte, justamente por tê-la concebido. E em “A mulher” Nísia trata do costume francês de se enviar os filhos para serem criados longe da casa materna, em casa de mulheres pagas para isso. Os altos índices de mortalidade infantil, ou as tristes histórias de crianças abandonadas, não eram suficientes para sensibilizar as famílias, que continuavam enviando os filhos para as amas-de-leite. Ao condenar com veemência tal costume e valorizar a função materna, Nísia se antecipa ao debate que só ocorrerá na França nas últimas décadas do século XIX e dá uma contribuição para a reflexão e para a mudança de comportamento da mulher francesa. Povos do Brasil, que vos dizeis civilizados! Governo, que vos dizeis liberal! Onde está a doação mais importante dessa civilização, desse liberalismo? (FLORESTA: 1989b, 43). Capa da segunda edição do Opúsculo humanitário, de 1989. Edição bilíngüe de Cintilações de uma alma brasileira, de 1997. Opúsculo humanitário consiste na reunião de artigos que foram publicados nos jornais do Rio e contém a síntese do pensamento de Nísia Floresta sobre a educação formal e informal de meninas. Revela ainda a erudição da autora, sua experiência no magistério e na direção de escolas. Neste livro, ela recupera parte da história da condição feminina em diversas civilizações, relacionando o desenvolvimento intelectual e material do país – ou o seu atraso – com o lugar ocupado pelas mulheres na sociedade. CONSTÂNCIALIMADUARTE 30 31
  • 18. Outros temas – como a causa indígena e o negro escravo – também mobilizaram Nísia Floresta e foram tratados com paixão em seus escritos. O poema intitulado “A lágrima de um Caeté”, de 1849, que assinou com o pseudônimo de Telesila, por exemplo, revela o posicionamento da autora frente à questão indígena. Nele encontram-se alguns traços inconfundíveis da estética romântica, como o elogio da natureza e a exaltação de valores indígenas. Sua grande novidade é trazer o ponto de vista do índio vencido e inconformado com a opressão de sua raça pelo branco invasor e não a visão do índio herói, como a maioria dos textos indianistas do período romântico. Era da natureza o filho altivo, Tão simples como ela, nela achando Toda a sua riqueza, o seu bem todo... O bravo, o destemido, o grão selvagem, O Brasileiro era... – era um Caeté! (FLORESTA, 1997a, 36) No livro A lágrima de um Caeté, a escritora retrata o índio inconformado com a colonização de suas terras, em flagrante rompimento com os ideais românticos da época. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO A INDIANISTA 33
  • 19. Além disso, o poema reúne ainda duas tendências românticas – a questão indígena e os conflitos político-sociais – ao tratar também da derrota dos liberais na Revolução Praieira, ocorrida em Pernambuco, em 1848. A Lágrima de um Caeté lamenta tanto a dizimação das tribos, como o fim melancólico da revolução, a partir de uma mesma perspectiva: a do oprimido pela força dos dominantes. E o discurso da narradora – às vezes até se confundindo com o do índio – acentua um dado fundamental, que é o da perda de identidade do “silvícola”: Indígenas do Brasil, o que sois vós? Selvagens? os seus bens já não gozais... Civilizados? não... vossos tiranos Cuidosos vos conservam bem distantes Dessas armas com que ferido tem-vos. De sua ilustração, pobres caboclos! Nenhum grau possuís!... Perdestes tudo, Exceto de covarde o nome infame... (FLORESTA, 1997a, 39) Capa da primeira edição do poema A Lágrima de um Caeté, de 1849. A terceira edição ocorreu em 1897. CONSTÂNCIALIMADUARTE 3534
  • 20. O índio de Nísia Floresta não é inocente, nem personifica a bondade natural idealizada nas teorias filosóficas européias. E seu pranto representa não apenas o epitáfio poético da Revolução Praieira, mas, principalmente, o fim da resistência indígena frente ao branco invasor. Onde estão, fero Luso ambicioso, Estes bens, que eram nossos? Porangaba perdi, perdi os filhos... Ai de mim! Inda vivo! Com a Pátria lá foram esses tesouros! O pranto só me resta! (FLORESTA, 1997a, 42) Ao assinar esse trabalho como Telesila, Nísia parece revelar a intenção de sempre resistir, como fez a heroína grega de quem tomou de empréstimo o nome. Como ela, Nísia também era uma guerreira que lutava contra a opressão do colonizador, pela liberdade dos povos oprimidos e pelos direitos da mulher. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO Antes de 1500, os índios no Brasil possuíam uma cultura de interdependência com a natureza. Com a colonização, começaram a ser expulsos de suas terras, provocando até hoje conflitos territoriais e a ameaça aos importantes valores culturais indígenas. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO 36 37
  • 21. Em novembro de 1849, Nísia embarcou com os filhos rumo ao Velho Mundo, a bordo da galera Ville de Paris. Lívia havia sofrido um acidente com um cavalo nas comemorações do 7 de setembro, e o médico aconselhou a mudança de ares. Houve quem dissesse que a saúde da filha era um pretexto para que ela se ausentasse do país, incomodada com a campanha difamatória dos jornais contra seu colégio, e o sucesso do livro que elogiava uma revolução contrária aos interesses do Imperador. Pode ser. Afinal, a mãe preocupada era também a escritora polêmica. Assim, após cinqüenta e dois dias em alto mar, Nísia Floresta chegava na mais importante capital européia daquele tempo, e, na Seção de Passaportes dos Arquivos Nacionais da França, entre os passageiros estrangeiros, ainda hoje lê-se o seguinte: “Mme. Augusta, Nísia Floresta Brasileira – 39 anos, acompanhada de seu filho e sua filha. Origem: Rio de Janeiro. Domicílio real: Rio de Janeiro. Destino: Paris. Profissão: Rendas”. O romance Dedicação de uma amiga, publicado em Niterói, em 1850, em dois volumes, assinados com as iniciais B. CONSTÂNCIALIMADUARTE A VIAJANTE ILUSTRADA 39
  • 22. No início de 1850, apesar de a autora estar a milhares de quilômetros do Brasil, era publicado em Niterói um romance seu – Dedicação de uma amiga – em dois volumes, assinado com as iniciais B. A. Segundo Inocêncio, no Dicionário Bibliográfico, esta obra devia se compor de quatro volumes, mas apenas dois teriam sido publicados. Entre os contatos com intelectuais, cientistas e aristocratas que Nísia fez no Velho Mundo, o mais conhecido foi a amizade que manteve com Auguste Comte. Em 1851, a brasileira era uma das pessoas que afluíam ao Auditório do Palácio Cardinal para assistir às conferências do Curso de História Geral da Humanidade, que Comte ministrava para divulgar suas idéias. Mas apenas em 1856 ela se aproxima do filósofo e pode manifestar suas impressões acerca da filosofia positivista. Em julho de 1851, decide visitar Portugal, onde permanece até janeiro do ano seguinte, quando embarca no navio Treviot, rumo ao Brasil. Vista do Rio Sena e da Catedral de Notre Dame, de Paris, uma das cidades onde Nísia residiu após 1849. À direita, uma das poucas imagens conhecidas da escritora. CONSTÂNCIA LIMA DUARTE 4140
  • 23. A chegada de Nísia não foi festejada apenas pelos familiares. O Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, em 22 de fevereiro de 1852, saudou a escritora e deu notícias de sua vida na Europa, nestes termos: Sentimos vivo prazer em anunciar às nossas assinantes a chegada da Sra. D. Nísia Augusta Floresta, brasileira, tão conhecida entre nós pela sua inteligência e ilustração; tão respeitada pelo seu longo magistério, há 16 anos empregado com desvelos na educação de suas patrícias; e tão louvável e digna de nossa admiração por sua dedicada constância ao amor e à sabedoria e ao engrandecimento de sua pátria. A sra. D. Nísia estava ausente de nós há dois anos e meio, viajando neste intervalo à França e à Inglaterra, onde visitou os melhores colégios de instrução, os mais abalizados literatos, donde voltou a nossos braços, admirando os Herculanos, Garrets, Castilhos e outros varões respeitáveis na ciência. Está pois entre nós a Sra. D. Nísia, demos-lhe um abraço de viva amizade e gratidão, em nome do nosso sexo. O RETORNO À PÁTRIA, NOVAS PUBLICAÇÕES 43
  • 24. E ela permanece no país por alguns anos. Assim, quando sua mãe D. Antônia Clara Freire adoece, vindo a falecer em 25 de agosto de 1855, ela estava a seu lado. Esta morte, somada à do pai e à do companheiro, será constantemente lembrada pela autora como a “tríplice perda”, que passa a considerar o mês de agosto um mês funesto para si. No texto intitulado “O pranto filial”, depois publicado em O Brasil Ilustrado, de 1856, Nísia expõe abertamente a sua dor. Aliás, tornar público o que é privado será uma constante na vida desta autora. Lágrimas de íntima dolorosa saudade, correi livremente na solidão deste quarto funerário, santuário de meus tristes pensamentos, onde ofereço em holocausto as dores de um coração contraído, de um espírito torturado, depois que não respira mais aquela que me amamentou na infância e me consolou na vida de mulher! Correi até que a alma encontre em vós um lenitivo às angústias que a oprimem!... Nessa época, a febre amarela mais uma vez se abatia sobre a cidade do Rio de Janeiro, interrompendo as atividades sociais. Movida pela solidariedade, Nísia Floresta se apresenta como voluntária e trabalha por todo o semestre na Enfermaria do Hospital de Nossa Senhora da Conceição, situada na rua da Quitanda, nº. 40. Também foi enfermeira, neste mesmo hospital, Maria Josephina Matilde Durocher – a primeira parteira a se formar em Obstetrícia pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1832. E em 1856 é editado um livro de versos intitulado “Pensamentos”. Nísia retorna ao Rio de Janeiro em 1852, onde permanece por quase três anos. Vista da cidade em que se vêem a Praia de Botafogo e antigas edificações. FOTOMARCFERREZ-ACERVOBIBLIOTECANACIONAL 44 45
