O CAP é uma Instituição sem fins lucrativos, voltada aos profissionais das áreas da educação e da saúde, que tem como filosofia o diálogo entre a Psicanálise e a Psicopedagogia, através das inter-relações com as demais áreas do conhecimento. A Instituição se dedica ao estudo e ao atendimento clínico.
Slides Lição 6, Betel, Ordenança para uma vida de obediência e submissão.pptx
Folhetim do Cap - ano 209
1. Folhetim do
Informativo do CAP - Ensino, Pesquisa e Atendimento em Psicanálise e Psicopedagogia - Ano VII - Julho de 2009 - nº 7
VII JORNADA ABERTA DE PSICANÁLISE E PSICOPEDAGOGIA
“Em Pauta: A Partitura do Humano -
Melodia do Paciente e do Analista”
14 E 15 DE AGOSTO DE 2009
Público Alvo:
Profissionais e estudantes da área da saúde e educação.
Objetivo:
Estabelecer aproximações possíveis entre psicanálise, psicopedagogia e música.
Refletir sobre alguns recortes clínicos, tendo a música como metáfora da técnica.
Dia 14 /08 – Sexta-feira Dia 15 /08 – Sábado
Temas Livres 08h 50 – Mesa de discussão – Melodias da Clínica com Andréa Pereira
e Viviane Borin – Psicanalistas.
16h – A criança com visão normal e a criança com deficiência visual em 10h – Coffe Break.
diálogo com Winnicott. Creusa Marques – Psicopedagoga. 10h 30 – Mesa de discussão – Recorte Clínico Psicopedagógico. Adriana
16h 40 – Ressignificando a função materna. Olga Bevonesi – Psicope- Fischer – Mestre em educação e Psicopedagoga.
dagoga. 11h 40 – Discussão Clínica – Composições em Análise. Heloisa Helena
17h 20 – Pssicopedagogia institucional em um centro de formação de Marcon – Psicanalista participante da APPOA, coordenadora do grupo
condutores: abrindo espaço de autoria. Juliana Morschbächer – Pedagoga temático “Psicanálise e Música”(APPOA), saxofonista amadora.
especialista em educaçaõ especial inclusiva, Psicopedagoga. 12h 45 – Encerramento – Iara Maria Pereira – Coordenadora do Depar-
18h – Que a faca que corte dê talho sem dor. Loraine Schuch – Mestre tamento Científico do CAP.
em Psicologia UFRGS e Psicanalista.
18h 30 – Credenciamento.
18:45 – Abertura – Viviane Borin – Presidente do CAP. VALoRES
19h – Conferência de Abertura – Psicanálise e musicalidade. Heloisa
Helena Marcon – Psicanalista participante da APPOA, coordenadora do Inscrições Até 10/08 Após
grupo temático “Psicanálise e Música”(APPOA), saxofonista amadora.
20h:15 – Mesa de discussão – Sons, ritmos e silêncio: entre a experiência Sócios e Estudantes R$ 60,00 R$ 70,00
musical e a musicalidade do paciente, com Iara Maria Pereira – Psicopeda-
goga, Psicanalista em formação pela APPOA e Leandro Michel Antonelo Profissionais R$ 70,00 R$ 80,00
Pereira – Advogado, especialista e mestrado na área de proteção interna-
cional das obras de arte, músico.
Local: Hotel Holiday Inn.Av. Carlos Gomes, 565 – Bela Vista – Porto Alegre/RS InSCRIçõES:
Mediante depósito bancário para Banco Itaú
VAGAS LIMITADAS Agência 0579 – conta corrente 32897-2 e
Sede do CAP – Av. Caçapava, 537 conj. 206 – Petrópolis – Porto Alegre/RS confirmação do mesmo até o dia 13 de agosto.
Contatos: (51) 3388.6403 / 9314.3783 Na instituição – horário de funcionamento da secretaria:
E-mail: cappsic@terra.com.br segunda a quinta das 14h às 18h
ENTREVISTA COM OS CONVIDADOS DA JORNADA
Heloisa Helena Marcon Leandro Michel Antonelo Pereira
Página central Página Central
Seleção aberta para o curso: Diálogos entre Psicanálise e Psicopedagogia - Página 2
2. 2 l Julho 2009
editorial As primeiras escritas como carícia
O CAP ouve as sutilezas que Marlise Von Reisswitz
nos são endereçadas e se propõe,
durante todo o primeiro semestre As primeiras escritas são os in- melodia própria. O bebê também
de 2009 , a estudar questões da mu- tercâmbios das carícias entre a mãe faz ações, sente o corpo materno,
e o bebê. Essas carícias deixam produzindo gestos, olhares, sons
sicalidade , do silêncio, das pausas
marcas como toda a escrita. Pode- diferenciadores.
e dos ritmos que perpassam a clíni- se imaginar essa primeira cena de É verdadeiramente uma cena
ca psicanalítica e psicopedagógica. escrita: a mãe acaricia o rosto do de inscrição, uma cena matriz do
Afinamos nossa escuta. Nos bebê, passa a mão, o dedo, na pele escrever, do ler, do aprender, do
deixamos tocar pela sensibilidade do bebê, faz o contorno do rosto, aprender a ler e escrever. É uma
e pelo encantamento que a música o dedo acompanha o contorno, cena que evidencia dois corpos,
suscita. A partir de então, compu- deixa leve um traço. muito juntos, que vão processar
semos uma partitura inusitada, que A mãe fala com seu bebê. Sua uma longa trajetória de inscrições
expressa a melodia do CAP neste voz é uma carícia, uma carícia no mútuas, que transformam a mu-
momento de sua história. Instante ar que envia sons, ritmos, pausas, lher em mãe e o bebê em filha ou
melodia que escreve/inscreve a filho. Esse lugar que a mãe oferece
pautado por outros tons, novos
possibilidade da escuta do bebê. e que o bebê “toma” (assim como
sons... Toquemos pois uma nova O essencial é a concepção do ele toma o leite) diz de uma matriz,
música! Que o folhetim deste ano escrever como acariciar, poder de uma modalidade de aprendiza-
seja o Prelúdio de uma bela Jorna- se pensar a simultaneidade dos gem, como diz Alícia Fernández.
da de Estudos! Boa leitura a todos! processos de ser escrito e de ser Existe, nesta cena, alguém que
acariciado. Pensar primeiro a es- oferece seu corpo, sua pele, seu
Iara MarIa PereIra crita como advinda da primeira olhar, a melodia de sua voz, como
Coordenadora CIentífICa do CaP carícia, seja do toque, seja da voz, espaço para o bebê se constituir,
seja do cheiro. Esta idéia resgata o poder habitar, se aninhar. Ele “faz
corpo que existe na escrita. coisas, toma coisas, agarra coisa”,
É Ricardo Rodulfo que fala das quem escreve desse modo, com
SELEÇÃO ABERTA PARA cenas de carícias como as primei- estas palavras é Rodulfo. A pe-
ras escrituras. quena criança brinca para estar na
O CURSO: DIÁLOGOS A carícia diz da superfície e do outro, pele na pele, voz no ouvido que presença do outro e/ou também,
contato direto entre peles – rosto e dedo, escuta, a mão traçando linhas, futuras para se ausentar. Estes são processos
ENTRE PSICANÁLISE E entre a melodia da voz e sua recepção letras, vírgulas, pontos no outro. A que vão permitir ao bebê constituir-se
escrita através de carícias faz surgir
PSICOPEDAGOGIA pelo infante. Parece que o dedo faz
aparecer o escrever como acariciar, é significados acariciadores e significan-
como semelhante e ao mesmo tempo
singular. Eles instauram a diferenciação.
