1) O texto discute o conceito de morfema, a menor unidade lingüística com significado, como raízes, afixos e palavras gramaticais.
2) Explica exemplos de morfemas como prefixos, sufixos e desinências e como um mesmo som pode ser um fonema ou morfema dependendo do contexto.
3) Reflete sobre casos complexos que desafiam a teoria, como se "demais" é uma ou duas palavras.
1. Morfema
Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Na coluna passada, comentei a confissão de Cony. Dizia ele que nunca ouvira falar de
morfema, e que acabou sabendo do que se trata em conversa com Evanildo Bechara.
Pensei comigo: talvez seja o caso de comentar o conceito. Começo como Cony: vou a um
dicionário, o Houaiss. Antes, uma retificação: disse na coluna passada que considerava
suspeita a definição de Houaiss. Mas não é verdade: ela é ótima. Na verdade, Cony citara
a do Aurélio, que é bem ruim, pouco clara, talvez errada. A do Houaiss é corretíssima, e eu
a transcrevo:
(Morfema é) a menor unidade lingüística que possui significado, abarcando raízes e afixos,
formas livres (p.ex.: mar) e formas presas (p.ex.: sapat-, -o-, -s) e vocábulos gramaticais
(preposições, conjunções) Para o estruturalismo norte-americano, pode ter ainda outras
manifestações, como a ordem das palavras na frase, indicando as funções sintáticas dos
constituintes, ou a entonação sozinha, que pode mudar o sentido de um enunciado: Você
vai. Você vai?
A definição mais resumida é "menor unidade significativa", ou seja, uma unidade "material"
com sentido. Por exemplo, um radical (com-, de comer, sapat- desapato) é um morfema;
um prefixo (in-, des-, re-) é um morfema; um sufixo (-eiro, -mente, -ão) é um morfema.
Também são morfemas "desinências" (-s final deestás) e flexões (-s final de sapatos).
Claro, também são morfemas palavras como "mas", "também", "menos" etc. De tudo isso
a definição dá conta. Ou seja, Cony deve ter entendido logo que Bechara desvelou o
segredo.
Mesmo assim, vale a pena esticar a conversa. Sei, por experiência, que alunos reagem
bem quando se explicitam fatos que, no fundo, são banais - mas que a escola tratou um
pouco confusamente. Por exemplo, que o que parece ser uma unidade pode não ser ou
pode ser mais de uma. Por exemplo, "s" é apenas um fonema em palavras (ou
"contextos") como sapato, sala, salame, assado, nascido, vamos etc., mas é um morfema
de um certo tipo em estás, comes, lavas(significa segunda pessoa do singular) e é
morfema completamente diferente emsapatos, meias, mesas, livros (significa mais de um).
Mais: em desfazer, dês é um morfema, um prefixo, que significa "voltar ao estágio anterior"
(!!)), mas em desmanchar, dês não é um prefixo (desfazer não está para fazer assim
comodesmanchar está para manchar).
Os alunos mais sacadores logo descobrem porque Saussure, por exemplo, disse que uma
língua é um sistema em que não importa a substância, mas apenas a forma. Isto é, não
importa o que "é" um "s", mas em quais relações ele entra no sistema da língua: se no final
de uma forma verbal ou nominal específica, oposta a outras formas verbais (estás / está,
estamos, estão) ou a outras formas nominais (sapatos / sapato / sapateiro). Em cada caso,
está em um paradigma diferente, num subsistema diverso. A dupla sapato / sapatos, aliás,
fornece um bom exemplo de morfema ZERO, isto é, do FATO lingüístico de que um
sentido (o de singular) não é marcado (em português). Ou seja, nós sabemos que um
nome está no singular (isto é, que se refere a uma unidade) apenas porque ela não tem
marca de plural. Ou seja, que a marca de singular é ZERO, que o singular não é marcado
em português.
2. Evidentemente, para quem gosta de estudar, os casos mais interessantes não são os
evidentes, ou os tornados evidentes. Os melhores são aqueles que obrigam a teoria a
ranger, ou aqueles cuja explicação põe a teoria (ou alguns fatos que pareciam claros) em
questão.
Por exemplo: "demais" é uma palavra (um morfema) ou são dois (de + mais)? Estamos
acostumados a escrever "tudo junto",o que pode fazer com que pensemos que se trata de
uma palavra (simples). Mas, se olharmos de perto seu funcionamento em termos de ordem
dos advérbios de intensidade, surge um problema. Vejamos. Advérbios de intensidade têm
uma ordem mais ou menos fixa. Vêm antes de adjetivos (muito bom. *bom muito), antes
de advérbios (muitobem, *bem muito) e depois de verbos (come muito, *muito come).
Mas as locuções que têm o mesmo valor sempre vêm depois da palavra a que
"modificam": é bom pra burro (*pra burro bom), joga bem pra burro (*joga pra burro bem),
come pra burro (*pra burro come).
Ora, demais se comporta como as locuções: bom demais (*demais bom),
bemdemais (*demais bem), come demais (*demais come). Se tudo o mais for
igual,demais deveria ser uma locução... Ou seja, duas palavras. Veja o que dizem os
dicionários... E tente ver como se comporta paca e qual é sua derivação...