  • 25. Entre os títulos atribuídos a Nísia Floresta, encontra-se com destaque o de abolicionista. Aliás, foi justamente este – junto com o de defensora dos direitos das mulheres – o que mais lhe granjeou estima e admiração. Realmente, o repúdio à escravidão e a denúncia das injustas relações entre senhores e escravizados constituem um dos temas mais frequentes de sua obra e também das conferências que teria realizado no Rio de Janeiro, na década de 1840. A ABOLICIONISTA 47
  • 26. Inês Sabino, em 1899, Henrique Castriciano, em 1909, e Oliveira Lima, em 1919, por exemplo, destacaram seu ineditismo em pregar publicamente o abolicionismo naqueles tempos tão remotos. Infelizmente, são apenas estes os registros sobre o fato, pois não há notícias na imprensa, nem se as conferências teriam sido publicadas. Restam seus escritos para testemunhar que Nísia Floresta foi realmente uma das primeiras mulheres no Brasil a se manifestar contra o sistema escravocrata, ao lado apenas da professora negra maranhense Maria Firmina dos Reis, autora de Ursula, de 1859. O potiguar Henrique Castriciano era admirador de Nísia Floresta e foi quem iniciou as pesquisas sobre a trajetória da escritora. Abaixo: Caderno manuscrito que pertenceu a Henrique Castriciano, contendo o texto “Páginas de uma vida obscura”, de Nísia Floresta, entre outras anotações. ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN Tela de Johann Moritz Rugendas, pintor alemão que retratou o Brasil no século XIX. Em sua obra, Nísia também chamou a atenção para a crueldade com que os negros eram tratados. FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO 49
  • 27. seguidos de uma viagem à Grécia, de 1864 e 1871 –, ela faz referências ao cativeiro. Mas é natural que a autora, em tão grande espaço de tempo – de 1849 a 1871 –, tenha alterado substancialmente seu modo de ver o problema. Enquanto no poema de 49 há uma condenação rápida ao tráfico dos africanos e, no Opúsculo humanitário, as referências já são extensas, a pregação explícita da abolição só ocorrerá em Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia, quando a escravidão será considerada “a vergonha da civilização moderna”. Ó minha pátria querida, Éden desse mundo imenso e extraordinário, reaparecido ao olhar deslumbrado de Colombo, deixa, ah! deixa livremente explodir de teu nobre peito o grito humanitário, que sufocas penosamente, por força dos deploráveis preconceitos transmitidos por teus antigos dominadores de além- mar! Sê conseqüente com as instituições livres que te regem, com a religião que professas: quebra, oh! quebra os grilhões de teus escravos! (FLORESTA: 1998b, 41) A tragédia da escravidão retratada por Rugendas no século XIX. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO Outras mulheres – como Narcisa Amália, Ana Aurora do Amaral Lisboa, Luciana de Abreu, Benedita Bormann, Maria Amélia de Queiróz, Ismênia Santos, Revocata de Melo, Luiza Regadas, Corina Coaracy, Chiquinha Gonzaga e Maria Josephina Mathilde Durocher, por exemplo – também denunciaram literariamente o cativeiro ou participaram de campanhas abolicionistas. Mas, apesar do empenho dessas autoras, e da repercussão que seus trabalhos alcançaram na época, nenhuma logrou obter o reconhecimento público, como aconteceu com os escritores homens, que inscreveram seus nomes no movimento, independentemente até do mérito dos trabalhos realizados. Mas quando essa mobilização ocorreu, a década de 1870 estava no fim e se aproximava a de 1880. A opinião pública internacional havia se posicionado contra a escravatura e era evidente a contradição do Império, que se dizia liberal mas mantinha o regime escravocrata. E aí está o mérito de Nísia Floresta e de Maria Firmina dos Reis, como vozes precursoras contra a escravatura, ainda em 1840 e 1850. No caso de Nísia, desde os primeiros escritos – A lágrima de um Caeté, de 1849; Opúsculo humanitário, de 1853; Passeio ao Aqueduto da Carioca, de 1855; e Páginas de uma vida obscura, de 1855 –, ela toca na questão nevrálgica da escravidão. Também nos livros que se seguiram – Cintilações de uma alma brasileira, de 1859; O Brasil, de 1871; os dois volumes de Três anos na Itália, Ama de leite, uma das atividades desempenhadas pelas mulheres escravizadas, preocupação constante na obra de Nísia. Acima, Ursula, da maranhense negra Maria Firmina dos Reis, considerado um dos primeiros romances escrito por uma mulher brasileira, em 1859. FOTOGRAFIADECONSTANTINOBARZA,PE,C.1880.ACERVOFUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO CONSTÂNCIALIMADUARTE 50 51
  • 28. Nísia viveu intensamente o seu tempo. Como os demais escritores, ela também se considerava portadora de uma “missão” e queria contribuir para dotar o país de uma literatura, mesmo residindo fora e escrevendo em línguas estrangeiras. A opção pelo nacional era ostentada com orgulho tanto na forma como assinava os escritos como no título – Mme. Brasileira – com que se tornou conhecida na Europa. Desenho feito por Manuel Bandeira, publicado em Livro do Nordeste, Pernambuco, em 1925. A NACIONALISTA 53
  • 29. Nísia projetava um Brasil de futuro grandioso – o “gigante do porvir”. Apesar de todos os contrastes e desigualdades, o país pode se orgulhar hoje de ser uma das maiores economias do mundo. Todos os povos civilizados da terra precisam conhecer este amplo e rico país da América meridional, que se estende desde o majestoso Amazonas, o maior rio do mundo, até o Prata. Aí se encontram, além de uma infinidade de outros rios navegáveis, grandiosas florestas, reclinadas, a maior parte, por todo o seu perímetro em forma de admiráveis curvas: excelsos montes, cujos cumes parecem tocar o céu; pradarias risonhas de uma eterna vegetação: cheios uns e outras de quanto têm de flores e frutos o antigo e o novo mundo. A essas magnificências da natureza juntam-se os prazeres de uma civilização progressiva, espalhada em muitas de suas partes. (FLORESTA: 1997b, 09) FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO Uma narrativa resume essa declaração de amor à pátria. Conhecedora dos equívocos e preconceitos divulgados no exterior sobre o Brasil e os brasileiros, ela publica um texto – primeiro em italiano, depois em francês – intitulado “O Brasil”, com entusiasmadas descrições da natureza, das lutas pela libertação, e com projeções de um futuro grandioso para o país. A intenção era influenciar o leitor estrangeiro e também se alinhar aos que construíam uma imagem positiva para a pátria, mediante o tom ufanista na abordagem das coisas do Brasil. O Brasil de hoje em dia não inveja nenhuma nação do mundo; já que, tal como observamos, ele encerra em seu seio todos os materiais para tornar-se uma das mais importantes entre elas. (FLORESTA: 1997b, 53) “Entrada do Porto por Laranjeiras”, obra de William Gore Ouseley, diplomata e pintor inglês que também retratou o Brasil no século XIX. FUNDAÇÃOBIBLIOTECANACIONAL 5554
  • 30. Em 10 de abril de 1856, Nísia Floresta seguiu com a filha Lívia para a segunda viagem por terras estrangeiras. Seu filho Augusto Américo permaneceu no Rio estudando. Naquele momento, talvez ela não imaginasse como seria longa essa ausência, pois só depois de dezesseis anos tornará a ver a paisagem carioca de que tanto gostava, bem como os parentes que ficavam no cais. O Colégio Augusto anunciou pela última vez os seus cursos e, após dezessete ou dezoito anos de funcionamento, fechava finalmente as portas. No ano de 1856, e no seguinte, a escritora se aproximará de Auguste Comte, recebendo- o algumas vezes em sua residência: primeiro à Rua d’Enferm, 11, e depois à Rua Royer Collard, 9, que, por sinal, ficava próxima do Jardim de Luxemburgo, da Universidade de Sorbonne e da Rua Monsieur Le Prince, 10, endereço de Comte. Também é dessa época a correspondência trocada entre eles, zelosamente guardada pelos adeptos do Positivismo no Brasil e na França. Auguste Comte (1798-1857), fundador da filosofia positivista – que, no seu início, atribuía à mulher um papel de destaque junto à família – e um dos grandes amigos de Nísia na Europa. MAIS VIAGENS... FRANÇA, ALEMANHA, ITÁLIA, GRÉCIA... 57
