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A UNIÃO FAZ A FORÇA, O POVO JUNTOU-SE E A TERRA NUNCA MAIS
ARDEU"
«Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos
quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a
rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena
aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos
ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal.
A acção fora concertada entre sete ou oito povoações de um
escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do
Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos
para destruir os 200 hectares de eucalipto"
Há 28 anos um povo lutou contra os eucaliptos. E a terra nunca mais ardeu.
Em 1989 houve uma guerra no vale do Lila, em Valpaços. Centenas de
pessoas juntaram-se para destruir 200 hectares de eucaliptal, com medo
que as árvores lhes roubassem a água e trouxessem o fogo. A polícia
carregou sobre a população, mas o povo não se demoveu.
Em quase três décadas o Lila escapou ileso aos incêndios. Hoje, todos
dizem que é por se terem livrado dos eucaliptos. E lamentam que o
resto do país não lhes tenha resistido.
A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale
do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha
plantado na região. [Arquivo JN]
A polícia respondeu com uma carga à população, mas revelou-se
incapaz de travar os avanços de 800 populares sobre a propriedade.
[Arquivo JN]
Quando a cavalaria da GNR se viu cercada, entrou em campo o corpo de
intervenção. Só aí os ânimos acalmaram. [Arquivo JN]
No vale do Lila não há mais de sete ou oito aldeias e todas vivem do
olival. Os eucaliptos secar-lhes-iam os terrenos e trar-lhes-iam incêndios.
António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as aldeias
depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil traria
prejuízos a médio prazo.
Hoje, o povo sente que a destruição dos eucaliptos foi a sua salvação. E
dizem que, se tivessem deixado aquela floresta avançar, não teriam
escapado aos incêndios de 2017.
Hoje os terrenos da quinta do Ermeiro são diversos. Há oliveiras e
nogueiras, amêndoa e pinho. Em três décadas, nenhum incêndio.
João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era presidente
da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem
educação mas afinal nós é que estávamos certos.»
Os eucaliptos tinham sido plantados há pouco tempo, não foi preciso
usar sacholas nem enxadas. Foram arrancados pelas mãos de homens e
mulheres, canalha e velharia.
A oliveira e o azeite sempre foram a riqueza da região. É sobretudo
disso que ainda vivem hoje as populações de Valpaços.
Ester Oliveira viu o marido ser detido durante os confrontos por posse
de arma ilegal. «Foi o povo que o salvou por dizer que ele não arredava
pé enquanto ele não fosse libertado.»
A população tinha recuado depois da chegada do corpo de intervenção,
mas voltara à carga para defender José Oliveira. A guerra terminou com
a sua libertação.
Alguns dos organizadores foram levados a tribunal por invasão de
propriedade privada e condenados a pena suspensa. E todos dizem que
voltariam a repetir o crime.
Natália Esteves organizou assembleias, bateu à porta dos vizinhos,
conseguiu convencer dezenas de agricultores que o eucalipto traria seca
e fogo.
Dos 200 hectares de eucalipto não sobram hoje mais do que uma dúzia
de árvores junto ao casario do Ermeiro. Se alguém os quiser plantar, o
povo arranca-os.
Maria João Sousa tinha 15 anos quando viu a revolução chegar à sua
aldeia. Diz que foi o 25 de Abril da sua gente.
Em quase três décadas o Lila escapou ileso aos incêndios. Hoje, todos
dizem que é por se terem livrado dos eucaliptos. E lamentam que o
resto do país não lhes tenha resistido.
A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale
do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha
plantado na região. [Arquivo JN]
Texto de Ricardo J. Rodrigues | Fotografia de Rui Oliveira / Global Imagens
«Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos
quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a
rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena
aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos
ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal.
A acção fora concertada entre sete ou oito povoações de um
escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do
Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos
para destruir os 200 hectares de eucalipto que uma empresa de celulose
andava a plantar na quinta do Ermeiro, a maior propriedade agrícola da
região.
À sua espera tinham a GNR, duas centenas de agentes. Formavam uma
primeira barreira com o objetivo de impedir o povo de arrancar os pés
das árvores, mas eram poucos para uma revolta tão grande.
A polícia respondeu com uma carga à população, mas revelou-se
incapaz de travar os avanços de 800 populares sobre a propriedade.
[Arquivo JN]
«Naquele dia ninguém sentia medo. Eles atiravam tiros para o ar e
parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar», lembra
Maria João Sousa.
Maria João, que nesse dia usava uma camisola vermelha impressa com a
figura do Rato Mickey, nem deu pelo polícia que lhe agarrou no braço.
