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Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL
Charlise Paula Colet Gimenez
Fabiana Marion Spengler
Karina Schuch Brunet
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O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
2015
Santa Cruz do Sul
1ª edição
O PAPEL DO
TERCEIRO E AS
INTERROGAÇÕES
DO CONFLITO
SOCIAL
Charlise Paula Colet Gimenez
Fabiana Marion Spengler
Karina Schuch Brunet
3
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil
CONSELHO EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil
COMITÊ EDITORIAL
4
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Correção ortográfica: Rodrigo Bartz
Diagramação: Daiana Stockey Carpes
Essere nel Mondo
Rua Borges de Medeiros, 76
Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul
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livro poderá ser reproduzida por qualquer meio impresso,
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não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora.
Prefixo Editorial: 67722
Número ISBN: 978-85-67722-34-4
5
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
PREFÁCIO
INTRODUÇÃO
1 AS ALIANÇAS SOCIAIS BASEADAS NA AMIZADE: É POSSÍVEL LIDAR
COM O CONFLITO SEM A PRESENÇA DO TERCEIRO?
1.1 A privatização da relação pública da amizade: é necessária a intervenção
do Estado?
1.2 A philia grega era disposição de caráter que desejava o bem do outro?
1.3 A vontade individual dos amigos era subordinada as regras do Estado na
amicitia romana?
1.4 As relações entre philia, amicitia, confiança e justiça: do moral ao legal?
2 O JUDICIÁRIO EM UM CONTEXTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DE DIREI-
TOS: QUAL O PAPEL DO JUIZ COMO TERCEIRO NA RESOLUÇÃO DE
CONFLITOS?
2.1 Do conflito interpessoal ao conflito do próprio Judiciário: por onde passamos?
2.2 Basta dizer o direito para resolver o conflito?
2.3 A atuação judicial independente e responsável é suficiente para a resolu-
ção da diversificada conflituosidade social?
3 O TERCEIRO MEDIADOR NO TRATAMENTO DO CONFLITO: QUAL É O
SEU PAPEL?
3.1 O Papel Social na relação irritante entre indivíduo e sociedade. Onde está
o conflito?
3.2 O Papel Sociológico do Terceiro. Como fazer com que um conflito seja
construtivo?
3.3 A Mediação no Brasil a partir da Resolução 125/2010 do Conselho Nacio-
nal de Justiça. Há tratamento do conflito?
CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
Sumário
5
8
11
11
16
21
25
31
31
37
43
56
56
61
70
75
77
6
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
PREFÁCIO
A atuação dos poderes de Estado, incluindo o Judiciário, tem sido alvo de
agudas críticas nas últimas décadas. Parte dessas críticas é pertinente, parte
não. Parte, delas, têm base em razões fundadas, outra não.
Entre as infundadas estão aquelas alinhadas a partir das premissas ul-
traliberais (neoliberais) de que a sociedade não seria outra coisa senão um
aglomerado de unidades individuais, cada qual interessada em minimizar a dor
e maximizar o prazer. Nesse viés, a ação do Estado deveria limitar-se às fron-
teiras estabelecidas pelas liberdades individuais e ser útil para o alcance das
expectativas e desejos individuais. O Estado não passa de um mal necessário,
sendo “excessos” a pretensão dos poderes públicos tentar induzir o proces-
so de desenvolvimento, buscar regular e intervir na economia, e oferecer um
amplo leque de serviços públicos à custa de significativa carga de impostos.
O alvo do ultraliberalismo, como se sabe, é o Estado de Bem Estar (welfare
state). A retórica ultraliberal reproduz um conhecido dualismo: explica a política
e a sociedade com base na bipolaridade Estado x mercado e público x privado,
conferindo prioridade ao segundo polo. Esse enfoque dá sustentação a parce-
la importante das críticas aos insucessos estatais. É uma via que não oferece
alternativas plausíveis para a democracia, a inclusão social, o empoderamento
e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos.
As críticas pertinentes ao Estado são de outra ordem. Miram o estatismo,
ou seja, a exacerbação do estatal na vida social, assim como o seu oposto, o
privatismo, a exacerbação dos valores do mercado. Parte-se aqui da premissa
de que a vida social não pode ser resumida à bipolaridade Estado x mercado,
até porque ambos são fenômenos recentes na história da humanidade. As raí-
zes do Estado atual (dos Estados nacionais modernos) remontam ao século
XV, enquanto a economia capitalista de mercado assenta-se no processo da
Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Interligados, Estado e
mercado são polos constituintes da vida das sociedades ocidentais nos últimos
séculos, mas a vida em sociedade não se resume a esses polos. Há aspectos
fundamentais da vida humana – facetas que se revelaram ao longo da evolução
7
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
da vida humana por muitos milhares de anos – que dizem respeito a outra esfera.
Estima-se que o homo sapiens tenha surgido há cerca de 80.000 anos
e nossos ancestrais mais remotos, há mais de 4 milhões de anos. Ou seja:
em 99% da trajetória humana não houve nem Estado nem mercado. Por isso,
o foco exclusivo nas estruturas estatais ou na dinâmica do mercado não al-
cança o essencial à vida em sociedade. Amizade, solidariedade, fraternidade,
cooperação, comunidade, entre outros princípios, reportam-se a outra esfera da
vida humana, a esfera comunal. Trata-se de um âmbito que abrange relações
interpessoais não redutíveis à lógica dos poderes instituídos (Estado) nem do
interesse privado (mercado). A esfera comunal está articulada à esfera estatal e
à mercantil, contudo distinta. Juntas formam o tripé das sociedades ocidentais
atuais, nas quais vêm se assistindo o excesso ora de um polo (estatismo) ora de
outro (privatismo). Estamos diante do desafio de construir o equilíbrio do tripé, o
que requer fortalecer o polo comunitário.
O equilíbrio das três esferas (Estado, comunidade e mercado) exclui qual-
quer excesso do comunitário, que seria uma espécie de revanche ao estatismo e
ao privatismo. A noção de equilíbrio, das esferas sociais, leva ao esforço de pen-
sar os serviços públicos e o atendimento das necessidades coletivas para além
das duas alternativas usuais – a prestação direta pelo Estado ou a privatização.
Esse novo olhar (assentado em clássicas lições, que remontam a Aristóteles e
passam por uma grande variedade de tradições do pensamento social) nos leva
a considerar formas alternativas de Justiça, como a mediação e a conciliação;
a recuperar a importância dos serviços de saúde, de educação e de assistência
social prestados por instituições comunitárias; a prestar atenção nas formas co-
munitárias de comunicação; a reconhecer a relevância política e econômica do
terceiro setor, constituído por organizações cooperativas e associativas.
Sob esse pano de fundo, a contribuição do livro “O papel do terceiro e as
interrogações do conflito social” transborda o âmbito do Direito e ajuda a pen-
sar as transformações do Judiciário no contexto mais amplo do Estado e das
políticas públicas. O livro, de maneira evidente, é mais uma bem sucedida obra
de pesquisadoras e pesquisadores orientados pela Profª Fabiana Spengler a
evidenciar o vigor das formas comunitárias, especialmente a mediação, no pro-
cesso de renovação do Judiciário. Conforme se mostra, não se trata apenas de
desafogar o Judiciário, submetido a um conjunto impressionante de demandas
da sociedade: trata-se de conceber “outra cultura, mediante práticas consen-
suadas e autônomas que devolvem à pessoa e à comunidade a capacidade de
lidar com o conflito inerente a sua existência”. O lento processo de renovação do
Judiciário requer, de muitos operadores do Direito, a inteligência, a capacidade
e o comprometimento demonstrados pelas autoras da presente obra.
Prof. Dr. João Pedro Schmidt
8
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
INTRODUÇÃO
A amizade assume importância na organização, manutenção e coesão
dos grupos sociais, porém, não existem histórias detalhadas dos vínculos gera-
dos a partir dela em nenhuma grande civilização, ocidental ou oriental. Todavia
conhecermos textos que refletem grandes amizades como aquela entre Mon-
taigne e la Boétie (1999), no qual a relação diz respeito a um sentimento com-
plexo e desordenado o que dificulta sua delimitação exata.
Porém, mesmo desordenada, a amizade vem sendo usada, politicamen-
te, como pacto ou contrato que ultrapassa os limites emocionais e opera como
meio de manutenção das alianças sociais firmadas, gerando hipóteses mais
adequadas para lidar com os conflitos nascidos de tais relações. Essa seguran-
ça quanto ao pactuado se dá especialmente em função de sentimentos correla-
tos a amizade como, por exemplo, a fidelidade, a confiança e a gratidão.
Porém, aqui se fala de uma fidelidade, uma confiança e de uma gratidão
que não são normatizados ou legalizados, que nem mesmo são mencionados,
porque compõe o mundo dos sentimentos e não o mundo da justiça. Tudo isso
porque, conforme Aristóteles (2004), onde existe amizade não precisamos de
justiça. Onde impera a amizade, a boa-fé e a confiança não precisam ser po-
sitivadas, garantidas legalmente. Elas fazem parte de um contexto vivido e ex-
perienciado pelos amigos. Se amizade deixa de ser argamassa, cimento social,
então precisamos das garantias do direito.
É nesse sentido que o primeiro capítulo teve como objetivo investigar a
amicitia romana e a philia grega como possibilidade de lidar com o conflito pres-
cindindo da figura de um terceiro (mediador ou juiz) em função da capacidade
existente entre os contendentes (capacidade essa baseada na amizade) de lidar
com a desordem conflitiva de maneira mais adequada .
Finalmente, a amizade e os seus aspectos políticos foram visitados en-
tremeando sua conotação histórica com outras categorias como a justiça e a
confiança.
Acontece, entretanto, que quando a amizade não é suficiente para a neu-
tralização ou tratamento do conflito, faz-se necessária a presença do terceiro
9
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
juiz ou mediador, sendo o primeiro excessivamente demandado eis que se apre-
senta como uma figura coercitiva que se coloca no papel de decidir pelas partes,
impondo seus comandos aos conflitantes que lhe transferem a responsabilidade
pela resolução dos conflitos que não foram capazes de resolver. E vive-se, hoje,
em uma época em que o juiz teve de assumir o papel de instância moral da so-
ciedade, como afirma Garapon (1999).
Esta transferência de responsabilidades não é novidade. Tem sua origem
histórica, caso resgatado, no direito greco-romano, mas que, nesta obra, será
retomada a partir do Estado Moderno para que se possa compreender a ideia
do juiz que diz a lei em nome do Estado e toma para si o monopólio da violência
legítima com a pretensão de decidir conflitos.
Há de se observar, assim, que não se desconhece a carga etimológica do
“resolver” e sua distinção em relação ao “tratar” quando se trabalha com o tema
de terceiro e conflitos, mas no capítulo em que se propõe a discutir o papel do
juiz na relação conflituosa, faz-se a opção linguística pelo uso da terminologia
“resolução de conflitos”. Em termos de sentido, resolver significa justamente de-
cidir uma questão, solucionar um problema, o que revela exatamente aquilo que
as partes esperam do juiz em relação aos seus conflitos e, não raro, o que o juiz
pensa que efetivamente faz ao “entregar” a jurisdição no afastamento ideológico
entre mundo fático e mundo jurídico.
Em decorrência das pressões centrífugas, da desterritorialização da pro-
dução e da transnacionalização dos mercados, percebe-se que o Poder Judiciá-
rio tem enfrentado o desafio de alargar os limites da sua jurisdição, modernizar
as suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais para perma-
necer com o status de poder autônomo e independente.
Nesse rumo, o Conselho Nacional de Justiça propôs novos mecanismos
de tratamento de conflito, fundamentados em uma nova ideia de jurisdição, de
uma autorregulação dos conflitos pelo sistema social, na qual se inserem a con-
ciliação1
e a mediação.
A Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça instituiu a
Política de Tratamento adequado de Conflitos, primando pela qualidade da pres-
tação jurisdicional como garantia de acesso à ordem jurídica justa. A referida
resolução tem por escopo assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por
meios adequados à sua natureza e peculiaridade.
A concretização do reconhecimento, pelo Brasil, de métodos de tratamen-
to de conflito como resposta adequada ao conflito decorre da ineficiência das
1 Consoante dispõem Morais; Spengler (2012), a mediação e a conciliação são institutos afins,
porém diferentes. A conciliação tem por objetivo chegar voluntariamente a um acordo neutro a
partir da participação de um terceiro que intervém, inclusive com sugestão de propostas aos
litigantes. A seu turno, a mediação, conforme será abordada neste trabalho, tem natureza auto-
compositiva e voluntária, no qual um terceiro imparcial facilita a comunicação entre as partes,
dando espaço para que estas apresentem a resolução adequada ao seu conflito.
10
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
práticas tradicionais, vislumbradas pelo monopólio do Estado, por meio do Poder
Judiciário, o qual enfrenta uma crise de efetividade – qualitativa e quantitativa.
Por essa razão, no terceiro capítulo, dedica-se ao estudo do mediador, em
especial, do terceiro mediador e seu papel no desenvolvimento de uma cultura
de paz, pautada pelo diálogo, comunicação, responsabilização e empoderamen-
to das partes.
11
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
AS ALIANÇAS SOCIAIS
BASEADAS NA AMIZADE:
É POSSÍVEL LIDAR COM O
CONFLITO SEM A
PRESENÇA DO TERCEIRO?
1.1 A privatização da relação pública
da amizade: é necessária a intervenção
do Estado?
Não é por acaso que Cícero (2001, p. 24) dá início ao seu texto intitulado
“Da Amizade” afirmando “eu só posso exortar-vos a antepor a amizade a todas
as coisas humanas, pois nada há que tanto se conforme à nossa natureza, nem
convenha mais à felicidade ou à desgraça”.
O fato é que a palavra amizade é difícil de ser definida, porque não possui
um único significado, todavia diversos. Tal realidade data das civilizações gregas
e romanas. Há dois mil anos Aristóteles já se angustiava e escrevia sobre a dis-
tinção entre os tipos de amizade objetivando identificar, entre eles, aquela que
fosse “verdadeira”.
Desse modo, o que se percebe é que embora o núcleo da amizade - ex-
pressado por la Boètie (1999), dentre tantos outros – bondade, naturalidade e
reciprocidade – permaneça o mesmo, sua aparição é proteiforme, podendo con-
fundir-se com aquilo que a imita e a nega. Afinal, entre os corsários também há
1
12
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
alguma fé na partilha do roubo porque são pares e companheiros.
Numa primeira análise, a amizade parece confinar-se ao momento em
que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa
espécie de natural sociabilidade e, ao findar sua obra com o advento da
sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança a instante
anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que pre-
cedeu a desnaturação. Sob o efeito das ilusões necessárias que presidem a
cisão da vontade e a criação e mantimento da sociedade, parece mudar de
forma (confundida com adulação e cumplicidade), de qualidade (de natural
vira cultivo), de quantidade (de todos sobraram alguns), de tempo (de pre-
sente se fez memória) e de lugar (do centro da sociabilidade ruma para a
periferia). (LA BOÉTIE, 1999).
Mas, se a amizade é assim difícil de ser definida e possui esse aspecto
poliforme, o que se poderá, então, esperar de um amigo? Que compartilhe a
imagem que tenho de mim mesmo ou, pelo menos, que não se afaste demais
dela? Sim, porque se é favorável demais, dá a impressão de bajulação. Se é
muito negativa pode trazer a sensação de injusta contradizendo uma exigência
básica da amizade. Assim, os amigos devem ter imagens recíprocas semelhan-
tes.2
Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir,
mas sem excessivas dissonâncias.
Durante muito tempo a humanidade conviveu com relações de amiza-
de sólidas, com vínculos estreitos e duradouros, na real acepção do termo.
Nesse período não estavam positivadas (até porque era desnecessário) leis
e regras sobre a organização e a manutenção do liame social. A amizade
era o cimento que unia e fortalecia essas relações. Ela se mantinha median-
te um código binário dividido entre amigo/inimigo que era o suficiente para
apontar as relações que deviam ser tuteladas e aquelas que eram objeto de
repulsa.
Atualmente, verificamos a permanência do jogo político que envolve o có-
digo binário amigo/inimigo. Porém, a amizade perdeu a capacidade de coesão e
fortalecimento dos laços sociais e foi substituída pelas leis e regras positivadas,
que preveem, necessariamente, a figura de um terceiro que diz o direito (juiz) ou
que intermedia o diálogo (mediador).3
Nessa linha, a amizade se distancia da esfera pública (organização e coe-
são social, sentido de pertencimento) e se aproxima da esfera privada (laços de
2 “Contemplar-se no espelho do olhar amigo é a condição da sabedoria, pois somente o Uno
se conhece a si mesmo sem a mediação de outro. Se o amigo é ‘Um outro nós mesmos’ e se
para os homens sábios e virtuosos é impossível a auto-suficiência do Um, a amizade, suprindo
a carência, imita a perfeição. ‘Substituindo a contingência do encontro pela inteligibilidade da
escolha refletida, a amizade introduz no mundo sublunar um pouco daquela unidade que Deus
não pode fazer descer até ele’”. (CÍCERO, 1999, p. 203).
3 O mesmo se deu com a confiança que passou a ser juridicizada e se dividiu em boa e má-fé.
13
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
parentesco e consanguíneos, vínculos inerentes as relações de trabalho e de
lazer). Porém, em ambas as esferas conta-se com a intervenção estatal para sua
manutenção e inclusive na resolução de conflitos dela advindos (se possuírem
um viés legal, positivado). O fato é que perdemos amigos na acepção verdadei-
ra, legítima do termo e ganhamos conhecidos4
ou companheiros.5
Convivemos
com eles de maneira harmônica ou conflituosa, todos sob o jugo do olho impla-
cável do Estado que institui e aplica as regras determinando nossas relações
públicas e privadas.
A importância das relações verdadeiras de amizade se perdeu. Atual-
mente, mesmo quando as pessoas se referem a um amigo, já não o fazem na
acepção grega ou romana do termo. Assim, contemporaneamente “os amigos
são também desconhecidos, não vistos, não avizinhados”, desse modo “eles
se furtam ao vínculo da reciprocidade quotidiana, construída a partir de um ar
comum que se respira. Pode-se compartilhar a vida sem compartilhá-la”. (RES-
TA, 2005, p. 4).
A mola propulsora desse processo de particularização da amizade acon-
tece com a familiarização6
da sociedade e o, consequente, esvaziamento do
espaço público.7
Nesse ínterim, o destino da amizade desemboca na absorção
de toda forma de sociabilidade na estrutura familiar. Isto posto, o processo de
“desaparecimento da sociabilidade pública, de esvaziamento do espaço públi-
co, corresponde o surgimento da família moderna, a qual monopolizou outras
formas de sociabilidade”. Por conseguinte, segundo Ortega (2002, p. 107) esse
processo conjugado a outros fatores como o surgimento da categoria de “ho-
mossexuais”, a conjugalização do amor e a incorporação da sexualidade no
matrimônio, constituiu os principais determinantes do declínio das práticas de
amizade no século XIX.
Segundo Ortega (2002) três fatores fundamentais teriam condicionado o
processo de privatização e de empobrecimento do tecido relacional das socie-
4 “Un conoscente, direi, è uma persona che si conosce anche da molto tempo, ma che in genere
non ci si propone mai di incontrare senza alcuna ragione precisa”. (EPSTEIN, 2008, p. 14).
5 “Un compagno è, come dice il termine, qualcuno con cui capita di essere em compagnia; un
accompagnatore può essere qualcuno che viene impiegato a pagamento, per esempio qualcuno
che una persona anziana paga perché stia con lei durante una convalescenza. A volte compagno
e accompagnatore vengono utilizzate come parole in codice per amante, altra cosa che non ci
aiuta molto...” (EPSTEIN, 2008, p. 14-15).
6 Esse movimento de transformação das ligações familistas não será objeto de análise na pre-
sente pesquisa em função de questões de espaço e tempo. Sobre o assunto é importe a leitura
de ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001; ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v. ARENDT, Hannah. Condição humana.
Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
7 Não é mais o “público” que tende a colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado
que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser ex-
presso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, das angústias e iniciativas
privadas. (BAUMAN, 2001).
14
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
dades ocidentais:
a) o fato de que o Estado passou a desempenhar um novo papel a
partir do século XV, intervindo cada vez com mais frequência no espaço so-
cial antes entregue às comunidades. O processo de formação dos Estados
modernos e de centralização da sociedade, que tem como correlato a reor-
ganização e mudança histórica da economia psíquica, apontam na mesma
direção ao sublinhar o papel decisivo exercido pelo Estado na conformação
da vida privada e da sociabilidade, a qual segue um caminho de crescente
privatização e intimização. Como principal consequência desse movimento o
Estado passou progressivamente a interferir e a gerenciar mais diretamente
a vida dos indivíduos;
b) um segundo fator importante nesse processo foi o desenvolvimento
da alfabetização, assim como a difusão da leitura favorecida pela invenção da
imprensa, que permite uma forma de reflexão solitária; a própria solidão mudará
de status, não se associando mais com o tédio e passando-se a desenvolver, a
partir do século XVII, um gosto pelo retiro solitário;
c) por fim, as novas formas de religião permitiram o desenvolvimento de
maneiras de devoção privadas e de meditação solitária. Evidentemente, esse
processo de privatização nas sociedades ocidentais desde os séculos XVI e XVII
condicionou as formas de sociabilidade e a amizade em particular.
Na Grécia, a philia se colocava acima da família, estava ligada ao
espaço público, à ação em liberdade, à política. Provavelmente a tradição
cristã fraternalista contribuiu, historicamente, para essa primazia das ima-
gens familiares sobre as da amizade. Da mesma forma, o ideal romano de
confiança e lealdade ao amigo, a fides, se transformou na confiança total em
Deus. Consequentemente, o cristianismo substituiu a intimidade dos amigos
por um laço de amor e caridade que abraça todos sem restrição. Assim, tem-
se o alargamento da amizade e o seu esvaziamento político. A amizade que
anteriormente se voltava para a polis agora é caridade (caritas), voltada ao
amor divino e ao paraíso.