O objetivo do curso é fundamen-
ele que, na pele do outro, se mostra tes acariciantes. A falta de carícias ou Nesses processos o bebê é lido e escrito
tar a prática clínica do psicopedago-
go através do diálogo da psicanálise fazendo algo, fazendo gestos e marcas os maus-tratos sobre o organismo do pela mãe ( ou quem faz esta função) e
freudiana com a psicopedagogia de na superfície corpórea. Essa cena lembra bebê atrapalham na constituição do o bebê também ocupa o lugar de leitor
orientação analítica. Conta-se com outra descrita por Ricardo Rodulfo, so- corpo e na possibilidade de desejar. . e escritor. Ele lê o corpo da mãe, vai
a participação de psicanalistas e bre um bebê que brinca com o botão da Estas idéias propõem escrever experimentar seu seio, seu corpo, com a
psicopedagogos que proporcionam blusa da mãe. Esse brincar é uma forma como acariciar no lugar de escrever boca, com as mãos, com as pernas, com
uma visão mais ampla da relação de escrita, de proto-escritura. Rodulfo relacionada só com a fala. Esta con- o olhar, com o nariz, com todo o seu
terapêutica. escreve que este brincar é o primeiro cepção pode produzir outros efeitos. corpo e também deixa marcas no corpo
Estrutura do Curso: Duração - 4 texto escrito que o bebê produz. O bebê Pode-se dizer que a escrita não tem da mãe, criando-se a subjetividade entre
módulos , de um semestre cada, sen- faz o gesto em direção ao botão da blusa só a ver com a linguagem falada, a a mãe e seu filho ou filha.
do os dois primeiros introdutórios e da mãe, gesto que denota o desejo de língua oral, não é a sua transcrição. A O bebê vai aprendendo com o tato,
os dois últimos avançados. Cada mó- pegar o botão, a mãe permite que o filho escrita também tem a ver com marcas com os gestos, com as produções de
dulo possui 2 seminários semanais, que se olham, que são sentidas, que se
use-o para brincar, que o invente como som, com as ações, as inscrições, que
de 1 hora e meia de duração. Tur- deixam ler.
mas especiais para profissionais do brinquedo, que o use para aquilo que ambos têm corpos diferentes, ritmos
não foi feito. O brincar faz surgir uma No corpo da mãe o bebê se ani- diferentes, pensamentos diferentes.
interior.
terceira zona, entre a mãe e o bebê, que nha, coloca coisas suas nesse espaço, São dois e não um só, e que precisam
Público Alvo: Psicopedagogos, tira coisas do corpo materno, mora
Profissionais da Saúde e Educação. Winnicot (1975) propõe como espaço para ser um só, aprender sobre o
transicional. neste lugar. O corpo da mãe é supor- outro, sobre si mesmo e simultanea-
Valor: 12 parcelas de R$150,00 te para o bebê colocar em processo
Mãe e bebê precisam se escrever mente sobre o mundo.
INSCRIÇÕES E INFORMAÇÕES para serem escritos. São inscritos pelas a sua subjetividade. Ele permite à
PELOS FONES (51) 3388.6403 (51) criança instalar-se subjetivamente a RODULFO, Ricardo. La constitución
marcas das carícias, corpo no corpo do
9314.3783, ou na sede da Institui- partir do outro, junto com o outro, del juguete como protoescritura. In:Revista
ção- Av. Caçapava, 537 conj. 206, E.P.S.I.B.A. nº 4. 1996.
possibilitando o desencadear de pro-
diariamente, das 13h às 17h. A mãe fala com seu bebê. Sua ________. Dibujos fuera del papel. Buenos
cessos narcisistas, que fazem parte Aires: Paidós. 1999.
PROGRAMA DISPONÍVEL NA voz é uma carícia, uma carícia do processo de simbolização. A mãe
INSTITUIÇÃO OU VIA E-MAIL ca-
ppsic@terra.com.br
no ar que envia sons, ritmos, funciona como suporte e superfície
pausas, melodia que escreve/ do bebê. É também marcadora de
DOCUMENTAÇÃO NECESSÁRIA: CUR- inscrições e constitui junto com o bebê Marlise Von Reisswitz
RICULUM VITAE E AUTOBIOGRAFIA inscreve a possibilidade da o corpo dele Ela faz isto tocando a Psicopedagoga
escuta do bebê. criança, olhando-a, falando com uma marlisevr@terra.com.br
expediente
Folhetim do CAP é uma publicação do Centro de Ensino, Pesquisa
e Atendimento em Psicanálise e Psicopedagogia - CAP.
Rua Caçapava, 537 conj. 206 Petrópolis - Porto Alegre/RS Fone: (51) 3388-6403
Responsáveis: Andréa Pereira, Iara Pereira, Veruska Bonete e Viviane Borin.
Editoração eletrônica: Bem Estar Comunicação - Fone: (51) 3026.7515
CAP - Fones: (51) 3388.6403/ 9314.3783
E-mail: cappsic@terra.com.br
3. artigos Julho 2009 l 3
Capacidade para desfrutar (Des)afinados
o silêncio! andréa fernandes PereIra* | VIVIane araMburu borIn**
ADRIANA FISCHER* O psicanalista está atravessado
pela curiosidade. Que mundo mora
Imagem: Francis Bacon
Escrevo sobre destinado somente naquele outro? É pela palavra (nas
algo que julgo im- a função protetora e crianças o brincar) que o outro co-
portante para a área defensiva, de algum munica o seu mundo. A psicanálise
da Psicopedagogia modo, cristalizado é atenta ao mundo falado. O de-
e que é anterior a e inerte, que pode safino no discurso destas palavras
capacidade de pen- resultar em certa são protagonistas da cena analítica.
sar ou mesmo de precariedade de seu Essa cena é permeada pelo canto
pensar junto com mundo interno e do paciente que através da palavra
um outro. Refiro-me em alguma pobreza comunica a sua dor. De certa forma na sessão analítica é atravessada
a conquista daqui- em sua vida cul- a melodia que habita a voz do fa- pelos ruídos, dissintonia, e pelo de-
lo que vou nomear tural. Em lugar do lante parece alienada (do latim alie safino do paciente, se encaminhando
como uma capaci- desenvolvimento num=pertence a outro) ao mundo pelo processo analítico para dueto
dade para desfrutar da pessoa através psicanalítico. musical. Os acordes vão ser tocados
o silêncio. Pretendo da experiência e da O Cap em sua última jornada a partir da transferência. O analista
lançar luz sobre uma sua relação com a “escuta” os participantes que pedem com seu ouvido musical vai apu-
das características cultura, vai se ar- um tema onde a poesia fizesse pre- rando o tom através do desafino do
do silêncio na rela- mando um modelo sença constante. Se na prosa existe paciente, é justamente naquilo que
ção terapêutica e diz respeito a uma feito de peças isoladas, uma espécie uma sucessão temporal que constitui o paciente desafina que comunica o
conquista do paciente para desfrutar de colagem. O sujeito apresenta-se o enunciado, na poesia isso é rompi- simbólico. Clarice Lispector já dizia:
do silêncio, em um ambiente seguro, então, com uma pseudo-subjetividade do. A poesia tem razões que a prosa “ ...Eu me defrontei com o impossível
que constituirá uma das bases para o que tem pouco de original. desconhece. Será a música tecida de de mim mesma..Aí eu desafinei sem
pensar. A escolha do termo capacida- É neste caminho que pretendo razões que a poesia e a psicanálise querer...Um sopro de vida.”.
de é proposital pois desejo falar sobre pensar a agitação excessiva de algu- também desconhecem? A curiosidade não pertence so-
uma conquista do sujeito no caminho mas crianças, traduzida por seus pais A poesia da música esta em não mente ao mundo analítico, é inerente
de sua constituição, portanto, que como barulho. Dizem eles: “Só temos pedir licença. Ela penetra o ouvinte. a humanidade. A curiosidade ana-
pode ocorrer ou não. o Joaõzinho, mas é como se tivéssemos Somos desde que nascemos mergu- lítica se distancia do suposto saber
No início da constituição de um uma turma inteira lá em casa.” lhados no mundo sonoro o ouvido á medida que o outro dá a nota e
sujeito, a imagem, a palavra, a presen- Penso que uma forma de dar senti- seguem tocando construindo uma
A poesia da música esta em não
ça viva da mãe, os outros, o entorno do a esse “barulho” seria compreendê- partitura musical. “O analista con-
organizam a construção da subjetivi- lo como uma saída utilizada pelos pedir licença. Ela penetra o ouvinte. voca o paciente em certa hora do dia,
dade em uma estrutura que articulará sujeitos para se desligarem de seu Somos desde que nascemos deixa-o falar, escuta-o, depois lhe fala
o corpo, os afetos e o pensamento. mundo interno, restando um sujeito mergulhados no mundo sonoro e deixa-o escutar.” Para além das pa-
Desta forma, as experiências corporais com pouco potencial criativo. Neste o ouvido único buraco humano lavras pode-se ouvir o tom e a riqueza
e emocionais, amparadas pelo suporte caso, é necessário criar condições, na impossível de ser tapado. contida na melodia que habita na voz
ambiental se traduzem em vivências relação terapêutica, para que o silêncio do paciente de cada dia. Os tristes
que começam a ter representação possa ser vivenciado com prazer e não único buraco humano impossível com seu tom baixo, os eufóricos com
psíquica. Origina-se a constituição de com angústia. Um silêncio no qual seja de ser tapado. Não há cultura sem tom alto os agressivos agudo.