  • 31. O parque que ficava próximo das residências de Nísia e Comte, em Paris, que serviu de cenário para “Um Passeio ao Jardim de Luxemburgo”, de 1859, um dos poucos textos em que ela se utiliza de conceitos positivistas. CONSTÂNCIA LIMA DUARTE Na Igreja da Humanidade, ou Apostolado Positivista do Brasil, no Rio de Janeiro, encontram-se as sete cartas que Comte dirigiu a Nísia Floresta, datadas de 19 de agosto, 9 de dezembro e 18 de dezembro de 1856, 18 de abril, 24 de maio, 24 de agosto e 29 de agosto de 1857. E, em Paris, na Maison d’Auguste Comte, antiga residência do filósofo, hoje transformada em museu, estão as respostas de Nísia, com as seguintes datas: 19 de agosto e 17 de dezembro de 1856, e 5 de abril, 17 de abril, 23 de maio e 1º de julho de 1857, num total de seis cartas. Essa correspondência – motivo de orgulho para os positivistas – resume- se a cartas de cortesia, com agradecimentos pela remessa de um retrato ou de um livro, de pêsames pelo aniversário de morte de Clotilde de Vaux, a mulher por quem Comte foi apaixonado, e alusões a doenças e a tratamentos. São, sem dúvida, amistosas e revelam a amizade que existiu entre os dois, mas estão longe de serem cartas íntimas de cunho amoroso, como muitos sugeriram. Último endereço de Nísia Floresta em Paris, à rua Royer Collard, nº 9. CONSTÂNCIALIMADUARTE 58 59
  • 32. A presença de Comte numa reunião em casa de Nísia Floresta, em Paris, foi relatada ao positivista Antônio Pereira Simões por um senhor de engenho pernambucano que aí estava. O registro é de Ivan Lins, em História do Positivismo no Brasil. Segundo o relato, o filósofo: era recebido sempre com testemunhos de profunda consideração e respeito pelos que freqüentavam o salão da escritora brasileira. Esta ia pessoalmente recebê-lo à entrada de seu apartamento e dizia aos presentes, com visível entusiasmo, formulando um gesto de silêncio: “Aí está o Sr. Comte, a maior glória da França. Procurem ouvi-lo e me darão razão. Não é um homem como os outros. É um gênio. A originalidade de suas concepções é tão sedutora como o cavalheirismo de que é feito o seu coração. Os clarões de sua inteligência transfiguram-no num homem belo, quando ele expõe seus grandes pensamentos sobre a moral, sobre política, sobre medicina. Sabe tudo, e todos o respeitam como a maior cabeça do século. Orgulhemo-nos de apertar-lhe a mão. Voilà un titre de gloire [Eis um título de glória]!”(LINS: 1964, 21-2) Nísia Floresta foi uma das quatro mulheres que acompanhou o cortejo fúnebre do filósofo até o Cemitério Père Lachaise, ao lado de Sophie Bliaux, filha adotiva de Comte, de Mme. Laveyssière, irmã de Sophie, e de Mme. Maria Robinet, casada com um positivista. Residência de Auguste Comte, em Paris, situada na rua Monsieur Le Prince, 10, hoje transformada em museu. Reprodução de uma das cartas de Nísia Floresta dirigida a Auguste Comte, datada de 17 de abril de 1857. CONSTÂNCIALIMADUARTE CONSTÂNCIALIMADUARTE 60 61
  • 33. Em 1857, quando Flaubert publicava Madame Bovary, Baudelaire, As flores do mal, e, no Brasil, Alencar trazia a público O Guarani, Nísia editava em Paris Itinéraire d’un voyage en Allemagne [Itinerário de uma viagem à Alemanha], assinando Mme. Floresta A. Brasileira. O livro foi organizado sob a forma de cartas dirigidas ao filho e aos irmãos e contém o relato da viagem que ela realizou através de cidades alemãs. A primeira carta foi escrita em Bruxelas, em 26 de agosto de 1856, e a última, em Estrasburgo, em 30 de setembro do mesmo ano, num total de trinta e quatro cartas. Nísia privilegia em seu relato não a história das cidades que visita, ou a descrição de cada etapa do percurso, mas a própria subjetividade, pois se coloca de tal forma no centro da narrativa, que tudo o mais parece girar à sua volta. Viajar, repito-lhes, é o meio mais seguro de aliviar o peso de uma grande dor que nos mina lentamente. Desde que deixei Paris para visitar a Bélgica e a Alemanha, os dias não mais parecem ter a lentidão que me matava. (FLORESTA: 1998a, 129) O castelo de Heidelberg, descrito por Nísia em Itinerário de uma viagem à Alemanha, em 1857. OBRAS DA MATURIDADE, OS LIVROS EM LÍNGUA ESTRANGEIRA 63
  • 34. O que realmente importa – para ela e, por conseqüência, para os leitores – são as suas impressões diante do que vê. E, como ocorre em quase todos os seus livros, a narradora confunde-se com a autora e não esconde a condição biográfica da escritura. Ao contrário, revela-a com informações precisas de sua vida, como o nome dos filhos e irmãos, as datas de morte da mãe e do esposo, além de inúmeras outras referências passíveis de serem confirmadas em sua biografia. E Nísia toma gosto pelas viagens. Nos anos seguintes, ela visita Roma, Nápoles, Florença, Veneza, Verona, Milão, Torino, Livorno, Pádua, Mântua, Pisa, Mombasilio e Mandovi. Também conheceu várias cidades da Sicília e da Grécia, detendo-se sempre nas que mais lhe agradavam. Aos cinqüenta anos de idade, instalou-se em Florença e assistiu a cursos de Botânica ministrados por Parlatore, um antigo colaborador de Humboldt. Em Paris ela já havia assistido aulas dessa matéria no Colégio da França e no Museu de História Natural, segundo menciona no livro de viagem. Em Florença, publicou Scintille d’ un’ anima brasiliana [Cintilações de uma alma brasileira], em 1859, assinando Floresta Augusta Brasileira, que contém cinco ensaios: “O Brasil”, “O abismo sob as flores da civilização”, “A mulher”, “Viagem magnética”, “Um passeio no jardim de Luxemburgo”. Alguns deles receberão traduções para outras línguas e edições independentes. No ano seguinte, saía a edição italiana de Le lagrime de un Caeté [A lágrima de um Caeté], cujo tradutor – Ettore Marcucci –, além de um prefácio elogioso, anexou quarenta e uma notas sobre o vocabulário, relacionando o poema nisiano com versos de Dante, de Ariosto, e com a Bíblia. À esquerda, capa da primeira edição de Itinéraire d’un voyage en Allemagne, de 1857. Abaixo e página ao lado, traduções de 1982 e 1998. CONSTÂNCIALIMADUARTE 6564
  • 35. Páginas de Mulher, um dos ensaios de Cintilações de uma alma brasileira, traduzido para o inglês por sua filha Lívia Augusta e publicado em Londres, em 1865. CONSTÂNCIALIMADUARTE Em junho de 1861, Nísia Floresta decide regressar a Paris e montar residência na cidade após três anos ausente. Alguns anos depois, em 1864, surge o primeiro volume de Trois ans en Italie, suivis d’un voyage en Grèce [Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia], assinado “par une Brèsilienne” [por uma brasileira]. Neste livro, escrito como um diário de viagem, Nísia descreve o modo de vida, a história e as manifestações culturais da Itália. Como sua excursão ocorreu justamente no período da revolução pela unificação do país, o texto se constitui também em importante testemunho de uma estrangeira a respeito dos principais acontecimentos da história italiana. Em Londres, em 1865, era publicado Woman [Mulher], um dos ensaios de Cintilações de uma alma brasileira, traduzido pela filha. Em 1867, surge em Paris o romance Parsis, que, apesar de citado em todas as bibliografias da autora, nunca teve um exemplar localizado. Em 1871, também em Paris, outro ensaio de Scintille é traduzido por Lívia Augusta – Brésil [Brasil], que, aliás, assina neste livro como Lívia Augusta Gade. Entre as inúmeras lacunas relativas a Nísia e seus familiares, uma diz respeito ao casamento de Lívia com um alemão de sobrenome Gade. Apenas foi possível saber que ela ficou viúva com quatro meses de casada, não teve filhos e nem se casou novamente. Edição italiana de Cintilações de uma alma brasileira, 1859. CONSTÂNCIALIMADUARTE 66 67
  • 36. A vida em Paris estava ameaçada. A Comuna chega ao poder formando um governo republicano e socialista, e a monarquia reage ordenando o bombardeio da capital. Após sangrenta luta, a Comuna é aniquilada em 29 de maio de 1871, com a execução de centenas de revolucionários. Em Fragmentos de uma obra inédita, Nísia Floresta dá seu testemunho: Sendo minha querida filha e eu testemunhas de uma guerra sem igual nos tempos modernos, das peripécias e das calamidades de um cerco atroz, sobre o qual eu escrevera dia após dia os tristes detalhes que minha afeição pela França me impede de divulgar ao público, e vendo, enfim, todos os horrores do que chamávamos indevidamente a Comuna, deixamos Paris, as boas amigas e tantas outras pessoas distintas, cuja convivência suavizara de alguma forma nossa angústia durante esse longo cerco que nos privara das notícias de nossos entes queridos do Brasil. (FLORESTA: 2001, 33) Fragmentos de uma obra inédita, de 1878, último livro publicado por Nísia Floresta. CONSTÂNCIALIMADUARTE ÚLTIMA VIAGEM AO BRASIL 69