A caritas significa o amor ao próximo e a uma totalidade, um amor co-
munitário amplo, descolado da singularidade e da particularidade de um amor
“a dois”. Então, conclui-se que a Amicitia não é ágape, e essa substituição leva
a despersonalização de tal sentimento tornando o caridoso mas sem afeto. A
amizade cristã enquanto amizade perfeita é aquela que torna sem qualidades
as amizades vividas, aquelas reais. É inerente ao cristianismo a substituição da
amizade pelo ágape, considerado uma forma de amizade perfeita.
Desenha assim a ambivalência entre amizade e amor no cristianismo.
A amizade tornou-se uma relação suspeita e o amor (a Deus e ao próxi-
mo) era o meio de se libertar. Assim como a amicitia romana, a philia grega
também é rejeitada por seu caráter egoísta e instrumental, ao passo que o
agape representa amizade verdadeira, por não manifestar uma atração inter-
15
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
pessoal. Dizendo de outro modo, o amigo não deve mais ser amado por si
mesmo, mas por Deus.
A philia torna-se assim caritas christiana, o amor de Deus que une todos
os homens. Caritas constitui a essência do amor do amigo no cristianismo. (OR-
TEGA, 2002).
Possível perceber, assim, como as concepções das relações de amizade
enquanto pertencentes à intimidade, desconectadas e distanciadas do público,
e, muitas vezes, incorporadas nas relações de parentesco – o que atualmente
parece natural e inquestionável –, são, na realidade, um fenômeno recente, ini-
ciado no século XIX.
Essa nova forma de ver a amizade - agora conhecida e reconhecida
como fraternidade, embalada pelo amor divino - inclui por que exclui, avizinha
por que distancia, reconstrói tecidos vitais enquanto destrói outros; parece,
como o amor, uma improbabilidade normal. Este é o grande divisor de águas
entre a philia do mundo antigo e a amizade dos sistemas sociais modernos;
ao passo que a primeira é o que cimenta a cidade, sendo, portanto, pressu-
posto de qualquer vida política que generaliza o privado, reproduzindo-o na
vida pública, a segunda não reitera o próprio modelo comunitário, mas o se-
para, o diferencia dele quase se imunizando da condição de estranhamento,
senão da inimizade, que atravessa a esfera pública. Por isso, está exposta
aos riscos de interferência e, quando vence, inserindo-se na esfera pública,
está pronta a transformar-se, na melhor das hipóteses, em incidente trans-
versal, quando não em confusão a ser eliminada, em dimensão irrelevante a
ser deixada de lado em virtude da separação entre a vida privada e afetiva e
a vida pública, quando, até mesmo, não seja identificada com a familiarida-
de e a particularidade; de resto, não é raro que os detentores do poder não
escolham os competentes, mas os que lhe são leais, delegando confiança à
amizade e perpetuando a desconfiança da luta política. (RESTA, 2005).
Essa trajetória abre caminho, na modernidade, por intermédio de uma clara
separação, impensada no mundo antigo, entre a amizade e o amor. Contra o risco
de uma expansão demasiado pessoal e, por conseguinte, egoística, da amizade,
foi recomendada charitas generalizada que impõe amar a Deus em cada um do
outros homens. Enquanto a amizade mundana deixa campo livre à qualidade dos
indivíduos (“perché sei tu”), a amizade caridosa lhe é estranha e escolhe a impes-
soalidade. (RESTA, 2005).
Nesse caminho, e dando continuidade ao debate que compara philia gre-
ga, amicitia romana e amizade moderna (fraternidade) o item a seguir investiga-
rá a philia grega.
16
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
1.2 A philia grega era disposição de caráter
que desejava o bem do outro?
O conceito e a delimitação grega de philia8
aparece em Heródoto no sécu-
lo V a.C. Porém, Phílos9
(palavra descendente de philia) foi utilizado por Homero
com sentido possessivo (predominante) e afetivo. Na acepção possessiva, phí-
los não se refere a uma relação de amizade, constitui sim uma marca de posse
sem referência a pessoa, dizendo respeito ao: “seu” ou “meu”, poderia também
designar animais, objetos ou partes do corpo, etc. (ORTEGA, 2002).
Já no sentido afetivo, philos é expressão de relações próximas ou de pa-
rentesco. “O significado do verbo philein é também ambíguo, designando a ação
da influência sobre as pessoas que são protegidas: mulheres, crianças, paren-
tes, escravos. Philein também possui o sentido de exprimir a hospitalidade, de
receber estrangeiros, e de se beijar, como um sinal de reconhecimento entre os
phíloi, como aparece em Heródoto referindo-se ao comportamento entre os per-
sas”. (ORTEGA, 2002, p. 17-18).
É importante salientar que a philia foi tema filosófico bastante discutido
na antiguidade clássica. A estrutura social da Grécia, dessa época, reservava
um “lugar” muito especial para a amizade, o qual, nos dias de hoje, infelizmente,
não mais existe. Pelo menos não com aquela significância pessoal e intensidade
ético-política. (ALBORNOZ, 2010).
Na Grécia clássica a amizade e a hospitalidade (xenia) são relações muito
próximas a tal ponto de definirem os amigos e os estrangeiros.10
A instituição da
xenia é uma maneira de se relacionar com o estrangeiro, através de um vínculo
8 O “Vocabulário grego de filosofia” (traduzido para o italiano) conceitua philia como “legame af-
fetivo tra due esseri umani. Deriva del verbo philo. L’amicizia è considerata daí filosofi greci uma
virtù, o per lo meno, come scrive Aristotele ‘essa è acompagnata dalla virtù’ [...] Essi considerano
il termine nel senso stretto di affezione reciproca, mentre la philia possiede un significato ben piú
ampio”. (COBRY, 2004, p. 167).
9 “Antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir concretamente o que significa
philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por exemplo, a distinção entre amante, aquele que
sente amor ou amizade, no qual, digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor,
e amado. Podemos usar, respectivamente para cada um, as expressões termo o ativo e termo
passivo”. (PLATÃO, 1995. p. 23).
10 “A tradição do pensamento político sobre a hospitalidade, desde Platão a Kant e Hegel, pensa
hospitalidade nas categorias jurídicas do pacto, do contrato, do juramento, etc, isto é, exclusiva-
mente, como hospitalidade condicional. [...] Lévinas [...] ao deslocar a categoria da hospitalidade
para o centro de sua reflexão ética e definir a relação com o outro como hospitalidade, repre-
senta uma exceção significativa. Pois o contrato da hospitalidade restringe a hospitalidade ao
reconhecimento do estatuto social, familiar e político dos contratantes, ao controle da residência
e do período de estadia e deixa fora aquele que chega anonimamente, que não possui nome,
patrimônio, linhagem, estatuto social, ou pátria; ou seja, esse indivíduo que os gregos não trata-
vam como estrangeiro, mas como bárbaro, como outro sem nome, ou nome de família.” (ORTE-
GA, 2002, p. 20).
17
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
de longa distância que inclui obrigações e benefícios recíprocos. Se comparado
ao vínculo dos philói, a xenia se diferenciava por que era uma relação na dis-
tância. Tal fato implicava a separação física dos participantes, pois essas redes
aristocráticas se estendiam para além das cidades e até do mundo grego. Desse
modo, a instituição da xenia possuía e cumpria uma “função político-estratégica
definida: as comunidades da época se encontravam em uma situação de des-
confiança e hostilidade entre elas, de “paz armada”, a xenia era uma forma de
garantir proteção, apoio e armamento ao estrangeiro”. A partir do momento em
que as polis11
se formaram as redes de xenias continuaram existindo, o que con-
tribuiu para a manutenção de um forte componente de ritualização e institucio-
nalização nas relações afetivas predominantes na polis. (ORTEGA, 2002, p. 22).
Além da philia, a Grécia antiga possuía também outra espécie de asso-
ciação entre amigos chamada de heteria que era a relação política de camara-
dagem militar, uma espécie de fraternidade em armas ou de um “clube político”,
no qual os homens da mesma idade e camada social ingressavam na juventude
e permaneciam até a velhice. A heteria constituía um elemento indispensável da
vida política na polis. Uma relação que se articulava como vínculo de amizade.
Além disso, ela perpassava horizontalmente as estruturas básicas de parentes-
co, ligando e unificando os diferentes centros de poder. A heteria representava
um forte vínculo afetivo, uma “amizade expressiva”. Justamente por isso era
uma das instituições sociais mais fortes e persistentes do mundo grego, a qual
conseguiu manter-se através de numerosas mudanças de governo e revoluções.
(ORTEGA, 2002).
Assim, na Grécia homérica a amizade não aparece definida de uma forma
clara e única, existindo numerosos tipos e noções. Muitas relações de amizade
eram relações institucionalizadas que deixavam pouco espaço para a liberda-
de de escolha, espontaneidade e preferências pessoais. Esse tipo de amizade
exercia as funções de coesão social e proteção em um mundo descentralizado,
que não podia garantir a vida dos indivíduos, representando uma possibilidade
de assegurar a existência e a manutenção da sociedade. (ORTEGA, 2002).
Porém, com a evolução do conceito de philia, as relações de parentesco
vinculadas à amizade se enfraqueceram até se dissociar completamente. A amiza-
de passou a ser definida pelo seu caráter de livre escolha e afeição pessoal trans-
formando-se em uma instituição independente. A principal consequência quanto
as relações interpessoais foi a separação dessas das relações institucionalizadas.
Porém, tal não ocorreu quanto a relação de philia. Esta manteve, durante toda
época grega clássica uma forte dimensão institucionalizada e ritualizada.
Desse modo, era possível observar que as relações de afeto eram esta-
belecidas normativamente e as tarefas da amizade eram institucionalizadas. Tal
11 “Comunità urbana alla quale occorre dare uma costituzione, che sarà la politeia; lo stesso
termine polis può significare Stato, poiché ogni città greca costituiva anche uno Stato.” (GOBRY,
2004, p. 178).
18
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
se deu porque na polis grega, as relações de amizade desempenhavam um pa-
pel considerável, mas existia um enquadramento institucional suplementar que
implicava um sistema de obrigações, deveres e tarefas recíprocos, o estabeleci-
mento de uma hierarquia entre amigos, etc. As relações de amizade formavam
os átomos da polis, a condição de sua sobrevivência. (ORTEGA, 2002).
Nesse contexto, Platão12
debate a amizade como base da busca pela
verdade característica própria da filosofia. Em Lísis, o diálogo ressalta a ideia de
que a amizade implica comunhão de bens materiais e espirituais, tornando-se,
assim, uma coisa útil. Também salienta que existe distinção entre “aquele que
ama” e “aquele que é amado”. Desse debate também cria a diferença entre o
amigo e o inimigo.
Na verdade, antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir
concretamente o que significa philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por
exemplo, a distinção entre amante, aquele que sente amor ou amizade, no qual,
digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor, e amado. Podemos
usar, respectivamente, para cada um, as expressões termo ativo e termo pas-
sivo. Assim, Platão afirma: “amigo não é o que ama, mas sim o que é amado”.
(PLATÃO, 1995, p. 47).
Percebe-se na obra de Platão uma forte conotação erótica na análise da
amizade.13
Tal se dá em função da “ausência de fortes vínculos maritais e de
amor conjugal, assim como a separação estrita dos sexos – designando luga-
res específicos para cada um -, levou a polis clássica a concentrar a paixão e a
ternura nas relações entre homens”. (ORTEGA, 2002, p. 25). Avista-se assim o
privilégio do culto da amizade e do amor masculino.
Como ao sexo feminino era atribuída pouca importância (as mulheres
eram afastadas da esfera pública, relegadas ao espaço doméstico), as relações
masculinas (entre homens) eram marcadas pela afeição e pelo significado emo-
cional. Desse modo, os discípulos, tradicionalmente rapazes belos, eram os
substitutos das mulheres por possuírem semelhança física com elas, sendo con-
siderados objetos de desejo.
Assim, as relações de amizade (que se estabeleciam necessariamente
entre homens, pois as mulheres eram consideradas incapazes de mantê-las)
eram relações erotizadas. Tais relacionamentos pressupunham a liberdade dos
indivíduos envolvidos que vinha visivelmente expressa no jogo da sedução, na
12 Importa dizer que a base para o debate aqui se iniciado foram os diálogos de Platão nos quais
o filósofo aborda a philia diretamente: no Lísis, no Banquete e no Fedro. O primeiro deles (Lísis)
foi aquele que centralizou o interesse do presente texto. Tal se deu porque, apesar do caráter
aporético do texto, é, todavia, aquele que mais se aproxima da definição do conceito de amizade.
13 Tal conotação erótica exposta na obra platônica pode vir ilustrada pela referência expressa a
eros no Banquete: “... de todos os lados Eros é considerado extremamente antigo. Sendo o mais
antigo, é Também a causa de nossos maiores bens; por mim, não saberia dizer nada melhor para
o jovem, no seu primeiro crescimento, que um verdadeiro amante, nem, para um amante nada
melhor que seus amores”. (PLATÃO, 1977, p. 178c-178b).
19
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
possibilidade de dizer “não” e na recusa do cortejo. Apenas homens livres pode-
riam ser destinatários dessa relação erótica. As relações heterossexuais eram,
fortemente, codificadas. Pertenciam ao matrimônio ou aos prostíbulos e perma-
neciam proibidas fora dessa regulamentação. O papel feminino nesse contexto
era aceitar os desejos masculinos, pois as mulheres dependiam deles economi-
camente, satisfazendo sua sexualidade, garantindo a procriação e administra-
ção do patrimônio.
No entanto, Ortega (2002) salienta que existia uma dificuldade na moral
grega do eros. Originada do isomorfismo existente na sociedade helênica entre
as relações sexuais e o comportamento social, o que impedia, que o rapaz, de
comportamento passivo na relação sexual, como objeto do prazer do homem
mais velho, pudesse desempenhar uma função ativa como cidadão da polis. As-
sim, a “antinomia dos rapazes” consistia em serem considerados como objetos
de prazer, e, no entanto, não poderem identificar-se com esse estatuto como
futuros cidadãos, uma vez que apenas as mulheres e os escravos eram objetos
de prazer.
Consequentemente, a reflexão platônica da philia surge como uma tenta-
tiva de resposta a essa antinomia, isto é, como uma possibilidade de dotar o eros
de uma forma moralmente aceita.14
Nesse sentido, a estratégia consistiu em
transformar o eros na relação de philia, excluindo o elemento sexual (sublima-
do), o que lhe permite manter os elementos “pedagógicos” do amor dos rapazes,
sem cair nas antinomias implicadas na erótica tradicional.
Finalmente Ortega conclui que Platão nem tinha muito interesse em dis-
tinguir a relação amor e amizade nos diálogos que tratam do tema, dado que é
precisamente dessa fluidez conceitual que se originam os importantes desloca-
mentos que conduzirão à amizade como uma espécie de eros sublimado.
Nessa mesma linha de raciocínio, Aristóteles dissocia, completamente,
a noção de amor erótico da noção de philia criando uma incompatibilidade defi-
nitiva entre ambos. Essa noção aristotélica permanecerá constante na história
da amizade.
Desse modo, a partir do raciocínio aristotélico a amizade se exclui da
passividade platônica tornando-se uma atividade, a própria atividade filosófica;
o amor, por outro lado, é considerado um impulso não-filosófico. Assim, é pos-
sível resumir dizendo que Eros é uma paixão e philia um ethos, o amor passa a
ser visto como uma emoção; a amizade, por sua vez, é interpretada como uma
disposição de caráter.
Segundo a construção aristotélica a philia é caracterizada pelo hábito,
14 Isso se dá porque o próprio Platão no diálogo intitulado “Lísis” deixa claro que a base da
amizade é o desejo. Assim: - “Então, de fato, a causa da amizade é, como há pouco dizíamos,
o desejo. O que deseja é amigo daquilo que deseja, e isso sempre que deseja. O que de início
dizíamos ser amigo era uma futilidade, como um poema que se alonga demasiado”. (PLATÃO,
1995, p.60).
20
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
expressando-se como uma atitude moral e intelectual com objetivo principal de
amor recíproco entre os amigos, cuja base é a liberdade de vontade e de esco-
lha na qual cada um deseja o bem para o outro.15
Com sua dissociação de eros
e philia, Aristóteles pretendia afastar a possibilidade desse “mau uso” do eros.
Para Aristóteles, as pessoas são amigas por três razões principais: pela
utilidade que buscam, pelo prazer que esperam e pelo bem que os indivíduos
desejam um ao outro. Assim, o filósofo salienta que: “os amigos cuja afeição é
baseada no interesse não amam um ao outro por si mesmo, e sim por causa de
algum proveito que obtêm um do outro”. (ARISTÓTELES, 1996, p. 259). O mes-
mo se dá quando a base da relação é o prazer obtido.
Logo, afirma que amizades assim são apenas acidentais, pois não é por
ser quem é que a pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito
ou prazer. Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas não perma-
necem como eram inicialmente, pois se uma delas já não é agradável ou útil a
outra cessa de amá-la. E a utilidade não é uma qualidade permanente, mas está
sempre mudando. Portanto desaparecido o motivo da amizade esta se desfaz,
uma vez que ela existe somente como um meio para chegar a um fim. (ARISTÓ-
TELES, 1996).
Por conseguinte, as duas primeiras formas de amizade são perecíveis e
circunstanciais, isto é, não estão referidas à essência de uma autêntica amizade.
Porém, a terceira forma de amizade é caracterizada por desejar o bem
ao outro. A amizade perfeita é existente entre as pessoas boas e semelhantes
em termos de excelência moral; neste caso, cada um das pessoas quer bem à
outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si
mesmas.16
Nessa linha de raciocínio, Aristóteles aponta a felicidade, a virtude e a ami-
zade como categorias vinculadas. Tal se dá, especialmente, quando se visualiza
o amigo como um “segundo eu” ou um “outro eu”. Na base do amor ao amigo
está o amor de si. Assim, Aristóteles afirma que a consciência de si, a identidade
pessoal, se dá através do outro, na contemplação do outro, como nossa imagem
especular. Na amizade, o indivíduo se faz outro, sai de si, se objetiva; é preciso
tomar consciência do pensamento e da atividade do outro para ter consciência
do próprio pensamento e da própria atividade, condição da eudaimonia. A cons-
ciência de si é precedida da consciência do outro, a percepção do amigo é a
15 Assim: “cabe-nos examinar a natureza da amizade, pois ela é uma forma de excelência moral
ou concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária a vida.” (ARIS-
TÓTELES, 1996, p. 257).
16 “No entanto, o bem ou ser bom não constituem a essência do humano (ou qualquer outra
realidade). Dizendo diferentemente: o ser bom não identifica essencialmente os humanos. Ou:
não nascemos bons. Ou, ainda: o homem não é bom por natureza. Ser bom, deveras, é um aci-
dente para um indivíduo. Assim com ser mau. Ninguém nasce mau. Podemos querer ser bons
ou ser maus. Podemos nos tornar bons ou maus. Podemos nos aperfeiçoar na bondade ou na
maldade.” (ALBORNOZ, 2010, p. 22).
21
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
forma privilegiada da percepção e consciência de si. (ORTEGA, 2002).
É nesse sentido que o Ortega evidencia que essa noção de consciência
de si via consciência de outro constitui uma noção de subjetividade diferente da
nossa. Para construir tal afirmativa o autor cita Vernant (1989) cujos textos de-
monstram como, para os gregos, o “eu” não era nem delimitado nem unificado,
constituindo um “campo aberto de forças”. Desse modo, o indivíduo projeta-se
e objetiva-se nas atividades e obras que realiza e que lhe permitem apreen-
der-se; trata-se de uma experiência voltada para fora, o indivíduo se encontra
e se apreende nos outros.17
Isso ocorre, porque os gregos desconheciam a in-
trospecção. O sujeito é extrovertido; a consciência de si não é “reflexiva”, mas
“existencial”. A consciência está voltada para fora; a autoconsciência, no sentido
moderno do termo, não existe, ou somente sob a forma de um “ele” e não de um
“eu”. (ORTEGA, 2002).
Porém, para fins de delimitar a gênese e as transformações da amizade
no decorrer do tempo é necessário investigar a amiticia romana delineando suas
semelhanças e diferenças com a philia grega. É esse, pois, o objetivo que se
desenvolve adiante.
1.3 A vontade individual dos amigos era su-
bordinada as regras do Estado na amicitia
romana?
A sociedade romana tinha manifestações de amizade aparentemente da
mesma forma e muito semelhantes àquelas encontradas na sociedade grega. É
possível verificar que os termos latinos amicitia (amizade), amicus (amigo), ama-
re (amar) parecem encontrar correspondência aos termos gregos, philia, philos,
philein. Porém, não obstante tais semelhanças, existem diferenças importantes.
A amicitia romana é uma relação que se baseia na afeição livre, excluindo asso-
ciações econômicas, comunidades religiosas e jurídicas e ainda relações de pa-
rentesco. Eram consideradas como formas de amicitia romana as associações
políticas existentes entre os nobres cujo objetivo era o apoio mútuo em assuntos
de política interna e externa e nas eleições de cargos públicos. Além disso, e
principalmente, a amicitia romana é um conceito de política externa, constituído
através das trocas mútuas.
Devido a essa importância adquirida pela amicitia a “influência e as rela-
17 A relação com o outro, que foi na presente pesquisa nomeada “alteridade” será abordada no
próximo capítulo. Sobre o assunto é importante a leitura de LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós:
ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
22
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
ções pessoais do chefe de família eram indispensáveis para o sucesso na polí-
tica”. Ocorrência provinda das extensões horizontais dos chefes de família que
eram constituídas pelas relações de amicitia, alianças com pessoas da mesma
classe e status social. (ORTEGA, 2002, p. 47). Da mesma forma, as relações
amicitia e patrocinium não eram formadas por grupos da mesma idade, por isso
não apresentavam o grau de convivialidade e de envolvimento emocional das
heterias gregas, sem mencionar a perda de significado pedagógico do eros pai-
dikon. Essas funções eram desempenhadas na sociedade romana pela família.
(ORTEGA, 2002).
Consequentemente, a amizade romana não possuía a mesma importân-
cia que a amizade grega. Essa afirmativa se dá em todos os sentidos: cultural,
erótico e emocional. Para os romanos não havia mistura/relação entre eros e
philia. Os romanos confinaram eros no vínculo conjugal.18
Essa alteração de costumes se dá, especialmente, com o fim da polis,
momento no qual a pederastia perde sua função pedagógica e militar (herança
do mundo helênico) e sua fundamentação filosófica, tornando-se, aos olhos de
todos, uma perversão desprezível. As regras da Roma republicana, que valori-
zava a família como uma instituição moral e não só econômica, condenavam e
viam com repugnância a homossexualidade.