«Ide para casa ver os desenhos animados», atirou-lhe, mas a rapariga
restaurou a liberdade de movimentos com um safanão: «Estava tão
convicta que não sentia medo nenhum. Naquele dia ninguém sentia
medo nenhum. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma
força qualquer a fazer-nos avançar.»
A tensão subiria de tom ao longo da tarde. «Houve ali uma altura em
que pensei que as coisas podiam correr para o torto», diz agora António
Morais, o cabecilha dos protestos. Havia agentes de Trás-os-montes
inteiros, da Régua e de Chaves, de Vila Real e Mirandela.
Mas também lá estava a imprensa, e ainda hoje o homem acredita que
foi por isso que a violência não escalou mais. Algumas cargas, pedrada
de um lado, cacetadas do outro, mas nada que conseguisse calar um
coro de homens e mulheres, canalha e velharia: «Oliveiras sim,
eucaliptos não».
«Não queríamos arder aqui todos»
A guerra tinha começado a ser preparada um par de meses antes,
quando António Morais, proprietário de vários hectares de olival no Lila,
percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para
substituir 200 hectares de oliveiras por eucaliptal para a indústria do
papel. «Tinham recebido fundos perdidos do Estado para reflorestar o
vale sem sequer consultarem a população», revolta-se ainda, 28 anos
depois.
«Nessa altura o ministério da agricultura defendia com unhas e dentes a
plantação de eucalipto.» Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos antes
presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao
cargo em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente.
António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as aldeias
depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil trairia
prejuízos a médio prazo.
«A tese dominante dos governos de Cavaco Silva era que urgia substituir
o minifúndio e a agricultura de subsistência por monoculturas mais
rentáveis, era preciso rentabilizar a floresta em grande escala», diz
António Morais. O eucalipto adivinhava-se uma solução fácil.
Crescia rápido e tinha boas margens de lucro. Portugal, aliás, ganharia
em poucos anos um papel de destaque na indústria de celulose e os
pequenos proprietários poderiam resolver muitos problemas de
insolvência abastecendo as grandes empresas com uma floresta
renovada. A teoria acabaria por vingar em todo o país, sobretudo no
interior centro e norte. Mas não em Valpaços.
«Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes
problemas», diz António Morais. «Numa região onde a água é tudo
menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das
outras culturas. Nomeadamente, o olival, que sempre foi a riqueza deste
povo.»
«Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes
problemas», continua António Morais. «Por um lado, numa região onde
a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de
viabilidade das outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi
a riqueza deste povo. E depois havia os incêndios, que eram o diabo. São
árvores altamente combustíveis e que atingem uma altura muito
grande.»
Na terra quente transmontana o ano são oito meses de inverno e quatro
de inferno. O fogo, tinha ele a certeza, chegaria com aquele arvoredo.
Uns meses antes da guerra, começou a conversar sobre o seu medo com
algumas das mais relevantes personalidades do vale. Grandes
proprietários, políticos da terra, as famílias mais reconhecidas.
«Lentamente começou a formar-se um consenso de que o lucro fácil do
eucalipto seria a médio prazo a nossa desgraça. Não queríamos deixar
secar a nossa terra. E não queríamos arder aqui todos. Tínhamos de
destruir aquele eucaliptal, custasse o que custasse.»
Anatomia da conspiração
O núcleo duro estava formado, era constituído por dezena e meia de
agricultores capazes de mobilizar o resto do povo. «Aos domingos,
íamos às aldeias e no fim da missa explicávamos às pessoas o que podia
acontecer à nossa terra», lembra Natália Esteves, descendente de uma
família de grandes produtores de azeite feita de repente líder de
protesto ecológico. «E também íamos de casa em casa, esclarecer quem
não tinha estado nas assembleias.»
Ao início houve renitência, a madeira valeria sempre mais do que a
azeitona, e a castanha ainda não rendia o que rende hoje. «Mas
tentámos sempre centrar a conversa no que aconteceria daí a uns anos,
dizer que os eucaliptos secariam os solos e o povo ficaria refém de uma
única cultura, que se alguma coisa corresse mal não teriam mais nada.»
João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era presidente
da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem
educação mas afinal nós é que estávamos certos.»
O que mais assustava aquela gente, no entanto, era o fogo. «Onde há
eucalipto, tudo arde. E então o povo já não chamava a árvore pelo nome,
mas por fósforos.» A primeira batalha estava ganha: tinham o apoio da
população.