  • 37. Após tantos anos ausente, as novidades eram muitas. A campanha abolicionista, por exemplo, estava bem articulada em associações e contava com líderes e jornais importantes. Mas, a despeito do esforço dos abolicionistas, os avanços em direção à liberdade dos negros eram lentos. A Lei Rio Branco, assinada em 28 de setembro de 1871 em favor do filho do escravizado, era mais uma lei “para inglês ver”, pois ele só seria livre após trabalhar vinte e um anos para o “dono de sua mãe”, como forma de compensação. Também o movimento republicano se organizava e os liberais não se cansavam de revelar que o Brasil era o único império entre tantas repúblicas na América Latina. A pioneira destes anseios estava ali e talvez se lembrasse de Pernambuco dos anos trinta, quando já falava em liberdade para o negro e para os povos. E, em 31 de maio de 1872, Nísia desembarcava no Rio de Janeiro. Ver, escutar, sentir, foi tudo aquilo que eu pude nos primeiros momentos de minha chegada e, todavia, eu tinha tanto para contar depois de um período de 16 anos passados no estudo da Europa e dos seus povos! (FLORESTA: 2001, 38) A precipitação dos acontecimentos levou Nísia a aceitar a hospedagem de amigos no interior do país para se afastar dos conflitos. Ao retornar, é dramática a situação em que encontra seu apartamento, com janelas e portas quebradas e os móveis despedaçados. Desgostosa com a situação, e pressionada pela família, Nísia deixa definitivamente Paris. Primeiro segue para Londres e, após alguns meses, para Lisboa, onde embarca para o Rio de Janeiro. Desta vez Lívia não a acompanha e resolve ficar na Europa: estava tão acostumada ao Velho Mundo que não sentia vontade de rever o país onde nascera. No início de 1872, assinado Une Brésilienne [Uma brasileira], o segundo volume de Trois ans en Italie, suivis d’un voyage en Grèce [Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia] era publicado em Paris. Em 23 de maio desse mesmo ano, a revista O Novo Mundo, de J. C. Rodrigues, de New York, traz uma extensa notícia biográfica da autora acompanhada de um retrato, que contribuiu para torná-la ainda mais conhecida. D. Nísia Augusta, ao que nos dizem, conta perto de sessenta e dois [anos], e é realmente um prazer fazer-se um retrospecto da sua vida e achar-se-á toda ocupada de trabalhos elevados e úteis, que bem mostram que ainda entre nós a mulher não foi feita somente para criar filhos e encerrar todas as suas aspirações no círculo das afeições domésticas e que, portanto, “a mulher não precisa saber muito”. Se há um “direito das mulheres” que de todo o bom grado lhe concederíamos em toda parte, se pudéssemos, é o de se ilustrarem, como lhes aprouver, e atirarem aos ares o jugo da ignorância em que nós, os casacas, as queremos conservar. (...) Na sua mocidade, foi professora por mais de vinte anos em várias cidades do Brasil, tendo sempre lutado contra a “rotina” do ensino das meninas. Em 1854 foi para a Europa, onde tem residido desde então e onde tem adquirido renome por seus talentos superiores revelados em muitos escritos publicados em várias línguas. No artigo “Passeio ao Aqueduto da Carioca”, de 1855, Nísia convida o leitor a conhecer as belezas do Rio de Janeiro, porém sem deixar de lado críticas à falta de saneamento básico na capital do Império e também à escravidão. PINTURADELEANDROJOAQUIM,1790 7170
  • 38. A estada em terras brasileiras passa rápida e, em 24 de março de 1875, Nísia Floresta retorna à Europa. Seu primeiro destino foi Londres, onde a filha a aguardava; após alguns meses, seguiu para Lisboa. Assim, quando, em 9 de novembro desse mesmo ano, o irmão Joaquim Pinto Brasil morre de pleuropneumonia no Rio de Janeiro, sua irmã estava longe e só receberia a notícia semanas depois em Ventnor, uma cidade conhecida como a “Nice britânica”. É de 1878 o último trabalho da escritora: Fragments d’un ouvrage inédit – notes biographiques [Fragmentos de uma obra inédita: notas biográficas], publicado em Paris com a assinatura Mme. Brasileira Augusta. Neste livro, dedicado à irmã Clara, ela trata principalmente da infância e da juventude de Joaquim Pinto Brasil, mas fornece também dados biográficos seus até então desconhecidos. Tradução de Fragmentos de uma obra inédita, feita por Nathalie Bernardo da Câmara, publicada em 2001. RETORNO À EUROPA, OS ÚLTIMOS ANOS 73
  • 39. Talvez tenha sido nesse ano que ela decidiu transferir sua residência para Rouen, cidade medieval francesa, conhecida pelo desfile de índios brasileiros no século XVI, por ter sido o palco da morte de Joana D’Arc e onde nasceu o escritor Gustave Flaubert. Em 24 de abril de 1885, numa quarta-feira de muita chuva, às nove horas da noite, Nísia Floresta Brasileira Augusta morria vitimada por uma pneumonia, sendo enterrada semanas depois em um jazigo perpétuo do Cemitério de Bonsecours. E é inútil procurar nos jornais da cidade notícias sobre o fato, pois não há nenhuma linha sobre a morte de Nísia Floresta. Rouen foi o refúgio perfeito. Acolheu a mulher e a escritora cansada de viajar, protegeu-a de olhos estranhos e escondeu-a até dos jornais. Em sua laje, a filha gravou a seguinte inscrição: Aqui jaz Minha Mãe Nísia Floresta Brasileira Augusta Nascida em 12 de Outubro de 1810 Falecida em 24 de Abril de 1885 À esquerda: Atestado de óbito de Nísia Floresta fornecido pela Prefeitura de Bonsecours, França, em 27 de setembro de 1988. CONSTÂNCIALIMADUARTE 74
  • 40. Alguns biógrafos insistem que Nísia Floresta teria deixado trabalhos inéditos e dão até os seus títulos: Inspirações maternas, Viagens na Itália, Sicília e Grécia em 1858-1859 e Memórias de minha vida. Mas tais manuscritos nunca foram encontrados, nem se teve qualquer notícia mais concreta. Nos Arquivos Departamentais de Rouen, por exemplo, mais precisamente na seção de Registro de Falecimentos, encontram-se escassas informações sobre o inventário de Mme. de Faria: Certificado de Indigência Viúva Faria, Manuel Augusto Profissão: rendas Local de falecimento: Bonsecours Idade: 74 Data de falecimento: 24 de abril de 1885 A informação de indigência contida no atestado de óbito, bem como a ausência de herança, representa novidade, pois muitos julgaram que ela tivesse grandes fortunas até o fim da vida. Provavelmente, as rendas que sustentaram mãe e filha, em terras estrangeiras, eram resultado das terras que a família possuía no Nordeste. Sabe-se apenas que seu último endereço – Grande Route, nº. 121 – pertence ainda hoje a uma casa simples de pedras, rodeada por outras de pequeno porte. Último endereço de Nísia Floresta: Grande Route, 121, em Rouen, França. CONSTÂNCIALIMADUARTE A notícia da morte de Nísia Floresta demorou a chegar ao Brasil, pois certamente veio por vias marítimas e não por cabograma, um outro meio de comunicação usado na época. Apenas na segunda quinzena de maio aparecem nos jornais cariocas anúncios de missas encomendadas pela família e notícias curtas sobre seu passamento: O País, 27 de maio de 1885 A 24 do passado faleceu em Rouen, França, a nossa compatriota e distinta escritora Nísia Floresta Brasileira Augusta, senhora de um espírito esclarecido, de coração generoso e que dedicou a maior parte de sua existência à educação da infância de seu sexo. O Jornal do Comércio, 26 de maio de 1885 Faleceu em Ruão, França, onde desde alguns anos se achava, D. Nísia Floresta Brasileira Augusta, escritora cujo nome é conhecido nas letras pátrias. Por muitos anos exerceu aqui no Rio de Janeiro o mister de educadora da mocidade do sexo feminino, e da operosa tarefa a que se impusera, larga foi a compensação que encontrou nas muitas discípulas que lhe fizeram e ainda lhe fazem honra. A Província de São Paulo, 29 de maio de 1885 Brasileira notável. Faleceu em França uma escritora distinta, nossa patrícia, a sra. D. Nísia Floresta Brasileira Augusta. Deixa trabalhos de valor, entre os quais livros de viagem e romances escritos em francês. 76 77
  • 41. Mas a história de Nísia Floresta não terminou em 24 de abril de 1885, nem mesmo seu corpo permaneceu onde foi enterrado. Se em vida percorreu uma longa trajetória, após a morte o destino se repete. E a memória da escritora enfrentará dificuldades para se impor, tornar-se conhecida, fazer-se respeitar. Em 1888, o Centro do Apostolado do Brasil publica Sete cartas inéditas de Auguste Comte a Nísia Floresta, no Rio de Janeiro. Era o início de um trabalho de divulgação da escritora por parte dos positivistas, sempre orgulhosos da conterrânea que conheceu Auguste Comte. Também é desse ano a lei que finalmente abolia o regime escravocrata no Brasil. Nísia Floresta, que tanto desejou ver o Brasil sem escravos e independente, num regime democrático, não estava mais presente para comemorar essa conquista. Em 12 de março de 1889, morria o filho Augusto Américo, que se tornou conhecido como educador e diretor do Colégio Santo Agostinho e Colégio Augusto. Este último, de nome igual ao que sua mãe dirigiu, costuma ser citado como o único ginásio particular do Rio de Janeiro que teve como aluno um Presidente da República: Washington Luis Pereira de Sousa, que aí foi interno entre os anos de 1885 e 1887. Um contemporâneo descreveu assim o filho de Nísia Floresta, no Diário de Notícias de 22 de outubro de 1950: “de pequena estatura, gordo, com barba e cabelos ruivos e anelados, andava sempre apoiado em uma bengala. Muito afável, todos gostavam dele por sua bondade, que, às vezes, dava lugar a uma firme energia e autoridade”. A REDESCOBERTA DA ESCRITORA 79