As famílias nobres dominavam a vida pública romana. Os romanos re-
conheciam três formas de atingir a glória: a família, o dinheiro e as relações
pessoais, nas quais a amicitia é a mais importante, junto às relações de patro-
cinium. Determinava-se, assim, pelo número e importância de clientes e amigos
o sucesso de um político. Sob essas circunstâncias, a amicitia tornava-se uma
relação estritamente utilitária e interesseira, objetivando alcançar vantagens re-
cíprocas. Nessas relações as motivações éticas e emocionais eram substituídas
por considerações práticas, e na qual a hipocrisia, o egoísmo e o fingimento
ocupavam o lugar da confiança e da honestidade. (ORTEGA, 2002).
Em Roma, segundo Ortega (2002), a distância existente entre o discurso
filosófico sobre a amicitia e a prática social da amizade é maior do que na Grécia,
onde a teoria filosófica da philia – especialmente com Aristóteles que visava uma
descrição fenomenológica, uma tipologia das formas da philia na polis – estava
em correlação com a prática da amizade na sociedade helênica. Nessa mesma
linha, o autor salienta que é possível encontrar em Cícero (1993) o primeiro
18 Sobre o assunto é importante a construção de Foucault que aponta para uma “nova/outra eróti-
ca”, substituidora da erótica grega dos rapazes. Essa erótica se apoia e apresenta o matrimônio
como forma de vida, relegando o Eros ao vínculo conjugal. Essa nova realidade erótica se constitui
em torno da relação recíproca e simétrica do homem e da mulher, apontando a virgindade como
valor crescente, como estilo de vida e forma de existência mais elevada, e da união perfeita que
pretendem atingir. Sobre o assunto é importante a leitura de FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade
e política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2004; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
23
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
discurso sobre a amizade, no qual a distância existente entre reflexão teórica
e prática social é quase incomensurável. Posteriormente, os grandes discursos
sobre a philia/amicitia são personalizados (discursos epitafiais do luto pela perda
do amigo, como encontramos em Cícero, Agostinho e Montaigne, entre outros),
existindo um abismo insuperável entre eles e a prática social da amizade, o que
leva a hiperbolizar o caráter utópico-idealista desses discursos.
Assim, não obstante o caráter de “benefício mútuo” da amizade romana,
com seus consequentes resquícios de obrigação para o cumprimento de regras
e para a manutenção da paz social, ela teve, até o fim da República, a função de
regular os conflitos canalizando-os em vias pacíficas. Cumprindo essa missão a
amicitia preservou o status da patria potestas, assim como estabeleceu vínculos
entre as diferentes famílias. Para alcançar tal intento foram definidas regras e
valores, no interior do sistema de confiança (fides) e favor (officium), parte funda-
mental da virtude (virtus) e da dignidade (dignitas) do senhor romano. O código
da virtus impunha uma regra de reciprocidade, na qual cada ato de amizade
devia ser correspondido no futuro. (ORTEGA, 2002).
Assim, na base da teoria da amizade ciceroniana se encontrará a con-
córdia,19
dando relevo à philia grega no papel de fundamento do Estado. A con-
córdia se constituiria na harmonia resultante da rivalidade cuja principal função
de regulação e facilitação era atribuição da Amicitia. Porém, se a concórdia vira
discórdia, como acontecerá no fim da República, a amicitia já não serve como
instância pacificadora, tornando-se fonte de conspiração. É nesse contexto que
se deve situar a teoria da amicitia de Cícero. (ORTEGA, 2002).
Para Cícero os tipos de amizade estão divididos da mesma maneira que
em Aristotéles. Assim, também na teoria ciceroniana o prazer e a utilidade apa-
recem como causa primeira da amizade. Em um segundo plano, como uma re-
lação ideal e perfeita vem a amicitia vera, ou amicitia perfecta, que corresponde
à teleia philia aristotélica. Nesse sentido Cícero (1993, p. 26) ressalta que “só
entre os bons pode haver amizade”. E completa: “nisso não exagero, como o
fazem aqueles que tratam de tais questões com sutileza, verdadeira talvez, mas
pouco útil ao bem de todos: negam, de fato, que um homem possa ser bom se
não for sábio. Seja assim, mas consideram uma sabedoria que nenhum mortal
pode alcançar”.
Nessa mesma linha de raciocínio, Cícero afirma que a Amicitia vera exis-
te só entre homens bons e pode ser definida como “o acordo perfeito de todas
as coisas divinas e humanas, acompanhado de benevolência e afeição, e creio
que, exceto a sabedoria, nada de melhor receberam os homens dos deuses”.
(CÍCERONE, 1993, p. 27) Esse “acordo perfeito” nada mais é que o consensio.
19 Quando prestamos um serviço ou nos mostramos generosos, não exigimos recompensas,
pois um préstimo não é um investimento. A natureza é que inspira a generosidade, por isso acr-
editamos que não se deve buscar a amizade com vistas ao prêmio, mas com a convicção de que
esse prêmio é o próprio amor que ela desperta. (CÍCERONE, 1993).
24
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
A noção de consensio, acordo ou consenso, é importante para o presente
debate, pois já evoca uma noção de amizade com um forte embasamento polí-
tico e moral mais do que metafísico, que se adapta à realidade sociopolítica da
sociedade romana. Essa amizade só é possível entre “homens bons” [...]; ele
acrescenta que não se refere aos sábios como faziam os estoicos, mas aos bons
homens no sentido da experiência concreta na sociedade romana, possuidores
de uma sabedoria político-prática ligada à responsabilidade no Estado. Ou seja,
homens reconhecidos como virtuosos (virtus) na sociedade romana. (ORTEGA,
2002, p. 51-52).
Ortega vai além ao enfatizar que o fundamento da amizade romana reside
na virtus dos parceiros que possui, porém, um caráter diferente da virtude grega
(arete), manifestando-se na obtenção de excelência pessoal e na glória pela rea-
lização de grandes ações ao serviço do Estado romano. O nobre romano pratica
as grandes ações para a República, que o reconhece pública e eternamente
através da gloria. A virtude civil está, na base da noção ciceroniana da amicitia,
subordina a vontade individual dos amigos aos interesses do Estado.
A noção romana de virtude muito bem expressada nos textos de Cícero
o levam a colocar o Estado, a patria, acima da amizade. Essa afirmativa pode
ser corroborada na observação da questão do conflito entre os deveres com o
Estado e com o amigo, tema introdutório dos limites da amizade.20
Ao contrário
dos filósofos gregos que colocavam os deveres com o amigo acima dos deve-
res com a polis (tal se dá pela análise e pela verificação da posição superior
que desfrutava a philia em relação a justiça), Cícero defende os deveres com o
Estado como sendo superiores aos deveres com o amigo. Sua noção de virtus
e de bom implica concordar com o Estado: é imoral, “desonroso”, apoiar um
amicus contra patriam, a lei ciceroriana da amizade exige que os amigos façam
o que é “honroso” (honesto).21
Isso se traduz, segundo seu ideal de virtude, na
realização de grandes ações para o Estado. Um vir bonus nunca se oporia à res
publica. (ORTEGA, 2002).
Consequentemente, pode-se avistar na amicitia romana a preponderân-
cia dos interesses do Estado sobre o interesse dos amigos, o que por si só difere
essa da philia grega. Nesse sentido é possível afirmar que foi talvez a primeira
mudança nas relações de amizade: o conceito de “outro” se subordina ao con-
ceito de Estado. A amizade começa a perder terreno e seu princípio ético aos
poucos é substituído pelas garantias oferecidas pelo direito positivado. Desse
assunto se ocupará o próximo item.
20 Nesse sentido é importante a leitura de CICERONE, Marco Tulli. I doveri. Saggio introdutivo
e note di Emanuele Narducci. Traduzione di Anna Resta Barrile. 1º ed. Milano: Libri e Grandi
Opere, 2004.
21 “[...] uma vez que os laços da amizade nascem da estima pela virtude, é difícil que a amizade
sobreviva se não permanecermos na virtude.” (CICERONE, 1993, p. 59).
25
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
1.4 As relações entre philia, amicitia,
confiança e justiça: do moral ao legal?
Nesse contexto, não se pode perder de vista que durante toda a Antigui-
dade grega se manteve, como foi ressaltado, um vínculo estreito entre amiza-
de e justiça embasador da configuração da philia como um fenômeno político.
Na Grécia arcaica, é possível encontrar uma noção de justiça (dike) própria de
uma sociedade aristocrática, que poderia ser traduzida como ajudar/beneficiar
os amigos e prejudicar os inimigos. Essa forma de justiça era regulada e admi-
nistrada pelos hetairoi.22
Porém, com a passagem para a era clássica e com o surgimento da de-
mocracia, tanto a justiça como a amizade sofreram transformações e foram re-
definidas. A partir desse momento, os sentimentos de amizade, a igualdade de
direitos e a comunidade da justiça existente nos pequenos grupos constituídos
como heterias, são deslocados para a sociedade (demos) como um todo. Como
consequência, cada cidadão torna-se um amigo e a igualdade (isonomia), restri-
ta até esse momento às heterias, pertence ao conjunto dos cidadãos.
Assim, na transição da velha noção de justiça para a nova (descrita por Pla-
tão como harmonia e proporção na alma e na polis), a noção de amizade fornecia o
elemento de igualdade de direitos (isonomia). Com isso, a amizade é coextensiva
da cidadania, e todos os cidadãos são, em princípio, amigos entre si. Ou irmãos?
Pois, Aristóteles estabelece, como já visto, uma proximidade entre fraternidade e
camaradagem (heteria) por um lado, e entre fraternidade e democracia pelo outro.
A amizade entre irmãos é próxima da camaradagem precisamente pela igualdade.
Igualdade política é igualdade entre irmãos. (ORTEGA, 2002).
Justamente nesse sentido, Aristóteles afirmava que os verdadeiros ami-
gos não têm necessidade de justiça. Mas o que ele quer dizer com isso? Da
análise do texto se depreende que a afirmação aristotélica diz respeito ao fato
de que a virtude da justiça existe para resolver as diferenças (os conflitos) entre
os homens. Desse modo, a vida na polis abre uma série de possibilidades dife-
renciais: diferenças de comportamentos, de ideias, quanto à propriedade ou a
distribuição dos bens, diferenças étnicas, etc.
Nestes casos, se faz necessário a resolução das diferenças/conflitos e a
justiça pode ser acionada enquanto virtude do meio-termo, ou seja, possibilidade
de equilibrar as diferenças entre o excesso e a falta. Assim, o recurso à justiça
acontece enquanto meio de reconhecimento das diferenças ou da desproporcio-
nalidade.
22 Os hetairoi constituíam a cavalaria de elite do exército de Alexandro Magno. Eram formados
por esquadrões de 200 a 300 soldados e conhecidos por suas interessantes e bem organizadas
estratégias de guerra.
26
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
Porém, a verdadeira amizade não se constitui pelas diferenças e sim pe-
las semelhanças. O similar entre os indivíduos considerados entre si verdadeiros
amigos é o ser bom de ambos. Claro que pode haver indivíduos de bondades
concretas diferenciadas, assim como há muitos triângulos concretos diferentes
entre si. Isso, todavia, não abala a semelhança que caracteriza a vontade ou
a triangularidade. Tanto um atributo quanto outro se assemelha, porquanto se
instituem por aquilo que há de comum em meio às diferenças – a bondade ou a
triangularidade. A bondade não se apresenta nem como excesso nem como falta
e também não é meio-termo. Por isso, certamente, a bondade não se situa no
campo da justiça. (ALBORNOZ, 2010).
Sem sombra de dúvidas, existe uma relação entre amizade e justiça, uma
vez que ambas se dão entre as mesmas coisas, referem-se às mesmas pes-
soas, e aumentam e diminuem na mesma proporção.23
O mesmo se dá quanto a amizade e a política. Considerando que em
Aristóteles o objetivo da política é “produzir amizade” é possível observar a exis-
tência de uma relação fundamental entre amizade e política, expressa igualmen-
te no conceito de amizade civil (politike philia), que uniria todos os cidadãos da
polis. Assim, segundo Aristóteles, o modelo familiar e, por conseguinte, pré-po-
lítico oferece a base, o fundamento, a origem, a estrutura e a forma às relações
políticas e de amizade. A família, o oikos, no entanto, pertence à esfera privada,
que é regida pela necessidade e a violência, em paralelo a esfera política, ao
mundo público como espaço da liberdade, da contingência, da ação. O mesmo
movimento que politiza a amizade, ao ligá-la à justiça e à política, a despolitiza,
ao vinculá-la às estruturas pré-políticas da família. (ORTEGA, 2002).
Essa lógica aristotélica que vincula a amizade e a política também é em-
pregada para tratar da amizade nas relações de fraternidade, uma vez que ba-
seada na consagração da amizade à democracia. Nesses termos, a politeía é um
assunto de irmãos (tôn adelphôn), porém a fraternidade não é política, quando
adota como condição a supressão das diferenças e da pluralidade (consideran-
do todos os indivíduos como iguais), pois nesses casos se anulam as condições
do político. Por outro lado, a amizade se encontra mais voltada para o mundo e
por isso é considerada um fenômeno político.
A lógica aristotélica aproxima a amizade entre irmãos das mencionadas
relações de camaradagem (heteria). Tal se dá por que essas relações de heteria
possuem grandes chances de se desenvolverem entre irmãos, visto que, eles
são iguais, normalmente estão na mesma faixa etária, e são semelhantes em
seus sentimentos e em seu caráter. Assim, existe uma relação na polis entre
23 Em todas as espécies de amizade entre pessoas diferentes é o principio da proporcionali-
dade, como dissemos, que igualiza as partes e preserva a amizade; na forma política de am-
izade, por exemplo, o sapateiro obtém pelos sapatos que faz uma retribuição proporcional ao
valor de seu trabalho, e o mesmo principio se aplica ao tecelão e a todos os artesões de um
modo geral. (ARISTÓTELES, 1996).
27
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
política-amizade-democracia-fraternidade-camaradagem, que em uma pretensa
repolitização da amizade, a despolitizaria. (ORTEGA, 2002).
Por outro lado, no epicurismo, a amizade representa um afastamento da
política. A amizade se desenvolve num contexto individual e se constitui antes
como fenômeno moral do que político. A perda do significado político da philia
é resultado da diminuição da importância da polis. A ideia de amizade como fe-
nômeno político só pode ser possível em um mundo em que a ação política dos
indivíduos é eficaz, o que não acontecia na época helenística, com a passagem
da polis para o império. (ORTEGA, 2002).
Já na sociedade romana, a amicitia deixa de ser o vínculo social por exce-
lência passando a designar um tipo de relação social entre outras. Desse modo,
o lugar da philia é ocupado pelo consenso, vínculo político básico. A política não
é mais baseada na amizade e até, em algumas relações e em determinados
momentos, pode ser sua antítese. O consenso torna possível a existência da
amicitia e o exercício da virtude; sem consenso a amizade só pode existir como
um afastamento da política. Com consenso o lugar/papel do terceiro enfraquece.
Porém, se faz necessária a criação de mecanismos como a confiança24
(a fides) para fins de garantir o cumprimento das obrigações advindas da rela-
ção com um mínimo de honestidade. Nesse sentido, Resta (2009, p. 52-53) de-
monstra como ocorre essa ruptura no texto aristotélico fixando o ponto exato no
qual a amizade perde sua importância na estruturação das relações fazendo-se
necessário o uso de outras categorias, dentre elas e principalmente a confiança
(fiducia). Assim:
un noto testo di Aristotele, tratto dall’Etica nicomachea (1162b, 20-35),
ci mostra meglio di qualsiasi saggio di teoria sociale il gioco della fidu-
cia e ci aiuta a disverlarne la patina di opacità. Aristotele racconta di
quando l’amicizia si dissipa in più dimensioni e comincia a rappresenta-
re dentro di sé tutte le forme delle relazioni sociali; accade ad esempio
che l’amicizia scopra l’utile concreto degli amici; quando si è amici in
funzione dell’utilità (e non il contrario) accade che la dissimmetria in-
tervenga a deludere quella quota, spesso crescente, di utile che ci si
aspetta dall’amico. La delusione travolge l’amicizia e la trasforma nel
luogo del conflitto e della re-criminazione.
O mesmo autor salienta que o texto guia pelo lado opaco da vida cotidiana
no qual os sentimentos são expostos a possibilidade de riscos. Nesse interregno
24 Numa tentativa de definir a amizade Donolo (2009, p. 2), afirma: “fidúcia prima de tutto è
um richiamo a stare attenti, a non abassare la guardia. La concessione di fiducia è un esercizio
rischioso, quindi la concedono facilmente i fessi difficilmente i furbi. Così intanto il mondo si ordi-
na intorno a questa razionalità di scopo di bassa lega. In un certo paese, che conosciamo bene
perchè ci abitiamo, questa dicotomia è basilare: come se fiducia stesse le vertice del monte i cui
due versanti dividono i furbi dai fessi.”
28
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
a amizade e a confiança se distanciam e a ética deixa lenta e silenciosamente o
seu lugar ao Direito (e por conseguinte, o papel do terceiro juiz nasce e se forta-
lece). Tal se enfatiza na constatação de que amizade e Direito têm uma relação
complexa no discurso aristotélico:25
“si può pensare che, come il giusto è di due
specie, non scritto (àgraphon) e scritto nella legge (katà nòmon), anche l’amicizia
che tende all’utile sia di due specie, morale (etikè) e legale (nomikè)” . (RESTA,
2009, p. 54).
Na amizade moral não temos um “pacto explícito”, nela a confiança existe
e é subentendida.26
A confiança, aqui, tem a função de “mediação moral”, não
sendo necessária uma terceira “parte” para garantir que a comunicação entre os
amigos flua de modo tranquilo. O risco de desilusão quanto às expectativas não
cumpridas a partir da relação é zero e por isso, como já dizia Aristóteles (2005),
referindo-se a amizade moral: se os homens são amigo não há existe necessi-
dade de justiça.
O êxito do discurso aristotélico nos mostra que entre a amizade e Justiça
existe uma relação de inclusão no sentido de que a segunda torna-se supérflua
quando a primeira é verdadeira e desinteressada. Por conseguinte, quando exis-
te amizade o papel desempenhado pelo terceiro desapareceria. Infelizmente,
isso não basta: a ética da amizade é aquela ética de intenções, de postura ética
adotada por um amigo que dá e recebe. A confiança se coloca na intenção e ela
diferencia a amizade verdadeira27
daquela dita interesseira. Quando a confiança
se esvai, quando as expectativas não são cumpridas o Direito entra em ação e
a confiança se tornará influente para as questões a ele pertinentes, mas apenas
um detalhe no concernente a relação de amizade. Assim,
25 Essa também é a opinião de Ota Leonardis quando salienta: “il diritto intrattiene rapporti com-
plicati com la fiducia”. (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 121).
26 “Depois de concedida a amizade, é preciso haver confiança; é antes que se deve fazer um
julgamento. [...]. Alguns contam ao primeiro quem veem o que deveria ser confiado apenas aos
amigos, e despejam em ouvidos alheios o que lhes queima a língua. Outros, ao contrário, temem
abrir-se até mesmo com os amigos mais caros e, como se não pudessem eles mesmos com os
amigos ser os seus próprios confidentes, mantêm encerrados no fundo da alma todos os seus
segredos. É preciso rejeitar ambas as atitudes: é um erro não confiar em ninguém. Bem como
confiar em todos; direi que, num caso nós agimos da maneira segura, e no outro da maneira mais
honesta.” (Sêneca, 2007, p. 31).
27 “[...] um modelo ideal de amizade perfeita, teleia philia/ vera amicitia, em que o amigo aparece
como um outro eu, um ideal de perfeita unanimidade, de completa união espiritual e moral, de
aperfeiçoamento recíproco. Essa noção de amizade se define pelo seu caráter particularista,
pela sua raridade (só é possível entre poucos), quase pela sua impossibilidade, constituindo
antes um ideal regulativo do que uma relação real, o que sem dúvida, a afasta da sociedade
sociopolítica concreta.[...] Quanto mais íntima, constante e afetiva é uma amizade, menos são
as pessoas com as quis podemos ter tal relação. É, afinal de contas, uma questão de tempo e
energia, ambos objetos escassos. Quanto mais exclusiva e íntima é uma amizade, em outras
palavras, quanto mais se aproxima do ideal aristotélico de amizade perfeita, mais transcende a
estrutura social circundante e menos se adapta para fornecer a base da sociedade”. (ORTEGA,
2002, p. 55-56).
29
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
sembrerebbe in tal caso che si affidi al diritto perchè si è persa la fiducia
in altre istanze di controllo della correttezza dei comportamenti e del
rispetto degli accordi – istanze morali, di deontologia professionale, di
reputazione ecc. – e faccia presa un senso diffuso di irresponsabilità,
tale per cui chiunque, individuo e sopratutto organizzazione, appena
può ne approfita [...] (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 122).
É nesse sentido que na amizade legal relegamos ao Direito e ao terceiro
a garantia do cumprimento das obrigações fixadas o que na amizade moral não
se faz necessário, pois o descumprimento está fora de cogitação pela implicação
ética e, moralmente, aceita pelos amigos. Nesse momento que a amizade passa
a ser juridificada e iniciamos a trabalhar com a noção de confiança. Quando a
expectativa de confiança no cumprimento das obrigações do outro não se con-
cretiza o Direito intervêm para fins de tornar suportável a desilusão e resolver
os conflitos dela proveniente.28
Desse modo, confiar na palavra do outro é se
autoexcluir do sistema jurídico.29
Luhmann (2002) afirmava que o Direito se implanta numa sociedade que
já conheceu o gosto da confiança moral. Portanto, assim como a amizade é um
conceito político integrante da comunidade a confiança também o é. Trata-se de
dois elementos importantes que tornam possível a existência comunitária. A cri-
se que envolve a presente afirmativa se dá, justamente, por que tanto um quanto
outro já não possuem como base a ética e a moral e sim a lei, o direito positiva-
do.30
Desse modo, a amizade vem traduzida, atualmente, como solidariedade
e confiança. Ambas se fazem garantir especialmente no âmbito contratual pela
boa-fé.31
Por isso é possível afirmar que “la fiducia giuridificata avrà bisogno di
codici binari: diventerà bona perchè, e mentre, dovrà rapportarsi alla mala fides.”