um sujeito que percebe seu próprio possível desligar-se temporariamente musicalidade. Musicalidade que é Ouvindo Tom:
existir, representa-o e dá-lhe sentido, do mundo externo para se ligar ao apresentada ao BB no berço. Esse “... Você com a sua música esque-
registrando-se como protagonista de mundo interno, dos afetos, ampliando mesmo BB que no colo irá brincar de ceu o principal
uma história com continuidade no a trama psíquica. Este silêncio é visto dança com seu corpo. Na evolução Que no peito dos desafinados
tempo. Suas novas experiências são como a criação de uma capacidade será tocado pelas cantigas infantis. No fundo do peito
agregadas a esse núcleo, gerando a psíquica, amparado por um ambiente Qual adolescência que não foi “ta- Bate calado, que no peito dos
noção de que tudo o que experimenta, facilitador, que fornece apoio para este tuada” pela capacidade subversiva desafinados
da ordem do prazer ou do desprazer, sujeito antes que a integração seja um musical? Sem falar no jogo amoroso. Também bate um coração...”
pertence-lhe e forma uma unidade, fato, capaz de permitir ao paciente Qualquer amor que se presa possui Essa foi uma primeira nota fica o
“ouvir”, ou seja, sentir e perceber a si uma música que marca tanto o en- convite para seguirmos tocando na
Um silêncio no qual seja possível mesmo e, portanto, comunicar-se com contro quanto o desencontro. A mu- Jornada “Em pauta: A Partitura do
desligar-se temporariamente o terapeuta a partir de uma relação sicalidade como a poesia quebra com Humano.”
mais verdadeira. Muitos pacientes em a temporalidade. Transporta-nos a
do mundo externo para se ligar memórias por vezes esquecidas nos
início de tratamento ainda não con- 1. Música e Psicanálise - Mª de
ao mundo interno, dos afetos, quistaram essa capacidade e é nesta invocando a sentimentos rompendo Lourdes Sekeff
ampliando a trama psíquica. direção que o acompanhamento pode recalcamentos. ** Sigmund Freud.
ser realizado. “Como a música carrega em seus
um sujeito único. Gradualmente esse Este é apenas um ensaio sobre o flancos o não cs e como a psicanálise andréa fernandes Pereira*
sujeito se torna coeso e se integra, não tema. Há muito mais a ser pensado carrega em torno daquilo que escapa andreiapsica@gmail.com
precisando cindir nem negar o perce- e debatido. a cs a aproximação se reforça.” Po- Viviane aramburu borin**
bido e o experimentado. deríamos pensar que o carregado é viviborin@hotmail.com
A integração se realiza entre corpo, Adriana Fischer - psicopedagoga o mundo simbólico. A música tocada Psicanalistas
afeto e pensamento e esses três níveis (afischer.ez@terra.com.br)
formam uma trama, constituindo o
tecido psíquico que será capaz de
aprender, ou seja, conter e elaborar to-
das as novas experiências ao longo da
vida. Em termos gerais, teríamos um
sujeito que conservou sua originalida-
de e sua potencialidade de mudança
e crescimento através da experiência
e da aprendizagem.
A dificuldade seria descrita como
um aspecto deste sujeito que perma-
neceu precocemente consolidado,
4. VII JORN
“Em Pauta: A Partitura do Humano -
ENTREVISTA COM HELOISA HELENA MARCON
Psicanalista, participante da APPOA, realizar idas e vindas a esse Outro, justo a crença monoteísta. Foi só a partir do séc. IV, de ler Freud, que tem como efeito, um outro
coordenadora do grupo temático partir disso que escapa, construindo, assim, quando o imperador Constantino I converteu- modo de fazer clínica. Em termos gerais eu
“Psicanalise e Música” (APPOA), um lugar de enunciação! se ao Cristianismo que surgiram as condições diria que a leitura de Freud feita por Lacan
para que esse canto se transformasse ou fosse propicia uma abertura, bem de acordo com
saxofonista amadora.
Folhetim do CAP - Pensamos que a mú- transformado – foi unificado no final do sé- o modo lacaniano de pensar o inconsciente -
sica está enraizada na cultura brasileira. E culo VI pelo Papa Gregório Magno – no que hiância. Desde o próprio objetivo da análise
Folhetim do CAP - Heloisa, como psi-
no fazer clinico dos psicanalistas de nosso hoje é chamado de canto gregoriano. Ele é que não é mais o de indentificar-se ao ego do
canalista e música nos conta sobre este
país, existe um lugar para a música? uma música vocal pura, ou seja, canto sem analista, até o modo de vestir-se do analista e
encontro quando o ritmo entra no teu
Heloisa - Bom, eu não sei responder dos qualquer tipo de acompanhamento instrumen- o tempo da sessão que ficam livres de regras
fazer clinico...
psicanalistas brasileiros em geral. Falei um tal. Ainda mais: canto coletivo em uníssono, fixas, pré-determinadas; bom, eram pré-
Heloisa - Eu diria que na minha clínica o
pouco de como isso se passa para mim. O cantado apenas por vozes masculinas. Todos determinadas certamente com base em algo
ritmo surgiu primeiramente como intuição –
máximo que eu me arrisco a dizer é que acho, cantavam a mesma melodia ao mesmo tempo. que não tem a ver com o inconsciente e seu
como acontece quase sempre comigo, aliás.
sim, que a música está enraizada na cultura Bom, acho que só com esse exemplo já con- funcionamento...
Isso porque aos poucos algo que hoje é bem
aqui no Brasil e que, de alguma forma, é seguimos sentir o quanto a música ocidental E no campo da música, talvez, - eu subli-
claro e explícito para mim foi me fazendo
muito provável que a clínica de muitos cole- se transformou desde aí... Acompanhamento nho esse talvez - pois é uma intuição inicial
questão: que tanto o sentido quanto isso que
gas esteja atravessada pela musicalidade da instrumental, diferentes melodias, diferentes ainda, talvez essa virada tenha relação com
escapa ao sentido (e que é justamente o objeto
nossa língua, da nossa cultura. Eu posso dizer escalas e divisões rítmicas são alguns elemen- a diferença do tonalismo para o atonalismo.
da nossa escuta na psicanálise, o sujeito do
também - ao menos eu espero isso - que, na tos que se modificaram ao longo do tempo no Pensei nisso, pois o tonalismo é um sistema
inconsciente) aparecem, se fazem escutar, se
clínica dos lacanianos, existe um lugar para campo da música e o diferente arranjo desses baseado numa certa lógica, ordenação e hie-
utilizam do ritmo. Claro, isso surgiu na minha
a música e para a musicalidade da fala. Para elementos vai compondo a história da música rarquia dos sons a partir das escalas tonais e
própria fala na minha análise e, depois, na
a música no sentido da pulsão invocante, ocidental até a contemporaneidade. das relações entre os sons em cada escala (de
análise dos que escuto.
