1. UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
CENTRO DE CIÊNCIAS E HUMANIDADES
CURSO DE PEDAGOGIA
FLÁVIA SAVOIA DIAS DA SILVA
CONTOS DE FADAS... SONHOS... UM UNIVERSO DE APRENDIZAGEM?
São Paulo
2007
2. FLÁVIA SAVOIA DIAS DA SILVA
CONTOS DE FADAS... SONHOS... UM UNIVERSO DE APRENDIZAGEM?
Trabalho de graduação interdisciplinar
apresentado à Universidade Presbiteriana
Mackenzie, Centro de Ciências e
Humanidades, como requisito parcial à
obtenção do título de licenciatura em
Pedagogia.
ORIENTADORA: Profª. Ms. Mônica Hoehne Mendes
São Paulo
2007
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3. FLÁVIA SAVOIA DIAS DA SILVA
CONTOS DE FADAS... SONHOS... UM UNIVERSO DE APRENDIZAGEM?
Trabalho de graduação interdisciplinar
apresentado à Universidade Presbiteriana
Mackenzie, como requisito parcial para a
obtenção do título de Licenciatura em
Pedagogia.
Aprovada em
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________________
Profa. Ms. Mônica Hoehne Mendes – Orientadora
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________________
Prof. Ms. Ronê Paiano
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Ingrid Hotte Ambrogi
Universidade Presbiteriana Mackenzie
3
4. A todas as pessoas que contribuíram na
minha formação, não somente
profissional, mas em todo meu
desenvolvimento. Aos meus pais pela
confiança, à minha avó Helena pelo
carinho, ao meu namorado Leandro, pelo
incentivo, aos professores pela
credibilidade e ao meu irmão e amigos
pela compreensão.
4
5. AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por terem me acompanhado e apoiado todas minhas decisões pessoais
e profissionais.
À Profª. Ms. Mônica Hoehne Mendes, minha gratidão por ter sido uma orientadora
presente, compreensiva e ter compartilhado comigo a ousadia de realizar esse trabalho.
À Profª. Ms. Adriana Aroma da Silva Camejo, eu agradeço pela confiança e auxílio na
minha formação enquanto pesquisadora.
Aos demais professores do curso de Pedagogia da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, que por meio de muitos elogios, auxiliaram meu bom desempenho acadêmico e
em alguns casos, superaram as barreiras professor / aluno, criando um forte laço de amizade.
À Marlise Rodembush, diretora da escola Villacor, por permitir a coleta de dados e a
inserção do projeto idealizado nesse trabalho em sua proposta pedagógica.
À Nayara Vicari de Paiva Baracho e Renata Shenkman Podgaec pela revisão textual
desse trabalho.
Agradeço a Deus, pois sem Ele nada seria feito.
5
6. “Um dia me disseram que as nuvens não eram de algodão...”
(Engenheiros do Havaí)
6
7. RESUMO
Este trabalho discute o papel dos contos de fadas no decorrer da história e faz menção
às concepções atuais do desenvolvimento infantil com implicações na área da psicanálise e da
psicologia analítica. Para tal, traz Bruno Bettelheim e Marie Von Franz como principais
referências.
Além disto, com base na obra de Roberto Gambini aborda os sonhos no contexto
escolar tomando como grupo de estudo algumas crianças que estão na fase edípica, proposta
por Freud.
Procura verificar as semelhanças e diferenças entre sonhos e contos de fadas visando
maximizar o desenvolvimento integral dos alunos dentro da instituição educacional ao
trabalhar com o potencial do imaginário infantil.
Palavras-chave: Contos de Fadas. Sonhos. Psicopedagogia. Aprendizagem. Desenvolvimento.
Escola.
7
8. ABSTRACT
This work discusses the fairytales roll throughout the history and refers to the current
conceptions of the children’s development with implications in the psychoanalysis and
analytical psychology. For that purpose, it brings Bruno Bettelheim and Marie Von Franz as
the main references.
Besides, based on the work written by Roberto Gambini, it approaches the dreams in
the scholar context, using some children who are in the Edipic phase proposed by Freud as a
study group.
It tries to examine the similarities and differences between dreams and fairytales
aiming to maximize the integral development of students within the educational institution
when working with the childhood imagination potential.
Key words: Fairytales. Dreams. Psycho-pedagogy. Learning. Development. School.
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9. SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 10
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ............................................................................... 14
2.1 SOBRE CONTOS DE FADAS .................................................................................... 14
2.2 SONHOS: SUA RELEVÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO ... 24
2.3 INTER-RELAÇÃO ENTRE SONHOS E CONTOS DE FADA ................................. 29
2.4 COLETA DE DADOS .................................................................................................. 35
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 46
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 55
5. REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS .............................................................................. 57
6. ANEXOS ........................................................................................................................ 58
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10. 1. INTRODUÇÃO
Depois de ter cursado um ano do curso de Psicologia e estar concluindo o curso de
Pedagogia, sinto que as áreas pedagógicas e psicológicas não estão apenas uma ao lado da
outra, mas que elas se complementam. Essa interligação é essencial à formação do sujeito.
A educação não pode deixar de lado o caráter psíquico inerente a cada um de seus alunos.
Acredito que a Psicopedagogia é um tema que deve ser explorado não apenas por
especialistas, como por todos os educadores, inclusive, em sua formação. A Psicologia da
Educação não abrange o desenvolvimento integral dos alunos, até mesmo pelo pouco tempo
em que ela está presente no curso de Pedagogia. Não basta somente compreender as fases do
desenvolvimento psicológico pelas quais todos nós passamos - é necessária uma abordagem
que analise as especificidades de cada educando.
Durante o curso de Pedagogia fomos estimuladas a pesquisar áreas de nosso interesse.
Num primeiro momento, pesquisei sobre a Educação Bilíngüe (português – inglês), afinal, eu
estava fazendo estágio em uma escola cuja proposta para alunos do período integral era da
imersão na língua inglesa. Depois, pesquisei Neuropedagogia, uma vez que quando cursava
Psicologia, tinha muito interesse pelas Neurociências (tendo participado, inclusive, de alguns
encontros de iniciação científica), porém, mais uma vez mudei o tema, pois não se tratava de
algo novo, e sim de uma junção de temas já explorados na formação de docentes e
educadores, como aprendizagem de línguas, neurociências, educação e psicomotricidade, por
exemplo. Por mais que um trabalho de graduação não vise explorar o novo, desejo contribuir
de alguma forma e não apenas relatar o que os educadores já sabem e praticam (ou deveriam
saber e praticar), mas às vezes não usam a terminologia apropriada – como no caso da
Neuropedagogia.
Por outro lado, o interesse pelos sonhos vem de muito tempo, e ao ingressar na faculdade
de Psicologia já tinha o interesse em trabalhar com essa expressão do inconsciente das
pessoas. Porém, ao mudar para a faculdade de Pedagogia, não havia pensado num trabalho
educacional que usasse esse recurso, até que fiz um curso prático de aperfeiçoamento para
professores no Colégio Lourenço Castanho. Nessa escola, eu tive a oportunidade de observar
a sala de aula. Encontrei alguns cadernos com desenhos e anotações no verso de cada um. A
professora me explicou que era um trabalho feito com sonhos. Busquei mais informações com
ela e com a direção, mas me disseram apenas que era um trabalho desenvolvido pela escola.
Fiquei instigada... Para que serviriam aqueles registros?
10
11. Durante a execução desse trabalho de conclusão de curso, fui apresentada à obra de
Gambini (2000) e pude compreender o trabalho realizado nessa instituição. As professoras
sentavam-se semanalmente com seus alunos para que eles relatassem seus sonhos. A proposta
trazida por Gambini (2000), influenciou na coleta de dados desse trabalho, dando subsídios
teóricos e permitindo uma prática consciente. Essa monografia visa a superar a proposta de as
crianças contarem seus sonhos, uma vez que ao professor cabe contar o conto de fadas.
Considerando os arquétipos1 dos sonhos, também presentes nos Contos de Fadas, procurei
relacionar essas simbologias, que estão presentes no cotidiano, mas que são pouco exploradas.
Um único Conto de Fadas pode trabalhar diversos conflitos humanos. E a criança pode se
encontrar pelo simples fato de ouvir essa história, ou de vivenciá-la numa improvisação
teatral.
O mais interessante é que o educador pode ajudar muito a criança ao ouvir seus sonhos.
Agindo assim, ele estará mais próximo de seu aluno, podendo então, propor um determinado
conto para atender os eventuais conflitos.
Ao pesquisar sobre os temas “Sonhos” e “Contos de Fadas” não encontrei nenhum autor
que tenha discorrido sobre essa junção no âmbito educacional. Os autores que exploram esse
tema dentro da educação de formas distintas têm uma formação psicológica. Por esse motivo,
o objetivo desse trabalho é investigar a possibilidade de os educadores lançarem mão dos
contos de fadas e sonhos para mediar a aprendizagem, pois ao considerar o ser humano como
sujeito biológico, cognitivo e emocional, esses dois temas pertinentes à infância podem
contribuir na formação do sujeito.
Para atingir os objetivos aqui propostos, além da pesquisa bibliográfica foi necessária uma
observação prática do estudo. Após o entendimento da epistemologia inerente aos contos de
fadas, foi realizada uma pesquisa qualitativa, uma vez que cada pessoa é única e merece
atenção para suas peculiaridades, não podendo ser vista como número ou quantidade. Para
isso, o enfoque nesse trabalho de graduação abrange uma coleta de dados, pois seria difícil,
devido ao tempo escasso, estabelecer comparações entre sujeitos focando seu
desenvolvimento.
1
Arquétipos – “O arquétipo pode ser definido como uma potencialidade inata de comportamento. Sempre que
reagirmos será de uma forma humana, sempre que pensarmos será de uma forma humana, e assim por diante. O
conceito de arquétipo aproxima-se do conceito de padrão de comportamento da Biologia e do conceito de
instinto, sendo claras em Jung as influências de Platão (conceito de Idéias Originais que precederiam a
experiência) e de Kant (Categorias à Priori de percepção que seriam inatas) (...)Todos os arquétipos contêm uma
polaridade, têm dois pólos, atuam em pares e todos nós , pela própria definição de arquétipos, temos os dois
lados dentro de nós como potencialidades de comportamento: temos a "mãe", mas temos também o "filho";
muitas vezes agimos como o "médico" ( aquele que cura) ou como o "doente". Ambos são aspectos do mesmo
arquétipo, um não vem sem o outro.”. (WENTH, 2007)
11
12. Apesar de haver contos de fadas apropriados para cada conflito enfrentado em uma
determinada faixa etária, cada pessoa tem um ritmo de desenvolvimento diferente. A vontade
e a preferência por um determinado conto varia de acordo com a fase de desenvolvimento e
conflitos que a criança estiver vivenciando, conforme propôs Bettelheim (1980). Isso acontece
devido a diversos fatores, entre eles, primordialmente – de acordo com Vygotsky – o seu
meio. O meio em que a criança vive pode ser observado pelos relatos dos sonhos, quer sejam
realmente sonhados, ou apenas fantasias relatadas. Afinal, a criança relata o que sente, e se o
inventou, foi porque sentiu necessidade de externalizar tal fato.