João Sousa era nessa altura presidente da junta da Veiga do Lila.
«Oficialmente não podia dizer que era contra os eucaliptos, nem ir
contra a polícia. Mas, quando falava com as pessoas, dizia-lhes o que
haviam de fazer», conta agora com uma gargalhada e sem ponta de
medo.
«Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que
não arde. Se o povo não se tem unido, estávamos a viver a mesma
desgraça que vimos por esse país fora», diz João de Sousa.
«Então se tínhamos o melhor azeite do país ia dar cabo dele para
enriquecer uns ricalhaços de fora?» Tem 86 anos e uma destreza de 30,
hoje estuga o passo para mostrar a zona que podia ter sido caixa de
fósforos. «Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30
anos que não arde. Se o povo não se tem unido hoje estávamos a viver a
mesma desgraça que vimos por esse país fora.»
Essa é aliás a conversa mais recorrente por estes dias no vale do Lila. A
tragédia florestal portuguesa dá a este povo a impressão que eles sim,
tinham razão há muitos anos, quando o governo e as autoridades lhes
diziam o contrário.
«Podem achar que somos gente do campo, sem educação nem
conhecimento, mas nós cá soubemos defender a nossa terra», diz o
velhote. «Temos chorado muito por esta gente que perdeu vidas e
animais e casas. E há uma coisa que o meu povo sabe: se temos deixado
ficar os eucaliptos, também hoje choraríamos pelos nossos.»
A guerra
Há uns dias que os combates tinham começado. Ataques furtivos do
povo, desorganizadamente, para arrancar pés de eucalipto nos limites
do Ermeiro. Duas semanas antes da guerra, no Domingo de Ramos, as
coisas aqueceram.
«Juntámos duas centenas de pessoas aqui destas aldeias e os donos da
empresa chamaram a GNR», lembra António Morais. «Quando eles
chegaram já tínhamos dado cabo de uns bons 50 hectares de
eucaliptal.» Nesse dia não houve confrontos, porque o povo fugiu. Mas
anunciaram a alto e bom som que voltariam depois da Páscoa.
Esse ataque tinha feito notícia no Jornal de Notícias e trazido uma mão-
cheia de jornalistas à terra, nomeadamente Miguel Sousa Tavares, da
RTP. «Percebi que as coisas estavam a tornar-se muito grandes e foi
então que contactei a Quercus. Precisávamos de ajuda.»
A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale
do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha
plantado na região. [Arquivo JN]
Do outro lado da linha atendeu Serafim Riem, que dirigia o núcleo do
Porto da organização ambientalista. O ecologista partiu imediatamente
para o terreno. Nesses dias ouviriam do parlamento em Lisboa várias
palavras de solidariedade. Sobretudo do PCP, d’Os Verdes e de um
jovem deputado socialista chamado José Sócrates.
Agora não valia a pena esconder mais nada. A 31 de março de 1989,
domingo depois da Páscoa, o povo juntar-se-ia todo na Veiga do Lila
para dar cabo do eucaliptal que restasse. A aldeia enchera-se de
jornalistas, havia até um helicóptero a cobrir os acontecimentos do ar.
A direcção nacional da Quercus demarcar-se-ia da organização dos
protestos através de um comunicado, mas os núcleos do Porto e
Bragança encheriam cada um o seu autocarro de ambientalistas
carregados de cartazes. Às duas da tarde o sino começou a tocar a
rebate. Oito centenas de vozes entoavam «oliveiras sim, eucaliptos não»
e largaram por um caminho de terra batida para a quinta do Ermeiro.
Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores.
«Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas
das boas», recorda Natália Esteves.
Não era preciso usar enxadas nem sacholas, os eucaliptos tinham sido
plantados há pouco tempo e arrancavam-se com as mãos. A polícia
tentava fazer uma linha de defesa, mas duas centenas de agentes não
chegavam para aquela gente toda.
Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores.
«Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas
das boas», recorda Natália Esteves. Os que eram de perto diziam-lhes
assim: «Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos.» Viravam as
costas e o povo ia subindo o terreno.
Num instante, o casario da quinta tornava-se no último reduto da
investida. Uma dezena de guardas saíram a cavalo, era demonstração de
força mas não surtiu resultado. A Soporcel tinha construído socalcos
para plantar os eucaliptos e, agora, os animais não conseguiam descê-
los.
«O povo ia atirando pedras aos guardas, houve um que acertou no
cavalo e mandou-o abaixo», diz João Morais. Foi nesse momento que
entrou em campo o corpo de intervenção, disposto a levar toda a gente
pela frente. «Aí as coisas podiam ter descambado definitivamente.»