dos movimentos produzidos num sujeito terças, de quartas, enfim...). No atonalismo
O ritmo tem a ver com acentuação e com
verdadeiramente afetado por uma música e Folhetim do CAP - O tema da nossa há o emprego igualitário de todas as notas da
duração das sílabas e das palavras quando
da fertilidade de falar disso numa análise. E jornada nasce do movimento de sair da escala cromática, havendo superação da dico-
falamos. Sabemos que quando falamos uma
da musicalidade num sentido mais geral, das prosa e entrar na poética. Como tu vês esse tomia consonância X dissonância. O que que-
palavra podemos acabar dizendo outra pela
homofonias significantes, do ritmo da fala, da movimento na música? rem os compositores atonais é a emancipação
forma, pela entonação, pela acentuação que
voz na sua corporeidade, da necessidade da Heloisa - Sair da prosa e entrar na poéti- da dissonância, que não é mais evitada como
lhe damos ao falar. Numa análise, por exem-
prosódia musical na voz da mãe e dos efeitos ca para mim já tem a ver com a música, ou no tonalismo, mas incluída como nota real.
plo, o significante ‘desistir’ que se repete a
de quando isso não acontece, dentre outros. melhor, com a musicalidade. Me faz lembrar Talvez haja uma relação entre esses pontos
cada tanto, pode estar dizendo ‘de existir’, da
de uma citação espe- de virada, mas ainda
existência desse que fala, o sujeito do incons-
Folhetim do CAP - Diante dos ruídos cífica de Lacan feita É isso que se faz quando se destaca, não consigo articular,
ciente! Quando fazemos uma pausa ao falar,
dos pacientes, é possível compor uma me- pelo Didier-Weiill que se sublinha, se recorta, se retira é uma intuição inicial.
para respirar, por exemplo, e por essa pausa
lodia pessoal? Como? diz mais ou menos do contexto, desse indefinido, um
botamos um ponto ou uma vírgula num lugar
Heloisa - Diante dos ruídos? Se tomar- o seguinte: que só a Folhetim do CAP
diferente daquele que pretendíamos colocar, é significante que se repete na cadeia de - Qual a importância
mos o termo ruído no seu sentido musical poesia permite a inter-
também um momento em que opera o ritmo significantes de um sujeito que está
e lembrarmos que é um som de freqüência pretação, poesia que é da pulsão invocante
fazendo aparecer outra coisa que aquela que falando em transferência para nós. E
indefinida (indefinida justo por ter muitas efeito de sentido, mas para a constituição
pensávamos estar dizendo. É um pouco isso
freqüências), acabo de pensar pela questão também efeito de furo. com isso, com esse trabalho na análise, da cça?
um exemplo que aparece no texto do Thrasy-
de vocês, que o trabalho de análise, o traba- Nesse efeito de furo acho que sim, que podemos dizer que Heloisa - A pul-
bulos Georgiades intitulado “A língua como
lho de escuta é justo de escuta e de destaque que ali comparece que o analisante acaba por compor uma são invocante é muito
ritmo”, que traduzi há pouco e encontra-se no
desses sons que estão ali nesse ruído como eu encontro a diferença importante na cons-
Correio da APPOA de maio. Ele fala de uma melodia pessoal, singular.
indefinidos. É isso que se faz quando se fundamental da prosa e tituição da criança,
tradução do Hölderlin para uma frase para
destaca, se sublinha, se recorta, se retira do da poesia. do sujeito psíquico,
a qual ele dá duas opções. “Lira de Ouro!
contexto, desse indefinido, um significante A pergunta de vocês me faz pensar tam- porque ela introduz o bebê, pela música da
De Apollo e às tranças escuras...” e “Lira de
que se repete na cadeia de significantes de bém em Joyce, no seu Finnegans Wake. Isso voz da mãe, que lhe chama, lhe invoca, para
ouro de Apolo! E nas tranças escuras...” Bem
um sujeito que está falando em transferência porque, ficou como marca da minha pequena dentro da linguagem. Mas se trata de um para
diferentes...
para nós. E com isso, com esse trabalho na experiência de leitura dessa obra, que a via dentro muito especial, porque é um para den-
Claro que ele, como historiador da músi-
análise, acho que sim, que podemos dizer que de acesso é pela leitura em voz alta, quando tro da linguagem no que ela tem de indizível,
ca, está interessado apenas em como o sujeito
o analisante acaba por compor uma melodia pelo som, alguma coisa surge, brilha, ressoa. de inefável, de fora da significação, fora da
da consciência (o sujeito da ciência desde
pessoal, singular. Talvez eu não saiba o suficiente de história da relação significante –significado. Chama o
Descartes) aparece e pode se utilizar do ritmo
música ocidental para responder, mas do que sujeito como sujeito do desejo – o que é fun-
para enfatizar algo quando fala. Ele toma o
Folhetim do CAP - A psicanálise com eu estudei, diria que não é essa – da prosa e damental para a constituição psíquica – isso
alemão representando as línguas modernas
o passar do tempo vem se transformando, da poesia - a questão ali que se desdobra. Eu porque a pulsão faz um trajeto, um percurso,
e o grego antigo para compará-los - usando
abrindo diálogos para dar conta das ques- consigo pensar que é mais de uma narrativi- contornando o objeto de desejo. Se ela o con-
ainda um Lied do Schubert para exemplificar
tões clinicas. E com a música acontece o dade ou de uma pureza do som o que vai se torna, deixa ali um buraco. Por isso Lacan diz
- quanto à possibilidade de o sujeito usar o
mesmo movimento? desdobrando na efetividade das tendências, que ele é, no fundo, o objeto causa de desejo
ritmo da língua na formação do sentido. Mas
Heloisa - Não sei se sei responder. Vou ar- movimentos ou escolas que se sucedem e e não simplesmente objeto de desejo. A mãe,
quando ele fala do grego é que aparece isso
riscar falar um pouquinho do que me ocorre. A dialogam na música. A narratividade eu até ao dar o lugar de sujeito do desejo para seu
que nos interessa na clínica, porque quando
música, ao menos a música ocidental, vem se consigo associar com a prosa, mas a pureza bebê e promover o circuito da pulsão, recorta
um grego falava o grego antigo alguma coisa
transformando. No entanto, ela muda em fun- não tem a ver, ao menos diretamente, com a o corpo do bebê, o erotizando.
sempre lhe escapava, esta língua tinha uma
ção de mudanças sociais e ou por discussões poética; talvez algo do lado da livre experi- A voz, por exemplo, enquanto objeto da
rítmica musical autônoma,
teóricas sobre o conceito de música e para quê ência com a sonoridade. pulsão, é justo o que cai, o que se solta, o que
então, o sujeito que falava
ela deveria servir, isto é, se é que ela deveria se desprende do que é dito quando falamos!
se comportava também
ter, necessariamente, uma função utilitária. Folhetim do CAP - Tu enxergas um pon- Ou seja, ela não é o que falamos, mas o que
como ouvinte, pois per-
Tomando o início da música ocidental nos to de virada no movimento psicanalítico? E falta ali. E o sujeito, enquanto desejante, é o
cebia a língua como uma
cantos cristãos de antes do século IV, eram com a música isto também acontece? Estes que se estrutura, se constitui a partir, em fun-
realidade o ultrapassan-
cantos coletivos dos cristãos de diferentes pontos se relacionam? ção, em torno dessa falta. Essa falta que, em
do. Mais ou menos como
nacionalidades que traziam sua experiência Heloisa - Sim, acho que há uma virada suma, é a falta-a-ser, a hiância, o inconsciente.
acontece numa análise
na sua comunidade quando se reuniam com com a saída de Lacan da IPA. Acho que A gente pode pensar, inclusive, a partir do
com o que Lacan chamou
outros nas catacumbas para louvar a Deus. aquele modo ortodoxo de fazer psicanálise que coloquei da pulsão invocante, a diferença
de Outro. Numa análise,
Mas os cristãos naquele momento eram per- ficou restrito a esse âmbito (da IPA e seus disso para o mamanhês, pois ali (no mama-
o sujeito que fala, sendo
seguidos pelos romanos em função de sua seguidores) e foi inaugurado um outro modo nhês) há uma fusão, uma língua transparente,
o do inconsciente, vai
5. Setembro 2007 l 4/5
NADA...