Em relação a sonhos, a única publicação encontrada na área da educação foi feita por
Gambini (2000), terapeuta e autor brasileiro. Já com relação aos contos de fadas, não há um
nome mais expressivo do que os autores, que são referências internacionais: Franz (1990) e
Bettelheim (1980), que fazem uma abordagem mais psicológica dos mesmos. Quando
direcionados à educação, os autores e pesquisadores geralmente discorrem acerca da
alfabetização ou da fantasia, como é o caso dos mestres citados abaixo, referindo-se à suas
dissertações, segundo sites considerados referências em pesquisas científicas:
Sa (2003) disserta sobre a literatura fantástica produzida durante os séculos XIX e XX.
Apesar de citar Freud, o enfoque primordial é no gênero literário que traz elementos da
fantasia.
Botelho (1998) propõe oficinas de escrita com elementos dos contos de fada, num estudo
realizado com seis crianças, objetivando o interesse pela escrita, considerando a importância
do brincar.
Já Lodi (2004) trabalha com Libras como objeto de alfabetização, usando os contos de
fada como recurso.
Por fim, o mais pertinente a esse estudo, Radino (2001), reflete sobre a oralidade da
Educação Infantil. Partindo do modo de usar os contos de fadas pelos professores, percebeu
que a alfabetização de crianças provenientes de um meio sócio-cultural desfavorecido valoriza
a linguagem escrita e “despreza a oralidade, que perde sua função auxiliar na construção
simbólica da criança, o que facilitaria o próprio processo de alfabetização” (RADINO, 2001).
Esse artigo traz um ponto importante para o presente trabalho, afinal, enfoca a Educação
Infantil e a importância da linguagem oral.
De acordo com Gambini (2000), a oralidade também traz respeito e convivência entre os
colegas, pois com o relato dos sonhos ocorre a “(...) interação subjetiva. O relato de sonhos
promove o aprendizado do respeito pela fala do colega narrador, porque depois vai ser a
minha vez e depois a sua vez” (GAMBINI, 2000, p.114) – o mesmo acontece com os contos
12
13. de fadas, que também usam a oralidade, pois cabe à professora contá-los, uma vez que os
alunos da Educação Infantil ainda não são capazes de lê-los (e se o fizessem, perderiam parte
da vivência emocional em prol da compreensão textual).
Não obstante, assim como foi dito, pretendo contribuir com a área educacional ao articular
sonhos, contos de fadas e aprendizagem significativa. Ou seja, busco mostrar que os sonhos e
contos de fadas são universos semelhantes, que auxiliam na compreensão do universo
imaginário do sujeito em seu processo de desenvolvimento emocional e de aprendizagem,
colaborando, conseqüentemente, com a nova geração em formação, que poderá ser mais bem
resolvida consigo mesma, facilitando a aprendizagem, e também a formação de cidadãos
críticos, possibilitando a tão almejada emancipação e transformação da realidade.
Sendo assim, esse trabalho expressa uma relevância social, pois apresenta uma leitura
teórica e uma proposta baseada em Gambini (2000), tentando superá-lo e indo além, uma vez
que é feita a articulação entre relatos de sonhos, com a possível intervenção da professora ao
ler contos de fadas – já adotados pelas escolas brasileiras - para seus alunos. Essa ligação
propõe um trabalho articulado, mantendo o pedagogo em seu papel de mediador entre o aluno
e seu desenvolvimento, sem julgá-lo como psicólogo ou sem atuar como tal.
Focando nas crianças que estão vivenciando o conflito edípico, abordaremos a
contribuição dos contos de fadas para o desenvolvimento sadio de indivíduos com idades
entre 3 e 6 anos. Para tanto, iremos nos basear nas concepções trazidas por Bettelheim (1980)
ao analisar esse gênero literário sob a ótica da psicanálise. Faremos uma incursão em sua obra
“A Psicanálise dos Contos de Fadas”, que defende essa literatura por atender à necessidade
que as crianças têm de que lhe sejam dadas sugestões de como enfrentar situações a fim de
atingir a maturidade, desenvolvendo um caráter moralmente aceito pela sociedade.
Em suma, para o desenvolvimento desse trabalho, apoiamo-nos nas vertentes da
psicanálise, sobretudo considerando a fase edípica, e na psicologia analítica da perspectiva
jungiana.
13
14. 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1 SOBRE CONTOS DE FADAS
Os Contos de Fadas são a expressão da psique coletiva, que encanta crianças e adultos de
todas as gerações. Isso acontece porque esse gênero literário está carregado de símbolos, e
“(...) é através dos símbolos que a consciência pode perceber os liames entre a psique
individual e a psique coletiva.” (FURLANETTO, 1989, p.4).
Parafraseando Urban, 2001,
“os contos de fada podem ser vistos como pequenas obras de arte, capazes que
são de nos envolver em seu enredo, de nos instigar a mente e comover-nos com a
sorte de seus personagens. Causam impacto em nosso psiquismo, porque tratam das
experiências cotidianas, e permitem que nos identifiquemos com as dificuldades ou
alegrias de seus heróis, cujos feitos narrados expressam, em suma, a condição
humana frente às provações da vida (...) apresentando-nos as situações críticas de
escolha que invariavelmente enfrentamos, não despertariam nem sequer o interesse
nas crianças que buscam neles, além da diversão, um aprendizado apropriado à sua
segurança. Neste processo, cada criança depreende suas próprias lições dos contos
de fadas que ouve (...). Oportunamente, pede que seus pais lhes contem de novo esta
ou aquela história, quando revive sentimentos que vão sendo trabalhados a cada
repetição do drama, ampliando assim os significados aprendidos ou substituindo-os
por outros mais eficientes, conforme as necessidades do momento”. (URBAN, 2001)
Por meio dessas histórias, as comunidades exprimem seus sentimentos e valores.
Atualmente, eles são vistos quase sempre com um final feliz, mas nem sempre foi assim. A
concepção do “...viveram felizes para sempre...”, vinculado intrinsecamente aos Contos de
Fadas é errônea. Na sua origem, os contos apresentavam diversos fins, até mesmo os trágicos,
pois assim, permitia-se aos ouvintes a lidar com suas frustrações.
O “happy end” (final feliz) foi uma maneira de dar esperança para as pessoas ao passar a
mensagem de que, no final, tudo dará certo, mesmo para aqueles que tenham uma vida sofrida
e cheia de desgraças. No entanto, essa é uma idéia nova nos Contos de Fadas, e o marco para
essa mudança surgiu com o escritor americano Walt Disney. Ele popularizou mundialmente
esse gênero literário, modificando muitas histórias, e ainda, vendendo imagens e estereótipos
para cada personagem - o que não acontecia nos contos originais, que exploravam o
imaginário do ouvinte (ou ainda, do leitor, quando alguns foram publicados) apenas pela
história.
A cultura de contar histórias para as crianças não é algo recente. “Pelos escritos de Platão
sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas crianças histórias simbólicas –
14
15. “mythoi”. Desde então, os contos de fada estão vinculados à educação das crianças.”
(FRANZ, 1990, p.11). De acordo com Urban, 2001, Platão também propunha que a educação
da sua época – séc. V a.C. – se desse por conta de mitos que explicassem aos cidadãos a
origem e função de suas castas. Cabe também notar que a função docente ligada ao
emocional já acontecia. Então, por que as professoras atuais – uso o gênero feminino, pois
este ainda é predominante na docência – usam o conto de fada como um gênero literário
apenas na alfabetização? As mulheres perderam a função de passar histórias oralmente para as
novas gerações na sociedade, mas nunca deixaram de educar seus filhos, mesmo que fossem
por simples histórias... Não podemos deixar de lado a importância histórica que os contos
tiveram, e têm, na construção da mente dos indivíduos.
Segundo Bettelheim: “Para a criança e para o adulto que, como Sócrates, sabe que ainda
existe uma criança dentro do indivíduo mais sábio os contos de fadas exprimem verdades
sobre a humanidade e sobre a própria pessoa” (BETTHELHEIM, 1980, p.83).
As sociedades se identificam pelos contos, pois estes utilizam arquétipos e símbolos que
mostram o desenvolvimento da personalidade, e com base nas idéias de Byington (1987), os
primeiros são sempre inconscientes, já os outros são representações tanto do inconsciente
como do consciente.
Os Contos de Fada têm sua origem nos mitos, que segundo o dicionário Aurélio:
“Mito [Do gr. mythos, ‘fábula’ pelo lat. mythu.] S. m. 1. Narrativa dos tempos
fabulosos ou heróicos. 2. Narrativa de significação simbólica, geralmente ligada à
cosmogonia, e referente a deuses encarnadores das forças da natureza e/ou aspectos
da condição humana. 3. Representação de fatos ou personagens reais, exagerada pela
imaginação popular, pela tradição, etc. 4. Pessoa ou fato assim representado ou
concebido: Para muitos, Rui Barbosa é um mito. [Sin., (relativo a pessoa) nesta
acepç.: monstro sagrado (2), (q. v.).] 5. Idéia falsa, sem correspondente na realidade
(...) 6. Representação (passada ou futura) de um estágio ideal da humanidade (...) 7.
Imagem simplificada de pessoa ou acontecimento, não raro ilusória, elaborada ou
aceita pelos grupos humanos, e que representa significativo papel em seu
comportamento. 8. Coisa inacreditável, fantasiosa, irreal; utopia (...) 9. Filos.
Exposição de uma doutrina ou de uma idéia sob forma imaginativa, em que a
fantasia sugere e simboliza a verdade que deve ser transmitida, como, p. ex., no mito
da caverna [q. v.] 10. Filos. Forma de pensamento oposta à do pensamento lógico e
científico. Mito da caverna. Filos. Aquele com que Platão, no começo do livro
sétimo da República, figura o processo pelo qual a alma passa da ignorância à
verdade.”
Nota-se a estreita relação entre mito e conto pela simples descrição do termo. Sendo
assim, podemos dizer que os contos de fada tiveram sua origem há séculos, juntamente com
os mitos.
15
16. Bettelheim (1980) explica que “Os mitos projetam uma personalidade ideal agindo na
base das exigências do superego, enquanto os contos de fadas descrevem uma integração do
ego que permite uma satisfação apropriada dos desejos do id. Esta diferença responde pelo
contraste entre o pessimismo penetrante dos mitos e o otimismo essencial dos contos de
fadas.” (BETTHELHEIM, 1980, p.52). Podendo inferir que o primeiro ensina pelo trágico,
enquanto os contos de fadas auxiliam no desenvolvimento ao dar esperanças de um final feliz.
Outra diferença apontada por esse autor é que nos contos usam-se personagens genéricos,
como “pai” ou “João”, por exemplo, diferentemente dos mitos.