Todos por um
A guarda especializada avançava agora colina abaixo com escudos e
capacetes. José Oliveira, um agricultor da pequena aldeia de Émeres,
tentou escapar pela lateral, mas foi logo caçado pela guarda. No bolso
trazia um revólver e foi isso que o tramou. «Levaram-no logo detido
para dentro do jipe por posse de arma ilegal», conta agora a sua viúva,
Ester.
Aquela detenção marcaria o início do fim da guerra. «As pessoas tinham
recuado por causa do corpo de intervenção, mas quando se
aperceberam que um dos nossos estava preso começaram a gritar que
não arredariam pé enquanto ele não fosse solto», diz João Morais. Ester
anui, «foi o vale inteiro que salvou o meu homem.» Agora já não havia
pedras, havia gritos. Que libertassem o tio Zé e rápido.
Ester Oliveira viu o marido, José Oliveira, ser detido durante os
confrontos por posse de arma ilegal. «Foi o povo que o salvou por dizer
que ele não arredava pé enquanto ele não fosse libertado.»
Serafim Reim, o homem da Quercus, é que foi lá negociar a libertação
com os guardas. Sobravam menos de 20 hectares de eucalipto, o povo
deixá-los-ia em paz se soltassem o velhote. Uma hora depois, houve
consenso. Identificaram José Oliveira, caçaram-lhe a arma e mais tarde
levaram-no a tribunal, mas naquele dia saiu pelo seu pé para os braços
da mulher, e daí para casa.
António Morais, Natália Esteves, João Sousa e mais uma dezena de
organizadores do protesto também seriam chamados à barra da justiça,
um ano depois enfrentaram acusação de invasão de propriedade privada
e foram condenados com pena suspensa.
«Ainda vieram uns engenheiros da Soporcel dizer que retirariam a
queixa se nos comprometêssemos a não destruir uma nova plantação de
eucalipto. Disse-lhes que nem pensar, aqui nunca teríamos árvores
dessas no nosso vale.»
Nas noites seguintes arrancou-se à socapa quase tudo o que faltava,
ficaram apenas meia dúzia de hectares a rodear o casario da quinta,
mais passível de vigia. A Soporcel acabaria por desistir e vender a
propriedade e a família que a comprou, quando ousou confessar a
Natália Esteves que pensavam plantar eucaliptos, foram logo avisados:
«Se os botais nós os arrancamos.»
«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir
drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que
não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais
diversificada para as populações», diz o ambientalista Serafim Riem.
Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras e amendoeiras, oliveiras e pinho.
Nunca ardeu. Serafim Riem, o ambientalista da Quercus, diz que até
hoje a guerra do povo de Valpaços é um marco, a maior ligação jamais
vista no país entre o mundo rural e o activismo ecológico.
«A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir
drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que
não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais
diversificada para as populações.»
Naquele 31 de março de 1989, o povo uniu-se e, diz agora, salvou-se.
«Nós é que tínhamos razão», repetem uma e outra vez, repetem todos.
Às seis da tarde, depois de José Oliveira ser libertado, um vale inteiro
voltou pelo mesmo caminho e juntou-se no principal largo de Veiga do
Lila. Mataram-se dois borregos e um leitão, abriram-se presuntos e
deitaram-se alheiras à brasa, houve até quem trouxesse uma pipa de
vinho. A festa durou noite dentro e foi maior do que qualquer romaria
de Santa Bárbara.
À volta da fogueira acabariam por juntar-se também os guardas que
horas antes defendiam o Ermeiro. E ali ficaram a comer e beber,
vencedores e vencidos, que em Trás-os-Montes nunca se nega
hospitalidade. Maria João Sousa nunca tinha visto uma coisa daquelas,
nem nunca voltaria a vê-la na sua terra. Foi o 25 de Abril da sua gente.
«Há lá coisa mais bonita do que uma revolução.»

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A UNIÃO FAZ A FORÇA

  • 1. A UNIÃO FAZ A FORÇA, O POVO JUNTOU-SE E A TERRA NUNCA MAIS ARDEU" «Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal. A acção fora concertada entre sete ou oito povoações de um escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos para destruir os 200 hectares de eucalipto" Há 28 anos um povo lutou contra os eucaliptos. E a terra nunca mais ardeu. Em 1989 houve uma guerra no vale do Lila, em Valpaços. Centenas de pessoas juntaram-se para destruir 200 hectares de eucaliptal, com medo que as árvores lhes roubassem a água e trouxessem o fogo. A polícia carregou sobre a população, mas o povo não se demoveu. Em quase três décadas o Lila escapou ileso aos incêndios. Hoje, todos dizem que é por se terem livrado dos eucaliptos. E lamentam que o resto do país não lhes tenha resistido.