  • 42. Em 1909, por um equívoco, os conterrâneos comemoraram o centenário de nascimento de Nísia Floresta. O Congresso Literário e o Ateneu Norte-Rio-grandense, com o apoio do Governo de Alberto Maranhão, ergueram em 12 de outubro um monumento em Papari, a poucos passos de onde teria existido sua primeira residência. Nas palavras de Câmara Cascudo, em crônica publicada em A República, de 17 de janeiro de 1940, “aí se emplumara a grande ave de arribação, cujas asas não cabiam nos limites do ninho...”. Tradução da correspondência completa entre Comte e Nísia Floresta, editada em 2002. Cartas de Auguste Comte para Nísia Floresta, publicadas pelos positivistas em 1888. Em 1908, o norte-rio-grandense Henrique Castriciano escrevia no Almanaque Garnier sobre Nísia: “Poucos brasileiros conhecem este nome. Entretanto, ele é o de uma das mais fortes mentalidades femininas deste país”. Apesar de ter realizado uma extensa pesquisa sobre a conterrânea, e visitado Lívia em sua residência em Cannes, Henrique Castriciano não realizou o livro com os resultados de sua investigação. Segundo ele, Nísia “teve a existência atormentada, intensa e gloriosa”. CONSTÂNCIALIMADUARTE 80 81
  • 43. Foram muitas as homenagens à escritora. Entre elas, um artigo de Constâncio Alves, publicado no Jornal do Comércio em 21 de outubro de 1909. Apesar de reproduzir notícias contidas na Revista O Novo Mundo, de 1872, e no Dicionário Bibliográfico Brasileiro, de Sacramento Blake, este trabalho tornou-se importante fonte de consulta para os pesquisadores, principalmente por revelar o teor de livros da autora que eram desconhecidos de todos. Em 19 de março de 1911, foi inaugurado, na Praça Augusto Severo, em Natal, um medalhão de bronze feito em Paris pelos escultores Corbiniano Vilaça e Edmond Baboche, por encomenda de Henrique Castriciano. O medalhão continha a efígie da escritora, uma estrela de granito, incrustações de bronze e as datas de nascimento e morte. “Pequena obra-prima de delicadeza, de expressão, de arte”, nas palavras de Nilo Pereira. Também nesse mesmo ano era publicado outro artigo sobre Nísia no Almanaque Garnier, de autoria de Constâncio Alves. Em 26 de abril de 1912, sua filha Lívia Augusta Gade morre e é enterrada no mesmo túmulo do Cemitério de Bonsecours. Lívia morava na Europa desde 1849 e residiu em diferentes países, como França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Portugal, trabalhando muitas vezes PRIMEIRAS HOMENAGENS Medalhão com a efígie da escritora, Natal, RN, 1911. 83
  • 44. Alunas da Escola Doméstica de Natal, RN, criada por Henrique Castriciano em 1915, considerada na época uma referência para a formação feminina. Extrato de publicações positivistas, no Rio de Janeiro. E no Monumento de Benjamin Constant, instalado na Praça da República do Rio de Janeiro, foi incluída uma imagem de Nísia Floresta entre os paladinos da extinção da escravatura, como Toussaint-Louverture, a princesa Isabel, José Bonifácio e Castro Alves. Em Paris, em 1928, vem à luz Auguste Comte et Mme. Nísia Brasileira – Correspondance [Auguste Comte e Nísia Floresta – Correspondência]. E no Rio de Janeiro, em 1933, Roberto Seidl publicava o ensaio Nísia Floresta – 1810/1885 – A vida e a obra de uma grande educadora, precursora do abolicionismo, da República e da emancipação da mulher no Brasil, que, na realidade, não corresponde à abrangência do título, pois se trata de um texto que apenas reproduz dados biográficos e tece reflexões ligeiras sobre a autora. Em Porto Alegre, Fernando Osório publica em seu Mulheres farroupilhas um precioso manuscrito de Nísia que recebeu do Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros. Tratava-se da novela Fany ou o modelo das donzelas, de 1847, cuja edição estava desaparecida. Em 1938, A lágrima de um Caeté é editado pela Revista das Federações das Academias de Letras, com estudo crítico de Modesto de Abreu. Mas a publicação contém graves erros tipográficos, que comprometem a leitura de alguns versos, e ainda veicula uma opinião desabonadora ao trabalho poético da escritora, em seu prefácio. Henrique Castriciano, em carta a Adauto da Câmara, datada de 25 de julho de 1938, dá uma valiosa informação a respeito do paradeiro da correspondência de Nísia Floresta com escritores europeus: segundo a filha de Nísia, a edição da correspondência da mãe havia se perdido toda em um naufrágio. ESCOLADOMÉSTICADENATAL-RN como preceptora. Na França, além de Paris, morou ainda em Cannes, Nice e Rouen. Lívia parece ter vivido sempre à sombra da mãe ilustre, pois não existe nenhuma notícia a seu respeito que não tome como ponto de referência a figura de Nísia Floresta. Em novembro de 1919, por ocasião da formatura da primeira turma da Escola Doméstica, de Natal, Oliveira Lima fez um discurso sobre Nísia, em que a considerava “a mais notável mulher de letras que o Brasil produziu, quer pela amplitude da visão, quer pela suavidade do estilo”. Sua única crítica foi ao “nome disparatado (...) e esdrúxulo na sua mistura do arcádico e patriótico”, que, felizmente, para o conferencista, ela o ocultava, deixando seus escritos anônimos ou assinados com abreviaturas, conforme “a moda dos disfarces e meios disfarces” (Jornal A República, 28/11/1919). Em 1924, o escritor maranhense Reis de Carvalho faz uma palestra sobre Nísia no Centro de Cultura Brasileira no Rio de Janeiro. Também essa palestra, por reunir as poucas informações conhecidas sobre a escritora, teve boa repercussão e foi reproduzida por outros estudiosos. Em Goianinha, interior do Rio Grande do Norte, o Dr. Joaquim Grillo fez uma conferência no aniversário de morte da escritora, em 24 de abril de 1924, em que reitera boatos, comete equívocos e manifesta opinião desabonadora a seu respeito. A intenção era homenageá-la, mas o preconceito se encarregou de transformar a homenagem numa acusação sem fim. Passados apenas quarenta anos de sua morte, Nísia era um mito em sua terra. O desconhecimento de seus livros contribuía para que as pessoas se detivessem apenas nas questões biográficas. E a ausência de dados mais completos sobre sua vida permitia, por outro lado, que a fantasia popular a imaginasse e preenchesse os vazios conforme os interesses (e preconceitos) de cada um. Em 1926, em comemoração ao 38º Aniversário da Lei de 13 de Maio de 1888, foram traduzidas páginas de Três anos na Itália, seguidos de uma viagem à Grécia, por Raimundo Teixeira Mendes, e publicadas em Monumento onde foi aplicado o medalhão de bronze feito a Nisia. INSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE 8584
  • 45. Monumento de Benjamin Constant na Praça da República, Rio de Janeiro, em que foi incluída a imagem de Nísia Floresta ao lado da Princesa Isabel, Castro Alves, José Bonifácio, entre outros considerados defensores da abolição. Adauto da Câmara organizou, em História de Nísia Floresta, de 1941, as informações existentes sobre a escritora, dando início ao reconhecimento de sua importância e divulgação de sua obra. E tem início o resgate da escritora. Adauto da Câmara, que publica em 1941 o livro História de Nísia Floresta, com o resultado de sua investigação junto a arquivos e bibliotecas, tenta obter o atestado de óbito de Nísia Floresta por meio do Itamarati, sem sucesso. O Consulado Geral do Brasil no Havre, apesar do empenho, nada encontra na Prefeitura de Rouen, com relação ao registro de morte da escritora. Em 23 de dezembro de 1948, o decreto-lei de número 146 muda o nome de Papari para Nísia Floresta, em justa homenagem à filha ilustre. E o Marechal Rondon, também positivista, dá o nome de Nísia Floresta a um posto indígena de Pernambuco. Mas, enquanto uns a homenageiam, outros agem em sentido contrário, e, em 25 de outubro de 1949, ladrões roubam em Natal o medalhão que Henrique Castriciano havia encomendado e destroem o monumento em que ele estava assentado. Tal fato vai merecer matérias de indignação nos jornais da cidade, que, embora veementes, nada podem fazer. Anos mais tarde, o medalhão será localizado e entregue ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, onde se encontra ainda hoje. CONSTÂNCIALIMADUARTE Ao lado, primeira edição de Trois ans en Italie, suivis d´un voyage en Grèce, de 1864 e, abaixo, sua tradução de 1998. 8786