Pelos “(...) mitos, nós compreendemos as nossas razões de viver e isso muda toda a nossa
disposição de vida, podendo muitas vezes mudar nossa própria condição psicológica”
(FRANZ, 1990, p.75). No entanto, nas palavras de Leonhardt (1994, p.30), ambos trazem
respostas às indagações básicas do homem, mas no mito as respostas são mais diretas do que
nos contos de fadas, que tratam os conflitos de forma mais sutil e permitiu o desenvolvimento
dos leitores / ouvintes.
“Quando se contam histórias de fada para as crianças, elas se identificam
ingênua e imediatamente captam toda a atmosfera e sentimento que a história
contém. Se a história do pobre patinho é contada, todas as crianças que têm
complexo de inferioridade esperam que no fim elas também se tornem princesas.
Isso funciona exatamente como deveria ser; o conto oferece um modelo para a vida,
um modelo verificador e encorajador que permanece no inconsciente contendo todas
as possibilidades positivas da vida”. (FRANZ, 1990, p.74)
Segundo Franz (1990), “...os contos de fada também foram encontrados nas colunas e
papiros egípcios, sendo um dos mais famosos o dos irmãos, Anubis e Bata” (p.12, 1990), esse
fato data mais de 3000 anos atrás. “... de acordo com a teoria do padre W. Schimidt: “Der
Ursprung Der Gotteisidee”, existem indícios de que alguns temas principais de contos se
reportam a 25000 anos a.C., mantendo-se praticamente inalterados.” (FRANZ, p.12, 1990).
De acordo com Urban, (2001), a
“data histórica mais antiga nos leva diretamente à fonte do popular tema dos ”Dois
Irmãos", um dos quais geralmente é bom, o outro nem tanto, encontrado em quase
todos os folclores. Ela se acha escrita no papiro egípcio Orbiney (nome de seu antigo
possuidor) datado de 1210 a.C., que se encontra completo e preservado no Museu
Britânico. Relata as desavenças entre dois irmãos, projetadas na dupla de deuses
Anúbis e Bata, que vivem brigando entre si, mas dependem mutuamente um do
outro.” (URBAN, 2001)
Cada conto descreve apenas um fato psíquico, e a maioria deles permanecem inalterados,
os temas básicos são os mesmos. Um exemplo é o caso da mulher redimir seu amado da
16
17. forma animal, isso pôde ser visto na novela O Asno de Ouro, um conto de fada chamado
Amor e Psyche, escrito por um filósofo do século II, Apuleio.
Desde então, os contos de fadas cumprem um importante papel educativo. Eles foram e
ainda são destinados para crianças e adultos. Na Europa, até os séculos XVII e XVIII,
transmitir contos era uma ocupação espiritual essencial. Neles havia algo que faltava nos
ensinamentos cristãos oficiais. Tendo em vista que naquela época a espiritualidade era uma
forma de educar, podemos dizer que eles eram importantes na formação humana. E ainda o
são, pois trabalham dilemas existenciais que a sociedade evita apresentar para as crianças,
como morte, envelhecimento, desejo de vida eterna, luta entre o bem o mal, entre outros.
Com essas descrições, observamos a diferença entre o mito e o conto, uma vez que o
primeiro visa explicar a realidade com dados sobrenaturais, e o segundo, busca dar subsídios
para compreensão da realidade com fatos equivalentes ao cotidiano humano.
Segundo Franz (1990), por interesse científico, no século XVIII, Winckelmann, Haman e
J.G.Heder tentaram interpretar os contos. Herder dizia que nos contos havia uma antiga
crença neopagã, o que o levou a induzir os “irmãos Jakob e Wilhelm Grimm a colecionar
contos folclóricos. Antes disso, os contos de fada haviam sofrido o mesmo destino do próprio
inconsciente, ou seja, eram simplesmente aceitos.” (p.13)
Oberg, 2002, na apresentação do livro Contos de Fada (GRIMM, Irmãos), explica que
“dois irmãos professores da Universidade de Göttingen, na Alemanha, filólogos
eminentes, foram destituídos de suas funções em conseqüência de um fato político:
Jacob Ludwig Karl lecionava literatura alemã quando foi abolida a Constituição de
Hanover e, por protestar contra tal ato, foi demitido do cargo que ocupava e
Wilhelm Karl foi sub-bibliotecário em Göttingem, e mais tarde, professor nessa
mesma universidade, abandonando o magistério pelas mesmas razões que afastaram
seu irmão Jakob.
Em 1849, morando em Berlim, Jakob Ludwig fez parte da Assembléia Geral da
Gota, trabalhando em favor da unidade alemã até o momento em que essa
Assembléia foi dissolvida e ele decidiu abandonar a política para dedicar-se,
juntamente com seu irmão Wilhelm Karl, às publicações e estudos de história,
literatura e lingüística (...). Conhecidos mundialmente como “Irmãos Grimm”,
realizaram importantes pesquisas no campo da tradição popular, deixando um
riquíssimo acervo de histórias, lendas, anedotas, superstições e fábulas das velhas
germânicas, preservadas graças à sua iniciativa e hoje conhecidas como “contos de
fadas dos Irmãos Grimm”.
Os dois irmãos percorreram a Alemanha, registrando as narrativas populares
que recolhiam de pessoas humildes, muitas vezes analfabetas: comadres da aldeia,
velhos camponeses, pastores, barqueiros, músicos e cantores ambulantes que
encontravam pelas estradas ou reunidos em serões em volta do fogo, enquanto a
roda das fiandeiras girava com seu ruído monótono... Tudo isso acontecia nos
primeiros anos do século XIX, quando os velhos costumes pouco tinham mudado e
as antigas tradições conservavam ainda toda sua força.
O resultado desse trabalho foi excepcional: os Kinder ünd Haüsmärchen
(História da criança e do Lar), apareceram num primeiro volume em 1812 com
grande sucesso, seguido de um segundo volume em 1814. A edição completa das
histórias recolhidas saiu em 1819, reunida em três volumes (...). Os irmãos Grimm
17
18. foram precursores da ciência do folclore.” (OBERG, 2002, p.7 e 8. apud GRIMM,
Irmãos. Contos de Fadas)
Os contos devem ser lidos no original, pois a cada versão, muda-se o enfoque de acordo
com o interesse ou simples necessidade subjetiva. “Os irmãos Grimm escreveram os contos
de fadas, como eram contados pelas pessoas das redondezas, mas mesmo eles, não resistiram
algumas vezes a misturar um pouco as versões” (FRANZ, 1990, p.14). Parafraseando Urban
(2001), “Jacob era o mais intelectualizado dos irmãos, mas Wilhelm era quem detinha a verve
da poesia; juntos chegaram a editar 210 histórias” (URBAN, 2001). Junto com Grimm, surgiu
a escola simbólica, da qual Chr. C. Heyne, F. Creuzer e J. Görres eram os principais
representantes.
Outro grande nome para os Contos de Fadas é o de Cristian Andersen (1802-1875). De
acordo com Urban, 2001, esse autor dinamarquês escreveu novelas, peças de teatro, roteiros
de viagens, memórias e poesias, mas foi consagrado por seus contos de fada.
“Filho de um humilde sapateiro e de uma iletrada mãe, mulher supersticiosa que
o influenciou bastante por passar-lhe a tradição oral do campo. Em 1835 publicou
Histórias Contadas às Crianças, com seus quatro primeiros contos. Até 1872,
produziu 168 histórias, logo traduzidas em diversos países, comumente publicadas
em séries de quatro narrativas por livro. Combinando à fantasia infantil sua aguçada
sabedoria, encantou igualmente o público adulto, repetindo a mística do fenômeno
provocado pelos irmãos Grimm; hoje sua obra acha-se traduzida em mais de 100
línguas”. (Urban, 2001)
FRANZ (1990) escreveu que muitos tentaram descobrir a origem dos contos de fadas, mas
nenhuma conclusão é tida como a única verídica. Finalizo a retrospectiva histórica sem
nenhuma afirmação sobre datas, apenas concluindo que os contos de fada são de extrema
importância no desenvolvimento humano, sobretudo se considerarmos a fase de formação
infantil. Segundo Nunes (1999), com “a metodologia dos contos de fada é possível integrar as
abordagens teóricas de Lingüística, de Psicologia Social, de Psicologia do Desenvolvimento e
da Aprendizagem, da Psicanálise (...)” (NUNES, 1999, p.36), assim, trabalha-se com o
desenvolvimento integral da criança, permitindo que a interdisciplinaridade seja feita por
meio do próprio indivíduo.
Apesar dos Mitos terem uma importante ligação com os contos de fada, de acordo com
Oberg, apud GRIMM, Irmãos Contos de Fadas (2002), pelo fato de apresentarem enredos e
situações aparentemente simples, os contos de fadas, diferentemente dos mitos, cujos heróis
possuem essência parcialmente divina, mostram o herói com características humanas,
geralmente uma criança ou um jovem deve enfrentar provas que permitirão seu
18
19. amadurecimento. Exploram questões fundamentais para a humanidade. Talvez por essa razão
tenham se universalizado.
Segundo Bettelheim (1980), “(...) os contos de fadas têm grande significado psicológico
para as crianças de todas as idades, tanto meninas quanto meninos, independentemente da
idade e sexo do herói da estória” (BETTELHEIM, 1980, p.26).
De acordo com Leonhardt (1994) “a origem popular dos contos fica visível pelo fato de
que os heróis das narrativas estão em situação de inferioridade no meio em que vivem e
somente com o auxílio de elementos mágicos conseguem superar essa condição.”
(LEONHARDT, 1994, p.30). Esse autor traz a questão do desejo das classes oprimidas se
libertarem, mas nesse trabalho, iremos enfocar a abordagem psicológica, muito bem explicada
por Bettelheim (1980), que aborda os contos de fadas como uma libertação do indivíduo
consigo mesmo, em busca da personalidade e da autonomia.
Dessa forma, não devemos esconder o lado ruim da vida para as crianças, mesmo porque,
a criança não se sente boa o tempo todo e, a polarização auxilia na formação, conforme
mostra a seguinte passagem: “As figuras nos contos de fadas não são ambivalentes – não são
boas e más ao mesmo tempo, como somos todos na realidade. Mas dado que a polarização
domina a mente da criança, também domina os contos de fadas.” (BETTELHEIM, 1980,
p.17). O desenvolvimento acontece dessa forma, porque “(...) as escolhas das crianças são
baseadas não tanto pelo certo x errado, mas sobre quem desperta sua simpatia e quem
desperta sua antipatia.” (BETTELHEIM, 1980, p.17). Assim, o fato do mal não compensar é
demonstrado por uma bruxa má, que não tem amigos. E nos contos amorais, podemos
observar que mesmo o medíocre pode ter sucesso, como cita Bettelheim (1980), nas trapaças
do Gato de Botas, por exemplo. Assim, a criança tem o modelo do que é certo e do que é
errado.
Como foi muito bem citado por C. Costa (2001), a história O livro dos Abraços, de E.