  • 2. A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha plantado na região. [Arquivo JN] A polícia respondeu com uma carga à população, mas revelou-se incapaz de travar os avanços de 800 populares sobre a propriedade. [Arquivo JN]
  • 3. Quando a cavalaria da GNR se viu cercada, entrou em campo o corpo de intervenção. Só aí os ânimos acalmaram. [Arquivo JN] No vale do Lila não há mais de sete ou oito aldeias e todas vivem do olival. Os eucaliptos secar-lhes-iam os terrenos e trar-lhes-iam incêndios.
  • 4. António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as aldeias depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil traria prejuízos a médio prazo. Hoje, o povo sente que a destruição dos eucaliptos foi a sua salvação. E dizem que, se tivessem deixado aquela floresta avançar, não teriam escapado aos incêndios de 2017.
  • 5. Hoje os terrenos da quinta do Ermeiro são diversos. Há oliveiras e nogueiras, amêndoa e pinho. Em três décadas, nenhum incêndio. João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era presidente da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem educação mas afinal nós é que estávamos certos.»
  • 6. Os eucaliptos tinham sido plantados há pouco tempo, não foi preciso usar sacholas nem enxadas. Foram arrancados pelas mãos de homens e mulheres, canalha e velharia. A oliveira e o azeite sempre foram a riqueza da região. É sobretudo disso que ainda vivem hoje as populações de Valpaços.
  • 7. Ester Oliveira viu o marido ser detido durante os confrontos por posse de arma ilegal. «Foi o povo que o salvou por dizer que ele não arredava pé enquanto ele não fosse libertado.» A população tinha recuado depois da chegada do corpo de intervenção, mas voltara à carga para defender José Oliveira. A guerra terminou com a sua libertação.
  • 8. Alguns dos organizadores foram levados a tribunal por invasão de propriedade privada e condenados a pena suspensa. E todos dizem que voltariam a repetir o crime. Natália Esteves organizou assembleias, bateu à porta dos vizinhos, conseguiu convencer dezenas de agricultores que o eucalipto traria seca e fogo.
  • 9. Dos 200 hectares de eucalipto não sobram hoje mais do que uma dúzia de árvores junto ao casario do Ermeiro. Se alguém os quiser plantar, o povo arranca-os. Maria João Sousa tinha 15 anos quando viu a revolução chegar à sua aldeia. Diz que foi o 25 de Abril da sua gente.
  • 10. Em quase três décadas o Lila escapou ileso aos incêndios. Hoje, todos dizem que é por se terem livrado dos eucaliptos. E lamentam que o resto do país não lhes tenha resistido. A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha plantado na região. [Arquivo JN]
  • 11. Texto de Ricardo J. Rodrigues | Fotografia de Rui Oliveira / Global Imagens «Foi o nosso 25 de Abril», diz Maria João Sousa, que tinha 15 anos quando a revolução chegou à sua terra. No dia 31 de março de 1989, a rebate do sino, 800 pessoas juntaram-se na Veiga do Lila, uma pequena aldeia de Valpaços, e protagonizaram um dos maiores protestos ambientais que alguma vez aconteceram em Portugal. A acção fora concertada entre sete ou oito povoações de um escondidíssimo vale transmontano, e depois juntaram-se ecologistas do Porto e de Bragança à causa. Numa tarde de domingo, largaram todos para destruir os 200 hectares de eucalipto que uma empresa de celulose andava a plantar na quinta do Ermeiro, a maior propriedade agrícola da região. À sua espera tinham a GNR, duas centenas de agentes. Formavam uma primeira barreira com o objetivo de impedir o povo de arrancar os pés das árvores, mas eram poucos para uma revolta tão grande.