(RESTA, 2009, p. 60).
O que se percebe é que nem a amizade e, por consequência, nem a
confiança se mantém tal como concebidas nas sociedades gregas e romanas
de outrora e sim como princípios jurídicos cuja segurança e garantia de respeita-
28 “in sintesi, in particolare per gli usi della sociologia, la fiducia può essere definita come
‘n’aspettativa di esperienze con valenze positive per l’attore, maturata sotto condizioni di
incertezza ma in presenza di un carico cognitivo e/o emotivo tale da permettere di superare
la soglia della mera speranza’”. (BAGNASCO, 2011, p. 47).
29 Sobre o tema é importante a leitura de RICCOBONO, Francesco. Fidúcia, fede, diritto. In:
Parolechiave: nuova serie di problemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre
2009, p. 134.
30 “La visione di uma società priva di diritto poichè costruita interamente sulla fiducia e sulla
solidarietà, pur nel suo inegabile fondo di verità, è evidentemente un espediente teorico per far
affiorare la contraddizione tra l’apertura dei rapporti fiduciari e la determinatezza dei rapporti giu-
ridici. Essa, però, detiene pure il merito di fissare le precondizioni sociali per l’instaurarsi di una
pratica giuridica.”(RICCOBONO, dicembre 2009, p. 134).
31 Boa fé significa “reciproca lealtà, chiareza, correteza” habilidades necessárias para implantar
uma congruente comunicação lingüística antes de ser jurídica além de satisfazer “uno spirito di
cooperazione per l’adempimento delle reciproche aspettative”. (BETTI, 1971, p. 390-391).
30
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
bilidade não se dá mais com base em relações éticas/morais, mas pela garantia
estatal do judiciário. Nesse ínterim, nasce a necessidade de uma terceira parte
que determine o direito aplicado ao caso concreto ou então que auxiliem os con-
flitantes a se comunicarem.
A confiança está em crise. Essa crise possui dois aspectos fundamen-
tais: primeiramente, verificamos uma crise de confiança horizontal observada
nas relações existentes entre os cidadãos de modo a identificar o desmantela-
mento de laços comunitários, dentre eles e, por exemplo, os laços de amizade
e de solidariedade; posteriormente se verifica uma crise de confiança vertical,
ou seja, um descrédito evidente e crescente entre o cidadão e as instituições as
quais ele se conecta, dentre elas a jurisdição. O primeiro aspecto, pertinente as
relações horizontais e a confiança moral/ética somente poderá ser recuperado
a partir da implantação de um novo paradigma nas relações entre os indivíduos.
Já o segundo aspecto, quanto as relações de verticais observa-se a busca pela
aplicação da lei e do Direito para ver garantidos os seus princípios.
A principal consequência da perda de confiança enquanto relação ética/
moral é o recurso ao Direito e ao judiciário (o terceiro). Assim, o abuso do direito
e a juridificação do social contribuem fortemente para a entropia da confiança.
Uma comunidade que usa preferentemente o Direito para resolver seus conflitos
é menos confiável e menos capaz de produzir confiança.
Perdeu-se a conotação antiga da amizade e da confiança, mas a relação
política delas nascida se manteve ainda que garantida por códigos e leis. Mo-
dernamente, existem movimentos que buscam resgatar essa conotação ética da
amizade e de todos os seus derivados: confiança, solidariedade, fraternidade,
alteridade. Quando esses movimentos falham, o recurso é se voltar para o
Judiciário e partir ao juiz que, desenvolvendo seu papel de terceiro na relação
conflituosa, decide e diz a última palavra. Esse é o debate que se desenvolve a
seguir.
31
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
O JUDICIÁRIO EM UM
CONTEXTO DE
DEMOCRATIZAÇÃO DE
DIREITOS: QUAL O PAPEL
DO JUIZ COMO TERCEIRO
NA RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS?
2.1 Do conflito interpessoal ao conflito
do próprio Judiciário: por onde passamos?
O convívio social reiterado naturalmente oportuniza situações de discor-
dâncias ou desentendimentos, que podem resultar, muitas vezes, em um conflito,
entendido como a frustração de expectativas. Como observa Dahrendorf (1991),
o conflito surge quando as expectativas em relação aos papéis que devemos de-
sempenhar na sociedade e que o próprio Estado tem para com os cidadãos não
são atendidas. Assim sendo, a realização dá lugar à frustração, o que permite à
ascensão do conflito.
Salienta-se, porém, que, conforme ensinamento de Freund (1995), há
que se atentar para a diferença das espécies de conflito, quais sejam a luta e o
combate, haja ou não o emprego de meios violentos ou regras para se chegar
2
32
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
ao vencedor. Para o autor Freund (1995), o conflito consiste no enfrentamento
de dois indivíduos ou grupos da mesma espécie, os quais se chocam proposi-
talmente a fim de afirmar, manter ou restabelecer um direito. Faz menção, tam-
bém, a alguns requisitos essenciais para a sua caracterização, tais como a) o
enfrentamento é voluntário; b) os antagonistas dever ser da mesma espécie; c)
a intencionalidade conflitiva implica em uma vontade hostil de prejudicar o outro
(diferenciando-a de agressividade); d) o objeto do conflito é, em regra, um di-
reito; e) o conflito trata de romper a resistência do outro e, f) há uma relação de
forças que podem ser simbólicas.
Note-se que para se configurar o conflito não basta que exista discordância
de opiniões entre dois indivíduos ou grupos. É necessário que os envolvidos quei-
ram impor ao outro a sua vontade, o que cada um entende como sendo o melhor
desfecho ou mais adequado como solução para o conflito. Há a intenção de rom-
per com a resistência da outra parte intencionalmente, a fim de impor a sua vonta-
de. O conflito é marcado, assim, pela dualidade amigo/inimigo, em que o terceiro
é excluído, pois as relações sociais se estabelecem no âmbito desta bipolaridade
em que as vontades são dirigidas diretamente para um e outro apenas.
E aqui se pode inserir o processo jurisdicional, pois a lide, tradicional-
mente conceituada como conflito qualificado por pretensão resistida, gera um
combate no seu aspecto sociológico, sendo o choque de vontades entre autor e
réu. Não há terceiros em conflito, apenas como intervenientes. No processo há
dois adversários que lutam sem o emprego da violência física (embora possa ser
simbólica), observando regras antes definidas, com a pretensão de fazer valer a
sua vontade sobre a do outro.
Assim sendo na dualidade amigo/inimigo que se configura no processo,
o juiz é o terceiro exterior chamado a intervir para resolver o conflito. Freund
(1995) distingue três tipos de terceiro em relação ao conflito: imparcial, que in-
tervém para julgar ou mediar; tertius gaudens, não está envolvido diretamente
no conflito, mas dele tira proveito; divide et impera, intervém e alimenta o conflito
para manter uma posição exterior, porém dominante. Ao se fazer a passagem
do estado de natureza para o estado agonal, que se caracteriza como aquela
situação em que se visa eliminar a violência da luta e do combate por formas
conflitivas mais civilizadas, tais como a competição e o concurso, chega-se a
um Estado de juízes que subordina o conjunto da vida dos indivíduos a leis e re-
gras e busca o procedimento jurisdicional para a solução das rivalidades Freund
(1995). Evidencia-se, então, o papel do juiz na resolução de conflitos, que tem o
monopólio legítimo da decisão vinculante, porém como lembra Spengler (2010,
p. 285)
o lugar do juiz entre o conflitantes é uma questão complexa, uma vez
que ele não se deixa encerrar na fácil formula da lei que assegura a
distancia das razões de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito
que ele decide, pronunciando a ultima palavra, entretanto um Sistema
33
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
Judiciário chamado a decidir sobre tudo e com poderes muitas vezes
discricionários e pouco controláveis, é o lugar que ocultas cotas altas
de irresponsabilidade.
Enquanto terceiro interveniente no conflito, o juiz deve ser imparcial, bem
como atuar no processo como instrumento de democracia, a ponto de Garapon
(1997) afirmar que a democracia suscita o conflito, sendo essa uma das diferen-
ças que a distingue do sistema totalitário. No mesmo sentido, Spengler; Biten-
court; Turati (2012), dizem que somente em uma sociedade democrática é pos-
sível que existam conflitos, uma vez que em um sistema de governo totalitário
não haveria como se disseminar qualquer tipo de movimento ou embate gerado
pela autonomia e liberdade de expressão entre os indivíduos da sociedade, pois
qualquer divergência ou discordância entre os grupos seria reprimida por meio
de força, haja vista que representaria uma ameaça ao sistema.
Assim sendo, a expansão dos regimes democráticos e a transacionaliza-
ção dos mercados possibilitou uma conscientização de direitos que, numa so-
ciedade de conflito e embate, sempre que não são atendidos são reivindicados.
No caso brasileiro, a reivindicação ocorre perante o Poder Judiciário, especifi-
camente, uma vez que não se tem a cultura jurídica de meios complementares
para o tratamento de conflitos.
Acontece, porém, que o Estado, no seu processo de democratização con-
feriu aos cidadãos uma gama de direitos que não tem condições de efetivar inte-
gralmente, o que gera uma frustração de expectativas em relação às promessas
da democracia. Neste sentido, o próprio ente estatal que confere direitos e que
deve garanti-los, gera o conflito ao frustrar a sua concretização.
Dessa forma, o que se viu – e ainda se vê - no Brasil em relação à frustra-
ção de expectativas, é o que Santos (2007) chamou de curto-circuito histórico.
Ao mesmo tempo em que se procurou constitucionalizar e positivar direitos, não
houve o lapso temporal suficiente para a adaptação social e estatal das medidas
necessárias a concretizá-los. O que aconteceu foi uma democratização instan-
tânea de direitos, um momento pontual na história do país em que foram garan-
tidos direitos a uma sociedade não adaptada, acostumada, até então, a uma
realidade política e jurídica oposta, pelo menos, formalmente. De outro lado,
porém, um Estado despreparado para lidar com a reação dos cidadãos a esse
novo modelo, resultando assim em um desajuste jurídico-social.
Em contrapartida, conforme ensina o autor Santos (2007), em países cen-
trais, nos quais a mesma democratização ocorreu de forma natural, ou seja, ao
longo do tempo na história, essas garantias e novos direitos não impactaram
a sociedade e os entes estatais da mesma forma como nos países periféricos.
Assim, nesse novo cenário de democratização brasileira, ocorreu o inverso do
que normalmente ocorre quando há um lapso de tempo natural, e, portanto, uma
transição não tão impactante. O que ocorreu foi que a sociedade teve que se
34
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
adaptar ao novo modelo democrático e não o contrário, trazendo consequências
para a atuação jurisdicional.
A par dessa questão do alargamento dos direitos democráticos, a comple-
xidade social é marcada ainda pela transnacionalização do mercado que gera
conflitos a níveis globalizados, evidenciando a ineficácia do Poder Judiciário
para o tratamento desses conflitos. Como refere Faria (2001), ele foi organizado
para atuar dentro de limites territoriais precisos e no contexto da centralidade da
atuação estatal, bem como em tempo diferido e ritualizado, o que é incompatível
com a economia globalizada em que a produção32
e o consumo têm proporções
massificadas e transnacionais, gerando igualmente a massificação da tutela ju-
rídica. Fica, assim, espaço para formas de atuação não-oficiais para a resolução
de conflitos que tratem de questões supra-estatais e/ou coletivas. O Poder Ju-
diciário não mais se identifica como poder estatal para atuação nestes conflitos,
colocando-se em xeque suas funções instrumental e política,33
evidenciando-se,
sua ineficiência. Tais circunstâncias são apontadas por alguns autores como a
crise do Poder Judiciário, que pode ser identificada como crise de identidade e
de eficiência. A primeira por que há certo embaço do papel judicial enquanto me-
diador central de conflitos, conforme Spengler (2010) e a segunda em razão do
descompasso entre a oferta e procura pelos serviços judiciais, tanto em termos
quantitativos quanto qualitativos, segundo Faria (1995). E isto remete ao proble-
ma do acesso à justiça na forma como abordado por Cappelletti; Garth (1988,
p.13), ao referirem que o “o acesso não é apenas um direito social fundamental,
crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central
da moderna processualística”.
Assim sendo, cabe ao Estado e ao Poder Judiciário a missão multifa-
cetada de possibilitar o acesso à justiça e dirimir conflitos do mercado global,
concretizar direitos fundamentais positivados internamente com o advento da
democratização política, a partir de uma cadeia normativa que tem dificuldades
de compreender e interpretar, uma vez que a racionalidade hermenêutica é di-
versa daquela com a qual estava acostumado a trabalhar.
O Estado, ao legislar, está cada vez mais obrigado a levar em conta as
variáveis internacionais que se cruzam em cadeias normativas com as legisla-
ções internas, regulamentadoras dos conceitos abertos da constitucionalização
dos direitos democráticos. As regras do jogo do Estado Liberal Ditatorial são,
32 A respeito do modo de produção no século XX, Juan Ramón Capella diz que: “Há surgido el
mundo de la ciencia al servicio de la producción y el mundo del crecimiento cuantitativo de la
producción as servicio del capitalismo. O, por no decirlo al revés: la expansión y el reforzamiento
de las relaciones de domínio en su forma capitalista han exigido la masificación de la producción,
y ello, a su vez, há puesto el esfuerzo cientifico directamente al servicio de las actividade produc-
tivas, orientándolo e impulsándolo para garantizar tal expansión y tal reforzamiento” (CAPELLA,
2006, p. 160).
33 São funções do Poder Judiciário: instrumental, política e simbólica. Sobre o assunto ver FAR-
IA, 2006.
35
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
implicitamente, modificadas pela complexidade normativa do Estado Liberal De-
mocrático de Direito, sendo necessário um exercício construtivo da interpreta-
ção e aplicação da lei, o que fragiliza o papel do Poder Judiciário na resolução
de conflitos, pois nem sempre pode concretizar direitos autonomamente. Para
Faria (1998), esta impossibilidade de eficácia plena de muitas sentenças e, por
conseguinte, das próprias normas e leis em que se fundamentam, depende tanto
do empenho quanto da eficiência com que o Executivo cumpre suas obrigações,
em matéria de políticas públicas, o que pode reduzir o Judiciário a uma posição
secundária não independente se acaso essas políticas não forem formuladas e
implementadas a contento.
Na tentativa, então, de cumprir suas funções, o Poder Judiciário se vê na
contingência de buscar outras formas de atuação, chegando ao que se costuma
chamar do fenômeno da judicialização da política que decorre da incapacidade
do Executivo e do Legislativo em legislar e desenvolver políticas públicas ade-
quadas às exigências da crescente globalização econômica.
A redefinição das relações entre os Poderes estatais, colocando o Ju-
diciário no espaço da política é, segundo Vianna et. al. (1999), facultada pelo
próprio Estado ao lhe confiar a guarda da vontade geral, encerrada de modo
permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. O autor,
inclusive, faz uma distinção nesta forma de intervenção do Judiciário na política
em judicialização da política e judicialização das relações sociais. Entende que
a primeira ocorre por meio do controle abstrato da constitucionalidade das leis,
conforme Vianna et. al. (1999) e a segunda por um contexto em que o social
desestruturado, na ausência estatal, se identifica com a bandeira do direito, que
procura organizá-lo.
A posição de Vianna (1999) sobre a judicialização das relações sociais
remete ao que Garapon (1999), ao discutir as interações entre o juiz e a demo-
cracia, afirma a respeito do Estado provedor. Toda vez que ele se faz mais mo-
desto, os cidadãos buscam justificativa para sua ação nas referências do direito
e não do Estado. As questões de família e diversidade sexual são exemplo para
isto. No Brasil, a ausência estatal quanto às uniões homoafetivas as conduziu ao
Poder Judiciário que de modo gradativo as foi reconhecendo e atribuindo direitos
até se chegar à possibilidade de casamento.34
Vê-se, assim, que o contexto de democratização e expansão de direitos
e de globalização econômica passou a exigir novos contornos para a atividade
jurisdicional, pois o seu modo de produção, vinculado a uma tradição oriunda
dos dogmas do Estado Moderno, vive uma exaustão paradigmática na qual o
juiz, assim como toda a estrutura do Poder Judiciário, estão em conflito.
Conflito este que não se limita, no entanto, às novas formas de produção
do próprio direito, mas sim ao alcance de sua intervenção. Enquanto poder esta-
34 Conforme Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça de 14 de maio de 2013.
36
O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL
tal, o Judiciário tem presenciado a ineficiência da prestação jurisdicional, a qual
deixa espaço livre para outros meios de se tratar os conflitos sociais, na qual
inexiste a figura do juiz.
Trata-se de um direito não-oficial - o direito de produção e a Lex Mercato-
ria, como bem classificou Faria (2001), os quais têm como procedimentos a me-
diação, conciliação e a arbitragem. Assim sendo, da ausência do Estado surge o
pluralismo jurídico. Acontece, porém, que pelo caráter não oficial dessas formas
de tratamento do conflito,35
deve-se observar a questão da eticidade e da coer-
ção. O direito inoficial só é legítimo se for ético e se a coerção não se efetivar
por meio da violência, pois do contrário haverá o que se chama de direito
marginal, ou seja, a manifestação da lei do mais forte que usa da força para
fazer suas regras e interesses.
O direito que assim se estabelece é, na verdade, um antidireito, pois o
monopólio da violência legítima36
é conferido ao Estado e só a ele é dado fazer
uso de instrumentos de coerção. Tais instrumentos podem ser mais ou menos
poderosos, dependendo do tipo de ações violentas que podem acionar ou pelo
tipo de condicionamentos a que tal acionamento está sujeito. (SANTOS, 1988).
Veja-se que no direito oficial o juiz, por meio de sua decisão, realiza o poder polí-
tico de regulamentação da sociedade com o uso da violência legítima do Estado,
de modo que todo o sistema punitivo do direito se justifica desta forma.
O fato é que por meio da atividade jurisdicional, transfere-se o conflito
para o Estado para que o juiz profira uma decisão que, pretensamente, irá re-
solver o problema dos conflitantes. Eis, aqui, a jurisdição, compreendida como a
35 O novo Código de Processo Civil Brasileiro, Lei n. 13.105/2015, contempla a mediação e a conciliação
como etapas do procedimento comum de conhecimento. A positivação destas formas alternativas de trata-
mento de conflitos na codificação processual, no entanto, não garante a sua eficácia enquanto aplicação,
pois se tratam de métodos que demandam cultura específica de aplicação (quem serão os mediadores e con-
ciliadores? Como trabalharão? com que qualidade serão realizadas as sessões de mediação e conciliação?)
e consciência social dos cidadãos e juízes para a necessidade de repensar o conflito em si.
36 Importante observar que foi com o Estado Moderno que se concretizou o processo civilizador
e o monopólio estatal da violência legítima. O Estado monárquico impôs uma forte repressão
à violência privada e difusa, determinando regras de convivência na corte, domínio das emo-
ções e ocultamento do corpo que contribuíram de maneira significativa para a estruturação da
personalidade em termos de civilidade. Dessa forma, há a contenção da agressividade pela
transferência ao Estado do monopólio da violência legítima, que se exerce por meios repressivos
institucionalizados na lei e na atuação do poder pela imposição de penas. Elias (1994, p. 200),
ao tratar da mudança da agressividade, explica por meio de exemplos concretos do dia a dia
que o Estado foi assumindo o papel de conter os impulsos humanos agressivos, demonstrando
sua força, inicialmente de forma explicita com os enforcamentos em praça pública, depois com
paradas militares, hoje com policiamento ostensivo, de modo que o individuo foi internalizando
o refreamento da violência privada e, como afirma o autor “hoje essa regra é aceita quase como
natural. É altamente característico do homem civilizado que seja proibido por autocontrole so-
cialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia.”. Ainda,
Capella (2006, p. 46), afirma que “el estado detenta a suprema capacidad de violencia; sostiene
la reglamentación social y puede incluso inovarla, mediante la amenaza de la coerción – el dere-
cho es originariamente uma reglamentación coercitiva - ;y subordina a la suya la capacidade de
la reglamentación y de violencia de la sociedad.”.
37
Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet
outorga ao juiz de dizer qual a melhor solução para a situação conflitiva, o que,
em determinados momentos históricos teve sua justificativa ideológica e, até
certo ponto, efetividade, todavia que se mostra superada como única forma de
tratamento de conflitos, como se verá ao longo desta obra.
2.2 Basta dizer o direito para resolver
o conflito?
Para uma análise histórica do papel do juiz na resolução de conflitos,
faz-se um recorte a partir do Estado Moderno, momento que em se publicizou a
jurisdição. Neste período, nos sistemas jurídicos de tradição romano-canônicos,
manteve-se a antiga ideia romana de separação entre julgamento e decisão.
O que não se observou, no entanto, foi que naquela época o direito era regido
pelo sistema do ordo iudiciorum privatorum, um sistema estritamente privado,
em que não se concebia que o juiz – cidadão romano – tivesse poderes para
emitir ordens aos seus concidadãos. A jurisdição era privada e desprovida de
qualquer imperium.
Equívoco histórico que se disseminou na tradição jurídica e que
comprometeu a atividade jurisdicional, colocou o juiz na condição de quem julga,
mas não decide, pois a decisão é um ato de vontade. Assim sendo, perpetuou-
se a ideia de que o juiz pode dizer o direito,37
mas nem sempre pode satisfazê-
lo, principalmente quando a satisfação depende de medidas executivas e
mandamentais.
Entendeu-se que o juiz estava limitado ao ato intelectivo do julgamento,
subtraindo-lhe o ato de vontade inerente à decisão. E, por isso, só podia dizer o
direito, por meio de uma atividade intelectual de subsunção do fato à norma. O
juiz, no entanto, não é mais que a boca que pronuncia a vontade da lei, numa
visão bastante Montesqueniana e errônea do exercício da jurisdição. Montesquieu
restringiu a atividade do magistrado à porta-voz de uma vontade da lei, como se
ela tivesse vontade e o juiz, ser humano que é, fosse capaz de se despir de toda
sua cultura e querer ao exercer sua atividade profissional.