Galeano, nos mostra que uma história pode se desenvolver dentro do indivíduo e colaborar
com sua formação:
“Quando Lúcia Peláez era pequena, leu um romance escondida. Leu aos
pedaços, noite após noite, ocultando o livro debaixo do travesseiro. Lúcia tinha
roubado o romance da biblioteca de cedro onde seu tio guardava os livros preferidos.
Muito caminhou Lúcia, enquanto passavam-se os anos. Na busca de fantasmas
caminhou pelos rochedos sobre o rio Antióquia, e na busca de gente caminhou pelas
ruas das cidades violentas.
Muito caminhou Lúcia, e ao longo de seu caminhar ia sempre acompanhada
pelos ecos daquelas vozes distantes que ela tinha escutado, com seus olhos na
infância.
19
20. Lúcia não tornou a ler aquele livro. Não o reconheceria mais. O livro cresceu
tanto dentro dela que agora é outro, agora é dela.” (C. COSTA, 2001, p.76 e 77)
Nesse trabalho iremos enfocar a importância dos sonhos e contos de fadas no
desenvolvimento de crianças que estão vivenciando a fase edípica proposta por Freud, onde o
“sonho” (leia desejo) da criança é conquistar o genitor do sexo oposto ao seu (ou mesmo a
figura que represente esse sexo). Bettelheim (1980) mostra como os contos de fadas podem
contribuir nesse panorama vivenciado pelas crianças entre 3 e 6 anos de idade:
“Os detalhes podem diferir, mas a trama básica é sempre a mesma: o herói
improvável se revela matando dragões, resolvendo charadas e vivendo através de
sua esperteza e bondade até que finalmente liberta a linda princesa, casa-se com ela
e vive feliz para sempre.
Um menino sempre se vê nesse papel principal. A estória implica que: não é o
pai aquele cujo ciúme impede você de ter mamãe com exclusividade, é um dragão
malvado o que você na verdade deve ter em mente é matar o dragão (...) não é a
mamãe que a criança deseja para ela, mas uma mulher maravilhosa e magnífica que
ainda não encontrou, mas de certo o fará (...) não é por sua livre e espontânea
vontade que esta mulher maravilhosa (isto é, mamãe) mora com esta figura malvada.
Ao contrário, se pudesse, preferiria estar com um jovem herói (como a criança). O
matador do dragão tem sempre de ser jovem, como a criança, e inocente.”
(BETTELHEIM, 1980, p.142)
Esse autor explica que há contos mais voltados para conflitos edípicos do menino, e outros
para os da menina. Mas nos dois casos, por meio dos contos de fadas, as crianças podem
satisfazer seus desejos na fantasia, enquanto que mantém uma relação equilibrada na vida
real.
Como a história acontece em tempos não definidos e lugares muito distantes, a criança não
mistura com a realidade. E nada se sabe sobre a vida depois do enredo, somente que viveram
felizes para sempre, como acontece na maioria das histórias. Isso não prejudica sua vida real,
nem seu relacionamento com seus pais, o que seria mortal na cabeça da criança, pois teria que
disputar o amor com alguém muito mais forte.
“A integração interna não é algo que seja adquirido de uma vez por todas; é uma tarefa
que nos confronta durante toda a vida, embora em formas e graus diferentes. (...) cada conto
projeta no seu final “feliz” a integração de algum conflito interno” (BETTELHEIM, 1980,
p.112).
20
21. Bettelheim (1980) nos ensina que há duas crises no desenvolvimento - a primeira consiste
na personalidade, na descoberta do “eu”, e a segunda é a crise edípica. E “os contos de fadas
podem até mesmo indicar à criança o caminho através do mais espinhoso dos bosques, o
período edípico.” (BETTELHEIM, 1980, p.90).
Nessa fase de pensamentos contraditórios, ela polariza seus pensamentos em bom ou ruim.
O conto permite que a criança trabalhe esse sentimento ao separar uma pessoa em duas
figuras, permitindo assim, trabalhar com seus desejos bons e ruins, e as possíveis
conseqüências.
Na maioria dos contos de fadas, o fato de o personagem ser expulso do lar significa que é
o momento de se tornar independente suportando a dor para alcançar a própria identidade.
Deve aprender querer viver mesmo se não for casar com seu genitor do sexo oposto.
Com base nas idéias de Bettelheim (1980), defendemos que o conto mostre para criança
que apesar de as bruxas existirem, as fadas também existem, e são muito mais poderosas. Mas
mostra também, que pode ocorrer uma tragédia quando alguém fica obcecado por algo ou
quando é incapaz de esperar até que algo aconteça. “O conto de fada frisa que estes fatos
aconteceram uma vez, numa terra distante, e deixa claro que oferece alimento para esperança,
e não relatos realistas como é o mundo aqui e agora.” (BETTELHEIM, 1980, p.90)
Esse enredo pode ser observado também pelo número três, muito presente nesse gênero
literário. Na proposta desse autor, “o número três nos contos de fadas parece referir-se
frequentemente ao que é encarado em psicanálise como os três aspectos da mente: id, ego e
superego.” (BETTELHAIM, 1980, p.131)
De acordo com ele, o “um” seria a própria pessoa. O “dois”, geralmente simboliza os pais,
e o “três” seria a criança em relação a seus pais.
O princípio da realidade também é encontrado nas três tentativas dos heróis mostrando
que não se consegue tudo de primeira.
Outra característica inerente aos contos de fadas é a floresta, que representa o nosso lado
obscuro, um lugar onde resolvemos nossas questões.
No tema do gigante, a criança pode resolver seus conflitos com o adulto, quando este
mostra ter poder sobre ela, baseando-se na astúcia. Essa derrota do adulto é muito
significativa para a criança, porque “embora a mamãe seja com mais freqüência a protetora
toda-dadivosa, pode-se transformar na cruel madrasta se for malvada a ponto de negar a seu
filhinho algo que ele deseja. (...) A fantasia da madrasta malvada não só conserva intacta a
mãe boa, como também impede a pessoa de se sentir culpada a respeito dos pensamentos e
21
22. desejos raivosos quanto a ela – uma culpa que interferiria seriamente na boa relação com a
mãe.” (BETTELHEIM, 1980, p.84 e 86)
Por fim, dizemos que os sonhos estão intimamente ligados aos Contos de Fadas. No
século XIX, segundo Franz (1990), Ludwig Laistner escreveu Das Rätsel der Sphime, Berlim,
1889. Sua hipótese era de que os contos de fadas e folclóricos tinham os temas básicos
derivados dos sonhos. Karl Von der Steiner, no livro Voyage to Central Brazil, tentou explicar
que as crenças vinham de experiências sonhadas, ou seja, que ao contar os sonhos, formavam-
se os contos. Ele enfatiza, ainda, os pesadelos.
Além disso, de acordo com Furlanetto (1989), Jung, além de afirmar que parte do
inconsciente é coletivo, fez estudos com pacientes que traziam no relato de seus sonhos
conteúdos pertencentes aos mitos e aos contos de fadas. Esses registros são os arquétipos, que
progressivamente vão construindo a personalidade de cada um. O próximo capítulo
completará esse, uma vez que minha hipótese é a de que os contos de fadas e sonhos estão
intimamente ligados e podem auxiliar na construção da personalidade dos indivíduos.
Seguindo esse raciocínio, é pertinente ter um breve panorama da Psicologia Analítica.
Essa ciência estuda a construção da personalidade com base em quatro estruturas arquetípicas
que não acontecem, nem se resolvem de forma linear. São elas: matriarcal, patriarcal,
alteridade e cósmica. Serão resumidamente explicadas pelas idéias de Furlanetto (1989).
A figura materna simboliza alimento físico e psíquico. É essencial e iniciou a vida em
sociedade, mas também está relacionada a afeto, segurança, prazer e vontade de ser desejado.
O patriarcado faz polarizações devido a grande separação entre desejo (inconsciente) e
regras (Ego). Sendo assim, divide as coisas em certo/errado, bom/mau, assim como podemos
perceber na personalidade dos personagens dos contos de fadas. Um exemplo é a escrita, que
busca coerência, estabelecimento de leis e escala de valores. “Surge a importância da
responsabilidade, do respeito. A criança começa a se fascinar pelo mundo do logos, do
conhecimento, e para poder adquiri-lo, fazer parte dele, percebe a necessidade de sacrificar
alguns prazeres do mundo patriarcal.” (FURLANETTO, 1989, p. 14) Vale saber que a mãe
pode representar o patriarcado e vice-versa.
O padrão da alteridade engloba padrões dos dois anteriores: “Existe na alteridade uma
relação livre entre o Ego e o Inconsciente, e essa relação permite à consciência uma redução
das polaridades, formando um padrão dialético de relações.” (FURLANETTO, 1989, p. 16).
Pode ser exemplificada pela política. É regido pelos arquétipos do Animus e Anima. Na fase
da adolescência eles passam a atuar mais fortemente.
22
23. O cósmico supera as polaridades, vê tudo como um todo. Tende a ser mais próprio das
pessoas da terceira idade ou que se encontram com a saúde em fase terminal.
O matriarcal e patriarcal estão presentes desde a fase infantil, por esse motivo, têm para
nós um peso maior - sobretudo se formos considerar os contos de fadas. Ao mesmo tempo em
que o herói busca realizar um desejo, encontrar afeto e alimento físico e psíquico para sua
vida, se depara com as polaridades durante o enredo. Na realidade, não há uma pessoa
completamente boa, ou completamente má, mas descrito dessa forma, torna mais fácil ao
indivíduo desenvolver a personalidade para atingir a maturação proposta pela alteridade.
23
24. 2.2 SONHOS: SUA RELEVÂNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO
Nesse capítulo buscamos mostrar a importância do sonhar e de relatar os sonhos como
colaboração para o desenvolvimento dos indivíduos. Sendo assim, ao estudarmos o fenômeno
do sonho, será possível compreendermos melhor os seres humanos, e conseqüentemente,
encontrar uma via para facilitar a aprendizagem.
De acordo com A. Costa (2006), os sonhos sempre estiveram no imaginário de todas as
culturas.
Que o dormir é importante, todos sabem. Há muitos estudos e até mesmo o senso comum
afirma, assim como Maragon (2007) diz em uma revista de grande circulação entre os
profissionais da educação que as crianças precisam dormir para poder voltar às suas
atividades. Ela ainda afirma que durante esse momento são “liberados hormônios essenciais
ao desenvolvimento”, e que cabe à escola organizar um tempo para aquelas crianças que
permanecem grande parte do seu dia na escola ou na creche. Ela também cita a educadora
Kátia Chedid, que atribui a poucas horas de sono ou noites mal dormidas uma série de
conseqüências, como alteração de humor, dificuldade de socialização, atraso na fala e no
crescimento. De acordo com essa reportagem, cada faixa etária tem necessidade de um tempo
de sono por dia, como mostra o quadro abaixo:
Recém-nascido Entre 16 e 17 horas
De 1 mês a 6 meses Entre 14 e 15 horas
De 7 meses a 1 ano Entre 13 e 14 horas
De 2 a 5 anos Entre 11 e 13 horas
(MARAGON, 2007, p. 83)
Com base nisso, podemos afirmar que: o que se passa em nossa mente durante o sono é
algo presente para todos, e esses pensamentos, sonhos, ou simples descargas energéticas
cerebrais correspondem a aproximadamente um terço de nossas vidas, e metade do dia de uma
criança! Às vezes não percebemos que as crianças sonham, e que o sonhar também faz parte
do cotidiano delas, assim como o brincar, comer, dormir... e sonhar!