- Melodia do Paciente e do Analista”
em que a mãe entende tudo que seu bebê lhe
diz, lhe demanda. Claro, isso também é fun-
é isso que vem à tona nessa experiência. De
qualquer modo, nós como analistas, quando
A LINGUAGEM MUSICAL
damental para o bebê que, no seu desamparo escutamos e, com isso, propiciamos esse re-
e dependência do outro, precisa que alguém corte, acabamos dando o suporte que Ulisses Leandro Michel Antonelo Pereira – é expressa pelo autor de “Assim Fa-
entenda o que ele precisa. Mas isso é bem não tinha e por isso teve de se amarrar para Advogado, especialista e mestrado lava Zaratustra” que reproduz uma
diferente do que ocorre na pulsão invocante resistir ao chamado, à invocação, ao canto das na área de proteção internacional passagem da obra “Mundo como
enquanto tal, pois ela, eu diria, introduz expli- sereias. Eu queria chamar a atenção sobre um das obras de arte, músico. Vontade e Representação”. Scho-
citamente o campo do equívoco, a alteridade, detalhe nessa metáfora: as sereias de Ulisses penhauer faz uma distinção entre
a diferença primordial, dando possibilidade podiam cantar com uma suavidade e harmonia o mundo fenomênico, a natureza,
INTRODUÇÃO
para o nascimento do sujeito do desejo! inatingíveis às vozes humanas. Quando can- e a música, considerando esta uma
Neste artigo serão expostos al-
Como as demais pulsões, também a in- tavam enchiam o ar com a doçura venenosa expressão do mundo, uma lingua-
vocante vai produzir, no seu caminho, uma de suas vozes... guns pontos de vista sobre a lin-
guagem musical, a sua relação com gem universal. Essa universalidade,
reversão do sujeito: de sujeito invocado entretanto, não seria a universalida-
torna-se invocante, na medida em que há um Folhetim do CAP - No mundo atual a o sujeito e o discurso musical. Será
considerada a música como mani- de vazia da abstração, pois estaria
retorno para o sujeito, disso que vem primeiro imagem fala. Qual o lugar do sonoro no
festação que antecede a palavra, ligada a uma completa e clara deter-
do campo do Outro, no caso aqui a mãe, que mundo de hj?
logo, não será analisada a posição minante. Para a compreensão dessa
lhe invoca e isso é necessário para que depois Heloisa - Eu acho que o sonoro também
segundo a qual a linguagem verbal ligação, Schopenhauer equipara a
ele possa invocar, chamar, ter voz! É mais fala e fala muito no mundo de hoje. Se a
complexo que isso, mas, a grosso modo, dá gente pensar o quanto se produz no campo seria o fundamento de qualquer ou- música às figuras geométricas e aos
para simplificar assim. da música na atualidade... e a música está tra linguagem, como defendido por números, que, como formas univer-
em tudo, desde publicidade, nesse lugar, por Hegel e Lacan. sais de todos os objetos possíveis
Folhetim do CAP - Como a melodia excelência, das imagens, nos filmes, e no Inicialmente, será tratada a ques- da experiência e aplicáveis a priori
da voz materna influencia no psiquismo teatro, e nos carros, e nos cafés, e nos bares, tão do surgimento do discurso mu- a todos, não são, todavia, abstratos,
infantil? enfim, está até difícil achar um lugar com sical, com a ênfase ao seu caráter mas intuitivos e completamente
Heloisa - A melodia na música funciona silêncio hoje em dia... hehehe Sim, aí eu estou dionisíaco, em oposição ao apolíneo, determinados.
um pouco como aquilo que cantamos quando tomando o sonoro incluindo os ruídos ou o analisando-se as ponderações de Ainda pelo mesmo autor, as
cantamos uma música. Isso para diferenciar puro som nesse campo, um pouco como John Schopenhauer e Nietzsche, que as infinitas melodias possíveis, na
da harmonia. Então eu diria que a melodia Cage, embora lhe agradassem todos os ruídos, relações entre música, conceito e universalidade da mera forma, ex-
da mãe é o que vai inscrever, marcar, certos diferentemente de como isso funciona comi- abstração com a vontade e distinção
significantes na criança. Isso no melhor dos go... hehehe Mas pensando, por exemplo, nos da música das demais artes. Em Ainda pelo mesmo autor, as infinitas
casos. É fundamental lembrar que a mãe, ao filmes, as trilhas sonoras são tão importantes seguida, serão salientadas as afirma- melodias possíveis, na universalidade
falar com seu bebê, na linguagem maternante, ou mais do que as imagens para dizer o que da mera forma, exprimiriam a alma
ções de Adorno sobre a proibição aos
funda (ou não) a matriz simbólica na criança, se pretende, ou melhor, para causar o impacto mais íntima do homem, ou seja, tudo
modos musicais queixosos ou moles
ou seja, funda ou não as condições para que que se pretende nos espectadores. Se tomamos aquilo que a razão lança no amplo
e a determinados instrumentos mu-
ali germine a linguagem. A melodia da voz da conceito negativo de sentimento.
mãe tem um papel fundamental na estrutura- Escutar, pensando na escuta psicanalítica, é sicais na República de Platão, como
ção do psiquismo infantil na medida em que é totalmente outra coisa: é escutar isso que exemplo de restrições à manifestação
musical. primiriam a alma mais íntima do
na melodia da fala da mãe, ou seja, nos picos comparece, que vem junto, quando alguém homem, ou seja, tudo aquilo que a
prosódicos que se produzem na fala da mãe fala, ou seja, o sujeito do inconsciente. A seguir, passar-se-á a abordar
a relação do sujeito com a música, razão lança no amplo conceito nega-
quando se dirige a seu bebê, que se produz
conforme os autores Anchyses Jobim tivo de sentimento. Acrescenta que
cortes e se introduz articulações simbólicas a obra do Hitchcock , por exemplo, fica muito
Lopes e Pierre Kauffmann. A voz a música difere de todas as outras
no corpo da criança, ao mesmo tempo o ero- evidente, pois o filme Psicose só é o que é, ou
tizando. Mas esse mamanhês só vai ter efeito seja, só produz o que produz na gente em função materna e a primeira voz serão apre- artes ao não ser cópia do fenômeno
fundante para a criança porque a mãe, quando da música, da trilha sonora. Já na obra do Woody sentadas traçando-se um paralelo ou da objetividade adequada da
fala, faz paradas. Mas não se trata de prosódia Allen e do Emir Kusturica eu sinto um pouco com o estádio de espelho de Lacan vontade, mas cópia imediata da
mais paradas ou alternância no ritmo é igual diferente. A música dá o tom, o clima, como e a ruptura pela qual é responsável própria vontade, apresentando o
à matriz simbolizante. É porque ao fazer tudo que “fecha com chave de ouro” aquilo que os a voz paterna como a linguagem correlato metafísico das coisas físi-
isso, na sua espontaneidade e implicação personagens dizem e a imagem que estamos pré-verbal. Por fim, tratar-se-á dos cas, “para todo fenômeno a coisa em
maternal, a mãe supõe ali um sujeito, por vendo deles e o que se passa com eles. tempos lógicos da relação musical si”, podendo-se denominar o mundo
isso ela abre espaço, produz alternância no Fala um pouco da diferença entre ouvir apontados por Didier-Weill. tanto de música corporificada como
ritmo, estabelece uma convocatória ao outro, e escutar. de vontade corporificada.
instituindo uma alteridade. Bom, ouvir é da ordem da comunicação, 1 A MÚSICA COMO CÓPIA Schopenhauer aborda também a
ou seja, do sujeito (da consciência) que sabe DIONISÍACA DA VONTADE. questão da associação da música a
Folhetim do CAP - Tu pensas que na exatamente o que diz para aquele que ouve e A questão da música está direta- um poema como canto, a uma ence-
música existe um potencial mortífero, entende exatamente o que foi dito. Escutar, mente associada ao imaginário, ao nação, ou, ao que ele considerou a
assim como percebemos na metáfora do pensando na escuta psicanalítica, é totalmente união de ambos, à ópera. E cabe aqui,
sentimento oceânico descrito por
canto da sereia? outra coisa: é escutar isso que comparece, como fez Nietzsche, reproduzir na
Freud e ao gozo além do fálico de
Heloisa - Pois é... eu acho que não está que vem junto, quando alguém fala, ou seja, íntegra o texto desse pensador: “Tais
Lacan. Ao adotar, contudo, a posição
exatamente na música o potencial mortífero. o sujeito do inconsciente. É isso que se escuta imagens singulares da vida humana,
Ela pode provocar uma alienação total de na fala em análise. de que a música antecede a palavra,
é necessário passar pelas reflexões associadas à linguagem universal da
um sujeito a isso que, naquele momento, música, nunca estão ligadas a ela ou
lhe é outro e surge na música, um pouco Folhetim do CAP - A música pode ser de Schopenhauer sobre o tema, que
influenciaram o pensamento de lhe correspondem com necessidade
como o que Nietzsche fala do dionisíaco na escutada como uma forma de comunica-
Nietzsche. completa: estão para ela apenas na
tragédia, ou seja, fusão, embriaguez, falta de ção?