Mas a lei não tem vontade. A lei sequer tem univocidade de sentido. O
juiz, este sim, com toda sua cultura, por intermédio de uma atividade intelectual,
confere sentido à lei e, então, decide. Conhecimento e vontade estão juntos
no exercício da atividade jurisdicional. Mas esta lógica era incompatível com o
absolutismocaracterísticodoEstadoModerno,noqualparagarantiralegitimidade
37 Judges ought to remember, that their office is jus dicere, and not jus dare; to interpret law, and
not to make law, or give law. (Francis Bancon, on line).
O papel do terceiro e as interrogações do conflito social
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  • 3. 3 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil CONSELHO EDITORIAL Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil COMITÊ EDITORIAL
  • 4. 4 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406 Correção ortográfica: Rodrigo Bartz Diagramação: Daiana Stockey Carpes Essere nel Mondo Rua Borges de Medeiros, 76 Cep: 96810-034 - Santa Cruz do Sul Fones: (51) 3711.3958 e 9994. 7269 www.esserenelmondo.com.br Todos os direitos são reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e ex- presso consentimento da Editora. A utilização de citações do texto deverá obedecer as regras editadas pela ABNT. Asideias,conceitose/oucomentáriosexpressosnapresen- te obra são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), não cabendo nenhuma responsabilidade à Editora. Prefixo Editorial: 67722 Número ISBN: 978-85-67722-34-4
  • 5. 5 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet PREFÁCIO INTRODUÇÃO 1 AS ALIANÇAS SOCIAIS BASEADAS NA AMIZADE: É POSSÍVEL LIDAR COM O CONFLITO SEM A PRESENÇA DO TERCEIRO? 1.1 A privatização da relação pública da amizade: é necessária a intervenção do Estado? 1.2 A philia grega era disposição de caráter que desejava o bem do outro? 1.3 A vontade individual dos amigos era subordinada as regras do Estado na amicitia romana? 1.4 As relações entre philia, amicitia, confiança e justiça: do moral ao legal? 2 O JUDICIÁRIO EM UM CONTEXTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DE DIREI- TOS: QUAL O PAPEL DO JUIZ COMO TERCEIRO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS? 2.1 Do conflito interpessoal ao conflito do próprio Judiciário: por onde passamos? 2.2 Basta dizer o direito para resolver o conflito? 2.3 A atuação judicial independente e responsável é suficiente para a resolu- ção da diversificada conflituosidade social? 3 O TERCEIRO MEDIADOR NO TRATAMENTO DO CONFLITO: QUAL É O SEU PAPEL? 3.1 O Papel Social na relação irritante entre indivíduo e sociedade. Onde está o conflito? 3.2 O Papel Sociológico do Terceiro. Como fazer com que um conflito seja construtivo? 3.3 A Mediação no Brasil a partir da Resolução 125/2010 do Conselho Nacio- nal de Justiça. Há tratamento do conflito? CONCLUSÕES REFERÊNCIAS Sumário 5 8 11 11 16 21 25 31 31 37 43 56 56 61 70 75 77
  • 6. 6 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL PREFÁCIO A atuação dos poderes de Estado, incluindo o Judiciário, tem sido alvo de agudas críticas nas últimas décadas. Parte dessas críticas é pertinente, parte não. Parte, delas, têm base em razões fundadas, outra não. Entre as infundadas estão aquelas alinhadas a partir das premissas ul- traliberais (neoliberais) de que a sociedade não seria outra coisa senão um aglomerado de unidades individuais, cada qual interessada em minimizar a dor e maximizar o prazer. Nesse viés, a ação do Estado deveria limitar-se às fron- teiras estabelecidas pelas liberdades individuais e ser útil para o alcance das expectativas e desejos individuais. O Estado não passa de um mal necessário, sendo “excessos” a pretensão dos poderes públicos tentar induzir o proces- so de desenvolvimento, buscar regular e intervir na economia, e oferecer um amplo leque de serviços públicos à custa de significativa carga de impostos. O alvo do ultraliberalismo, como se sabe, é o Estado de Bem Estar (welfare state). A retórica ultraliberal reproduz um conhecido dualismo: explica a política e a sociedade com base na bipolaridade Estado x mercado e público x privado, conferindo prioridade ao segundo polo. Esse enfoque dá sustentação a parce- la importante das críticas aos insucessos estatais. É uma via que não oferece alternativas plausíveis para a democracia, a inclusão social, o empoderamento e a participação dos cidadãos nos assuntos públicos. As críticas pertinentes ao Estado são de outra ordem. Miram o estatismo, ou seja, a exacerbação do estatal na vida social, assim como o seu oposto, o privatismo, a exacerbação dos valores do mercado. Parte-se aqui da premissa de que a vida social não pode ser resumida à bipolaridade Estado x mercado, até porque ambos são fenômenos recentes na história da humanidade. As raí- zes do Estado atual (dos Estados nacionais modernos) remontam ao século XV, enquanto a economia capitalista de mercado assenta-se no processo da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. Interligados, Estado e mercado são polos constituintes da vida das sociedades ocidentais nos últimos séculos, mas a vida em sociedade não se resume a esses polos. Há aspectos fundamentais da vida humana – facetas que se revelaram ao longo da evolução
  • 7. 7 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet da vida humana por muitos milhares de anos – que dizem respeito a outra esfera. Estima-se que o homo sapiens tenha surgido há cerca de 80.000 anos e nossos ancestrais mais remotos, há mais de 4 milhões de anos. Ou seja: em 99% da trajetória humana não houve nem Estado nem mercado. Por isso, o foco exclusivo nas estruturas estatais ou na dinâmica do mercado não al- cança o essencial à vida em sociedade. Amizade, solidariedade, fraternidade, cooperação, comunidade, entre outros princípios, reportam-se a outra esfera da vida humana, a esfera comunal. Trata-se de um âmbito que abrange relações interpessoais não redutíveis à lógica dos poderes instituídos (Estado) nem do interesse privado (mercado). A esfera comunal está articulada à esfera estatal e à mercantil, contudo distinta. Juntas formam o tripé das sociedades ocidentais atuais, nas quais vêm se assistindo o excesso ora de um polo (estatismo) ora de outro (privatismo). Estamos diante do desafio de construir o equilíbrio do tripé, o que requer fortalecer o polo comunitário. O equilíbrio das três esferas (Estado, comunidade e mercado) exclui qual- quer excesso do comunitário, que seria uma espécie de revanche ao estatismo e ao privatismo. A noção de equilíbrio, das esferas sociais, leva ao esforço de pen- sar os serviços públicos e o atendimento das necessidades coletivas para além das duas alternativas usuais – a prestação direta pelo Estado ou a privatização. Esse novo olhar (assentado em clássicas lições, que remontam a Aristóteles e passam por uma grande variedade de tradições do pensamento social) nos leva a considerar formas alternativas de Justiça, como a mediação e a conciliação; a recuperar a importância dos serviços de saúde, de educação e de assistência social prestados por instituições comunitárias; a prestar atenção nas formas co- munitárias de comunicação; a reconhecer a relevância política e econômica do terceiro setor, constituído por organizações cooperativas e associativas. Sob esse pano de fundo, a contribuição do livro “O papel do terceiro e as interrogações do conflito social” transborda o âmbito do Direito e ajuda a pen- sar as transformações do Judiciário no contexto mais amplo do Estado e das políticas públicas. O livro, de maneira evidente, é mais uma bem sucedida obra de pesquisadoras e pesquisadores orientados pela Profª Fabiana Spengler a evidenciar o vigor das formas comunitárias, especialmente a mediação, no pro- cesso de renovação do Judiciário. Conforme se mostra, não se trata apenas de desafogar o Judiciário, submetido a um conjunto impressionante de demandas da sociedade: trata-se de conceber “outra cultura, mediante práticas consen- suadas e autônomas que devolvem à pessoa e à comunidade a capacidade de lidar com o conflito inerente a sua existência”. O lento processo de renovação do Judiciário requer, de muitos operadores do Direito, a inteligência, a capacidade e o comprometimento demonstrados pelas autoras da presente obra. Prof. Dr. João Pedro Schmidt
  • 8. 8 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL INTRODUÇÃO A amizade assume importância na organização, manutenção e coesão dos grupos sociais, porém, não existem histórias detalhadas dos vínculos gera- dos a partir dela em nenhuma grande civilização, ocidental ou oriental. Todavia conhecermos textos que refletem grandes amizades como aquela entre Mon- taigne e la Boétie (1999), no qual a relação diz respeito a um sentimento com- plexo e desordenado o que dificulta sua delimitação exata. Porém, mesmo desordenada, a amizade vem sendo usada, politicamen- te, como pacto ou contrato que ultrapassa os limites emocionais e opera como meio de manutenção das alianças sociais firmadas, gerando hipóteses mais adequadas para lidar com os conflitos nascidos de tais relações. Essa seguran- ça quanto ao pactuado se dá especialmente em função de sentimentos correla- tos a amizade como, por exemplo, a fidelidade, a confiança e a gratidão. Porém, aqui se fala de uma fidelidade, uma confiança e de uma gratidão que não são normatizados ou legalizados, que nem mesmo são mencionados, porque compõe o mundo dos sentimentos e não o mundo da justiça. Tudo isso porque, conforme Aristóteles (2004), onde existe amizade não precisamos de justiça. Onde impera a amizade, a boa-fé e a confiança não precisam ser po- sitivadas, garantidas legalmente. Elas fazem parte de um contexto vivido e ex- perienciado pelos amigos. Se amizade deixa de ser argamassa, cimento social, então precisamos das garantias do direito. É nesse sentido que o primeiro capítulo teve como objetivo investigar a amicitia romana e a philia grega como possibilidade de lidar com o conflito pres- cindindo da figura de um terceiro (mediador ou juiz) em função da capacidade existente entre os contendentes (capacidade essa baseada na amizade) de lidar com a desordem conflitiva de maneira mais adequada . Finalmente, a amizade e os seus aspectos políticos foram visitados en- tremeando sua conotação histórica com outras categorias como a justiça e a confiança. Acontece, entretanto, que quando a amizade não é suficiente para a neu- tralização ou tratamento do conflito, faz-se necessária a presença do terceiro
  • 9. 9 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet juiz ou mediador, sendo o primeiro excessivamente demandado eis que se apre- senta como uma figura coercitiva que se coloca no papel de decidir pelas partes, impondo seus comandos aos conflitantes que lhe transferem a responsabilidade pela resolução dos conflitos que não foram capazes de resolver. E vive-se, hoje, em uma época em que o juiz teve de assumir o papel de instância moral da so- ciedade, como afirma Garapon (1999). Esta transferência de responsabilidades não é novidade. Tem sua origem histórica, caso resgatado, no direito greco-romano, mas que, nesta obra, será retomada a partir do Estado Moderno para que se possa compreender a ideia do juiz que diz a lei em nome do Estado e toma para si o monopólio da violência legítima com a pretensão de decidir conflitos. Há de se observar, assim, que não se desconhece a carga etimológica do “resolver” e sua distinção em relação ao “tratar” quando se trabalha com o tema de terceiro e conflitos, mas no capítulo em que se propõe a discutir o papel do juiz na relação conflituosa, faz-se a opção linguística pelo uso da terminologia “resolução de conflitos”. Em termos de sentido, resolver significa justamente de- cidir uma questão, solucionar um problema, o que revela exatamente aquilo que as partes esperam do juiz em relação aos seus conflitos e, não raro, o que o juiz pensa que efetivamente faz ao “entregar” a jurisdição no afastamento ideológico entre mundo fático e mundo jurídico. Em decorrência das pressões centrífugas, da desterritorialização da pro- dução e da transnacionalização dos mercados, percebe-se que o Poder Judiciá- rio tem enfrentado o desafio de alargar os limites da sua jurisdição, modernizar as suas estruturas organizacionais e rever seus padrões funcionais para perma- necer com o status de poder autônomo e independente. Nesse rumo, o Conselho Nacional de Justiça propôs novos mecanismos de tratamento de conflito, fundamentados em uma nova ideia de jurisdição, de uma autorregulação dos conflitos pelo sistema social, na qual se inserem a con- ciliação1 e a mediação. A Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça instituiu a Política de Tratamento adequado de Conflitos, primando pela qualidade da pres- tação jurisdicional como garantia de acesso à ordem jurídica justa. A referida resolução tem por escopo assegurar a todos o direito à solução dos conflitos por meios adequados à sua natureza e peculiaridade. A concretização do reconhecimento, pelo Brasil, de métodos de tratamen- to de conflito como resposta adequada ao conflito decorre da ineficiência das 1 Consoante dispõem Morais; Spengler (2012), a mediação e a conciliação são institutos afins, porém diferentes. A conciliação tem por objetivo chegar voluntariamente a um acordo neutro a partir da participação de um terceiro que intervém, inclusive com sugestão de propostas aos litigantes. A seu turno, a mediação, conforme será abordada neste trabalho, tem natureza auto- compositiva e voluntária, no qual um terceiro imparcial facilita a comunicação entre as partes, dando espaço para que estas apresentem a resolução adequada ao seu conflito.
  • 10. 10 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL práticas tradicionais, vislumbradas pelo monopólio do Estado, por meio do Poder Judiciário, o qual enfrenta uma crise de efetividade – qualitativa e quantitativa. Por essa razão, no terceiro capítulo, dedica-se ao estudo do mediador, em especial, do terceiro mediador e seu papel no desenvolvimento de uma cultura de paz, pautada pelo diálogo, comunicação, responsabilização e empoderamen- to das partes.
  • 11. 11 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet AS ALIANÇAS SOCIAIS BASEADAS NA AMIZADE: É POSSÍVEL LIDAR COM O CONFLITO SEM A PRESENÇA DO TERCEIRO? 1.1 A privatização da relação pública da amizade: é necessária a intervenção do Estado? Não é por acaso que Cícero (2001, p. 24) dá início ao seu texto intitulado “Da Amizade” afirmando “eu só posso exortar-vos a antepor a amizade a todas as coisas humanas, pois nada há que tanto se conforme à nossa natureza, nem convenha mais à felicidade ou à desgraça”. O fato é que a palavra amizade é difícil de ser definida, porque não possui um único significado, todavia diversos. Tal realidade data das civilizações gregas e romanas. Há dois mil anos Aristóteles já se angustiava e escrevia sobre a dis- tinção entre os tipos de amizade objetivando identificar, entre eles, aquela que fosse “verdadeira”. Desse modo, o que se percebe é que embora o núcleo da amizade - ex- pressado por la Boètie (1999), dentre tantos outros – bondade, naturalidade e reciprocidade – permaneça o mesmo, sua aparição é proteiforme, podendo con- fundir-se com aquilo que a imita e a nega. Afinal, entre os corsários também há 1
  • 12. 12 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL alguma fé na partilha do roubo porque são pares e companheiros. Numa primeira análise, a amizade parece confinar-se ao momento em que a natureza, operando sozinha, cria e conserva os companheiros numa espécie de natural sociabilidade e, ao findar sua obra com o advento da sociedade política, só restam alguns que guardam na lembrança a instante anterior, como se, no presente, a amizade fosse apenas memória do que pre- cedeu a desnaturação. Sob o efeito das ilusões necessárias que presidem a cisão da vontade e a criação e mantimento da sociedade, parece mudar de forma (confundida com adulação e cumplicidade), de qualidade (de natural vira cultivo), de quantidade (de todos sobraram alguns), de tempo (de pre- sente se fez memória) e de lugar (do centro da sociabilidade ruma para a periferia). (LA BOÉTIE, 1999). Mas, se a amizade é assim difícil de ser definida e possui esse aspecto poliforme, o que se poderá, então, esperar de um amigo? Que compartilhe a imagem que tenho de mim mesmo ou, pelo menos, que não se afaste demais dela? Sim, porque se é favorável demais, dá a impressão de bajulação. Se é muito negativa pode trazer a sensação de injusta contradizendo uma exigência básica da amizade. Assim, os amigos devem ter imagens recíprocas semelhan- tes.2 Não idênticas, naturalmente, pois então não haveria nada para descobrir, mas sem excessivas dissonâncias. Durante muito tempo a humanidade conviveu com relações de amiza- de sólidas, com vínculos estreitos e duradouros, na real acepção do termo. Nesse período não estavam positivadas (até porque era desnecessário) leis e regras sobre a organização e a manutenção do liame social. A amizade era o cimento que unia e fortalecia essas relações. Ela se mantinha median- te um código binário dividido entre amigo/inimigo que era o suficiente para apontar as relações que deviam ser tuteladas e aquelas que eram objeto de repulsa. Atualmente, verificamos a permanência do jogo político que envolve o có- digo binário amigo/inimigo. Porém, a amizade perdeu a capacidade de coesão e fortalecimento dos laços sociais e foi substituída pelas leis e regras positivadas, que preveem, necessariamente, a figura de um terceiro que diz o direito (juiz) ou que intermedia o diálogo (mediador).3 Nessa linha, a amizade se distancia da esfera pública (organização e coe- são social, sentido de pertencimento) e se aproxima da esfera privada (laços de 2 “Contemplar-se no espelho do olhar amigo é a condição da sabedoria, pois somente o Uno se conhece a si mesmo sem a mediação de outro. Se o amigo é ‘Um outro nós mesmos’ e se para os homens sábios e virtuosos é impossível a auto-suficiência do Um, a amizade, suprindo a carência, imita a perfeição. ‘Substituindo a contingência do encontro pela inteligibilidade da escolha refletida, a amizade introduz no mundo sublunar um pouco daquela unidade que Deus não pode fazer descer até ele’”. (CÍCERO, 1999, p. 203). 3 O mesmo se deu com a confiança que passou a ser juridicizada e se dividiu em boa e má-fé.
  • 13. 13 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet parentesco e consanguíneos, vínculos inerentes as relações de trabalho e de lazer). Porém, em ambas as esferas conta-se com a intervenção estatal para sua manutenção e inclusive na resolução de conflitos dela advindos (se possuírem um viés legal, positivado). O fato é que perdemos amigos na acepção verdadei- ra, legítima do termo e ganhamos conhecidos4 ou companheiros.5 Convivemos com eles de maneira harmônica ou conflituosa, todos sob o jugo do olho impla- cável do Estado que institui e aplica as regras determinando nossas relações públicas e privadas. A importância das relações verdadeiras de amizade se perdeu. Atual- mente, mesmo quando as pessoas se referem a um amigo, já não o fazem na acepção grega ou romana do termo. Assim, contemporaneamente “os amigos são também desconhecidos, não vistos, não avizinhados”, desse modo “eles se furtam ao vínculo da reciprocidade quotidiana, construída a partir de um ar comum que se respira. Pode-se compartilhar a vida sem compartilhá-la”. (RES- TA, 2005, p. 4). A mola propulsora desse processo de particularização da amizade acon- tece com a familiarização6 da sociedade e o, consequente, esvaziamento do espaço público.7 Nesse ínterim, o destino da amizade desemboca na absorção de toda forma de sociabilidade na estrutura familiar. Isto posto, o processo de “desaparecimento da sociabilidade pública, de esvaziamento do espaço públi- co, corresponde o surgimento da família moderna, a qual monopolizou outras formas de sociabilidade”. Por conseguinte, segundo Ortega (2002, p. 107) esse processo conjugado a outros fatores como o surgimento da categoria de “ho- mossexuais”, a conjugalização do amor e a incorporação da sexualidade no matrimônio, constituiu os principais determinantes do declínio das práticas de amizade no século XIX. Segundo Ortega (2002) três fatores fundamentais teriam condicionado o processo de privatização e de empobrecimento do tecido relacional das socie- 4 “Un conoscente, direi, è uma persona che si conosce anche da molto tempo, ma che in genere non ci si propone mai di incontrare senza alcuna ragione precisa”. (EPSTEIN, 2008, p. 14). 5 “Un compagno è, come dice il termine, qualcuno con cui capita di essere em compagnia; un accompagnatore può essere qualcuno che viene impiegato a pagamento, per esempio qualcuno che una persona anziana paga perché stia con lei durante una convalescenza. A volte compagno e accompagnatore vengono utilizzate come parole in codice per amante, altra cosa che non ci aiuta molto...” (EPSTEIN, 2008, p. 14-15). 6 Esse movimento de transformação das ligações familistas não será objeto de análise na pre- sente pesquisa em função de questões de espaço e tempo. Sobre o assunto é importe a leitura de ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001; ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v. ARENDT, Hannah. Condição humana. Tradução de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. 7 Não é mais o “público” que tende a colonizar o “privado”. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser ex- presso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, das angústias e iniciativas privadas. (BAUMAN, 2001).