Santos (2007) escreveu um artigo destinado ao público infantil, em anexo, o qual me
chamou a atenção. O título da reportagem era “Lindinha, Docinho e Florzinha têm
pesadelos”. Foi inventado um jogo para computador em que, por meio de um sonho mau, as
personagens do desenho animado Meninas Superpoderosas ensinam Inglês, Matemática e
24
25. Português. Ora, logo vemos que, o que se sonha, o dia-a-dia das crianças e a educação são
temas relacionados, e que podem ser proveitosos, desde que explorados de uma maneira
adequada.
A exploração de sonhos tal como conhecemos atualmente teve seu início com Sigmund
Freud. Segundo A. Costa (2006), “com seu clássico livro A Interpretação dos Sonhos,
publicado em 1900, Freud inaugura um campo que permanece único: a abordagem dos sonhos
como uma formação do inconsciente.” (A. COSTA, 2006, p.8). De acordo com a mesma
autora, Freud trata o inconsciente como algo atemporal, o qual não se modifica com o passar
do tempo. E afirma: “Freud propõe a indestrutibilidade do desejo infantil (...) O que se
registra uma vez, permanece sempre em condições de ser reativado (...) seus representantes
mais diretos: além dos sonhos, os atos falhos e chistes.” (A. COSTA, 2006, p.9)
Complementa ainda dizendo que “(...) Freud liga a construção do sonho à culpa – algo que
surge ligado à censura-, e o desejo em causa no sonho seria o de desculpabilizar-se (...)” (A.
COSTA, 2006, p.43)
Apesar de a idéia de que o sonho e o inconsciente estarem muito relacionados, já ter sido
muito divulgado. Jung (1996), um ícone para a psicologia moderna afirmou que o sonho é
“não apenas uma fonte valiosa de informações, mas também um meio muito eficaz de
educação e de tratamento” (JUNG, 1996, p. 165).
Ele também diz que há três espécies de educação:
Educação pelo exemplo: ocorre espontaneamente, de modo inconsciente, pelos pais ou
pelo ambiente;
Educação coletiva consciente: há regras, princípios e métodos. Não se produz nada,
apenas se ensina, visando o coletivo, e não o indivíduo;
Educação individual: pretende-se desenvolver a índole do indivíduo.
Com isso, notamos que psicologia e educação podem sim (e devem) caminhar juntas, para
de fato, formar pessoas por completo, e a escola deve educar levando em conta essas três
modalidades.
Ao utilizar os sonhos em sala de aula, o professor ficará muito próximo da realidade do
aluno, pois de acordo com A. Costa (2006), “o que conhecemos por realidade resulta dos
mesmos elementos com os quais construímos os sonhos” (A. COSTA, 2006, p.19) por mais
que “(...) o que lembramos do sonho não é o próprio sonho – já significa o despertar.” (A.
COSTA, 2006, p.22).
Ele não deverá fazer interferências, a não ser que tenha preparo para isso (ser psicólogo ou
psicopedagogo). Dessa maneira, ao propor que as crianças relatem seus sonhos em algum
25
26. momento da rotina escolar, devemos parar apenas nessa etapa, pois de acordo com JUNG
(1996), “ao trazer-se para a consciência conteúdos inconscientes, provoca-se artificialmente
um estado muito semelhante ao de uma doença mental (...) Deve-se, pois, saber quando
poderá arriscar tal intervenção sem causar dano.” (JUNG, 1996, p. 159). Para fazer isso, o
“melhor método, e também o mais difícil, é o da análise e interpretação dos sonhos”, já que
eles são produzidos pela atividade psíquica do inconsciente. Como o professor não tem estudo
para explorar esse conteúdo, bastaria à escola um momento para que o aluno reflita sua vida...
Esse momento seria tão importante quanto à auto-avaliações, tão defendidas nos métodos
pedagógicos atuais. O próprio Jung (1996) escreveu que “talvez até fosse melhor
concebermos os sonhos como uma espécie de obra de arte, em lugar de ver neles material de
observação científica (...)” (JUNG, 1996, p.169). E uma vez que a escola lida com arte,
porque não incorporar uma obra de arte proveniente de cada aluno como artista? Afinal, como
muito bem A. Costa (2006) lembra, “a corrente do surrealismo, que ganhou relevância e
abrangência na literatura e nas artes plásticas, teve seu modelo na produção onírica.” (A.
COSTA, 2006, p.23)
Bettelheim (1980) também disserta sobre a comparação de contos de fadas e obra de arte,
conforme podemos observar no trecho a seguir. “Como sucede com toda grande arte, o
significado mais profundo do conto de fadas será diferente para cada pessoa, e diferente para
a mesma pessoa em vários momentos de sua vida.” (BETTELHEIM, 1980, p.20 e 21)
A. Costa (2006) apresenta a necessidade de Freud relatar seus sonhos ao seu amigo Fliess,
para elaboração de sua tese, e ainda, para sua auto-análise. Ora, não pretendemos comparar
com a mesma intensidade, mas notamos que ao relatar o que foi sonhado, a pessoa em questão
pode revelar o que se passa em seu interior, para que possa enxergar coisas que o
esquecimento do sonho não traz à tona. Ao relatar um sonho, a pessoa se abre mais do que
imagina, não para os outros, mas para si mesma.
Muitas são as explicações dadas ao motivo dos nossos sonhos. Misticamente, eles podem
até ser considerados previsíveis ou caminho para mensagens divinas, mas psicologicamente,
sabe-se que o sonho é composto por vivências reais, mostradas de outras maneiras, e ainda
que o que acontece no meio ambiente concreto enquanto dormimos, pode influenciar o sonho.
De acordo com A. Costa (2006), Freud propõe que o sonho usa a linguagem textual, e
assim como os hieróglifos, eles devem ser interpretados ao serem lidos. Ao narrar o sonho, a
fala representa a leitura do sonho feita pelo próprio sonhador.
26
27. “Apesar de reconhecermos o sonho como um texto, sua mensagem não é direta:
seus elementos não têm correspondência imediata com aqueles da vida desperta.
Assim, os personagens não correspondem exatamente aos mesmos de quando
estamos acordados.” (A. COSTA, 2006, p.24).
“Todos os elementos do sonho, em alguma medida, representam o sonhador.” (A.
COSTA, 2006, p.25). Essa autora também lembra que os sonhos são próximos dos desenhos,
pois trazem imagens e signos. Dessa forma, uma criança desenhar o que sonhou é tão
significativo quanto seu relato. Essa autora também traz a opinião lacaniana de que há
aproximação entre sonho e uma escrita pictográfica. E Byington (1987) afirma que “O
símbolo e a função simbólica são manifestações da energia psíquica através das coisas e dos
acontecimentos.” (BYINGTON, 1987, p.19) Os símbolos podem ser encontrados nos contos
de fadas, mas também são muito significativos nos sonhos.
A partir dessas considerações, apropriamo-nos do trabalho de Gambini (2000), que mostra
um projeto realizado com crianças da Educação Infantil, as quais relatam seus sonhos aos
colegas e à professora de sala de aula por meio de desenhos e da linguagem oral, e que terá
nossa maior atenção a partir do próximo capítulo. Por ora, basta refletirmos sobre alguns
trechos propostos por A. Costa (2006) para compreendermos a interligação entre realidade,
sonho e fantasia, sendo aqui explorado sob a ótica dos contos de fadas: “(...) sem realidade
psíquica não há realidade material (...) Para que haja “realidade” (...) é preciso que haja
fantasia (...), para que representemos uma realidade é preciso antes sonhar (...) Ou seja, para
viver é preciso sonhar.” (A. COSTA, 2006, p.13 e 14)
E o desenvolvimento acontece também durante o sonho, pois segundo A. Costa (2006)
“aquilo que ficou sem resolução retorna, como elaboração onírica” - dessa forma, a criança
mostra seu crescimento por meio dos seus sonhos.
E ainda sob as falas de A. Costa (2006), o trabalho do sonho é tão importante quanto o
trabalho de luto. Ora, se o último é explorado na instituição escolar, devemos questionar
porque o primeiro não o é. E ainda, devemos observar sua importância para o
desenvolvimento proposto pela escola. Para essa reflexão, explico o trabalho de luto com as
palavras da autora que cita objetos de transição, tão importantes para a criança na fase da
Educação Infantil:
“o trabalho de luto requer (...) um traço de memória que contenha, de alguma
maneira, o suporte da antiga relação. Pensemos, por exemplo, na função do objeto
transicional – o cobertorzinho, o paninho etc. – para a criança pequena. Esse objeto
é, ao mesmo tempo presença e ausência. Mantém a memória não somente na sua
constância visual, mas também nos restos de secreção do corpo, cheiros que a
criança não deixa lavar. No entanto, é uma presença que contém a ausência da mãe.
27
28. É na medida em que a criança pode manipular e representar essa presença/ausência
que ela pode manter uma constância de si. Se não conseguir lidar com a
presença/ausência, ela também desaparecerá quando a mãe se ausentar.” (A.
COSTA, 2006, p.54 e 55)
Esse afastamento do real, ligado ao material para um real de si próprio é difícil e acontece
também no sonho, ou seja, o enfoque do indivíduo consigo mesmo é um trabalho que pode
também ser exercido na escola, até mesmo para facilitar as adaptações, acolhidas e vivência
saudável do dia-a-dia.
Concordando com Jung (1996), o sonho é “não apenas uma fonte valiosa de informações,
mas também um meio muito eficaz de educação e de tratamento” (JUNG, 2006, p. 165) E
ainda podemos verificar a importância de conhecer os sonhos dos educandos por meio da
seguinte passagem do mesmo autor: “(...) os sonhos dão um apoio eficiente ao esforço
educativo, ao mesmo tempo em que possibilitam penetrar a fundo na vida íntima da fantasia, a
partir da qual se forma mais compreensível o comportamento consciente, abrindo-se com isso
uma passagem de acesso no sentido da aceitação da influência exterior.” (JUNG, 2006, p.
168). Afinal, o sonho pode não se opor à consciência, mas acompanhá-la colaborando muito
para educação.