Na obra “O Nascimento da relação de um exemplo arbitrário
contorno. Sim, isso pode ser mortífero, mas Heloisa - Acho que pode ser escutada
Tragédia no Espírito da Música”, para um conceito universal: expõem
não necessariamente, porque, por exemplo, assim, quando ela diz algo para quem escuta.
se um sujeito faz essa alienação, mas fala E também, há, na música ocidental, a proposta Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao na determinidade do efetivo aquilo
disso numa análise, fala disso que lhe toca, de alguns compositores e movimentos, de indagar a relação da música com a que a música enuncia na universali-
que provoca essa embriaguez, essa entrada produzir propriamente uma narrativa musi- imagem e o conceito, socorre-se de dade da mera forma”.
poderosa no Outro, ao falar disso, produz cal, contar uma história, descrever algo da Arthur Schopenhauer (1788-1860). Quanto à distinção ou, de certa
a distância, se separa dessa experiência de natureza ou uma paixão, ainda mais, mostrar A aceitação das ideias desse filósofo forma, oposição, entre conceitos
fusão e insere na sua fala a sua questão, pois os movimentos das paixões.
6. 6 l Julho 2009 artigos
e música, esclarece que os primeiros constava a proibição tanto dos modos possui o seu fraseado, suas “palavras”,
conteriam apenas as primeiras formas musicais queixosos ou moles, que o acentuações e toda a estruturação de
abstraídas da intuição, como que a casca filósofo associava aos modos mixolídio, um discurso que reproduziria o estágio
exterior tirada das coisas, sendo, portan- lídio, hipolídio e jônico, que deu origem de infans.
to, propriamente abstrações, a música, ao nosso modo maior, sem que se sou- Por fim, destaca-se a posição de
por outro lado, daria o mais íntimo besse por qual motivo atribuiu essas Didier-Weill que apresenta quatro
núcleo que precede toda a formação, características a esses modos. Também tempos lógicos de relação musical, a
ou “o coração das coisas”. eram proibidos os instrumentos que não partir da pergunta: o melômano ouve
Retomando essas ideias, Nietzs- imitassem de forma adequada a voz e como sujeito ou como Outro? No
che avança ao colocar que “imagem a expressão do homem, como a flauta primeiro tempo o ouvinte melômano
e conceito, sob a ação de uma música e os instrumentos de muitas cordas. ouviria no lugar do Outro, que recebe-
verdadeiramente correspondente, Concluiu que nos atrativos proibidos ria do músico-sujeito a resposta a sua
chegam a uma significação aumenta- estariam entrelaçadas a variedade do sustenta que “as respostas especulares própria questão, até então mantida
da”. Assim, enumera dois efeitos que prazer dos sentidos e a consciência da ninfa Eco e a perigosa sedução do inconsciente. No segundo tempo, o
costumariam exercer a arte dionisíaca diferenciada. canto das sereias ilustrariam bem o po- Outro-ouvinte coloca-se na posição
sobre a faculdade apolínea: “a música Conforme exposto, a música estaria der de fascinação da voz, precisamente de sujeito, por ter como que recupe-
incita a uma intuição alegórica da uni- ligada à vontade, ao dionisíaco, sendo quando ela evoca, um pouco de perto rado sua questão e tê-la enunciado.
versalidade dionisíaca para em seguida uma linguagem universal anterior à demais, o vestígio sensorial da primei- O terceiro tempo, o melômano trans-
fazer aparecer a imagem alegórica em linguagem verbal, ligado ao sentimento ra voz em que o sujeito, no estágio de formado em sujeito, logo identificar-
sua mais alta significação, para chegar oceânico, sendo formadora do mito trá- infans, ficou como que suspenso. Eco, se-ia com o músico com o outro do
a conclusão da música como formadora gico. O sentimento de gozo que acom- excessivamente falastrona para o gosto amor transferencial, que sustentaria a
do mito trágico, ou seja, aquele que fala panha essa manifestação será tratado a de Juno, a quem manteve entretida com demanda do sujeito, sem satisfazê-la.
do conhecimento dionisíaco em alego- seguir, desde a voz primeira até o êxtase suas palavras enquanto as ninfas deixa- No último, haveria a emergência da
rias, ao contrário do poema lírico, mais da “nota azul”. vam-se abordar por Júpiter, incorreu na “nota azul”, ao introduzir a explosão
vinculado às imagens apolíneas”. Inte- cólera da deusa e foi condenada a repe- temporal.
ressante o pensamento de Nietzsche: “A 2. O SUJEITO E A MÚSICA. tir os sons emitidos por uma primeira Dessa forma, a música estaria ligada
alegria metafísica face ao trágico é uma Após ser tratada a questão do discur- voz. Duplo sonoro de um Narciso espe- à voz primordial e a ruptura simbó-
transposição da sabedoria dionisíaca so musical como uma manifestação dio- cular, conhecemos a queixa melancólica lica caracterizada pela voz paterna, a
instintiva e inconsciente na linguagem nisíaca e a sua relação com a vontade, os de Eco e o lento ressecamento mineral presença do ritmo, o surgimento dos
da imagem: o herói, esse supremo fe- conceitos e a abstração, determinando a de seu corpo. Certamente poderíamos elementos musiciais e a possibilidade
nômeno da vontade, é eliminado, para distinção entre a música e as demais ar- interpretar a história de Eco como o de se chegar ao gozo, que seria o quarto
nosso prazer, porque, justamente, ele tes, é necessária uma análise da relação retorno do sujeito a uma fase primitiva tempo da relação da música apontado
é apenas fenômeno, e a vida eterna da da música com o su- de seu desenvolvi- por Didier-Weill.
vontade não é tocada por seu aniquila- jeito. Para que se che- A música permitiria a contemplação mento, na qual a voz
mento. ‘Acreditamos na vida eterna’, gue a uma pequena e a reconciliação com as ouvida constituiu o CONSIDERAÇÕES FINAIS
assim exclama a tragédia, enquanto a compreensão desse único traço distinti- Para traçar um panorama das rela-
contradições, os conflitos, do
música é a ideia imediata dessa vida” tema. Parte-se, assim, trágico universal, em uma grande vo de seu universo, ções do discurso musical, primeiro foi
Anchyses Jobim Lopes, em seu texto da voz primeira, da traço cujas primeiras visto que a música como uma lingua-
celebração da existência. modulações ele já po-
“Afinal, que Quer a Música?”, comenta ruptura representada gem universal, seria cópia da vonta-
a teoria de Schopenhauer: “Entretanto, pela voz paterna e a dia discernir no seu de, diferente dos conceitos, ou seja, o
no sistema schopenhauriano a música presença do ritmo para se chegar ao estágio de infans”. “coração das coisas”, como lembrou
se distingue de todas as outras artes, sujeito e à possibilidade de gozo. O mesmo autor, ao afirmar que a Nietzsche, ao desenvolver as teorias de
carece do duplo movimento em direção A questão da pulsão invocante foi psicanálise se interessa pela voz, tanto Schopenhauer.