  • 14. 14 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL dades ocidentais: a) o fato de que o Estado passou a desempenhar um novo papel a partir do século XV, intervindo cada vez com mais frequência no espaço so- cial antes entregue às comunidades. O processo de formação dos Estados modernos e de centralização da sociedade, que tem como correlato a reor- ganização e mudança histórica da economia psíquica, apontam na mesma direção ao sublinhar o papel decisivo exercido pelo Estado na conformação da vida privada e da sociabilidade, a qual segue um caminho de crescente privatização e intimização. Como principal consequência desse movimento o Estado passou progressivamente a interferir e a gerenciar mais diretamente a vida dos indivíduos; b) um segundo fator importante nesse processo foi o desenvolvimento da alfabetização, assim como a difusão da leitura favorecida pela invenção da imprensa, que permite uma forma de reflexão solitária; a própria solidão mudará de status, não se associando mais com o tédio e passando-se a desenvolver, a partir do século XVII, um gosto pelo retiro solitário; c) por fim, as novas formas de religião permitiram o desenvolvimento de maneiras de devoção privadas e de meditação solitária. Evidentemente, esse processo de privatização nas sociedades ocidentais desde os séculos XVI e XVII condicionou as formas de sociabilidade e a amizade em particular. Na Grécia, a philia se colocava acima da família, estava ligada ao espaço público, à ação em liberdade, à política. Provavelmente a tradição cristã fraternalista contribuiu, historicamente, para essa primazia das ima- gens familiares sobre as da amizade. Da mesma forma, o ideal romano de confiança e lealdade ao amigo, a fides, se transformou na confiança total em Deus. Consequentemente, o cristianismo substituiu a intimidade dos amigos por um laço de amor e caridade que abraça todos sem restrição. Assim, tem- se o alargamento da amizade e o seu esvaziamento político. A amizade que anteriormente se voltava para a polis agora é caridade (caritas), voltada ao amor divino e ao paraíso. A caritas significa o amor ao próximo e a uma totalidade, um amor co- munitário amplo, descolado da singularidade e da particularidade de um amor “a dois”. Então, conclui-se que a Amicitia não é ágape, e essa substituição leva a despersonalização de tal sentimento tornando o caridoso mas sem afeto. A amizade cristã enquanto amizade perfeita é aquela que torna sem qualidades as amizades vividas, aquelas reais. É inerente ao cristianismo a substituição da amizade pelo ágape, considerado uma forma de amizade perfeita. Desenha assim a ambivalência entre amizade e amor no cristianismo. A amizade tornou-se uma relação suspeita e o amor (a Deus e ao próxi- mo) era o meio de se libertar. Assim como a amicitia romana, a philia grega também é rejeitada por seu caráter egoísta e instrumental, ao passo que o agape representa amizade verdadeira, por não manifestar uma atração inter-
  • 15. 15 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet pessoal. Dizendo de outro modo, o amigo não deve mais ser amado por si mesmo, mas por Deus. A philia torna-se assim caritas christiana, o amor de Deus que une todos os homens. Caritas constitui a essência do amor do amigo no cristianismo. (OR- TEGA, 2002). Possível perceber, assim, como as concepções das relações de amizade enquanto pertencentes à intimidade, desconectadas e distanciadas do público, e, muitas vezes, incorporadas nas relações de parentesco – o que atualmente parece natural e inquestionável –, são, na realidade, um fenômeno recente, ini- ciado no século XIX. Essa nova forma de ver a amizade - agora conhecida e reconhecida como fraternidade, embalada pelo amor divino - inclui por que exclui, avizinha por que distancia, reconstrói tecidos vitais enquanto destrói outros; parece, como o amor, uma improbabilidade normal. Este é o grande divisor de águas entre a philia do mundo antigo e a amizade dos sistemas sociais modernos; ao passo que a primeira é o que cimenta a cidade, sendo, portanto, pressu- posto de qualquer vida política que generaliza o privado, reproduzindo-o na vida pública, a segunda não reitera o próprio modelo comunitário, mas o se- para, o diferencia dele quase se imunizando da condição de estranhamento, senão da inimizade, que atravessa a esfera pública. Por isso, está exposta aos riscos de interferência e, quando vence, inserindo-se na esfera pública, está pronta a transformar-se, na melhor das hipóteses, em incidente trans- versal, quando não em confusão a ser eliminada, em dimensão irrelevante a ser deixada de lado em virtude da separação entre a vida privada e afetiva e a vida pública, quando, até mesmo, não seja identificada com a familiarida- de e a particularidade; de resto, não é raro que os detentores do poder não escolham os competentes, mas os que lhe são leais, delegando confiança à amizade e perpetuando a desconfiança da luta política. (RESTA, 2005). Essa trajetória abre caminho, na modernidade, por intermédio de uma clara separação, impensada no mundo antigo, entre a amizade e o amor. Contra o risco de uma expansão demasiado pessoal e, por conseguinte, egoística, da amizade, foi recomendada charitas generalizada que impõe amar a Deus em cada um do outros homens. Enquanto a amizade mundana deixa campo livre à qualidade dos indivíduos (“perché sei tu”), a amizade caridosa lhe é estranha e escolhe a impes- soalidade. (RESTA, 2005). Nesse caminho, e dando continuidade ao debate que compara philia gre- ga, amicitia romana e amizade moderna (fraternidade) o item a seguir investiga- rá a philia grega.
  • 16. 16 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL 1.2 A philia grega era disposição de caráter que desejava o bem do outro? O conceito e a delimitação grega de philia8 aparece em Heródoto no sécu- lo V a.C. Porém, Phílos9 (palavra descendente de philia) foi utilizado por Homero com sentido possessivo (predominante) e afetivo. Na acepção possessiva, phí- los não se refere a uma relação de amizade, constitui sim uma marca de posse sem referência a pessoa, dizendo respeito ao: “seu” ou “meu”, poderia também designar animais, objetos ou partes do corpo, etc. (ORTEGA, 2002). Já no sentido afetivo, philos é expressão de relações próximas ou de pa- rentesco. “O significado do verbo philein é também ambíguo, designando a ação da influência sobre as pessoas que são protegidas: mulheres, crianças, paren- tes, escravos. Philein também possui o sentido de exprimir a hospitalidade, de receber estrangeiros, e de se beijar, como um sinal de reconhecimento entre os phíloi, como aparece em Heródoto referindo-se ao comportamento entre os per- sas”. (ORTEGA, 2002, p. 17-18). É importante salientar que a philia foi tema filosófico bastante discutido na antiguidade clássica. A estrutura social da Grécia, dessa época, reservava um “lugar” muito especial para a amizade, o qual, nos dias de hoje, infelizmente, não mais existe. Pelo menos não com aquela significância pessoal e intensidade ético-política. (ALBORNOZ, 2010). Na Grécia clássica a amizade e a hospitalidade (xenia) são relações muito próximas a tal ponto de definirem os amigos e os estrangeiros.10 A instituição da xenia é uma maneira de se relacionar com o estrangeiro, através de um vínculo 8 O “Vocabulário grego de filosofia” (traduzido para o italiano) conceitua philia como “legame af- fetivo tra due esseri umani. Deriva del verbo philo. L’amicizia è considerata daí filosofi greci uma virtù, o per lo meno, come scrive Aristotele ‘essa è acompagnata dalla virtù’ [...] Essi considerano il termine nel senso stretto di affezione reciproca, mentre la philia possiede un significato ben piú ampio”. (COBRY, 2004, p. 167). 9 “Antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir concretamente o que significa philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por exemplo, a distinção entre amante, aquele que sente amor ou amizade, no qual, digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor, e amado. Podemos usar, respectivamente para cada um, as expressões termo o ativo e termo passivo”. (PLATÃO, 1995. p. 23). 10 “A tradição do pensamento político sobre a hospitalidade, desde Platão a Kant e Hegel, pensa hospitalidade nas categorias jurídicas do pacto, do contrato, do juramento, etc, isto é, exclusiva- mente, como hospitalidade condicional. [...] Lévinas [...] ao deslocar a categoria da hospitalidade para o centro de sua reflexão ética e definir a relação com o outro como hospitalidade, repre- senta uma exceção significativa. Pois o contrato da hospitalidade restringe a hospitalidade ao reconhecimento do estatuto social, familiar e político dos contratantes, ao controle da residência e do período de estadia e deixa fora aquele que chega anonimamente, que não possui nome, patrimônio, linhagem, estatuto social, ou pátria; ou seja, esse indivíduo que os gregos não trata- vam como estrangeiro, mas como bárbaro, como outro sem nome, ou nome de família.” (ORTE- GA, 2002, p. 20).
  • 17. 17 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet de longa distância que inclui obrigações e benefícios recíprocos. Se comparado ao vínculo dos philói, a xenia se diferenciava por que era uma relação na dis- tância. Tal fato implicava a separação física dos participantes, pois essas redes aristocráticas se estendiam para além das cidades e até do mundo grego. Desse modo, a instituição da xenia possuía e cumpria uma “função político-estratégica definida: as comunidades da época se encontravam em uma situação de des- confiança e hostilidade entre elas, de “paz armada”, a xenia era uma forma de garantir proteção, apoio e armamento ao estrangeiro”. A partir do momento em que as polis11 se formaram as redes de xenias continuaram existindo, o que con- tribuiu para a manutenção de um forte componente de ritualização e institucio- nalização nas relações afetivas predominantes na polis. (ORTEGA, 2002, p. 22). Além da philia, a Grécia antiga possuía também outra espécie de asso- ciação entre amigos chamada de heteria que era a relação política de camara- dagem militar, uma espécie de fraternidade em armas ou de um “clube político”, no qual os homens da mesma idade e camada social ingressavam na juventude e permaneciam até a velhice. A heteria constituía um elemento indispensável da vida política na polis. Uma relação que se articulava como vínculo de amizade. Além disso, ela perpassava horizontalmente as estruturas básicas de parentes- co, ligando e unificando os diferentes centros de poder. A heteria representava um forte vínculo afetivo, uma “amizade expressiva”. Justamente por isso era uma das instituições sociais mais fortes e persistentes do mundo grego, a qual conseguiu manter-se através de numerosas mudanças de governo e revoluções. (ORTEGA, 2002). Assim, na Grécia homérica a amizade não aparece definida de uma forma clara e única, existindo numerosos tipos e noções. Muitas relações de amizade eram relações institucionalizadas que deixavam pouco espaço para a liberda- de de escolha, espontaneidade e preferências pessoais. Esse tipo de amizade exercia as funções de coesão social e proteção em um mundo descentralizado, que não podia garantir a vida dos indivíduos, representando uma possibilidade de assegurar a existência e a manutenção da sociedade. (ORTEGA, 2002). Porém, com a evolução do conceito de philia, as relações de parentesco vinculadas à amizade se enfraqueceram até se dissociar completamente. A amiza- de passou a ser definida pelo seu caráter de livre escolha e afeição pessoal trans- formando-se em uma instituição independente. A principal consequência quanto as relações interpessoais foi a separação dessas das relações institucionalizadas. Porém, tal não ocorreu quanto a relação de philia. Esta manteve, durante toda época grega clássica uma forte dimensão institucionalizada e ritualizada. Desse modo, era possível observar que as relações de afeto eram esta- belecidas normativamente e as tarefas da amizade eram institucionalizadas. Tal 11 “Comunità urbana alla quale occorre dare uma costituzione, che sarà la politeia; lo stesso termine polis può significare Stato, poiché ogni città greca costituiva anche uno Stato.” (GOBRY, 2004, p. 178).
  • 18. 18 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL se deu porque na polis grega, as relações de amizade desempenhavam um pa- pel considerável, mas existia um enquadramento institucional suplementar que implicava um sistema de obrigações, deveres e tarefas recíprocos, o estabeleci- mento de uma hierarquia entre amigos, etc. As relações de amizade formavam os átomos da polis, a condição de sua sobrevivência. (ORTEGA, 2002). Nesse contexto, Platão12 debate a amizade como base da busca pela verdade característica própria da filosofia. Em Lísis, o diálogo ressalta a ideia de que a amizade implica comunhão de bens materiais e espirituais, tornando-se, assim, uma coisa útil. Também salienta que existe distinção entre “aquele que ama” e “aquele que é amado”. Desse debate também cria a diferença entre o amigo e o inimigo. Na verdade, antes de definir o conceito de philia, “amizade”, há que definir concretamente o que significa philos, “amigo”, termo ambíguo que implica, por exemplo, a distinção entre amante, aquele que sente amor ou amizade, no qual, digamos, se inicia o desejo de posse do objeto do seu amor, e amado. Podemos usar, respectivamente, para cada um, as expressões termo ativo e termo pas- sivo. Assim, Platão afirma: “amigo não é o que ama, mas sim o que é amado”. (PLATÃO, 1995, p. 47). Percebe-se na obra de Platão uma forte conotação erótica na análise da amizade.13 Tal se dá em função da “ausência de fortes vínculos maritais e de amor conjugal, assim como a separação estrita dos sexos – designando luga- res específicos para cada um -, levou a polis clássica a concentrar a paixão e a ternura nas relações entre homens”. (ORTEGA, 2002, p. 25). Avista-se assim o privilégio do culto da amizade e do amor masculino. Como ao sexo feminino era atribuída pouca importância (as mulheres eram afastadas da esfera pública, relegadas ao espaço doméstico), as relações masculinas (entre homens) eram marcadas pela afeição e pelo significado emo- cional. Desse modo, os discípulos, tradicionalmente rapazes belos, eram os substitutos das mulheres por possuírem semelhança física com elas, sendo con- siderados objetos de desejo. Assim, as relações de amizade (que se estabeleciam necessariamente entre homens, pois as mulheres eram consideradas incapazes de mantê-las) eram relações erotizadas. Tais relacionamentos pressupunham a liberdade dos indivíduos envolvidos que vinha visivelmente expressa no jogo da sedução, na 12 Importa dizer que a base para o debate aqui se iniciado foram os diálogos de Platão nos quais o filósofo aborda a philia diretamente: no Lísis, no Banquete e no Fedro. O primeiro deles (Lísis) foi aquele que centralizou o interesse do presente texto. Tal se deu porque, apesar do caráter aporético do texto, é, todavia, aquele que mais se aproxima da definição do conceito de amizade. 13 Tal conotação erótica exposta na obra platônica pode vir ilustrada pela referência expressa a eros no Banquete: “... de todos os lados Eros é considerado extremamente antigo. Sendo o mais antigo, é Também a causa de nossos maiores bens; por mim, não saberia dizer nada melhor para o jovem, no seu primeiro crescimento, que um verdadeiro amante, nem, para um amante nada melhor que seus amores”. (PLATÃO, 1977, p. 178c-178b).
  • 19. 19 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet possibilidade de dizer “não” e na recusa do cortejo. Apenas homens livres pode- riam ser destinatários dessa relação erótica. As relações heterossexuais eram, fortemente, codificadas. Pertenciam ao matrimônio ou aos prostíbulos e perma- neciam proibidas fora dessa regulamentação. O papel feminino nesse contexto era aceitar os desejos masculinos, pois as mulheres dependiam deles economi- camente, satisfazendo sua sexualidade, garantindo a procriação e administra- ção do patrimônio. No entanto, Ortega (2002) salienta que existia uma dificuldade na moral grega do eros. Originada do isomorfismo existente na sociedade helênica entre as relações sexuais e o comportamento social, o que impedia, que o rapaz, de comportamento passivo na relação sexual, como objeto do prazer do homem mais velho, pudesse desempenhar uma função ativa como cidadão da polis. As- sim, a “antinomia dos rapazes” consistia em serem considerados como objetos de prazer, e, no entanto, não poderem identificar-se com esse estatuto como futuros cidadãos, uma vez que apenas as mulheres e os escravos eram objetos de prazer. Consequentemente, a reflexão platônica da philia surge como uma tenta- tiva de resposta a essa antinomia, isto é, como uma possibilidade de dotar o eros de uma forma moralmente aceita.14 Nesse sentido, a estratégia consistiu em transformar o eros na relação de philia, excluindo o elemento sexual (sublima- do), o que lhe permite manter os elementos “pedagógicos” do amor dos rapazes, sem cair nas antinomias implicadas na erótica tradicional. Finalmente Ortega conclui que Platão nem tinha muito interesse em dis- tinguir a relação amor e amizade nos diálogos que tratam do tema, dado que é precisamente dessa fluidez conceitual que se originam os importantes desloca- mentos que conduzirão à amizade como uma espécie de eros sublimado. Nessa mesma linha de raciocínio, Aristóteles dissocia, completamente, a noção de amor erótico da noção de philia criando uma incompatibilidade defi- nitiva entre ambos. Essa noção aristotélica permanecerá constante na história da amizade. Desse modo, a partir do raciocínio aristotélico a amizade se exclui da passividade platônica tornando-se uma atividade, a própria atividade filosófica; o amor, por outro lado, é considerado um impulso não-filosófico. Assim, é pos- sível resumir dizendo que Eros é uma paixão e philia um ethos, o amor passa a ser visto como uma emoção; a amizade, por sua vez, é interpretada como uma disposição de caráter. Segundo a construção aristotélica a philia é caracterizada pelo hábito, 14 Isso se dá porque o próprio Platão no diálogo intitulado “Lísis” deixa claro que a base da amizade é o desejo. Assim: - “Então, de fato, a causa da amizade é, como há pouco dizíamos, o desejo. O que deseja é amigo daquilo que deseja, e isso sempre que deseja. O que de início dizíamos ser amigo era uma futilidade, como um poema que se alonga demasiado”. (PLATÃO, 1995, p.60).
  • 20. 20 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL expressando-se como uma atitude moral e intelectual com objetivo principal de amor recíproco entre os amigos, cuja base é a liberdade de vontade e de esco- lha na qual cada um deseja o bem para o outro.15 Com sua dissociação de eros e philia, Aristóteles pretendia afastar a possibilidade desse “mau uso” do eros. Para Aristóteles, as pessoas são amigas por três razões principais: pela utilidade que buscam, pelo prazer que esperam e pelo bem que os indivíduos desejam um ao outro. Assim, o filósofo salienta que: “os amigos cuja afeição é baseada no interesse não amam um ao outro por si mesmo, e sim por causa de algum proveito que obtêm um do outro”. (ARISTÓTELES, 1996, p. 259). O mes- mo se dá quando a base da relação é o prazer obtido. Logo, afirma que amizades assim são apenas acidentais, pois não é por ser quem é que a pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito ou prazer. Tais amizades se desfazem facilmente se as pessoas não perma- necem como eram inicialmente, pois se uma delas já não é agradável ou útil a outra cessa de amá-la. E a utilidade não é uma qualidade permanente, mas está sempre mudando. Portanto desaparecido o motivo da amizade esta se desfaz, uma vez que ela existe somente como um meio para chegar a um fim. (ARISTÓ- TELES, 1996). Por conseguinte, as duas primeiras formas de amizade são perecíveis e circunstanciais, isto é, não estão referidas à essência de uma autêntica amizade. Porém, a terceira forma de amizade é caracterizada por desejar o bem ao outro. A amizade perfeita é existente entre as pessoas boas e semelhantes em termos de excelência moral; neste caso, cada um das pessoas quer bem à outra de maneira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas em si mesmas.16 Nessa linha de raciocínio, Aristóteles aponta a felicidade, a virtude e a ami- zade como categorias vinculadas. Tal se dá, especialmente, quando se visualiza o amigo como um “segundo eu” ou um “outro eu”. Na base do amor ao amigo está o amor de si. Assim, Aristóteles afirma que a consciência de si, a identidade pessoal, se dá através do outro, na contemplação do outro, como nossa imagem especular. Na amizade, o indivíduo se faz outro, sai de si, se objetiva; é preciso tomar consciência do pensamento e da atividade do outro para ter consciência do próprio pensamento e da própria atividade, condição da eudaimonia. A cons- ciência de si é precedida da consciência do outro, a percepção do amigo é a 15 Assim: “cabe-nos examinar a natureza da amizade, pois ela é uma forma de excelência moral ou concomitante com a excelência moral, além de ser extremamente necessária a vida.” (ARIS- TÓTELES, 1996, p. 257). 16 “No entanto, o bem ou ser bom não constituem a essência do humano (ou qualquer outra realidade). Dizendo diferentemente: o ser bom não identifica essencialmente os humanos. Ou: não nascemos bons. Ou, ainda: o homem não é bom por natureza. Ser bom, deveras, é um aci- dente para um indivíduo. Assim com ser mau. Ninguém nasce mau. Podemos querer ser bons ou ser maus. Podemos nos tornar bons ou maus. Podemos nos aperfeiçoar na bondade ou na maldade.” (ALBORNOZ, 2010, p. 22).
  • 21. 21 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet forma privilegiada da percepção e consciência de si. (ORTEGA, 2002). É nesse sentido que o Ortega evidencia que essa noção de consciência de si via consciência de outro constitui uma noção de subjetividade diferente da nossa. Para construir tal afirmativa o autor cita Vernant (1989) cujos textos de- monstram como, para os gregos, o “eu” não era nem delimitado nem unificado, constituindo um “campo aberto de forças”. Desse modo, o indivíduo projeta-se e objetiva-se nas atividades e obras que realiza e que lhe permitem apreen- der-se; trata-se de uma experiência voltada para fora, o indivíduo se encontra e se apreende nos outros.17 Isso ocorre, porque os gregos desconheciam a in- trospecção. O sujeito é extrovertido; a consciência de si não é “reflexiva”, mas “existencial”. A consciência está voltada para fora; a autoconsciência, no sentido moderno do termo, não existe, ou somente sob a forma de um “ele” e não de um “eu”. (ORTEGA, 2002). Porém, para fins de delimitar a gênese e as transformações da amizade no decorrer do tempo é necessário investigar a amiticia romana delineando suas semelhanças e diferenças com a philia grega. É esse, pois, o objetivo que se desenvolve adiante. 1.3 A vontade individual dos amigos era su- bordinada as regras do Estado na amicitia romana? A sociedade romana tinha manifestações de amizade aparentemente da mesma forma e muito semelhantes àquelas encontradas na sociedade grega. É possível verificar que os termos latinos amicitia (amizade), amicus (amigo), ama- re (amar) parecem encontrar correspondência aos termos gregos, philia, philos, philein. Porém, não obstante tais semelhanças, existem diferenças importantes. A amicitia romana é uma relação que se baseia na afeição livre, excluindo asso- ciações econômicas, comunidades religiosas e jurídicas e ainda relações de pa- rentesco. Eram consideradas como formas de amicitia romana as associações políticas existentes entre os nobres cujo objetivo era o apoio mútuo em assuntos de política interna e externa e nas eleições de cargos públicos. Além disso, e principalmente, a amicitia romana é um conceito de política externa, constituído através das trocas mútuas. Devido a essa importância adquirida pela amicitia a “influência e as rela- 17 A relação com o outro, que foi na presente pesquisa nomeada “alteridade” será abordada no próximo capítulo. Sobre o assunto é importante a leitura de LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
  • 22. 22 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL ções pessoais do chefe de família eram indispensáveis para o sucesso na polí- tica”. Ocorrência provinda das extensões horizontais dos chefes de família que eram constituídas pelas relações de amicitia, alianças com pessoas da mesma classe e status social. (ORTEGA, 2002, p. 47). Da mesma forma, as relações amicitia e patrocinium não eram formadas por grupos da mesma idade, por isso não apresentavam o grau de convivialidade e de envolvimento emocional das heterias gregas, sem mencionar a perda de significado pedagógico do eros pai- dikon. Essas funções eram desempenhadas na sociedade romana pela família. (ORTEGA, 2002). Consequentemente, a amizade romana não possuía a mesma importân- cia que a amizade grega. Essa afirmativa se dá em todos os sentidos: cultural, erótico e emocional. Para os romanos não havia mistura/relação entre eros e philia. Os romanos confinaram eros no vínculo conjugal.18 Essa alteração de costumes se dá, especialmente, com o fim da polis, momento no qual a pederastia perde sua função pedagógica e militar (herança do mundo helênico) e sua fundamentação filosófica, tornando-se, aos olhos de todos, uma perversão desprezível. As regras da Roma republicana, que valori- zava a família como uma instituição moral e não só econômica, condenavam e viam com repugnância a homossexualidade. As famílias nobres dominavam a vida pública romana. Os romanos re- conheciam três formas de atingir a glória: a família, o dinheiro e as relações pessoais, nas quais a amicitia é a mais importante, junto às relações de patro- cinium. Determinava-se, assim, pelo número e importância de clientes e amigos o sucesso de um político. Sob essas circunstâncias, a amicitia tornava-se uma relação estritamente utilitária e interesseira, objetivando alcançar vantagens re- cíprocas. Nessas relações as motivações éticas e emocionais eram substituídas por considerações práticas, e na qual a hipocrisia, o egoísmo e o fingimento ocupavam o lugar da confiança e da honestidade. (ORTEGA, 2002). Em Roma, segundo Ortega (2002), a distância existente entre o discurso filosófico sobre a amicitia e a prática social da amizade é maior do que na Grécia, onde a teoria filosófica da philia – especialmente com Aristóteles que visava uma descrição fenomenológica, uma tipologia das formas da philia na polis – estava em correlação com a prática da amizade na sociedade helênica. Nessa mesma linha, o autor salienta que é possível encontrar em Cícero (1993) o primeiro 18 Sobre o assunto é importante a construção de Foucault que aponta para uma “nova/outra eróti- ca”, substituidora da erótica grega dos rapazes. Essa erótica se apoia e apresenta o matrimônio como forma de vida, relegando o Eros ao vínculo conjugal. Essa nova realidade erótica se constitui em torno da relação recíproca e simétrica do homem e da mulher, apontando a virgindade como valor crescente, como estilo de vida e forma de existência mais elevada, e da união perfeita que pretendem atingir. Sobre o assunto é importante a leitura de FOUCAULT, Michel. Ética, sexualidade e política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2004; FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 16 ed. Rio de Janeiro: Graal, 2005.