  • 12. A polícia respondeu com uma carga à população, mas revelou-se incapaz de travar os avanços de 800 populares sobre a propriedade. [Arquivo JN] «Naquele dia ninguém sentia medo. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar», lembra Maria João Sousa. Maria João, que nesse dia usava uma camisola vermelha impressa com a figura do Rato Mickey, nem deu pelo polícia que lhe agarrou no braço. «Ide para casa ver os desenhos animados», atirou-lhe, mas a rapariga restaurou a liberdade de movimentos com um safanão: «Estava tão convicta que não sentia medo nenhum. Naquele dia ninguém sentia medo nenhum. Eles atiravam tiros para o ar e parecia que tínhamos uma força qualquer a fazer-nos avançar.» A tensão subiria de tom ao longo da tarde. «Houve ali uma altura em que pensei que as coisas podiam correr para o torto», diz agora António Morais, o cabecilha dos protestos. Havia agentes de Trás-os-montes inteiros, da Régua e de Chaves, de Vila Real e Mirandela. Mas também lá estava a imprensa, e ainda hoje o homem acredita que foi por isso que a violência não escalou mais. Algumas cargas, pedrada de um lado, cacetadas do outro, mas nada que conseguisse calar um coro de homens e mulheres, canalha e velharia: «Oliveiras sim, eucaliptos não». «Não queríamos arder aqui todos» A guerra tinha começado a ser preparada um par de meses antes, quando António Morais, proprietário de vários hectares de olival no Lila, percebeu que uma empresa subsidiária da Soporcel se preparava para
  • 13. substituir 200 hectares de oliveiras por eucaliptal para a indústria do papel. «Tinham recebido fundos perdidos do Estado para reflorestar o vale sem sequer consultarem a população», revolta-se ainda, 28 anos depois. «Nessa altura o ministério da agricultura defendia com unhas e dentes a plantação de eucalipto.» Álvaro Barreto, titular da pasta, fora anos antes presidente do conselho de administração da Soporcel e tornaria ao cargo em 1990, pouco depois das gentes de Valpaços lhe fazerem frente. António Morais foi o cabecilha dos protestos. Percorrendo as aldeias depois da missa foi convencendo o povo que o lucro fácil trairia prejuízos a médio prazo. «A tese dominante dos governos de Cavaco Silva era que urgia substituir o minifúndio e a agricultura de subsistência por monoculturas mais rentáveis, era preciso rentabilizar a floresta em grande escala», diz António Morais. O eucalipto adivinhava-se uma solução fácil.
  • 14. Crescia rápido e tinha boas margens de lucro. Portugal, aliás, ganharia em poucos anos um papel de destaque na indústria de celulose e os pequenos proprietários poderiam resolver muitos problemas de insolvência abastecendo as grandes empresas com uma floresta renovada. A teoria acabaria por vingar em todo o país, sobretudo no interior centro e norte. Mas não em Valpaços. «Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes problemas», diz António Morais. «Numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das outras culturas. Nomeadamente, o olival, que sempre foi a riqueza deste povo.» «Comecei a ler coisas e percebi que o eucalipto nos traria grandes problemas», continua António Morais. «Por um lado, numa região onde a água é tudo menos abundante, teríamos grandes problemas de viabilidade das outras culturas. Nomeadamente o olival, que sempre foi a riqueza deste povo. E depois havia os incêndios, que eram o diabo. São árvores altamente combustíveis e que atingem uma altura muito grande.» Na terra quente transmontana o ano são oito meses de inverno e quatro de inferno. O fogo, tinha ele a certeza, chegaria com aquele arvoredo. Uns meses antes da guerra, começou a conversar sobre o seu medo com algumas das mais relevantes personalidades do vale. Grandes proprietários, políticos da terra, as famílias mais reconhecidas. «Lentamente começou a formar-se um consenso de que o lucro fácil do eucalipto seria a médio prazo a nossa desgraça. Não queríamos deixar secar a nossa terra. E não queríamos arder aqui todos. Tínhamos de destruir aquele eucaliptal, custasse o que custasse.»
  • 15. Anatomia da conspiração O núcleo duro estava formado, era constituído por dezena e meia de agricultores capazes de mobilizar o resto do povo. «Aos domingos, íamos às aldeias e no fim da missa explicávamos às pessoas o que podia acontecer à nossa terra», lembra Natália Esteves, descendente de uma família de grandes produtores de azeite feita de repente líder de protesto ecológico. «E também íamos de casa em casa, esclarecer quem não tinha estado nas assembleias.» Ao início houve renitência, a madeira valeria sempre mais do que a azeitona, e a castanha ainda não rendia o que rende hoje. «Mas tentámos sempre centrar a conversa no que aconteceria daí a uns anos, dizer que os eucaliptos secariam os solos e o povo ficaria refém de uma única cultura, que se alguma coisa corresse mal não teriam mais nada.» João Sousa esteve na organização dos protestos à socapa, era presidente da freguesia da Veiga do Lila. «Dizem que somos um povo sem educação mas afinal nós é que estávamos certos.»