à Verdade. A música: trata-se de uma inicialmente esboçada por Lacan e de- a voz materna, que marcaria o universo Logo em seguida, foi estabelecida a
imediata objetivação, de uma cópia dire- senvolvida na obra de Didier-Weill. Essa sonoro primitivo, como a voz paterna, caracterização da música como forma-
ta de toda vontade. A música, portanto, pulsão, que traria à tona o sujeito, seria responsável pela ruptura simbólica, dora do mito trágico, aquele que fala do
de modo algum é semelhante às outras o traço unitário, inscrito primeiramente aborda a ideia do gozo: “O momento conhecimento dionisíaco em alegorias,
artes, ou seja, cópia de ideias, mas cópia como uma forma musical. A voz mater- hegeliano da ‘consciência infeliz’ que diferentemente do poema lírico, mais
da vontade mesma, cuja objetividade na, por sua vez, não seria invocante pelo o filósofo compara a um ‘estado que vinculado às imagens apolíneas.
também são as Ideias. Emanação direta que diz, mas sim pelo tom, ou afeto, do leva ao gozo’, calcado na nostálgica Dessa diferenciação, possou-se para
da Vontade, Schopenhauer postula a que diz. Nas palavras de Jobim Lopes: felicidade do ser que medita sobre a as considerações de Adorno sobre a
música como uma linguagem univer- “E o invocado não permanece como sua própria incompletude. Além da proibição em relação a alguns modos e
sal anterior a toda outra linguagem, uma mera resposta – informação ou insatisfação existencial que incita o instrumentos musicais na República de
plástica ou verbal”. Acrescenta que reflexo –, que fosse apenas uma voz, um artista a tender para a criação efetiva Platão como forma de ilustrar as barrei-
essas ideias teriam sido retomadas na som, um movimento labial mã (que em (os Wirklichkeiten de Freud), a música ras que podem ser levantadas contra a
obra de Didier-Weill a partir de um todos os idiomas assemelha-se a palavra remeteria a esse gozo impossível de liberdade do discurso musical.
prisma psicanalítico, ao sustentar que que designa mãe), mas como toda uma dizer e impossível de pensar, um gozo Na segunda parte, tratou-se da rela-
a experiência trazida pela música seria abertura à existência. O que é invocado, externo ao significante e cuja natureza ção do sujeito e da música, enfocando os
próxima da experiência mística, na qual também é gesto, que com o crescer do explicaria sua dificuldade de se deixar trabalhos de Pierre Kauffmann e Ana-
o sujeito é oceanicamente contemplado infans torna-se dança, o prazer de come- na linguagem. Talvez, assim, possamos chyses Jobim Lopes, com ponderações
pelo Outro, mas de modo oposto ao da morar pelo ritmo a leveza do corpo. Ou imaginar a música como aquilo que, do a respeito dos ensinamentos de Lacan
invasão do Outro e de seu olhar medú- mesmo a embriaguez dionisíaca, prazer som ligado à palavra do ‘traço mnêmi- e Alain Didier-Weill, iniciando pela voz
sico como psicose. A música permitiria que todas as crianças obtêm girando até co sensorial’ (Freud), teria escapado à primeira até chegar à possibilidade de
a contemplação e a reconciliação com perderem o equilíbrio. Do som original dominação do ‘simbólico’ (Lacan), ou gozo, a nota azul de Chopin, terminan-
as contradições, os conflitos, do trágico invocado, que com o crescer do infans dito de outra maneira, como aquilo no do com os quatro tempos lógicos da
universal, em uma grande celebração é decomposto em fonemas e repetido som que permaneceria irredutível ao relação musical de Didier-Weill.
da existência. em sílabas, originar-se-ia a linguagem. significante”. De todo o exposto, conclui-se que o
Essa celebração, no decorrer da A mesma trilha nietzschiana, da música Elemento integrante do discurso estudo que busca estabelecer a relação
história, fez surgir padrões cujas ori- até a palavra.” Pode-se inferir daí, que musical, o ritmo também se faz presente entre música e psicanálise passa pela
gens são, em sua grande parte, desco- se do gesto se originou a dança, dos sons nesse universo sonoro primitivo, pela questão da abordagem filosófica do co-
nhecidas. Os estudos dos pitagóricos teria surgido a música como um discur- pulsação do coração da criança que mar- nhecimento dionisíaco e de abstrações e
desvendaram as relações matemáticas so estruturado, com regras próprias. ca o discurso materno e a ruptura da voz conceitos. Percorre, também, o caminho
das estruturas musicais. Escalas, modos, Sobre a questão da primeira voz, e paterna, acelerando ou diminuindo a da pulsão invocante, do ritmo cardíaco
ritmos, intervalos harmônicos e meló- fazendo uma simetria com a questão velocidade cardíaca conforme vivência no estádio de espelho, da ruptura repre-
dicos, deram forma a essa linguagem, do estádio do espelho de Lacan, que, essas experiências, bem como o próprio sentada pela voz paterna e os elementos
sendo, muitas vezes, contudo, objeto tal como a situação de captação do ritmo das vozes maternas e paternas. que compõem o discurso musical, ser-
de proibições e restrições. Theodor olhar pela forma especular, poder-se-ia Dessa forma, esses elementos engendra- vindo de um campo de pesquisa que
Wiesengrund-Adorno (1903-1969) em imaginar um mesmo efeito em relação ram o discurso musical a polifonia, os necessita de um olhar mais atento dos
sua obra “O Fetichismo na Música” à captação da voz, Pierre Kauffmann, ritmos, os modos, as melodias, o contra- teóricos tanto do lado da ciência musical
aponta que já na República de Platão em seu trabalho “Psicanálise e Música”, ponto e a harmonia. Também a música como da psicanálise.
7. artigos Julho 2009 l 7
FREUD: um homem de muitos adjetivos [1]
edson LuIz andre de sousa[2
PauLo endo[3]
“É necessário viver a vida ao limite, seu fino senso de humor: “Sua linda de sua queda e as faltas dele, a fonte de
não segundo os dias, mas segundo a fotografia. A princípio, quando tinha o sua felicidade”.
profundidade” original na minha frente, não pensava Crítico: O espírito crítico foi um
Rainer Maria Rilke muito nela; mas agora, quanto mais a dos alimentos essenciais da vida de
contemplo, mais ela se assemelha ao Freud. Sempre foi muito claro em suas
Freud foi um homem múltiplo e são objeto amado; fico esperando que as posições e raramente abria mão de seu
muitos os caminhos através dos quais faces pálidas corem até ficarem como as compromisso com a verdade em prol de
a profundidade de sua vida se revela. nossas rosas, que os braços delicados se alguma conveniência ou vantagem em
Apresentamos uma pequena partitura separem da superfície e peguem a mi- sua vida. Pelo contrário, em inúmeras
como acorde inicial de uma vida que nha mão, mas a querida fotografia não vezes defendeu posições difíceis indo
mostrou a todos a experiência do limite. se move, apenas parece dizer: Paciência! contracorrente do senso comum e tendo
Bibliófilo: Freud relata na “Interpre- Paciência! Sou apenas um símbolo, uma que pagar um preço caro por isto. Sabe-
tação dos Sonhos” (1900) um curioso sombra lançada no papel, a pessoa ver- mos que suas teorias sobre o sonho, as que encontrava na natureza desapa-
episódio que aconteceu com ele quan- dadeira vai voltar e então você poderá hipóteses sobre a sexualidade infantil receria um dia e assim só conseguia
do tinha 5 anos de idade e sua irmã 3 me esquecer outra vez.” e suas experiências com a cocaína não ver o mundo de forma pessimista. Eis a
anos. O seu pai lhes dera de presente Ciumento: Freud também surpreen- foram, no primeiro momento, bem rece- resposta de Freud ao autor das clássicas
um livro sobre uma viagem a Pérsia, deu em seu ciúme. Sua noiva, antes de bidas pela comunidade científica. Freud “Elegias de Duíno”:
com muitas imagens coloridas. Faz conhecer Freud, se interessara por um sempre criticou os profetas de plantão “Neguei ao poeta pessimista que
referência a “uma alegria infinita” com primo cujo nome era Max Mayer. Freud com suas “visões de mundo” sedutoras. o caráter de transitoriedade do belo
que arrancara as folhas do livro junto se sente muito vulnerável sempre que A psicanálise foi construída justamente implicasse em sua desvalorização. Pelo
com a irmã. Escreve Freud: “Mais tarde Marta fala do Max e ,simplesmente, a para implodir as novas formas de alie- contrário, encontramos ali um incre-
uma paixão por livros. Associei sempre proíbe de chamá-lo pelo seu prenome. nação das pedagogias do viver, hoje tão mento de valor. A qualidade do transi-
essa primeira paixão àquela impressão Ela devia chamá-lo Sr. Mayer. em moda. Freud defendia a idéia que tório comporta um valor de raridade no
de infância”. Deprimido: Freud sempre enfrentou cada um deveria desenhar e instaurar tempo. As limitadas possibilidades de
Precoce: Em uma carta a Fliess com muita determinação suas adversi- o seu percurso a partir do confronto/ gozá-lo o tornam tanto mais precioso.