  • 46. Em fevereiro de 1950, o jornalista Orlando Ribeiro Dantas, fundador do Diário de Notícias do Rio de Janeiro, vai à França e, após semanas de pesquisa, localiza o túmulo em Bonsecours, arredores de Rouen. Por meio da lei de número 1.892 de 23 de junho de 1953, do Ministério da Educação, o governo brasileiro fica autorizado a fazer o traslado dos despojos da escritora para o Brasil, e o Dr. Marciano Alves Freire, presidente do Centro Norte-Rio-grandense, é encarregado de acompanhá-la nesta última viagem. Em 9 de agosto de 1954, ele embarca com a urna funerária em Marselha no navio Loide-Brasil, que chega em Recife no dia 5 de setembro. Os funcionários da alfândega se atrapalham com a mercadoria inusitada, e é preciso a intervenção direta do Presidente Café Filho para cessarem as exigências alfandegárias em torno dos restos mortais de Nísia Floresta. Ocorre mais um problema. Ao invés de uma simples urna vem um ataúde, muito maior que o espaço previsto no mausoléu, que teve de ser rapidamente refeito. Nísia havia sido embalsamada e a explicação talvez seja porque quisesse ser enterrada em sua pátria. Documento atestando o traslado dos despojos de Nísia Floresta, de Rouen para Paris. ACERVOLUISCARLOSFREIRE O RIO GRANDE DO NORTE ACOLHE A FILHA ILUSTRE 89
  • 47. Imagem do evento coordenado pelo pesquisador Luis Carlos Freire, que reconstituiu, em 1997 – após quatro décadas – a chegada dos despojos de Nísia Floresta à sua terra natal. Em 11 de setembro de 1954, a imprensa de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte registra as solenidades pela chegada dos despojos da escritora em Natal. Houve homenagens na Base Naval, bandas de música e exposição do caixão perante a população e as autoridades locais. Dr. Alfredo de Moraes, comandante do navio que trouxe os restos mortais da escritora, depois presidente da Igreja da Humanidade no Rio de Janeiro, descrevia com orgulho a urna no convés e a pomposa chegada em Natal. Monsenhor João da Mata Paiva rezou missa e deu absolvição litúrgica. Nísia Floresta finalmente era notícia em todos os jornais e nos programas de rádio do Rio Grande do Norte e de Recife. No discurso que pronunciou na ocasião, Dr. Nilo Pereira assim disse: O fim dessa peregrinação aí o temos. É ela afinal que volta. E todos nós voltamos com ela, porque fomos buscá-la no seu último retiro solitário e dizer-lhe que era tempo de repousar. O corpo quase intato denota – quem sabe! – a espera longa e ansiosa. (Revista Bando, janeiro de 1955, p. 135.) LUISCARLOSFREIRE Dr. Nilo Pereira, importante testemunha dos acontecimentos, fez o relato do episódio: haviam dois caixões, um de zinco e outro de ébano. Ao abrirmos este último, subiu um cheiro que eu chamei de múmia: mofo concentrado. Cheiro de morte velha. Ela estava levemente reclinada. Os cabelos passavam dos seios. Dava para ver bem a fisionomia. Não devia ter sido bonita a nossa Nísia. Bonita por dentro, isso sim. (Jornal Tribuna do Norte, 26/5/1985.) Notícias relacionadas à identificação e traslado dos despojos da escritora. INSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE 90 91
  • 48. Foi neste dia o lançamento nacional do selo comemorativo do retorno de Nísia Floresta, que o Departamento dos Correios e Telégrafos mandou cunhar com seu retrato. Em 12 de setembro, o ataúde chegava em Papari, que, aliás, já se chamava Nísia Floresta. Grande multidão aguardava. Houve outra celebração de missa de corpo presente e muitos discursos. E, desde esta data, a escritora repousa em seu mausoléu, que fica próximo, dizem, do local da antiga residência do sítio Floresta. As homenagens continuaram. Na terra natal, seu nome foi dado a uma escola primária; em Natal, Porto Alegre, Recife e Rio de Janeiro, seu nome virou nome de rua, sempre por intermédio de um admirador de seus méritos. Na Academia Literária Feminina do Rio Grande do Sul, é patrona da Cadeira 17; na Ala Feminina da Casa de Juvenal Galeno, em Fortaleza, sua Cadeira é a 6; na Academia Norte-Rio-grandense de Letras, em Natal, é patrona da Cadeira nº. 2. E também possui uma Cadeira na Academia Nacional de Letras e Artes, a antiga Academia Feminina de Letras e Artes do Rio de Janeiro. Seu nome ainda foi lembrado por ocasião do Concurso realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 1988, sobre a questão do preconceito no livro didático. Em 29 de abril de 1977, na Galeria de Honra da Fundação Joaquim Nabuco do Recife, foi inaugurado um retrato seu feito pelo pintor Balthasar da Câmara. Nísia Floresta era a primeira mulher a adentrar nesta Galeria, em que já estavam Duque de Caxias, José de Alencar, Santos Dumont, Dom Vital e outros personagens históricos. Panfleto lançado por avião sobre a cidade de Nísia Floresta, na cerimônia de sepultamento, em 1954. CONSTÂNCIALIMADUARTE Notícia da homenagem que os Correios prestaram à escritora, por ocasião da chegada de seus despojos em 1954. CONSTÂNCIALIMADUARTE LUISCARLOSFREIRE 9392
  • 49. FUNDAÇÃOJOAQUIMNABUCO Mausoléu da escritora construído na cidade de Nísia Floresta, próximo de onde teria sido sua residência, no antigo sítio Floresta. Na página ao lado, retrato de Nísia Floresta, feito pelo pintor Balthasar da Câmara, que se encontra na Galeria de Honra na Fundação Joaquim Nabuco, em Recife. VLADEMIRALEXANDRE 94 95
  • 50. Jornal O Poti, Natal, 26 de maio de 1985. Foi preciso este embate intelectual para que o encanto se quebrasse e a escritora se tornasse finalmente conhecida e admirada por todos. E que trabalhos acadêmicos surgissem divulgando aspectos inusitados de sua vida e obra. O reconhecimento de seu papel fundante na história da mulher brasileira e na literatura de autoria feminina parece ser coroado agora, com a escolha de seu nome para o Projeto Memória 2006. Artigo de Socorro Trindad, publicado em 28 de abril de 1985, no Jornal Tribuna do Norte, de Natal, RN. CONSTÂNCIALIMADUARTEINSTITUTOHISTÓRICOEGEOGRÁFICODORIOGRANDEDONORTE Em 1981, a escritora Socorro Trindad, também nascida na antiga Papari, publica Feminino feminino, pela Editora Universitária de Natal, com a intenção de incluir o nome de Nísia Floresta como precursora na recente história do movimento feminista brasileiro. Em 1982, a publicação de Itinerário de uma viagem à Alemanha, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, em Natal, com tradução do professor Francisco das Chagas Pereira, torna-se o primeiro livro de Nísia Floresta a ser traduzido para o português. Também em 1982, Zélia Maria Bezerra Mariz contribui para ampliar a bibliografia sobre a escritora norte- rio-grandense publicando Nísia Floresta Brasileira Augusta, também pela Editora Universitária. Finalmente, em 1985, o centenário de morte da escritora é lembrado em Natal. Nesta ocasião, além de um ciclo de palestras organizado pela Fundação José Augusto, uma série de artigos divulgados na imprensa enfrentam o mistério que ainda pairava sobre Nísia, fruto, principalmente, da escassez de informações. Dentre os autores, João Batista Pinto, assim escreveu: Medalha de Mérito Nísia Floresta, criada pelo Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres e das Minorias de Natal, para homenagear mulheres que se destacaram nas lutas por direitos. Placa em homenagem a Nísia Floresta na Escola Doméstica de Natal. O que sei sobre Nysia? Quase nada. O que o Rio Grande do Norte sabe? Absolutamente nada. E é aí onde reside o mito. Suas origens são remotas e não há previsão de um futuro. É uma obra acabada? Monstro sagrado, Nysia é uma permanência no tempo, gerando idéias, sugerindo interpretações, sempre na expectativa de novos caminhos que possam desvendar o seu mistério, até que o último véu deslize e caia sobre os seus pés. Dela falaram bem e mal. Oliveira Lima traçou ligeiramente o seu perfil. Chamaram-na de notável Gilberto Freyre, Luis da Câmara Cascudo, Henrique Castriciano e tantos outros. Isabel Gondim prosaicamente transformou-a numa dama de má fama... (Jornal O Poti, 29/9/1985.) 9796
  • 51. A história do movimento feminista brasileiro – sua trajetória, as protagonistas mais ilustres e as conquistas mais expressivas – ainda está por ser escrita. Ao lado de Nísia Floresta, outras mulheres merecem ser lembradas pelas diferentes contribuições que hoje vivenciamos. A bibliografia, além de limitada, costuma abordar fragmentariamente os anos de 1930, a luta pelo voto, ou as conquistas mais recentes ocorridas a partir de 1970. Mas, se pensamos no feminismo como todo gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que exija a ampliação de direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual ou de grupo, é possível ampliar sua história e valorizar os momentos iniciais desta luta — contra os preconceitos mais primários e arraigados —, assim como as mulheres que se expuseram à incompreensão e à crítica: as primeiras e legítimas feministas. Essa história teria então início nas primeiras décadas do século XIX — o momento em que as mulheres despertam do “sono letárgico em que jaziam”, nas sábias palavras da escritora paranaense Mariana Coelho (2003, 44) — e contará com pelo menos quatro momentos áureos. Longe de serem estanques, tais momentos conservam uma movimentação natural em seu interior, de fluxo e refluxo, e costumam, por isso, ser comparados a “ondas”, que começam difusas e imperceptíveis e, aos poucos (ou de repente), avolumam-se em direção POR UMA HISTÓRIA DA MULHER BRASILEIRA: SUAS LUTAS E CONQUISTAS 99