  • 16. O que mais assustava aquela gente, no entanto, era o fogo. «Onde há eucalipto, tudo arde. E então o povo já não chamava a árvore pelo nome, mas por fósforos.» A primeira batalha estava ganha: tinham o apoio da população. João Sousa era nessa altura presidente da junta da Veiga do Lila. «Oficialmente não podia dizer que era contra os eucaliptos, nem ir contra a polícia. Mas, quando falava com as pessoas, dizia-lhes o que haviam de fazer», conta agora com uma gargalhada e sem ponta de medo. «Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde. Se o povo não se tem unido, estávamos a viver a mesma desgraça que vimos por esse país fora», diz João de Sousa. «Então se tínhamos o melhor azeite do país ia dar cabo dele para enriquecer uns ricalhaços de fora?» Tem 86 anos e uma destreza de 30, hoje estuga o passo para mostrar a zona que podia ter sido caixa de fósforos. «Vê, nem um eucalipto plantado. E o nosso vale há mais de 30 anos que não arde. Se o povo não se tem unido hoje estávamos a viver a mesma desgraça que vimos por esse país fora.» Essa é aliás a conversa mais recorrente por estes dias no vale do Lila. A tragédia florestal portuguesa dá a este povo a impressão que eles sim, tinham razão há muitos anos, quando o governo e as autoridades lhes diziam o contrário. «Podem achar que somos gente do campo, sem educação nem conhecimento, mas nós cá soubemos defender a nossa terra», diz o velhote. «Temos chorado muito por esta gente que perdeu vidas e
  • 17. animais e casas. E há uma coisa que o meu povo sabe: se temos deixado ficar os eucaliptos, também hoje choraríamos pelos nossos.» A guerra Há uns dias que os combates tinham começado. Ataques furtivos do povo, desorganizadamente, para arrancar pés de eucalipto nos limites do Ermeiro. Duas semanas antes da guerra, no Domingo de Ramos, as coisas aqueceram. «Juntámos duas centenas de pessoas aqui destas aldeias e os donos da empresa chamaram a GNR», lembra António Morais. «Quando eles chegaram já tínhamos dado cabo de uns bons 50 hectares de eucaliptal.» Nesse dia não houve confrontos, porque o povo fugiu. Mas anunciaram a alto e bom som que voltariam depois da Páscoa. Esse ataque tinha feito notícia no Jornal de Notícias e trazido uma mão- cheia de jornalistas à terra, nomeadamente Miguel Sousa Tavares, da RTP. «Percebi que as coisas estavam a tornar-se muito grandes e foi então que contactei a Quercus. Precisávamos de ajuda.»
  • 18. A 31 de março de 1989 o povo de Valpaços invadiu uma quinta no vale do Lila para arrancar os 200 hectares de eucalipto que a Soporcel tinha plantado na região. [Arquivo JN] Do outro lado da linha atendeu Serafim Riem, que dirigia o núcleo do Porto da organização ambientalista. O ecologista partiu imediatamente para o terreno. Nesses dias ouviriam do parlamento em Lisboa várias palavras de solidariedade. Sobretudo do PCP, d’Os Verdes e de um jovem deputado socialista chamado José Sócrates. Agora não valia a pena esconder mais nada. A 31 de março de 1989, domingo depois da Páscoa, o povo juntar-se-ia todo na Veiga do Lila para dar cabo do eucaliptal que restasse. A aldeia enchera-se de jornalistas, havia até um helicóptero a cobrir os acontecimentos do ar. A direcção nacional da Quercus demarcar-se-ia da organização dos protestos através de um comunicado, mas os núcleos do Porto e Bragança encheriam cada um o seu autocarro de ambientalistas carregados de cartazes. Às duas da tarde o sino começou a tocar a rebate. Oito centenas de vozes entoavam «oliveiras sim, eucaliptos não» e largaram por um caminho de terra batida para a quinta do Ermeiro. Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas das boas», recorda Natália Esteves. Não era preciso usar enxadas nem sacholas, os eucaliptos tinham sido plantados há pouco tempo e arrancavam-se com as mãos. A polícia tentava fazer uma linha de defesa, mas duas centenas de agentes não chegavam para aquela gente toda.