ficamos sabendo de um episódio que dades. Muitas vezes, contudo, relatou encontro com o desejo inconsciente. Manifestei, pois, minha compreensão
marcou muito a vida de Freud e que ter enfrentado estados de depressão , Vejamos em um dos clássicos textos de de que a efemeridade da beleza pudesse
nos indica o quanto algumas imagens desamparo e angústia. Em seu inicio Freud de 1926 intitulado “Inibição, Sin- perturbar o gozo que nos proporciona.
infantis funcionam como motor de de vida profissional, chegou a usar a toma e Angústia” uma passagem que No curso de nossa existência vemos
muitos acontecimentos futuros.. Freud cocaína como anestésico e também an- indica este princípio crítico de Freud: esgotar-se para sempre a beleza do hu-
tinha 7 anos e urinou voluntariamente tídoto contra a depressão. O interesse “Eu não sou de modo algum favo- mano rosto e corpo, mas esta fugacidade
no quarto dos pais. Seu pai irritado o pela cocaína foi despertado por um rável à fabricação de visões de mundo. agrega a seus encantos algo novo. Uma
repreende: “Este menino nunca vai ser artigo do dr. Théodor Aschenbrandt Deixa-se esta tarefa aos filósofos que flor não nos parece menos esplêndida
nada na vida!” Freud ficou muito ma- em dezembro de 1883 quando Freud confessadamente acham impossível em- se suas pétalas só estiverem viçosas
goado com a frase e esta cena retornou tinha 27 anos. Retomando as teses do preender a viagem da vida sem um guia durante uma noite”.
incessantemente em seus sonhos. Disse psicofarmacologista italiano Paolo turístico tal, que forneça informações Resignado: Aceitar as limitações da
ele: “Nos meus sonhos, essa cena se Mantegazza (1831-1910), Freud via, na sobre tudo. Aceitemos humildemente o vida, a lógica da natureza, as determina-
repetia muito seguido, sempre acom- cocaína, uma “droga mágica”, capaz desprezo com que nos olham, sobran- ções do inconsciente, a fúria do destino
panhada de uma enumeração dos meus de restaurar as forças e curar desde a ceiros, desde o ponto de vista de suas sempre esteve na ordem do dia para
trabalhos e dos meus sucessos, como impotência até a congestão nasal. Nunca necessidades superiores. Porém, já que Freud. Uma das experiências mais dolo-
se eu quisesse dizer: “viu, eu me tornei foi um viciado na droga, e Jürgen von também não podemos recusar nosso or- rosas de sua vida foram os quase 16 anos
alguém!” Scheidt, que escreveu um ensaio sobre gulho narcísico, procuremos nosso con- em que conviveu com um câncer no
Trabalhador idealista: Freud muitas essas experiências de Freud, insiste em solo na consideração de que todos esses maxilar direito. Teve que colocar uma
vezes trabalhava sem receber nada. São que isso se deveu ao gênio e à perso- “guias de vida” rapidamente envelhe- prótese na boca, que nomeou como“O
muitos os pacientes que acolheu de situ- nalidade do mestre vienense. Também cem, que é justamente nosso pequeno monstro”. Esta prótese era uma espécie
ação financeira precária. Muitos deles se é importante sublinhar aqui um dado trabalho, limitado em sua miopia, que de dentadura ampliada destinada a
analisaram quase sem custos. Em uma histórico que faz toda a diferença na torna necessárias novas edições destes, separar a boca da cavidade nasal. Eis o
carta a Marta de maio de 1886 vemos relação de Freud com a cocaína e suas e que mesmo os mais modernos guias que diz Freud em uma carta de 1924 a
com clareza sua posição: “Vejo que, para pesquisas: na segunda metade do século são tentativas de substituir o velho, tão Lou Andreas Salomé:
um médico, trabalho e renda são duas 19, não havia proibição ao uso da coca- confortável e tão completo catecismo. “Aqui está uma pessoa que, em vez
coisas muito diferentes. As vezes se faz ína .Era consumida em chás, cápsulas, Sabemos precisamente quão pouca luz de trabalhar duro até a velhice e então
dinheiro sem levantar um dedo, outras vinhos com cocaína e até mesmo na a ciência até agora pode lançar sobre os morrer sem preliminares, contrai uma
vezes se trabalha como escravo sem popular coca-cola, que, até 1903, tinha enigmas deste mundo: todo o barulho doença horrível na idade madura, tem
recompensa. Anteontem, por exemplo, esse produto na sua composição. dos filósofos não poderá alterar nada de ser tratada e operada, dissipa seu
um médico americano veio ver-me com neste quadro, apenas a paciente conti- dinheirinho ganho com sacrifício, gera
uma doença nervosa, caso complicado Eis o que diz a Marta em uma carta nuação do trabalho que subordina tudo e desfruta descontentamento e, em se-
que me interessa tanto que o aceitei sem de abril de 1884: a uma exigência de certeza, pode lenta- guida, se arrasta por aí indefinidamente
receber nada.” “Em minha última crise séria de de- mente produzir uma mudança. Quando como um inválido”
Apaixonado: Freud sempre se en- pressão, voltei a tomar cocaína, e uma o caminhante canta na escuridão, recusa
tregou às suas paixões de corpo e alma: pequena dose bastou para me levar seu estado de angústia, mas não por isso A cada leitor de ampliar este pe-
aos amores, às amizades, aos pacientes sensacionalmente às alturas. Estou, no pode ver mais claramente”. queno esboço de adjetivos como a nota
e, sobretudo, ao conhecimento. Em momento ocupado, para seu louvor, Otimista: Como grande criador, po- inicial de uma musica ainda a ser escrita
sua correspondência temos inúmeros em fazer um levantamento da literatura demos dizer que Freud segue o adágio e reescrita indefinidamente.
relatos do seu envolvimento absoluto científica relativa a essa droga mágica.” proposto por Albert Camus “Criar é
com aquilo que estava lhe instigando Dois anos depois em outra carta para viver duas vezes”. Assim, vemos atra- [1] Neste pequeno texto apresenta-
em determinado momento. Em sua Marta escreve: “A pitada de cocaína que vés de sua obra uma vida expandida e mos um brevíssimo fragmento do livro
correspondência com a noiva Marta acabei de tomar está me pondo tagarela, a presença sempre de uma aposta do Sigmund Freud: Ciência, Arte e Política,
Bernays encontramos preciosidades de minha mulherzinha. Vou continuar a poder salvador da palavra. Um diálo- LPM, Porto Alegre, 2009.
imagens sobre a paixão. Vejamos este escrever para comentar a sua critica à go comovente sobre esta questão entre
pequeno trecho em que faz dialogar de minha miserável pessoa. Você compre- Freud e o poeta Rainer Maria Rilke está
forma instigante a fotografia e a vida. ende a estranheza da construção de um relatado por Freud em um belo texto de [2] Psicanalista. Membro da APPOA.
Em trechos como estes, vemos também ser humano, dá-se conta de que as vir- 1915 que nomeou “Transitoriedade”. Professor da UFRGS
a desenvoltura estilística de Freud e o tudes dele muitas vezes são a semente Rilke se queixava de que toda a beleza [3] Psicanalista. Professor da USP