Assim como diz Bettelheim (1980):
“(...) uma pessoa impedida de sonhar, mesmo que não seja privada de dormir, fica
prejudicada na habilidade de lidar com a realidade (...) as crianças vão mal de vida
quando são privadas do que as estórias podem lhe oferecer, dado que os contos
ajudam-na a elaborar, na fantasia, as pressões inconscientes.” (BETTELHEIM,
1980, p.79 e 80)
28
29. 2.3 INTER-RELAÇÃO ENTRE SONHOS E CONTOS DE FADA
Como foi citado no primeiro capítulo deste trabalho, de acordo com FRANZ, 1990, há
uma estreita ligação entre sonhos e contos de fadas. Há a hipótese de que os contos surgiram a
partir de relatos de sonhos.
Apesar de alguns autores mostrarem essa relação, poucos a exploram. Numa passagem da
obra Sonhos, A. Costa (2006) cita a análise que Freud fez de um sonho de um de seus
pacientes, o qual colaborou muito para sua tese, onde relata “(...) o sonho mostra-se como
produto da condensação de dois contos infantis: “Chapeuzinho Vermelho” e “O lobo e os sete
cabritinhos” (...)” (A. COSTA, 2006, p. 48). Por essa passagem, podemos notar que tanto o
sonho como os contos trabalham com elementos que são comuns entre si, e
conseqüentemente, são cabíveis a qualquer pessoa. Apesar de cada pessoa escolher um conto
para seus conflitos num determinado momento, o próprio sonho aponta para o indivíduo
questões e conflitos que merecem reflexão. De acordo com A. Costa (2006),
“(...) a fantasia não é algo a desconsiderar como uma simples ilusão a ser
desfeita. A realidade psíquica-motor de tudo o que diz respeito às formações do
inconsciente – tem efeitos reais, que produzem modificações no organismo e
interferem na percepção que temos da realidade do mundo e das coisas.” (A.
COSTA, 2006, p.11)
Logo, notamos que fantasia, quer seja sonhada, quer seja explorada num conto de fadas,
pode colaborar com a educação rumo à transformação da realidade.
A explicação mais elaborada nessa intersecção foi lida na obra de Bettelheim (1980):
“Há de certo, diferenças bem significativas entre os contos de fadas e os sonhos.
Por exemplo, nos sonhos, com maior freqüência a satisfação de desejos é disfarçada,
enquanto nos contos de fadas é expressamente aberta. Em um grau considerável, os
sonhos são o resultado de pressões internas que não encontraram alívio, de
problemas que bloqueiam uma pessoa, para os quais ela não conhece nenhuma
solução e para os quais os sonhos não encontraram nenhuma. O conto de fada faz o
oposto: ele projeta o alívio de todas as pressões e não só oferece formas de resolver
os problemas, mas promete uma solução “feliz” para eles.
Nós não podemos controlar o que se passa em nossos sonhos. Embora nossa
censura interna influencie o que podemos sonhar, este controle ocorre num nível
inconsciente. O conto de fadas, por outro lado, em grande parte resulta do conteúdo
comum consciente e inconsciente tendo sido moldado pela mente consciente, não de
uma pessoa em especial, mas do consenso de várias a respeito do que consideram
problemas humanos universais, e o que aceitam como soluções desejáveis. Se todos
29
30. estes elementos não estivessem presentes num conto de fadas, ele não seria
encontrado por gerações e gerações. Só quando um conto de fadas satisfazia as
exigências conscientes e inconscientes de muitas pessoas ele era recontado
repetidamente e ouvido com grande interesse. Nenhum sonho poderia despertar tal
interesse persistente, a menos que fosse forjado em mito...” (BETTELHEIM, 1980,
p.46)
Assim como já foi dito anteriormente, contos de fadas e sonhos trabalham com símbolos,
e ambos são importantes para o desenvolvimento do indivíduo. Parafraseando Byington
(1987), “(...) a psique (...) é um organismo que está sempre em desenvolvimento, a fim de
realizar seu potencial genético ou arquetípico”, usando tudo que for bom ou mal
(BYINGTON, 1987, p.20) – há aí, a bipolaridade dos símbolos. Assim como nos contos de
fadas há o bom ou mau, nos sonhos há os pesadelos e os sonhos dos quais a gente desejaria
nunca acordar.
“Enquanto um conto de fadas pode conter vários traços semelhantes ao sonho, sua grande
vantagem sobre o sonho é que tem estrutura consciente, com um começo definido e uma
trama que se movimenta na direção de uma solução satisfatória. Esta é alcançada no final.”
(BETTELHEIM, 1980, p.73)
É na obra de Gambini (2000) que o objetivo desse trabalho, explorado nesse capítulo, é
sintetizado. De acordo com esse autor
“(...) sonho e educação sempre estiveram separados, porque inconsciente e
aprendizado sempre foram províncias estrangeiras (...) começarmos a refletir sobre
uma possível articulação entre a educação e os processos que ocorrem no
inconsciente. (...) O ponto básico desta idéia é que o inconsciente cria a
predisposição para aprender. (...) deveríamos questionar se realmente não
aprendemos só e quando aquilo que é novo e desconhecido corresponde a um
conteúdo ativado no inconsciente” (GAMBINI, 2000, p. 105 e 106).
Segundo ele, é no inconsciente que a matriz do conhecimento está localizada, por isso, é
tão útil a inserção de sonhos na escola. Esse autor cita Jung ao concordar que o inconsciente
também ensina. Ora, dessa forma notamos que ao relatar sonhos e ativar conteúdos
inconscientes, a escola estaria se favorecendo de mais um elemento no processo de ensino e
mais ainda, no processo de aprendizagem, facilitando-a.
Gambini (2000) cita seu trabalho feito na Escola Lourenço Castanho. Sua proposta foi que
uma vez por semana, na sala de aula, as crianças de 3 a 6 anos de idade relatassem seus
sonhos em grupo diante da professora. A professora deveria anotar o sonho, e depois, pedir à
criança que o representasse através de desenhos. E essa prática deveria ser semanal, que
30
31. segundo ele, é mais uma forma do professor conhecer seus alunos, não somente pelo relato do
sonho, mas porque ao relatá-los chega-se a diversos assuntos. Além de ser uma porta de
entrada para várias questões, o aluno abre sua intimidade e “dita” seu sonho para a professora,
e nessa troca, a criança se sente ouvida.
Essa é a “(...) interação subjetiva. O relato de sonhos promove o aprendizado do respeito
pela fala do colega narrador, porque depois vai ser a minha vez e depois vai ser a sua vez.”
(GAMBINI, 2000, p.114). Notamos que essa proposta traz consigo a educação de um valor
quase perdido nas escolas atuais: o respeito pelo outro, o saber ouvir sendo equiparado ao
saber falar. Além disso, a sociabilidade permite a imaginação conjunta e também auxilia as
crianças tímidas.
O autor ressalta que crianças menores, ou seja, com aproximadamente 3 anos de idade,
confundem sonho com imaginação e também, muitas vezes se contaminam pelo relato do
sonho do outro. Já com 5 ou 6 anos, nota-se facilmente quando é um sonho ou uma história
inventada, nesses casos, o autor sugere pedir o sonho.
Ele enfatiza também a importância de estimular o imaginário das crianças, pois caso
contrário, ele se torna restrito, e devido à falta de uso, esses indivíduos sofrerão de privação
de imaginário. O autor complementa dizendo que o imaginário é importante para futuros
aprendizados, como, por exemplo, imaginar os contextos históricos, aprender números e para,
posteriormente, se transformar em pensamento. Para ele, relatar sonhos é o “nascimento do
pensamento organizado”. Por esse motivo, é errônea a posição da escola que separa
pensamento da imaginação, uma vez que eles têm origem comum.
Gambini (2000), muito sabiamente, diz que a adesão a essa proposta tem custo zero! E que
traz benefícios psicológicos e pedagógicos. Dessa maneira, sugere esta ação para as escolas.
Além disso, esse autor dividiu todos os sonhos coletados em sua pesquisa em doze tipos,
assim sintetizados:
1. Família e Casa
2. Escola
3. Crescimento
4. Ladrão e Bruxa
5. Animais
6. Heróis
7. Fantasmas e Esqueletos
8. Morte e Renascimento
9. Robôs
31
32. 10. Emoções
11. Anjos
12. Deus
Cada um desses temas pode ser visto nos relatos das crianças, e podem abordar diferentes
aspectos do indivíduo, tanto para a vertente emocional, como enfocando o aprendizado
cognitivo, a que está tão ligado.
Os pesadelos, ou sonhos de angústia, são incômodos para todos que despertam após essa
experiência, mas como cita A. Costa (2006), referindo-se a Freud, o sonho representa um
desejo e “(...) o desejo em questão poderia situar o sujeito como masoquista, onde o desprazer
seria desejado” (A. COSTA, 2006, p.31). É exatamente isso que faz alguns sonhos se
repetirem com tanta freqüência. Mas não por um masoquismo pervertido e sim pelo
“masoquismo originário – quando o bebê não se sustenta sozinho, sendo objeto
de cuidados e suposições da mãe (...) Freud denomina essa posição de masoquismo
erógeno (...) marca erogenamente o corpo do bebê. Essa marca será suporte de
repetições tardias.” (A. COSTA, 2006, p.34).
Por isso, mais uma vez, enfocamos o benefício que traz fazer esse trabalho de sonhos com
crianças pequenas para que elas tenham um bom desempenho em todas as fases do seu
desenvolvimento psíquico.
Já para Lacan, como aponta essa autora, esses sonhos são provenientes da...
“(...) experiência da falta – que ele denominou de castração simbólica, dando-
lhe abrangência maior que uma referência exclusivamente edípica – é suporte da
construção do psiquismo, entendido este como formações simbólicas que sustentam
o sujeito em sua vida. A proposta lacaniana supõe duas coisas: primeiro, é necessária
a experiência da falta para que o sujeito possa livrar-se de um atrelamento muito
alienante, resultante de suas relações primárias. Segundo, a angústia é sinal de que
essa experiência de falta pode não acontecer. Logo, de certa maneira, a angústia é
promotora de movimentos de separação, de simbolização.” (A. COSTA, 2006, p.32
e 33)
Nessa última passagem, observamos que o Complexo de Édipo - fundamentado por Freud
- está presente, assim como também é explorado nos contos de fadas quando a princesa (ou
filha) tem problemas de relacionamento com a madrasta (que seria a mãe).
32
33. Assim como já foi dito anteriormente, os contos de fadas carregam a fantasia2, e o
Complexo de Édipo nada mais é do que a fantasia que a criança na fase fálica tem de se
relacionar com seu genitor do sexo oposto para satisfazer os desejos da libido concentrada na
região genital. Dessa forma, o papai é o herói para menina, e a mamãe é a melhor mulher do
mundo para o menino. Mas isso seria proibido, ainda mais se os pais forem casados ou
tiverem outra pessoa (namorados, por exemplo), pois todos têm horror ao incesto (e esse é um
dos tabus mais antigos da humanidade) 3. Como bem exemplifica Pimenta (1993) ao tratar do
Complexo de Édipo,
“As fantasias que dizem respeito a desejos proibidos e por isso recalcados no
inconsciente são patrocinadoras do sonhar, do criar e do brincar. (...) Elas não
podem ser livremente expressas, porque estão inibidas pela censura pessoal, mas
também não podem ficar sem expressão, pois isso gera grande tensão e angústia.