  • 52. Quando começa o século XIX, as mulheres brasileiras, em sua enorme maioria, viviam enclausuradas em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural. Urgia levantar a primeira bandeira, que não podia ser outra senão o direito básico de aprender a ler e a escrever, então reservado ao sexo masculino. A legislação autorizando a abertura de escolas públicas femininas data de 1827, e as opções até então eram os conventos, as aulas particulares ou o ensino individualizado. E foram aquelas primeiras mulheres – como Nísia Floresta –, que se beneficiaram de uma educação diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento às demais companheiras e abriram escolas, publicaram livros e enfrentaram a opinião corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever. Quando Nísia Floresta lança, em 1832, seu livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, eram raras as brasileiras “educadas” e, em menor número ainda, as escritoras. A mineira Beatriz Brandão (1779- 1860) e as gaúchas Clarinda da Costa Siqueira (1818-1867) e Delfina Benigna da Cunha (1791-1857) eram algumas dessas exceções hoje conhecidas. Mesmo entre os chamados jornais femininos, apenas existiam uns poucos dirigidos por homens sensíveis às mudanças do comportamento social, e que se apressavam em oferecer publicações especialmente “pasteurizadas” para o público feminino. Mais tarde, em Porto Alegre, uma escritora de nome Ana Eurídice Eufrosina de Barandas publicava A philosopha por amor (1845), que trazia, entre contos e versos, uma pequena peça teatral a respeito das reivindicações femininas. Apenas em meados do século XIX começam a surgir os primeiros jornais dirigidos por mulheres. Apesar das críticas de inconsistente e supérflua, esta imprensa amparou suas leitoras no momento em que elas davam os passos iniciais em direção à superação de seus receios e à conscientização de direitos. O primeiro foi o Jornal das Senhoras, de Joana Paula Manso de Noronha, em 1852. Como Nísia Floresta, Joana Manso também acusava os homens de egoísmo por considerarem as mulheres sua propriedade, ou “crianças mimadas”, sempre disponíveis ao seu prazer. Outro, foi O Belo Sexo, editado por Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, no Rio de Janeiro, em 1862. No primeiro número, ela declara estar consciente do pioneirismo de sua iniciativa e sua crença inabalável na capacidade intelectual da mulher. AS PRIMEIRAS LETRAS ao clímax — o instante de maior envergadura, para então refluir numa fase de aparente calmaria, e outra vez recomeçar. As décadas em que esses momentos-onda teriam obtido maior visibilidade, ou seja, em que estiveram mais próximos da concretização de suas bandeiras, seriam em torno de 1830, 1870, 1920 e 1970. Foram, portanto, necessários cerca de cinqüenta anos entre uma e outra, com certeza ocupados por inúmeras pequenas movimentações de mulheres, para permitir que as forças se somassem e mais uma vez conseguissem romper as barreiras da intolerância, e abrir novos espaços. Anos 30: rompendo algumas barreiras, as mulheres começam a conquistar os espaços públicos. REVISTAABREALAS 100 101
  • 53.
  • 54. SONHANDO COM O VOTO A segunda onda surge por volta de 1870 e se caracteriza principalmente pelo espantoso número de jornais e revistas de feição nitidamente feminista, que são editados no Rio de Janeiro e em outros pontos do país. Dentre tantos, O Sexo Feminino, dirigido por Francisca Senhorinha da Mota Diniz, de longa vida e muito sucesso, empenhou-se em alertar as mulheres de que o grande inimigo era a ignorância de seus direitos, e que era preciso “quebrar as cadeias que desde séculos de remoto obscurantismo nos rodeiam”. O jornal surge em 1873 na cidade Campanha da Princesa (MG), transfere-se para o Rio de Janeiro e resiste até 1896, com o nome alterado para O Quinze de Novembro do Sexo Feminino. Em sua última fase, defende com muita ênfase o direito das mulheres ao estudo secundário e ao trabalho. Outros jornais também marcaram época: o Echo das Damas, de Amélia Carolina da Silva Couto, circulou no Rio de Janeiro de 1875 a 1885, defendendo a igualdade e o direito da mulher à educação. O Domingo e o Jornal das Damas, ambos de 1873, clamavam pelo ensino superior e pelo trabalho remunerado e divulgavam idéias novíssimas, como “a dependência econômica determina a subjugação” e “o progresso do país depende de suas mulheres”. Dentre tantas jornalistas empenhadas, destaca-se Josefina Álvares de Azevedo (1851-?), que lucidamente questiona a construção ideológica do gênero feminino e exige mudanças radicais na sociedade. A Família, o jornal que dirigiu de 1888 a 1897, em São Paulo e no Rio de Janeiro, destacou-se pelo tom combativo em prol da emancipação feminina. Josefina Azevedo escreveu ainda uma peça de teatro intitulada O voto feminino, que teria sido representada com sucesso. Outras regiões também tiveram seus periódicos, nem por isso menos significativos. Um deles foi O Corimbo, de Porto Alegre, das irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro, de vida surpreendentemente longa: de 1884 até 1944. Os editoriais traziam veementes apelos a favor do voto, da educação superior e da profissionalização. Outro periódico foi A Mensageira, que circulou na capital paulista de 1897 a 1900 e teve importante participação na história da mulher brasileira. Dirigido por Presciliana Duarte de Almeida, esteve no cenário nacional tanto por sua ampla distribuição como pela defesa incansável da educação superior e do direito ao trabalho. CONSTÂNCIALIMADUARTE 104 105
  • 55. São dessa época as primeiras brasileiras que fazem cursos universitários no exterior e no país. A cada nova médica ou nova advogada, a imprensa feminista expressava seu regozijo pela importante vitória “sobre os conceitos brutais da educação atrofiante, ainda infelizmente em vigor”. (Jornal A Família, 30/11/1889). Dentre as primeiras que se aventuraram no ensino superior, destacam-se Maria Augusta Generoso Estrela (1860-1946) e Josefa Águeda Felisbela Mercedes de Oliveira (1864-?), que se formaram em uma faculdade de medicina dos Estados Unidos – a New York Medical College and Hospital for Women. Maria Augusta e Josefa criaram ainda o jornal A Mulher, em Nova York, cujo subtítulo era: “um periódico ilustrado de literatura e belas-artes, consagrado aos interesses e aos direitos da mulher brasileira”. Em 1879, a reforma do ensino finalmente liberou a matrícula de mulheres nas faculdades do país. E, dentre as primeiras a se matricularem na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, estavam Ambrosina Magalhães, Augusta Castelões e Rita Lobato Lopes. Mas a reação a estas iniciativas era grande e a literatura, o teatro e a imprensa masculina se encarregavam de ridicularizar as doutoras, insistindo que era impossível à mulher da classe alta, e mesmo à da média, manter um casamento, cuidar de filhos e exercer ainda uma profissão. Apenas as moças pobres estavam liberadas para trabalhar nas fábricas e na prestação de serviços domésticos. Movida por uma mesma força e um mesmo idealismo, esta imprensa terminou por criar – concretamente – uma legítima rede de apoio mútuo e de intercâmbio intelectual e por configurar-se como instrumento indispensável para a conscientização feminina. CONSTÂNCIALIMADUARTE BIBLIOTECANACIONAL Josephina Alvares de Azevedo fundou, em 1888, o jornal A Família, que circulou por quase dez anos, conquistando inúmeros leitores e leitoras, e foi importante instrumento na luta pela emancipação feminina. CONSTÂNCIALIMADUARTE Na página ao lado, O Quinze de Novembro do Sexo Feminino: título adotado pelo periódico O Sexo Feminino, de Francisca Senhorinha da Mota Diniz, após a proclamação da República. A Mulher: jornal publicado em Nova Yorque, em 1881, por duas brasileiras estudantes de Medicina: Maria Augusta Generoso Estrela e Josefa Agueda Felisbela Mercedes de Oliveira. 107106
  • 56. O século XX iniciou com uma movimentação inédita de mulheres mais ou menos organizadas, que clamavam pelo direito ao voto, ao curso superior e à ampliação do campo de trabalho, pois não queriam ser apenas professoras, mas também trabalhar no comércio, em repartições, nos hospitais e nas indústrias. Muitos nomes se destacam, como o de Bertha Lutz, formada em biologia pela Universidade de Sorbonne, que se tornará uma expressiva liderança na campanha pelo voto feminino e pela igualdade de direitos entre homens e mulheres no Brasil. Durante alguns anos, Bertha foi incansável nos discursos, nas audiências com parlamentares e na redação de textos inflamados. Com outras companheiras, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que se disseminou em praticamente todos os Estados e resistiu por quase cinqüenta anos, propagando os direitos das mulheres. A década de 1920 foi particularmente pródiga na movimentação de mulheres. Além do movimento sufragista, algumas vezes chamado de feminismo burguês e bem comportado, que logrou ocupar a grande imprensa, com inflamadas reivindicações em Notícia sobre a atividade desenvolvida pelas sufragistas na luta pela conquista do voto feminino. PUBLICAÇÃOUMRIODEMULHERES/REDEH RUMO À CIDADANIA 109