  • 23. 23 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet discurso sobre a amizade, no qual a distância existente entre reflexão teórica e prática social é quase incomensurável. Posteriormente, os grandes discursos sobre a philia/amicitia são personalizados (discursos epitafiais do luto pela perda do amigo, como encontramos em Cícero, Agostinho e Montaigne, entre outros), existindo um abismo insuperável entre eles e a prática social da amizade, o que leva a hiperbolizar o caráter utópico-idealista desses discursos. Assim, não obstante o caráter de “benefício mútuo” da amizade romana, com seus consequentes resquícios de obrigação para o cumprimento de regras e para a manutenção da paz social, ela teve, até o fim da República, a função de regular os conflitos canalizando-os em vias pacíficas. Cumprindo essa missão a amicitia preservou o status da patria potestas, assim como estabeleceu vínculos entre as diferentes famílias. Para alcançar tal intento foram definidas regras e valores, no interior do sistema de confiança (fides) e favor (officium), parte funda- mental da virtude (virtus) e da dignidade (dignitas) do senhor romano. O código da virtus impunha uma regra de reciprocidade, na qual cada ato de amizade devia ser correspondido no futuro. (ORTEGA, 2002). Assim, na base da teoria da amizade ciceroniana se encontrará a con- córdia,19 dando relevo à philia grega no papel de fundamento do Estado. A con- córdia se constituiria na harmonia resultante da rivalidade cuja principal função de regulação e facilitação era atribuição da Amicitia. Porém, se a concórdia vira discórdia, como acontecerá no fim da República, a amicitia já não serve como instância pacificadora, tornando-se fonte de conspiração. É nesse contexto que se deve situar a teoria da amicitia de Cícero. (ORTEGA, 2002). Para Cícero os tipos de amizade estão divididos da mesma maneira que em Aristotéles. Assim, também na teoria ciceroniana o prazer e a utilidade apa- recem como causa primeira da amizade. Em um segundo plano, como uma re- lação ideal e perfeita vem a amicitia vera, ou amicitia perfecta, que corresponde à teleia philia aristotélica. Nesse sentido Cícero (1993, p. 26) ressalta que “só entre os bons pode haver amizade”. E completa: “nisso não exagero, como o fazem aqueles que tratam de tais questões com sutileza, verdadeira talvez, mas pouco útil ao bem de todos: negam, de fato, que um homem possa ser bom se não for sábio. Seja assim, mas consideram uma sabedoria que nenhum mortal pode alcançar”. Nessa mesma linha de raciocínio, Cícero afirma que a Amicitia vera exis- te só entre homens bons e pode ser definida como “o acordo perfeito de todas as coisas divinas e humanas, acompanhado de benevolência e afeição, e creio que, exceto a sabedoria, nada de melhor receberam os homens dos deuses”. (CÍCERONE, 1993, p. 27) Esse “acordo perfeito” nada mais é que o consensio. 19 Quando prestamos um serviço ou nos mostramos generosos, não exigimos recompensas, pois um préstimo não é um investimento. A natureza é que inspira a generosidade, por isso acr- editamos que não se deve buscar a amizade com vistas ao prêmio, mas com a convicção de que esse prêmio é o próprio amor que ela desperta. (CÍCERONE, 1993).
  • 24. 24 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL A noção de consensio, acordo ou consenso, é importante para o presente debate, pois já evoca uma noção de amizade com um forte embasamento polí- tico e moral mais do que metafísico, que se adapta à realidade sociopolítica da sociedade romana. Essa amizade só é possível entre “homens bons” [...]; ele acrescenta que não se refere aos sábios como faziam os estoicos, mas aos bons homens no sentido da experiência concreta na sociedade romana, possuidores de uma sabedoria político-prática ligada à responsabilidade no Estado. Ou seja, homens reconhecidos como virtuosos (virtus) na sociedade romana. (ORTEGA, 2002, p. 51-52). Ortega vai além ao enfatizar que o fundamento da amizade romana reside na virtus dos parceiros que possui, porém, um caráter diferente da virtude grega (arete), manifestando-se na obtenção de excelência pessoal e na glória pela rea- lização de grandes ações ao serviço do Estado romano. O nobre romano pratica as grandes ações para a República, que o reconhece pública e eternamente através da gloria. A virtude civil está, na base da noção ciceroniana da amicitia, subordina a vontade individual dos amigos aos interesses do Estado. A noção romana de virtude muito bem expressada nos textos de Cícero o levam a colocar o Estado, a patria, acima da amizade. Essa afirmativa pode ser corroborada na observação da questão do conflito entre os deveres com o Estado e com o amigo, tema introdutório dos limites da amizade.20 Ao contrário dos filósofos gregos que colocavam os deveres com o amigo acima dos deve- res com a polis (tal se dá pela análise e pela verificação da posição superior que desfrutava a philia em relação a justiça), Cícero defende os deveres com o Estado como sendo superiores aos deveres com o amigo. Sua noção de virtus e de bom implica concordar com o Estado: é imoral, “desonroso”, apoiar um amicus contra patriam, a lei ciceroriana da amizade exige que os amigos façam o que é “honroso” (honesto).21 Isso se traduz, segundo seu ideal de virtude, na realização de grandes ações para o Estado. Um vir bonus nunca se oporia à res publica. (ORTEGA, 2002). Consequentemente, pode-se avistar na amicitia romana a preponderân- cia dos interesses do Estado sobre o interesse dos amigos, o que por si só difere essa da philia grega. Nesse sentido é possível afirmar que foi talvez a primeira mudança nas relações de amizade: o conceito de “outro” se subordina ao con- ceito de Estado. A amizade começa a perder terreno e seu princípio ético aos poucos é substituído pelas garantias oferecidas pelo direito positivado. Desse assunto se ocupará o próximo item. 20 Nesse sentido é importante a leitura de CICERONE, Marco Tulli. I doveri. Saggio introdutivo e note di Emanuele Narducci. Traduzione di Anna Resta Barrile. 1º ed. Milano: Libri e Grandi Opere, 2004. 21 “[...] uma vez que os laços da amizade nascem da estima pela virtude, é difícil que a amizade sobreviva se não permanecermos na virtude.” (CICERONE, 1993, p. 59).
  • 25. 25 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet 1.4 As relações entre philia, amicitia, confiança e justiça: do moral ao legal? Nesse contexto, não se pode perder de vista que durante toda a Antigui- dade grega se manteve, como foi ressaltado, um vínculo estreito entre amiza- de e justiça embasador da configuração da philia como um fenômeno político. Na Grécia arcaica, é possível encontrar uma noção de justiça (dike) própria de uma sociedade aristocrática, que poderia ser traduzida como ajudar/beneficiar os amigos e prejudicar os inimigos. Essa forma de justiça era regulada e admi- nistrada pelos hetairoi.22 Porém, com a passagem para a era clássica e com o surgimento da de- mocracia, tanto a justiça como a amizade sofreram transformações e foram re- definidas. A partir desse momento, os sentimentos de amizade, a igualdade de direitos e a comunidade da justiça existente nos pequenos grupos constituídos como heterias, são deslocados para a sociedade (demos) como um todo. Como consequência, cada cidadão torna-se um amigo e a igualdade (isonomia), restri- ta até esse momento às heterias, pertence ao conjunto dos cidadãos. Assim, na transição da velha noção de justiça para a nova (descrita por Pla- tão como harmonia e proporção na alma e na polis), a noção de amizade fornecia o elemento de igualdade de direitos (isonomia). Com isso, a amizade é coextensiva da cidadania, e todos os cidadãos são, em princípio, amigos entre si. Ou irmãos? Pois, Aristóteles estabelece, como já visto, uma proximidade entre fraternidade e camaradagem (heteria) por um lado, e entre fraternidade e democracia pelo outro. A amizade entre irmãos é próxima da camaradagem precisamente pela igualdade. Igualdade política é igualdade entre irmãos. (ORTEGA, 2002). Justamente nesse sentido, Aristóteles afirmava que os verdadeiros ami- gos não têm necessidade de justiça. Mas o que ele quer dizer com isso? Da análise do texto se depreende que a afirmação aristotélica diz respeito ao fato de que a virtude da justiça existe para resolver as diferenças (os conflitos) entre os homens. Desse modo, a vida na polis abre uma série de possibilidades dife- renciais: diferenças de comportamentos, de ideias, quanto à propriedade ou a distribuição dos bens, diferenças étnicas, etc. Nestes casos, se faz necessário a resolução das diferenças/conflitos e a justiça pode ser acionada enquanto virtude do meio-termo, ou seja, possibilidade de equilibrar as diferenças entre o excesso e a falta. Assim, o recurso à justiça acontece enquanto meio de reconhecimento das diferenças ou da desproporcio- nalidade. 22 Os hetairoi constituíam a cavalaria de elite do exército de Alexandro Magno. Eram formados por esquadrões de 200 a 300 soldados e conhecidos por suas interessantes e bem organizadas estratégias de guerra.
  • 26. 26 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL Porém, a verdadeira amizade não se constitui pelas diferenças e sim pe- las semelhanças. O similar entre os indivíduos considerados entre si verdadeiros amigos é o ser bom de ambos. Claro que pode haver indivíduos de bondades concretas diferenciadas, assim como há muitos triângulos concretos diferentes entre si. Isso, todavia, não abala a semelhança que caracteriza a vontade ou a triangularidade. Tanto um atributo quanto outro se assemelha, porquanto se instituem por aquilo que há de comum em meio às diferenças – a bondade ou a triangularidade. A bondade não se apresenta nem como excesso nem como falta e também não é meio-termo. Por isso, certamente, a bondade não se situa no campo da justiça. (ALBORNOZ, 2010). Sem sombra de dúvidas, existe uma relação entre amizade e justiça, uma vez que ambas se dão entre as mesmas coisas, referem-se às mesmas pes- soas, e aumentam e diminuem na mesma proporção.23 O mesmo se dá quanto a amizade e a política. Considerando que em Aristóteles o objetivo da política é “produzir amizade” é possível observar a exis- tência de uma relação fundamental entre amizade e política, expressa igualmen- te no conceito de amizade civil (politike philia), que uniria todos os cidadãos da polis. Assim, segundo Aristóteles, o modelo familiar e, por conseguinte, pré-po- lítico oferece a base, o fundamento, a origem, a estrutura e a forma às relações políticas e de amizade. A família, o oikos, no entanto, pertence à esfera privada, que é regida pela necessidade e a violência, em paralelo a esfera política, ao mundo público como espaço da liberdade, da contingência, da ação. O mesmo movimento que politiza a amizade, ao ligá-la à justiça e à política, a despolitiza, ao vinculá-la às estruturas pré-políticas da família. (ORTEGA, 2002). Essa lógica aristotélica que vincula a amizade e a política também é em- pregada para tratar da amizade nas relações de fraternidade, uma vez que ba- seada na consagração da amizade à democracia. Nesses termos, a politeía é um assunto de irmãos (tôn adelphôn), porém a fraternidade não é política, quando adota como condição a supressão das diferenças e da pluralidade (consideran- do todos os indivíduos como iguais), pois nesses casos se anulam as condições do político. Por outro lado, a amizade se encontra mais voltada para o mundo e por isso é considerada um fenômeno político. A lógica aristotélica aproxima a amizade entre irmãos das mencionadas relações de camaradagem (heteria). Tal se dá por que essas relações de heteria possuem grandes chances de se desenvolverem entre irmãos, visto que, eles são iguais, normalmente estão na mesma faixa etária, e são semelhantes em seus sentimentos e em seu caráter. Assim, existe uma relação na polis entre 23 Em todas as espécies de amizade entre pessoas diferentes é o principio da proporcionali- dade, como dissemos, que igualiza as partes e preserva a amizade; na forma política de am- izade, por exemplo, o sapateiro obtém pelos sapatos que faz uma retribuição proporcional ao valor de seu trabalho, e o mesmo principio se aplica ao tecelão e a todos os artesões de um modo geral. (ARISTÓTELES, 1996).
  • 27. 27 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet política-amizade-democracia-fraternidade-camaradagem, que em uma pretensa repolitização da amizade, a despolitizaria. (ORTEGA, 2002). Por outro lado, no epicurismo, a amizade representa um afastamento da política. A amizade se desenvolve num contexto individual e se constitui antes como fenômeno moral do que político. A perda do significado político da philia é resultado da diminuição da importância da polis. A ideia de amizade como fe- nômeno político só pode ser possível em um mundo em que a ação política dos indivíduos é eficaz, o que não acontecia na época helenística, com a passagem da polis para o império. (ORTEGA, 2002). Já na sociedade romana, a amicitia deixa de ser o vínculo social por exce- lência passando a designar um tipo de relação social entre outras. Desse modo, o lugar da philia é ocupado pelo consenso, vínculo político básico. A política não é mais baseada na amizade e até, em algumas relações e em determinados momentos, pode ser sua antítese. O consenso torna possível a existência da amicitia e o exercício da virtude; sem consenso a amizade só pode existir como um afastamento da política. Com consenso o lugar/papel do terceiro enfraquece. Porém, se faz necessária a criação de mecanismos como a confiança24 (a fides) para fins de garantir o cumprimento das obrigações advindas da rela- ção com um mínimo de honestidade. Nesse sentido, Resta (2009, p. 52-53) de- monstra como ocorre essa ruptura no texto aristotélico fixando o ponto exato no qual a amizade perde sua importância na estruturação das relações fazendo-se necessário o uso de outras categorias, dentre elas e principalmente a confiança (fiducia). Assim: un noto testo di Aristotele, tratto dall’Etica nicomachea (1162b, 20-35), ci mostra meglio di qualsiasi saggio di teoria sociale il gioco della fidu- cia e ci aiuta a disverlarne la patina di opacità. Aristotele racconta di quando l’amicizia si dissipa in più dimensioni e comincia a rappresenta- re dentro di sé tutte le forme delle relazioni sociali; accade ad esempio che l’amicizia scopra l’utile concreto degli amici; quando si è amici in funzione dell’utilità (e non il contrario) accade che la dissimmetria in- tervenga a deludere quella quota, spesso crescente, di utile che ci si aspetta dall’amico. La delusione travolge l’amicizia e la trasforma nel luogo del conflitto e della re-criminazione. O mesmo autor salienta que o texto guia pelo lado opaco da vida cotidiana no qual os sentimentos são expostos a possibilidade de riscos. Nesse interregno 24 Numa tentativa de definir a amizade Donolo (2009, p. 2), afirma: “fidúcia prima de tutto è um richiamo a stare attenti, a non abassare la guardia. La concessione di fiducia è un esercizio rischioso, quindi la concedono facilmente i fessi difficilmente i furbi. Così intanto il mondo si ordi- na intorno a questa razionalità di scopo di bassa lega. In un certo paese, che conosciamo bene perchè ci abitiamo, questa dicotomia è basilare: come se fiducia stesse le vertice del monte i cui due versanti dividono i furbi dai fessi.”
  • 28. 28 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL a amizade e a confiança se distanciam e a ética deixa lenta e silenciosamente o seu lugar ao Direito (e por conseguinte, o papel do terceiro juiz nasce e se forta- lece). Tal se enfatiza na constatação de que amizade e Direito têm uma relação complexa no discurso aristotélico:25 “si può pensare che, come il giusto è di due specie, non scritto (àgraphon) e scritto nella legge (katà nòmon), anche l’amicizia che tende all’utile sia di due specie, morale (etikè) e legale (nomikè)” . (RESTA, 2009, p. 54). Na amizade moral não temos um “pacto explícito”, nela a confiança existe e é subentendida.26 A confiança, aqui, tem a função de “mediação moral”, não sendo necessária uma terceira “parte” para garantir que a comunicação entre os amigos flua de modo tranquilo. O risco de desilusão quanto às expectativas não cumpridas a partir da relação é zero e por isso, como já dizia Aristóteles (2005), referindo-se a amizade moral: se os homens são amigo não há existe necessi- dade de justiça. O êxito do discurso aristotélico nos mostra que entre a amizade e Justiça existe uma relação de inclusão no sentido de que a segunda torna-se supérflua quando a primeira é verdadeira e desinteressada. Por conseguinte, quando exis- te amizade o papel desempenhado pelo terceiro desapareceria. Infelizmente, isso não basta: a ética da amizade é aquela ética de intenções, de postura ética adotada por um amigo que dá e recebe. A confiança se coloca na intenção e ela diferencia a amizade verdadeira27 daquela dita interesseira. Quando a confiança se esvai, quando as expectativas não são cumpridas o Direito entra em ação e a confiança se tornará influente para as questões a ele pertinentes, mas apenas um detalhe no concernente a relação de amizade. Assim, 25 Essa também é a opinião de Ota Leonardis quando salienta: “il diritto intrattiene rapporti com- plicati com la fiducia”. (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 121). 26 “Depois de concedida a amizade, é preciso haver confiança; é antes que se deve fazer um julgamento. [...]. Alguns contam ao primeiro quem veem o que deveria ser confiado apenas aos amigos, e despejam em ouvidos alheios o que lhes queima a língua. Outros, ao contrário, temem abrir-se até mesmo com os amigos mais caros e, como se não pudessem eles mesmos com os amigos ser os seus próprios confidentes, mantêm encerrados no fundo da alma todos os seus segredos. É preciso rejeitar ambas as atitudes: é um erro não confiar em ninguém. Bem como confiar em todos; direi que, num caso nós agimos da maneira segura, e no outro da maneira mais honesta.” (Sêneca, 2007, p. 31). 27 “[...] um modelo ideal de amizade perfeita, teleia philia/ vera amicitia, em que o amigo aparece como um outro eu, um ideal de perfeita unanimidade, de completa união espiritual e moral, de aperfeiçoamento recíproco. Essa noção de amizade se define pelo seu caráter particularista, pela sua raridade (só é possível entre poucos), quase pela sua impossibilidade, constituindo antes um ideal regulativo do que uma relação real, o que sem dúvida, a afasta da sociedade sociopolítica concreta.[...] Quanto mais íntima, constante e afetiva é uma amizade, menos são as pessoas com as quis podemos ter tal relação. É, afinal de contas, uma questão de tempo e energia, ambos objetos escassos. Quanto mais exclusiva e íntima é uma amizade, em outras palavras, quanto mais se aproxima do ideal aristotélico de amizade perfeita, mais transcende a estrutura social circundante e menos se adapta para fornecer a base da sociedade”. (ORTEGA, 2002, p. 55-56).
  • 29. 29 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet sembrerebbe in tal caso che si affidi al diritto perchè si è persa la fiducia in altre istanze di controllo della correttezza dei comportamenti e del rispetto degli accordi – istanze morali, di deontologia professionale, di reputazione ecc. – e faccia presa un senso diffuso di irresponsabilità, tale per cui chiunque, individuo e sopratutto organizzazione, appena può ne approfita [...] (LEONARDIS, dicembre 2009, p. 122). É nesse sentido que na amizade legal relegamos ao Direito e ao terceiro a garantia do cumprimento das obrigações fixadas o que na amizade moral não se faz necessário, pois o descumprimento está fora de cogitação pela implicação ética e, moralmente, aceita pelos amigos. Nesse momento que a amizade passa a ser juridificada e iniciamos a trabalhar com a noção de confiança. Quando a expectativa de confiança no cumprimento das obrigações do outro não se con- cretiza o Direito intervêm para fins de tornar suportável a desilusão e resolver os conflitos dela proveniente.28 Desse modo, confiar na palavra do outro é se autoexcluir do sistema jurídico.29 Luhmann (2002) afirmava que o Direito se implanta numa sociedade que já conheceu o gosto da confiança moral. Portanto, assim como a amizade é um conceito político integrante da comunidade a confiança também o é. Trata-se de dois elementos importantes que tornam possível a existência comunitária. A cri- se que envolve a presente afirmativa se dá, justamente, por que tanto um quanto outro já não possuem como base a ética e a moral e sim a lei, o direito positiva- do.30 Desse modo, a amizade vem traduzida, atualmente, como solidariedade e confiança. Ambas se fazem garantir especialmente no âmbito contratual pela boa-fé.31 Por isso é possível afirmar que “la fiducia giuridificata avrà bisogno di codici binari: diventerà bona perchè, e mentre, dovrà rapportarsi alla mala fides.” (RESTA, 2009, p. 60). O que se percebe é que nem a amizade e, por consequência, nem a confiança se mantém tal como concebidas nas sociedades gregas e romanas de outrora e sim como princípios jurídicos cuja segurança e garantia de respeita- 28 “in sintesi, in particolare per gli usi della sociologia, la fiducia può essere definita come ‘n’aspettativa di esperienze con valenze positive per l’attore, maturata sotto condizioni di incertezza ma in presenza di un carico cognitivo e/o emotivo tale da permettere di superare la soglia della mera speranza’”. (BAGNASCO, 2011, p. 47). 29 Sobre o tema é importante a leitura de RICCOBONO, Francesco. Fidúcia, fede, diritto. In: Parolechiave: nuova serie di problemi del socialismo. Roma: Carocci Editore, v. 42, dicembre 2009, p. 134. 30 “La visione di uma società priva di diritto poichè costruita interamente sulla fiducia e sulla solidarietà, pur nel suo inegabile fondo di verità, è evidentemente un espediente teorico per far affiorare la contraddizione tra l’apertura dei rapporti fiduciari e la determinatezza dei rapporti giu- ridici. Essa, però, detiene pure il merito di fissare le precondizioni sociali per l’instaurarsi di una pratica giuridica.”(RICCOBONO, dicembre 2009, p. 134). 31 Boa fé significa “reciproca lealtà, chiareza, correteza” habilidades necessárias para implantar uma congruente comunicação lingüística antes de ser jurídica além de satisfazer “uno spirito di cooperazione per l’adempimento delle reciproche aspettative”. (BETTI, 1971, p. 390-391).