Portanto, têm de chegar a um acordo com o sistema consciente. Fazem, por assim
dizer, um compromisso: podem ser expressas, mas de forma despistada, camuflada.”
(PIMENTA, 1993, p.25)
Segundo essa autora, esse desejo só acontece nos sonhos e no lúdico, mas assim como
vimos, os contos de fadas também mostram soluções para esses desejos. No entanto, Pimenta
(1993) traz na mesma obra uma definição pertinente:
“O sonho não é apenas uma reação aleatória do organismo, mas tem sua razão
de ser: ele é a expressão de uma linguagem específica fundamental (...) Freud o
considera a estrada real para chegar ao inconsciente (...) Os desejos inconscientes
não dormem (...) aproveitam-se, então, do afrouxamento da consciência moral,
durante o sono, para sua realização alucinatória.” (PIMENTA, 1993, p.28)
Assim, ela explica que o “Brincar é um recurso importante de que se valem
principalmente as crianças para lidar com o mundo fantasmático.” (PIMENTA, 1993, p.41), e
que “Quanto à fantasia, poderíamos pensar numa equivalência masturbatória, enquanto a
criação e a brincadeira já contêm alguma coisa de relação com o objeto” (PIMENTA, 1993,
p.43). Mostra assim que os momentos de sonhos ou de vivência de contos realizam, ou ao
menos supre às necessidades libidinais intrínsecas à fase edípica.
Tanto quanto os sonhos, os Contos de Fadas também têm um papel fundamental na
construção do imaginário do indivíduo pelo simples fato de ouvir uma história desse tipo. E
2
Fantasia, de acordo com PIMENTA (1993): “este conceito é encontrado freqüentemente nos textos
psicanalíticos com o nome de fantasmas. Trata-se de encenações, histórias imaginárias, as quais o indivíduo
sempre está presente e que geralmente dramatizam, de forma visual, a encenação do desejo. Nos fantasmas são
permitidas permutas de papéis e operações defensivas diversas (projeções, reversões etc.). Os fantasmas podem
ser inconscientes, subliminares e conscientes (...) se interelacionam nas várias formações do inconsciente e suas
expressões, como na brincadeira e nas obras-de-arte”. (PIMENTA, 1993, p.72)
3
FREUD, Sigmund. O Horror ao Incesto. In Totem e Tabu e Outros Trabalhos (p.21-35)
33
34. obviamente, se o adulto intermediador, no caso, uma professora que leia o conto sem mostrar
ilustrações, estará presenteando seus alunos com potencial de criatividade e imaginação – tão
requeridos no mercado de trabalho atual. A crença mágica é importante e necessária para
formação das pessoas. Quem não teve isso explorado na infância de forma saudável, pelos
contos de fadas, por exemplo, busca soluções para vida na astrologia, ou até mesmo nas
drogas, como alertou Bettelheim (1980).
Ele diz também que só na puberdade a pessoa reconhece a emoção por ela mesma, antes
disso, são manifestações. As crianças só entendem por imagens... E os contos fornecem essas
imagens. Assim, notamos que os contos de fadas podem contribuir na construção da magia
inerente a cada pessoa, e que seus sonhos seriam então reflexos de uma vida mais bem
resolvida... Enfim, parafraseamos o mesmo autor: “(...) perigos horríveis que são análogos aos
pesadelos (...)” (BETTELHEIM, 1980, p.106).
34
35. 2.4 COLETA DE DADOS
A coleta de dados se faz necessário para evidenciar o levantamento teórico e para
responder a hipótese inicial, de que sonhos e contos de fadas estão muito ligados um ao outro,
e ainda, que ao serem utilizados com finalidades educativas, inclusive em ambientes
institucionais e de educação formal, podem contribuir positivamente para o desenvolvimento
das crianças.
Concordando com Furlanetto (2005), “(...) desenvolvimento e aprendizagem não são
processos distintos nem lineares, mas são tecidos simultaneamente em uma rede relacional da
qual fazem parte, também, além das funções da consciência, dimensões arquetípicas que se
referem ao mundo do inconsciente coletivo.” (FURLANETTO, 2005, p.82). Ora, essa
passagem nos mostra que os ícones trazidos pelos contos de fadas que atendem às
necessidades do inconsciente coletivo – como já foi dito anteriormente – podem ser úteis na
formação do indivíduo. Completando essa idéia, parafraseamos Corso (2005), ao dizer que
“(...) a capacidade simbólica está na raiz dos processos de aprendizagem mais essenciais à
efetivação da humanidade de cada um, sendo, sem dúvida pré-requisito para todas as
aprendizagens escolares.” (CORSO, 2005, p.51)
Tomando como base as crianças da Educação Infantil, esse trabalho se mostra ainda mais
pertinente, pois elas mostram em suas falas muito interesse por assuntos como magia, outras
épocas, fantasmas e a dualidade entre o bem e o mal. Isso reflete o que eles já sabem, ou ao
menos, buscam comprovar que há um mundo interno ou fantasmático. Como diria Pimenta
(1993), “as fantasias ou fantasmas são histórias semelhantes aos mitos (...) celebram a
passagem da natureza para a cultura. Nossos ancestrais, não sabendo explicar esse fenômeno,
criaram histórias de deuses, ninfas e gênios, que se relacionavam, amavam e odiavam.”
(PIMENTA, 1993, p.24). Dessa forma, eles mostram que já sabem que estão inseridos numa
cultura onde pessoas mantêm relações boas e ruins.
Da mesma forma que trazem expressões transmitidas pelos seus pais como “papai do
céu”, que simboliza a crença em um Deus, em algo fantástico, não concreto e como um ponto
de equilíbrio para que seus desejos sejam realizados – assim o fazem com os contos de fadas.
Inclusive, se nos aprofundarmos essa questão, notaríamos que as histórias bíblicas têm o
mesmo modelo dos contos de fadas, e que servem igualmente para confortar os fiéis e
oferecer subsídios para que os crentes superem fases de suas vidas tomando atitudes
moralmente aceitas pela sociedade. “(...) muitas histórias bíblicas são da mesma natureza que
35
36. os contos de fadas. (...) A maioria dos contos de fadas se originou em períodos em que a
religião era parte muito importante da vida.” (BETTELHEIM, 1980, p.22)
Para verificarmos como acontecem essas relações entre sonhos e contos de fadas no dia-a-
dia, baseamos esse trabalho na proposta de Gambini (2000), com algumas modificações.
Concordamos que toda escola deveria fazer isso, e implantamos o projeto em uma turma de
uma escola da rede particular de ensino da cidade de São Paulo.
Devido a disponibilidade, fácil acesso e boa aceitação da idéia por parte da direção da
escola, realizamos o estudo de caso no meu local de trabalho. A escola Villacor abriu espaço
para o desenvolvimento desse projeto e foi um ótimo lugar para esse estudo, por ser uma
“pequena grande escola”, que conta com atendimento em três unidades. Nesse trabalho,
iremos nos referir à Unidade II, situada a Rua Jataituba, 171, no bairro do Brooklin da capital
do estado de São Paulo. É um local residencial que abriga famílias de classe social média, e
uma escola que atende não somente ao público local, como também aos filhos de pais que
trabalham pela redondeza. Essa unidade educa crianças durante a etapa da Educação Infantil,
depois que os alunos aprenderam a andar, ou seja, por volta de 1 ano e 6 meses até 6 anos de
idade (alguns, provindos da outra unidade que atende berçário).
Antes de relatar o estudo feito, gostaríamos de ressaltar algumas observações. Gambini
(2000) disse, conforme citamos no capítulo anterior, que crianças entre 3 e 4 anos tendem a
confundir sonho com imaginação, por esse motivo, seria mais adequado fazer esse estudo com
crianças mais velhas. No entanto, o trabalho foi feito exatamente em uma turma heterogênea
com crianças entre três e seis anos, sendo, a grande maioria, alunos do G4, ou seja, que
completam (ou completaram) quatro anos de idade nesse ano de 2007. Outro dado que foi
possível observar na prática, foi a contaminação de sonhos, conforme ressaltado por esse
autor. E diferentemente desse autor, não pedi o relato prévio do sonho para ser anotado em
uma página em branco do caderno, e sim anotei no verso da própria folha que elas utilizaram
para fazer o desenho, registrei, portanto, a real interpretação do que eles fizeram por meio da
linguagem oral.
Uma vez por semana ou a cada quinzena, devido à falta de tempo, as crianças foram
convidadas a fazer um relaxamento deitando no chão ou sentadas com a cabeça sobre as
mesinhas, sempre em grupo (roda ou disposição das mesas agrupando todas as crianças). No
silêncio ou com uma suave melodia de fundo musical, eu ia incentivando-as a fingir que
estavam dormindo para se lembrarem de um sonho. E ao despertarem (com direito a se
espreguiçarem, bocejarem e tudo), eles poderiam desenhar com canetinhas, lápis de cor ou giz
36
37. de cera algum sonho que recordavam. Tal prática foi baseada na autora Canepa (2000), que
defende um “clima” para o relato dos sonhos.
Cada um recebeu uma folha de papel sulfite branco A4, para registrar o sonho que
recordaram. Cabe dizer que os nomes aqui citados foram modificados para preservar a
identidade das crianças, apesar de seus pais terem autorizado o uso de suas produções.
Ao fazerem o desenho, pedimos para que ficassem em silêncio. E uma justificativa muito
pertinente foi explicada a partir de uma roda de conversa inicial, na qual constatamos que, o
que um amigo sonha, é uma coisa que só ele sabe que não adianta ficar conversando ou
perguntando durante o desenho. No início foi complicado para alguns alunos, mas aos poucos
esse momento mostrou-se eficaz para disciplina, autocontrole, respeito e principalmente, um
tempo de reflexão através do exercício de resgate de memória.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, constatada por mim junto às crianças,
associamos o sonho a um segredo: cada um tem o seu, e não é possível adivinhar o que o
amigo sonhou... Para isso, conforme cada um terminava, era incentivado a virar sua produção
de cabeça para baixo, deixando o lado em branco para cima. Cabe dizer que nas instruções
dessa atividade alguns alunos perguntaram se poderiam desenhar dos dois lados, e a resposta
foi que poderiam fazer como quisessem. Ao verificarem a importância e a mágica do segredo,
eles mesmos desenhavam apenas de um lado para virarem seus desenhos para baixo.
Nesses momentos, verifiquei falas interessantíssimas, como por exemplo, o diálogo entre
Bruno e Leonardo, ambos com quatro anos:
Bruno – Eu sonhei que estava ...
Leonardo o interrompeu rapidamente – “Não, Bru! Depois você conta, agora põe a sua
folha assim ó! (apontando para a dele como exemplo).