  • 57. (1924), que discutia a exploração sexual e trabalhista da mulher. E Diva Nolf Nazário, acadêmica de Direito e secretária da Aliança Paulista pelo Sufrágio Feminino, que lançou em 1923 o importante livro Voto feminino e feminismo. Em 1927, o governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, antecipou-se à União e aprovou em seu estado uma lei dando o direito ao voto às mulheres, para regozijo nacional das feministas. A terra de Nísia Floresta saía na frente e impunha-se como provocação para os demais estados brasileiros. Mas, apesar das muitas passeatas, artigos em jornais e conferências públicas, foi preciso esperar ainda alguns anos. Enquanto isso, Alzira Soriano (1897-1963) era eleita, em 1929, prefeita do município de Lajes (RN), após derrotar um conhecido coronel da região, tornando-se a primeira mulher prefeita da América do Sul. Em 1932, Getúlio Vargas finalmente incorpora ao novo Código Eleitoral o direito de voto feminino, e o Artigo de Socorro Trindad publicado no jornal Tribuna do Norte, RN, em 5 de maio de 1985. Bertha Lutz (1894-1976) liderou a campanha nacional pelo voto feminino no Brasil, durante duas décadas. Antonieta de Barros (1901-1952) foi a primeira mulher negra a se eleger deputada estadual no Brasil, em 1934, em Santa Catarina. ACERVOCENTRODEMEMÓRIAMULHERESDOBRASIL/REDEH ARQUIVONACIONAL defesa do voto feminino, viu ainda emergir nomes vinculados a um movimento anarco-feminista, que propunham a emancipação da mulher nos diferentes planos da vida social, além a instrução da classe operária e de uma nova sociedade libertária. Dentre as personalidades destaca-se Maria Lacerda de Moura (1887-1945), que muito contribuiu para polemizar esse debate. Sua luta pela “libertação total da mulher” tem início com a publicação do livro Em torno da educação, em 1918. Colaborou com Bertha Lutz na fundação da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher, embrião da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, mas logo deixou o grupo para abraçar a causa do operariado e a defesa da liberdade sexual. Entre outros, seu livro A mulher é uma degenerada? (1924) provocou grande polêmica nos meios letrados do país, pois defendia o amor livre, a educação sexual e questionava a moral vigente e as posições conservadoras da igreja. Destaca- se também Leolinda Daltro, líder de um grupo de feministas que optou por chamar a atenção para suas reivindicações por meio de panelaços. Ou Ercília Nogueira Cobra (1891-1938), autora de Virgindade inútil – novela de uma revoltada (1922) e Virgindade anti-higiênica – Preconceitos e convenções hipócritas Toda mulher deve: 1. Exercer seus direitos políticos e cumprir seus deveres cívicos. 2. Interessar-se pelas questões públicas do país. 3. Ter ocupação útil à sociedade. 4. Alistar-se e votar. 5. Votar conscientemente e criteriosamente. 6. Não entregar seu título eleitoral. 7. Dedicar-se à causa feminista, crente no triunfo dos seus ideais. 8. Votar somente em quem for feminista. 9. Bater-se pela conquista e pleno exercício de seus direitos sociais e políticos. 10. Trabalhar pelo aperfeiçoamento moral, intelectual e cívico da mulher. D E C Á L O G O F E M I N I S T A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino — 1934 110 111
  • 58. Nos anos setenta ocorre a onda mais exuberante, que vai alterar radicalmente os costumes e tornar as reivindicações mais ousadas em fato normal. Pressionada pelas feministas, a ONU – Organização das Nações Unidas, declara 1975 como o Ano Internacional da Mulher, logo estendido por todo o decênio (de 75 a 85), num gesto de reconhecimento de que era preciso muitos esforços para superar a atual condição feminina e implementar ações que eliminassem a discriminação. Congressos e encontros se sucedem, cada qual com sua especificidade de reflexão, assim como surgem dezenas de organizações de mulheres, muitas nem tão feministas, mas sempre reivindicando direitos e trabalho digno. O dia “8 de Março”, em homenagem às tecelãs norte-americanas, assassinadas no interior de uma fábrica, quando reivindicavam seus direitos, finalmente é declarado Dia Internacional da Mulher, por iniciativa da ONU, RADICALIZANDO AS CONQUISTAS Passeata em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, Rio de Janeiro, 8 de março de 1991. CLAUDIAFERREIRA Brasil passa a ser o quarto país nas Américas, ao lado do Canadá, Estados Unidos e Equador, a conceder o voto às mulheres. Carlota Pereira de Queiroz, médica, será a primeira deputada federal. Um ano depois, com a convocação de eleições gerais, nove mulheres conquistam o mandato de deputadas estaduais. No campo literário, as escritoras feministas se destacam. Em 1921, Rosalina Coelho Lisboa (1900- 1975) conquista o primeiro prêmio no Concurso Literário da Academia Brasileira de Letras, com o livro Rito pagão, e era saudada pela imprensa, principalmente a mais interessada, como um “triunfo da intelectualidade feminina brasileira”. Gilka Machado (1893-1980) publica um livro de poemas eróticos, Meu glorioso pecado (1918), considerado um escândalo por afrontar a moral sexual patriarcal e cristã. Saindo do eixo do Rio de Janeiro, Mariana Coelho (1857-1954) se impõe pela lúcida contribuição que fez à história intelectual da mulher brasileira, por meio do livro A evolução do feminismo: subsídios para a sua história, de 1933. Rachel de Queiroz (1910-2003) se destaca como autora de instigantes romances e de crônica jornalística, e se prepara para inaugurar a presença feminina na Academia Brasileira de Letras, em 1977. Leolinda Daltro (c. 1860-1935), indianista e sufragista, acompanhada por índios Cherentes de Tocantins. Chiquinha Gonzaga (1847-1935), importante compositora, maestrina e abolicionista, com ousadia provocou a sociedade da época. Almerinda Farias Gama (1899-19?), advogada, feminista e líder sindical, foi uma das primeiras mulheres negras a participar da política no Brasil. CPDOC/FUNDAÇÃOGETÚLIOVARGAS ACERVOFUNARTE ACERVO CENTRO DE MEMÓRIA MULHERES DO BRASIL/REDEH 113112
  • 59. surge o periódico Nós Mulheres, que logo se assume como feminista e circula por quase três anos. Ambos enfrentam questões polêmicas como anistia, aborto, mortalidade materna, mulheres na política, trabalho feminino, dupla jornada e prostituição, sem esquecer a sexualidade, o preconceito racial, a literatura, o teatro e o cinema. Em 1981, feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas de São Paulo criam o Mulherio, que alcança enorme prestígio nos meios universitários. Em suas variadas seções, havia denúncias de violência, de discriminação contra a mulher negra, a política do corpo, o trabalho feminino, a vida das operárias na periferia das grandes cidades, e ainda a produção cultural de escritoras e artistas e endereços de grupos feministas de todo o país. Rose Marie Muraro destaca-se, entre tantos nomes, pelos muitos livros que publicou, inclusive em pleno regime militar, e por sua atuação sempre firme, coerente e assumidamente feminista. Em 1975, ela fundou, com outras companheiras, o Centro da Mulher Brasileira, entidade pioneira do novo feminismo nacional. Dentre seus trabalhos, a pesquisa sobre a sexualidade da mulher tornou-se emblemática para Lélia Gonzalez (1935-1994), antropóloga, feminista, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), na década de 1970. AGÊNCIAOGLOBO e passa a ser comemorado em todo o país de forma cada vez mais organizada. Essa data foi proposta pela feminista alemã Clara Zetkin, em 1910, que considerava importante que as mulheres do mundo inteiro tivessem um dia para concentrar seus esforços na luta pela igualdade, assim como para dar visibilidade às suas reivindicações. Enquanto em outros países as mulheres se uniam contra a discriminação do sexo e pela igualdade de direitos, no Brasil o movimento feminista teve marcas distintas, pois a conjuntura política nacional, marcada pelo cerceamento das liberdades democráticas, levou-as a se posicionarem, também, contra a ditadura militar e a censura, pela anistia e por melhores condições de vida. Ainda assim, ao lado de uma agenda tão ampla, debateu-se muito sobre a sexualidade, o direito ao prazer e ao aborto. “Nosso corpo nos pertence” era o grande mote, que recuperava, após mais de 60 anos, as inflamadas discussões que socialistas e anarquistas do início do século XX haviam promovido sobre a sexualidade. A tecnologia anticoncepcional permite à mulher igualar-se ao homem no que toca à desvinculação entre sexo e maternidade, sexo e amor, sexo e compromisso. Novamente surge uma imprensa dirigida por mulheres para melhor aglutinar os grupos. Em 1975, é fundado o jornal Brasil Mulher, porta-voz do recém criado Movimento Feminino pela Anistia; e, em 76, Rose Marie Muraro, uma das grandes escritoras feministas do século XX. À direita, Marina Silva, importante líder ambientalista brasileira. Senadora pelo estado do Acre, foi nomeada, em 2003, Ministra do Meio Ambiente. COLEÇÃOPARTICULAR JEFFERSONRUDY-MMA 114 115