  • 19. Numa hora, foram arrancados 180 hectares de pequenas árvores. «Alguns gozavam com os agentes na cara e levaram umas bastonadas das boas», recorda Natália Esteves. Os que eram de perto diziam-lhes assim: «Tendes razão, por isso vamos fingir que não vemos.» Viravam as costas e o povo ia subindo o terreno. Num instante, o casario da quinta tornava-se no último reduto da investida. Uma dezena de guardas saíram a cavalo, era demonstração de força mas não surtiu resultado. A Soporcel tinha construído socalcos para plantar os eucaliptos e, agora, os animais não conseguiam descê- los. «O povo ia atirando pedras aos guardas, houve um que acertou no cavalo e mandou-o abaixo», diz João Morais. Foi nesse momento que entrou em campo o corpo de intervenção, disposto a levar toda a gente pela frente. «Aí as coisas podiam ter descambado definitivamente.» Todos por um A guarda especializada avançava agora colina abaixo com escudos e capacetes. José Oliveira, um agricultor da pequena aldeia de Émeres, tentou escapar pela lateral, mas foi logo caçado pela guarda. No bolso trazia um revólver e foi isso que o tramou. «Levaram-no logo detido para dentro do jipe por posse de arma ilegal», conta agora a sua viúva, Ester. Aquela detenção marcaria o início do fim da guerra. «As pessoas tinham recuado por causa do corpo de intervenção, mas quando se aperceberam que um dos nossos estava preso começaram a gritar que não arredariam pé enquanto ele não fosse solto», diz João Morais. Ester anui, «foi o vale inteiro que salvou o meu homem.» Agora já não havia pedras, havia gritos. Que libertassem o tio Zé e rápido.
  • 20. Ester Oliveira viu o marido, José Oliveira, ser detido durante os confrontos por posse de arma ilegal. «Foi o povo que o salvou por dizer que ele não arredava pé enquanto ele não fosse libertado.» Serafim Reim, o homem da Quercus, é que foi lá negociar a libertação com os guardas. Sobravam menos de 20 hectares de eucalipto, o povo deixá-los-ia em paz se soltassem o velhote. Uma hora depois, houve consenso. Identificaram José Oliveira, caçaram-lhe a arma e mais tarde levaram-no a tribunal, mas naquele dia saiu pelo seu pé para os braços da mulher, e daí para casa. António Morais, Natália Esteves, João Sousa e mais uma dezena de organizadores do protesto também seriam chamados à barra da justiça, um ano depois enfrentaram acusação de invasão de propriedade privada e foram condenados com pena suspensa. «Ainda vieram uns engenheiros da Soporcel dizer que retirariam a queixa se nos comprometêssemos a não destruir uma nova plantação de eucalipto. Disse-lhes que nem pensar, aqui nunca teríamos árvores dessas no nosso vale.»
  • 21. Nas noites seguintes arrancou-se à socapa quase tudo o que faltava, ficaram apenas meia dúzia de hectares a rodear o casario da quinta, mais passível de vigia. A Soporcel acabaria por desistir e vender a propriedade e a família que a comprou, quando ousou confessar a Natália Esteves que pensavam plantar eucaliptos, foram logo avisados: «Se os botais nós os arrancamos.» «A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais diversificada para as populações», diz o ambientalista Serafim Riem. Hoje, o Ermeiro é terra de nogueiras e amendoeiras, oliveiras e pinho. Nunca ardeu. Serafim Riem, o ambientalista da Quercus, diz que até hoje a guerra do povo de Valpaços é um marco, a maior ligação jamais vista no país entre o mundo rural e o activismo ecológico. «A única maneira de travar os incêndios em Portugal é reduzir drasticamente o eucaliptal e substituí-lo pela floresta autóctone, que não só tem melhor imunidade ao fogo como gera uma riqueza mais diversificada para as populações.» Naquele 31 de março de 1989, o povo uniu-se e, diz agora, salvou-se. «Nós é que tínhamos razão», repetem uma e outra vez, repetem todos. Às seis da tarde, depois de José Oliveira ser libertado, um vale inteiro voltou pelo mesmo caminho e juntou-se no principal largo de Veiga do Lila. Mataram-se dois borregos e um leitão, abriram-se presuntos e deitaram-se alheiras à brasa, houve até quem trouxesse uma pipa de vinho. A festa durou noite dentro e foi maior do que qualquer romaria de Santa Bárbara.
  • 22. À volta da fogueira acabariam por juntar-se também os guardas que horas antes defendiam o Ermeiro. E ali ficaram a comer e beber, vencedores e vencidos, que em Trás-os-Montes nunca se nega hospitalidade. Maria João Sousa nunca tinha visto uma coisa daquelas, nem nunca voltaria a vê-la na sua terra. Foi o 25 de Abril da sua gente. «Há lá coisa mais bonita do que uma revolução.»