Ou ainda, quando Marcela, 4 anos, uma aluna que não freqüentava regularmente o período
integral durante o primeiro semestre e não havia participado de outras situações de relato de
sonhos, perguntou ao Vinícius, 4 anos, o que ele estava desenhando, e ele respondeu “-É
segredo! Depois você vai ver!”, tapando o que estava desenhando com muita concentração.
A partir desses exemplos e após a vivência dessas atividades, constatamos que o segredo é
importante para as crianças... Sobretudo na Educação Infantil. É como se eles estivessem
fazendo o papel da professora na tão esperada caixa surpresa, isto é, trazer algo pessoal para
compartilhar com seus amigos.
Bettelheim (1980) exemplifica sua teoria com o conto “A guardadora de Gansos”, que
contém em seu enredo a sabedoria de guardar um segredo. A partir dessa linha de
pensamento, podemos pensar também na proposta de compartilhar sonhos pelos desenhos que
37
38. ficam de cabeça para baixo, como se fossem segredos, como sendo extremamente válido, pois
trabalha o respeito pelo segredo do amigo, e também, deve-se saber que há um momento para
compartilhá-lo. Essa prática também contribuiu para desenvolver a confiança na professora e
nos colegas de classe.
Dessa forma, concordando com Gambini (2000), desenvolve-se e treina-se o respeito pela
fala dos colegas, além de colaborar na desenvoltura ao falar – o que se nota que é necessário
para muitos adultos, que não possuem esta fluência, pela falta de incentivo.
Durante os relatos, houve desenhos e falas interessantes, mas é importante relatar também,
que o fato de a professora saber um pouco sobre o contexto no qual a criança vive, torna a
observação dos desenhos e dos relatos mais significativos, da mesma forma que também a
auxilia a conhecer um pouco mais, ou ainda mais, seus alunos.
A experiência foi extremamente satisfatória, pois nela pudemos observar os dados trazidos
pelos autores abordados ao longo desse trabalho, ressaltando ainda que pelo fato de a
professora lidar diariamente com as crianças, ela já tem muitos dados que podem auxiliar na
compreensão dos sonhos, não para fazer intervenções psicológicas, mas para compreender
melhor seu aluno e colaborar com sua aprendizagem.
Para compreender o sonho, segundo Jung (1996), é interessante saber sobre o dia anterior,
“estado de ânimo, dos planos e propósitos da pessoa nos dias ou semanas precedentes ao
sonho.” (JUNG, 1996, p.161) – o que não foi difícil, considerando que a classe na qual o
projeto foi aplicado é justamente a de período integral, onde as crianças passam de 8 a 13
horas.
Outro dado a ser relatado, que difere da proposta de Gambini (2000), é o fato de que no
final do ano, ou da Educação Infantil, os cadernos devem ser entregues para as crianças como
um material muito valioso. Mas para a conclusão desse trabalho, os relatos colhidos durante a
aplicação desse projeto ficaram arquivados.
Pretendo sugerir que esse trabalho seja feito como um presente para as crianças, uma vez
que é para elas que a escola trabalha.
De qualquer forma, diferentemente de Gambini (2000), continuo defendendo a idéia de
que folhas avulsas são mais adequadas para esse tipo de trabalho, uma vez que o caderno
permite que a criança retome um sonho anterior - o que não é a proposta. Na escola devemos
simplesmente deixá-las se expressarem - além do que, o aluno pode encarar cada relato de
uma forma diferente, inclusive, utilizando a posição da folha como preferir.
Certa vez, contei o conto da Snow White (Branca de Neve em inglês, já que a proposta da
escola para essas crianças é de imersão na língua inglesa), e pedi para eles desenharem a parte
38
39. de que mais gostaram da história. Aconteceram coisas interessantes, como por exemplo, um
aluno virar sua produção de cabeça para baixo, como se fosse o segredo explorado no sonho.
Então, expliquei que não era, uma vez que todos haviam escutado a mesma história. E ao
relatar a parte de que mais gostou, iniciou sua fala com “-Eu sonhei...”. Então, perguntei: “-
Você sonhou?”. E ele então respondeu que sim. A partir disso, comprovamos a estreita
relação entre sonhos e contos de fadas... Não por grandes autores ou pela nossa audácia, mas
pela fala de uma criança de 4 anos de idade.
Num outro momento, contei o conto “Pinocchio” em dois dias diferentes, com intervalo
de uma semana. No primeiro, apenas contei a história, e deixei que as crianças explorassem
seu imaginário. No segundo dia, solicitei que eles desenhassem a parte que mais gostaram da
história. Foi aí que Bruno, 4 anos, já citado anteriormente, relatou sobre seu desenho (Fig. 1):
“Eu sonhei que os amigos do Pinocchio tava jogando futebol e ele não foi porque estava
resfriado. Ele ficava só assistindo com Gepetto na casa dele. Cada amigo jogava sozinho. Eu
também era amigo do Pinocchio, eu era bem grande!”
Bruno
Pinocchio
Fig. 1 – Desenho sobre Pinnochio, de Bruno, 4 anos, em 24/05/2007
39
40. Cabe dizer que ele não estava doente, nem havia ficado resfriado por esses dias. Mas
mostrou uma forma de dizer que estava sozinho, assim como o Pinocchio, na parte da história
em que se encontra perdido, ao relatar que se o personagem principal não está bem, ninguém
pode brincar. Esse relato do conto de fadas, ou melhor, de um possível sonho usando novos
elementos faz sentido, e ainda, funciona como colaborador para assimilação da realidade.
Assim como os sonhos, os contos de fadas podem ser explorados de diferentes maneiras
para colaborar no desenvolvimento do imaginário do indivíduo e de seu todo. Bettelheim
(1980) afirma que não se deve explicar para a criança porque o conto é importante, ao contá-
lo a criança já será capaz de elaborar seus problemas.
Quando Matheus – único nome verídico usado, pelo fato dele o ter registrado em seu
desenho - descreve “Eu sonhei um sonho pesado. Eu tava num buraco”, conforme mostra a
figura 2, ele pode mostrar que talvez se sinta incapaz de realizar algo, como se não visse uma
saída. A partir daí, é interessante que o educador conte um conto que envolva superação de
obstáculos com uma imagem semelhante. Foi então que lhe contei a história de João e o Pé de
Feijão, na qual o personagem teve que escalar um enorme pé de feijão – o que representa um
desafio - para superar seus medos e atingir uma nova etapa de sua vida.
Fig. 2 – Desenho de Matheus, 6 anos, em 13/04/2007.
40
41. O mesmo aluno mostra características semelhantes ao relatar outro sonho. Para uma
professora que está atenta à realidade dessa criança, não fica difícil deduzir que ele está com a
auto-estima muito baixa. Para isso, não bastaria o relato desse sonho isoladamente, e sim,
acompanhar alguns deles, juntamente com sua história de vida. Matheus tem 6 anos de idade,
é filho de uma funcionária da escola e tem bolsa de estudos. No período da manhã – momento
em que essas atividades foram desenvolvidas, ele é o mais velho do grupo... No entanto, é o
único que ainda usa fraldas. O fato se dá devido ao casamento de seus pais, que são primos, e
por conta de inadequações genéticas, geraram essa criança que não possui contração do
esfíncter anal, sendo incapaz de controlar a liberação das fezes. Tendo em vista que ele já
passou da fase anal prevista por Freud, ele se encontra incapaz de algumas coisas. Além do
mais, ele não tem a mão esquerda. Logo abaixo do cotovelo, tem um único dedo. Esses dados
mostram como se justifica seu modo retraído de ser.
“Eu sonhei que fui num parque, achei um ovo que quebrou na minha cabeça. O avião lá
em cima. Tinha uma porta. Porta de castelo, eu entrei e cai no barco e tinha um menino
machucado. Ele tava com o irmãozinho e com a mãe dele. E eu tava com meu pai, minha mãe
tava lá em casa. Depois, soltou um monte de raio”, como mostra a figura 3.
Fig. 3 – Desenho feito por Matheus, 6 anos, em 22/08/2007.
41
42. Essa criança pode usufruir dos benefícios do projeto em questão porque se sentiu ouvida
por todos. Além disso, as crianças passaram a elogiar os desenhos do colega. E foi num desses
momentos que ele mostrou extrema satisfação com um lindo sorriso, quando sua amiga falou
que era o desenho mais bonito de todos. A partir desse dia, ele passou a preferir desenhar a
brincar de massinha, como usualmente optava. Cabe dizer que manipular massinha é um
estado anterior ao de segurar no lápis com destreza, e ainda, que modelar está ligada a fase
anal. Também devemos nos atentar para o fato de o castelo (símbolo dos contos de fadas)
fazer parte de seu sonho, uma vez que ele nunca esteve em um.
Já o simples relato de Simone, quatro anos “Fiquei em casa” (Fig.4), mostra a um
educador atento que tudo que ela queria era estar em casa, uma vez que seus pais estavam se
reconciliando após uma segunda separação. Ela se mostra madura o suficiente para vivenciar
sua casa, sabendo que o papai sofre sem a mamãe. Por mais que ela tivesse sido cuidada pela
figura paterna durante a separação, ela não foi dominada pelo Complexo de Édipo, analisando
que a mamãe faz “meu papai” mais feliz, então, prefere todos juntos (Fig. 5) “Minha mãe,
meu pai e eu” – sendo que esse desenho foi elaborado durante um dos momentos de
separação.
(Figura 4 – Desenho de Simone, 4 anos, em 22/08/2007 – após reconciliação dos pais)
42
43. (Figura 5 – Desenho de Simone, 4 anos, em 01/06/2007 – durante separação dos pais)
Outra experiência interessante aconteceu quando fizemos uma experiência utilizando
vela. Nessa escola, escolho um tema para realizar projetos semanais ou quinzenais. Estávamos
trabalhando o tema Castelo, para depois entrarmos em Contos de Fadas. A experiência
consistia em grudar uma vela usando fogo. Depois disso, conversamos sobre o perigo que o
fogo pode causar. E eles ficaram curiosos, se a vela/fogo queimava e como era. Perguntei a
eles o que poderíamos queimar para fazer essa experiência... A grande maioria da classe
respondeu “a bruxa!”. Somente o Leonardo disse que deveria ser o “cavaleiro do mal”. Abro
um espaço na descrição dos fatos para relacionar tais falas com a fase edípica vivenciada por
essas crianças, assim como já foi citado anteriormente. Enfim, cortei um bonequinho de papel
para jogarmos no fogo. Eles adoraram! Realizaram-se, e até sorriram! As cinzas mal voaram e
eles pediram para queimarmos mais! Eu disse que não seria possível, pois não quis passar a
idéia de queimar pessoas, e também, que na verdade, não podemos por fogo naqueles que nós
acreditamos que nos prejudicam. Perguntei por que eles queriam queimar mais um... E um
deles respondeu: “Porque eles são maus!”. Dessa forma, ainda não sei se minha postura foi a
mais adequada, mas sugeri que rabiscassem bem forte num papel, colocando nele todos
nossos maus sentimentos, tudo de ruim... Para que a gente queimasse e ficasse somente com
43