  • 30. 30 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL bilidade não se dá mais com base em relações éticas/morais, mas pela garantia estatal do judiciário. Nesse ínterim, nasce a necessidade de uma terceira parte que determine o direito aplicado ao caso concreto ou então que auxiliem os con- flitantes a se comunicarem. A confiança está em crise. Essa crise possui dois aspectos fundamen- tais: primeiramente, verificamos uma crise de confiança horizontal observada nas relações existentes entre os cidadãos de modo a identificar o desmantela- mento de laços comunitários, dentre eles e, por exemplo, os laços de amizade e de solidariedade; posteriormente se verifica uma crise de confiança vertical, ou seja, um descrédito evidente e crescente entre o cidadão e as instituições as quais ele se conecta, dentre elas a jurisdição. O primeiro aspecto, pertinente as relações horizontais e a confiança moral/ética somente poderá ser recuperado a partir da implantação de um novo paradigma nas relações entre os indivíduos. Já o segundo aspecto, quanto as relações de verticais observa-se a busca pela aplicação da lei e do Direito para ver garantidos os seus princípios. A principal consequência da perda de confiança enquanto relação ética/ moral é o recurso ao Direito e ao judiciário (o terceiro). Assim, o abuso do direito e a juridificação do social contribuem fortemente para a entropia da confiança. Uma comunidade que usa preferentemente o Direito para resolver seus conflitos é menos confiável e menos capaz de produzir confiança. Perdeu-se a conotação antiga da amizade e da confiança, mas a relação política delas nascida se manteve ainda que garantida por códigos e leis. Mo- dernamente, existem movimentos que buscam resgatar essa conotação ética da amizade e de todos os seus derivados: confiança, solidariedade, fraternidade, alteridade. Quando esses movimentos falham, o recurso é se voltar para o Judiciário e partir ao juiz que, desenvolvendo seu papel de terceiro na relação conflituosa, decide e diz a última palavra. Esse é o debate que se desenvolve a seguir.
  • 31. 31 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet O JUDICIÁRIO EM UM CONTEXTO DE DEMOCRATIZAÇÃO DE DIREITOS: QUAL O PAPEL DO JUIZ COMO TERCEIRO NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS? 2.1 Do conflito interpessoal ao conflito do próprio Judiciário: por onde passamos? O convívio social reiterado naturalmente oportuniza situações de discor- dâncias ou desentendimentos, que podem resultar, muitas vezes, em um conflito, entendido como a frustração de expectativas. Como observa Dahrendorf (1991), o conflito surge quando as expectativas em relação aos papéis que devemos de- sempenhar na sociedade e que o próprio Estado tem para com os cidadãos não são atendidas. Assim sendo, a realização dá lugar à frustração, o que permite à ascensão do conflito. Salienta-se, porém, que, conforme ensinamento de Freund (1995), há que se atentar para a diferença das espécies de conflito, quais sejam a luta e o combate, haja ou não o emprego de meios violentos ou regras para se chegar 2
  • 32. 32 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL ao vencedor. Para o autor Freund (1995), o conflito consiste no enfrentamento de dois indivíduos ou grupos da mesma espécie, os quais se chocam proposi- talmente a fim de afirmar, manter ou restabelecer um direito. Faz menção, tam- bém, a alguns requisitos essenciais para a sua caracterização, tais como a) o enfrentamento é voluntário; b) os antagonistas dever ser da mesma espécie; c) a intencionalidade conflitiva implica em uma vontade hostil de prejudicar o outro (diferenciando-a de agressividade); d) o objeto do conflito é, em regra, um di- reito; e) o conflito trata de romper a resistência do outro e, f) há uma relação de forças que podem ser simbólicas. Note-se que para se configurar o conflito não basta que exista discordância de opiniões entre dois indivíduos ou grupos. É necessário que os envolvidos quei- ram impor ao outro a sua vontade, o que cada um entende como sendo o melhor desfecho ou mais adequado como solução para o conflito. Há a intenção de rom- per com a resistência da outra parte intencionalmente, a fim de impor a sua vonta- de. O conflito é marcado, assim, pela dualidade amigo/inimigo, em que o terceiro é excluído, pois as relações sociais se estabelecem no âmbito desta bipolaridade em que as vontades são dirigidas diretamente para um e outro apenas. E aqui se pode inserir o processo jurisdicional, pois a lide, tradicional- mente conceituada como conflito qualificado por pretensão resistida, gera um combate no seu aspecto sociológico, sendo o choque de vontades entre autor e réu. Não há terceiros em conflito, apenas como intervenientes. No processo há dois adversários que lutam sem o emprego da violência física (embora possa ser simbólica), observando regras antes definidas, com a pretensão de fazer valer a sua vontade sobre a do outro. Assim sendo na dualidade amigo/inimigo que se configura no processo, o juiz é o terceiro exterior chamado a intervir para resolver o conflito. Freund (1995) distingue três tipos de terceiro em relação ao conflito: imparcial, que in- tervém para julgar ou mediar; tertius gaudens, não está envolvido diretamente no conflito, mas dele tira proveito; divide et impera, intervém e alimenta o conflito para manter uma posição exterior, porém dominante. Ao se fazer a passagem do estado de natureza para o estado agonal, que se caracteriza como aquela situação em que se visa eliminar a violência da luta e do combate por formas conflitivas mais civilizadas, tais como a competição e o concurso, chega-se a um Estado de juízes que subordina o conjunto da vida dos indivíduos a leis e re- gras e busca o procedimento jurisdicional para a solução das rivalidades Freund (1995). Evidencia-se, então, o papel do juiz na resolução de conflitos, que tem o monopólio legítimo da decisão vinculante, porém como lembra Spengler (2010, p. 285) o lugar do juiz entre o conflitantes é uma questão complexa, uma vez que ele não se deixa encerrar na fácil formula da lei que assegura a distancia das razões de um e do outro. Ele vive no conflito e do conflito que ele decide, pronunciando a ultima palavra, entretanto um Sistema
  • 33. 33 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet Judiciário chamado a decidir sobre tudo e com poderes muitas vezes discricionários e pouco controláveis, é o lugar que ocultas cotas altas de irresponsabilidade. Enquanto terceiro interveniente no conflito, o juiz deve ser imparcial, bem como atuar no processo como instrumento de democracia, a ponto de Garapon (1997) afirmar que a democracia suscita o conflito, sendo essa uma das diferen- ças que a distingue do sistema totalitário. No mesmo sentido, Spengler; Biten- court; Turati (2012), dizem que somente em uma sociedade democrática é pos- sível que existam conflitos, uma vez que em um sistema de governo totalitário não haveria como se disseminar qualquer tipo de movimento ou embate gerado pela autonomia e liberdade de expressão entre os indivíduos da sociedade, pois qualquer divergência ou discordância entre os grupos seria reprimida por meio de força, haja vista que representaria uma ameaça ao sistema. Assim sendo, a expansão dos regimes democráticos e a transacionaliza- ção dos mercados possibilitou uma conscientização de direitos que, numa so- ciedade de conflito e embate, sempre que não são atendidos são reivindicados. No caso brasileiro, a reivindicação ocorre perante o Poder Judiciário, especifi- camente, uma vez que não se tem a cultura jurídica de meios complementares para o tratamento de conflitos. Acontece, porém, que o Estado, no seu processo de democratização con- feriu aos cidadãos uma gama de direitos que não tem condições de efetivar inte- gralmente, o que gera uma frustração de expectativas em relação às promessas da democracia. Neste sentido, o próprio ente estatal que confere direitos e que deve garanti-los, gera o conflito ao frustrar a sua concretização. Dessa forma, o que se viu – e ainda se vê - no Brasil em relação à frustra- ção de expectativas, é o que Santos (2007) chamou de curto-circuito histórico. Ao mesmo tempo em que se procurou constitucionalizar e positivar direitos, não houve o lapso temporal suficiente para a adaptação social e estatal das medidas necessárias a concretizá-los. O que aconteceu foi uma democratização instan- tânea de direitos, um momento pontual na história do país em que foram garan- tidos direitos a uma sociedade não adaptada, acostumada, até então, a uma realidade política e jurídica oposta, pelo menos, formalmente. De outro lado, porém, um Estado despreparado para lidar com a reação dos cidadãos a esse novo modelo, resultando assim em um desajuste jurídico-social. Em contrapartida, conforme ensina o autor Santos (2007), em países cen- trais, nos quais a mesma democratização ocorreu de forma natural, ou seja, ao longo do tempo na história, essas garantias e novos direitos não impactaram a sociedade e os entes estatais da mesma forma como nos países periféricos. Assim, nesse novo cenário de democratização brasileira, ocorreu o inverso do que normalmente ocorre quando há um lapso de tempo natural, e, portanto, uma transição não tão impactante. O que ocorreu foi que a sociedade teve que se
  • 34. 34 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL adaptar ao novo modelo democrático e não o contrário, trazendo consequências para a atuação jurisdicional. A par dessa questão do alargamento dos direitos democráticos, a comple- xidade social é marcada ainda pela transnacionalização do mercado que gera conflitos a níveis globalizados, evidenciando a ineficácia do Poder Judiciário para o tratamento desses conflitos. Como refere Faria (2001), ele foi organizado para atuar dentro de limites territoriais precisos e no contexto da centralidade da atuação estatal, bem como em tempo diferido e ritualizado, o que é incompatível com a economia globalizada em que a produção32 e o consumo têm proporções massificadas e transnacionais, gerando igualmente a massificação da tutela ju- rídica. Fica, assim, espaço para formas de atuação não-oficiais para a resolução de conflitos que tratem de questões supra-estatais e/ou coletivas. O Poder Ju- diciário não mais se identifica como poder estatal para atuação nestes conflitos, colocando-se em xeque suas funções instrumental e política,33 evidenciando-se, sua ineficiência. Tais circunstâncias são apontadas por alguns autores como a crise do Poder Judiciário, que pode ser identificada como crise de identidade e de eficiência. A primeira por que há certo embaço do papel judicial enquanto me- diador central de conflitos, conforme Spengler (2010) e a segunda em razão do descompasso entre a oferta e procura pelos serviços judiciais, tanto em termos quantitativos quanto qualitativos, segundo Faria (1995). E isto remete ao proble- ma do acesso à justiça na forma como abordado por Cappelletti; Garth (1988, p.13), ao referirem que o “o acesso não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística”. Assim sendo, cabe ao Estado e ao Poder Judiciário a missão multifa- cetada de possibilitar o acesso à justiça e dirimir conflitos do mercado global, concretizar direitos fundamentais positivados internamente com o advento da democratização política, a partir de uma cadeia normativa que tem dificuldades de compreender e interpretar, uma vez que a racionalidade hermenêutica é di- versa daquela com a qual estava acostumado a trabalhar. O Estado, ao legislar, está cada vez mais obrigado a levar em conta as variáveis internacionais que se cruzam em cadeias normativas com as legisla- ções internas, regulamentadoras dos conceitos abertos da constitucionalização dos direitos democráticos. As regras do jogo do Estado Liberal Ditatorial são, 32 A respeito do modo de produção no século XX, Juan Ramón Capella diz que: “Há surgido el mundo de la ciencia al servicio de la producción y el mundo del crecimiento cuantitativo de la producción as servicio del capitalismo. O, por no decirlo al revés: la expansión y el reforzamiento de las relaciones de domínio en su forma capitalista han exigido la masificación de la producción, y ello, a su vez, há puesto el esfuerzo cientifico directamente al servicio de las actividade produc- tivas, orientándolo e impulsándolo para garantizar tal expansión y tal reforzamiento” (CAPELLA, 2006, p. 160). 33 São funções do Poder Judiciário: instrumental, política e simbólica. Sobre o assunto ver FAR- IA, 2006.
  • 35. 35 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet implicitamente, modificadas pela complexidade normativa do Estado Liberal De- mocrático de Direito, sendo necessário um exercício construtivo da interpreta- ção e aplicação da lei, o que fragiliza o papel do Poder Judiciário na resolução de conflitos, pois nem sempre pode concretizar direitos autonomamente. Para Faria (1998), esta impossibilidade de eficácia plena de muitas sentenças e, por conseguinte, das próprias normas e leis em que se fundamentam, depende tanto do empenho quanto da eficiência com que o Executivo cumpre suas obrigações, em matéria de políticas públicas, o que pode reduzir o Judiciário a uma posição secundária não independente se acaso essas políticas não forem formuladas e implementadas a contento. Na tentativa, então, de cumprir suas funções, o Poder Judiciário se vê na contingência de buscar outras formas de atuação, chegando ao que se costuma chamar do fenômeno da judicialização da política que decorre da incapacidade do Executivo e do Legislativo em legislar e desenvolver políticas públicas ade- quadas às exigências da crescente globalização econômica. A redefinição das relações entre os Poderes estatais, colocando o Ju- diciário no espaço da política é, segundo Vianna et. al. (1999), facultada pelo próprio Estado ao lhe confiar a guarda da vontade geral, encerrada de modo permanente nos princípios fundamentais positivados na ordem jurídica. O autor, inclusive, faz uma distinção nesta forma de intervenção do Judiciário na política em judicialização da política e judicialização das relações sociais. Entende que a primeira ocorre por meio do controle abstrato da constitucionalidade das leis, conforme Vianna et. al. (1999) e a segunda por um contexto em que o social desestruturado, na ausência estatal, se identifica com a bandeira do direito, que procura organizá-lo. A posição de Vianna (1999) sobre a judicialização das relações sociais remete ao que Garapon (1999), ao discutir as interações entre o juiz e a demo- cracia, afirma a respeito do Estado provedor. Toda vez que ele se faz mais mo- desto, os cidadãos buscam justificativa para sua ação nas referências do direito e não do Estado. As questões de família e diversidade sexual são exemplo para isto. No Brasil, a ausência estatal quanto às uniões homoafetivas as conduziu ao Poder Judiciário que de modo gradativo as foi reconhecendo e atribuindo direitos até se chegar à possibilidade de casamento.34 Vê-se, assim, que o contexto de democratização e expansão de direitos e de globalização econômica passou a exigir novos contornos para a atividade jurisdicional, pois o seu modo de produção, vinculado a uma tradição oriunda dos dogmas do Estado Moderno, vive uma exaustão paradigmática na qual o juiz, assim como toda a estrutura do Poder Judiciário, estão em conflito. Conflito este que não se limita, no entanto, às novas formas de produção do próprio direito, mas sim ao alcance de sua intervenção. Enquanto poder esta- 34 Conforme Resolução n. 175 do Conselho Nacional de Justiça de 14 de maio de 2013.
  • 36. 36 O PAPEL DO TERCEIRO E AS INTERROGAÇÕES DO CONFLITO SOCIAL tal, o Judiciário tem presenciado a ineficiência da prestação jurisdicional, a qual deixa espaço livre para outros meios de se tratar os conflitos sociais, na qual inexiste a figura do juiz. Trata-se de um direito não-oficial - o direito de produção e a Lex Mercato- ria, como bem classificou Faria (2001), os quais têm como procedimentos a me- diação, conciliação e a arbitragem. Assim sendo, da ausência do Estado surge o pluralismo jurídico. Acontece, porém, que pelo caráter não oficial dessas formas de tratamento do conflito,35 deve-se observar a questão da eticidade e da coer- ção. O direito inoficial só é legítimo se for ético e se a coerção não se efetivar por meio da violência, pois do contrário haverá o que se chama de direito marginal, ou seja, a manifestação da lei do mais forte que usa da força para fazer suas regras e interesses. O direito que assim se estabelece é, na verdade, um antidireito, pois o monopólio da violência legítima36 é conferido ao Estado e só a ele é dado fazer uso de instrumentos de coerção. Tais instrumentos podem ser mais ou menos poderosos, dependendo do tipo de ações violentas que podem acionar ou pelo tipo de condicionamentos a que tal acionamento está sujeito. (SANTOS, 1988). Veja-se que no direito oficial o juiz, por meio de sua decisão, realiza o poder polí- tico de regulamentação da sociedade com o uso da violência legítima do Estado, de modo que todo o sistema punitivo do direito se justifica desta forma. O fato é que por meio da atividade jurisdicional, transfere-se o conflito para o Estado para que o juiz profira uma decisão que, pretensamente, irá re- solver o problema dos conflitantes. Eis, aqui, a jurisdição, compreendida como a 35 O novo Código de Processo Civil Brasileiro, Lei n. 13.105/2015, contempla a mediação e a conciliação como etapas do procedimento comum de conhecimento. A positivação destas formas alternativas de trata- mento de conflitos na codificação processual, no entanto, não garante a sua eficácia enquanto aplicação, pois se tratam de métodos que demandam cultura específica de aplicação (quem serão os mediadores e con- ciliadores? Como trabalharão? com que qualidade serão realizadas as sessões de mediação e conciliação?) e consciência social dos cidadãos e juízes para a necessidade de repensar o conflito em si. 36 Importante observar que foi com o Estado Moderno que se concretizou o processo civilizador e o monopólio estatal da violência legítima. O Estado monárquico impôs uma forte repressão à violência privada e difusa, determinando regras de convivência na corte, domínio das emo- ções e ocultamento do corpo que contribuíram de maneira significativa para a estruturação da personalidade em termos de civilidade. Dessa forma, há a contenção da agressividade pela transferência ao Estado do monopólio da violência legítima, que se exerce por meios repressivos institucionalizados na lei e na atuação do poder pela imposição de penas. Elias (1994, p. 200), ao tratar da mudança da agressividade, explica por meio de exemplos concretos do dia a dia que o Estado foi assumindo o papel de conter os impulsos humanos agressivos, demonstrando sua força, inicialmente de forma explicita com os enforcamentos em praça pública, depois com paradas militares, hoje com policiamento ostensivo, de modo que o individuo foi internalizando o refreamento da violência privada e, como afirma o autor “hoje essa regra é aceita quase como natural. É altamente característico do homem civilizado que seja proibido por autocontrole so- cialmente inculcado de, espontaneamente, tocar naquilo que deseja, ama, ou odeia.”. Ainda, Capella (2006, p. 46), afirma que “el estado detenta a suprema capacidad de violencia; sostiene la reglamentación social y puede incluso inovarla, mediante la amenaza de la coerción – el dere- cho es originariamente uma reglamentación coercitiva - ;y subordina a la suya la capacidade de la reglamentación y de violencia de la sociedad.”.
  • 37. 37 Charlise Paula Colet Gimenez, Fabiana Marion Spengler e Karina Schuch Brunet outorga ao juiz de dizer qual a melhor solução para a situação conflitiva, o que, em determinados momentos históricos teve sua justificativa ideológica e, até certo ponto, efetividade, todavia que se mostra superada como única forma de tratamento de conflitos, como se verá ao longo desta obra. 2.2 Basta dizer o direito para resolver o conflito? Para uma análise histórica do papel do juiz na resolução de conflitos, faz-se um recorte a partir do Estado Moderno, momento que em se publicizou a jurisdição. Neste período, nos sistemas jurídicos de tradição romano-canônicos, manteve-se a antiga ideia romana de separação entre julgamento e decisão. O que não se observou, no entanto, foi que naquela época o direito era regido pelo sistema do ordo iudiciorum privatorum, um sistema estritamente privado, em que não se concebia que o juiz – cidadão romano – tivesse poderes para emitir ordens aos seus concidadãos. A jurisdição era privada e desprovida de qualquer imperium. Equívoco histórico que se disseminou na tradição jurídica e que comprometeu a atividade jurisdicional, colocou o juiz na condição de quem julga, mas não decide, pois a decisão é um ato de vontade. Assim sendo, perpetuou- se a ideia de que o juiz pode dizer o direito,37 mas nem sempre pode satisfazê- lo, principalmente quando a satisfação depende de medidas executivas e mandamentais. Entendeu-se que o juiz estava limitado ao ato intelectivo do julgamento, subtraindo-lhe o ato de vontade inerente à decisão. E, por isso, só podia dizer o direito, por meio de uma atividade intelectual de subsunção do fato à norma. O juiz, no entanto, não é mais que a boca que pronuncia a vontade da lei, numa visão bastante Montesqueniana e errônea do exercício da jurisdição. Montesquieu restringiu a atividade do magistrado à porta-voz de uma vontade da lei, como se ela tivesse vontade e o juiz, ser humano que é, fosse capaz de se despir de toda sua cultura e querer ao exercer sua atividade profissional. Mas a lei não tem vontade. A lei sequer tem univocidade de sentido. O juiz, este sim, com toda sua cultura, por intermédio de uma atividade intelectual, confere sentido à lei e, então, decide. Conhecimento e vontade estão juntos no exercício da atividade jurisdicional. Mas esta lógica era incompatível com o absolutismocaracterísticodoEstadoModerno,noqualparagarantiralegitimidade 37 Judges ought to remember, that their office is jus dicere, and not jus dare; to interpret law, and not to make law, or give law. (Francis Bancon, on line).