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16 - Boletim da FCM
+ história
Em virtude da inexistência de escolas e univer-
sidades no Brasil colonial, médicos (também
conhecidos por físicos) e cirurgiões com forma-
ção acadêmica, forçosamente vinham do estran-
geiro. A maioria era de origem portuguesa, mas
espanhóis, franceses e holandeses deixaram sua
marca durante os primórdios da colônia.
O primeiro médico a aportar nestas terras foi o
mestre João Menelau, cuja titulação incluía os
graus de médico, cirurgião, astrônomo e astrólo-
go do rei. Ele possivelmente fora incluído na
esquadra de Cabral por seus conhecimentos, em
especial àqueles referentes aos astros. Esta
misteriosa figura da história pela primeira vez
descreveu nos céus o nosso Cruzeiro do Sul e
viabilizou, através de seus mapas, o retorno dos
portugueses aos novos territórios descobertos.
Não era estranho para a época que os médicos
tivessem tal conhecimento em astrologia, tendo
em vista a medicina exercida na época - um
misto da antiga tradição galênica e de maciças
doses de misticismo medieval. Mestre João,
mesmo vivenciando precárias condições clínicas,
não fez nenhuma contribuição médica conhecida,
e deixou para o escrivão Pero Vaz de Caminha a
incumbência de descrever a saúde das gentes
estranhas que encontrara naquelas terras...
Um vácuo na vinda de médicos ocorreu após a
descoberta, e o próximo somente viria com o
primeiro governador geral, Tomé de Souza. Jorge
Valadares permaneceu em seu cargo durante os
quatro anos de seu contrato firmado com o
governo português. Entre 1549 e 1553, como
físico-mor, ele recebeu a quantia de 2.000 réis
mensais para prestar assistência médica aos
colonos. Não era muito - um bispo, por exemplo,
receberia 120.000 réis anuais. Depois dele, cargo
semelhante seria exercido pelos cirurgiões que,
na época, não tinham formação médica universi-
tária, mas que se perpetuaram nos cuidados à
saúde colonial.
Poucos eram os profissionais que queriam vir ao
Brasil, exceto aqueles que buscavam aventuras
ou estavam fugindo da inquisição – a medicina
não era valorizada em Portugal e as famílias mais
tradicionais preferiam carreiras eclesiásticas e as
ligadas ao direito. Desta forma, a grande maioria
dos médicos lusitanos eram cristãos novos,
formados em Coimbra ou Salamanca, que enfren-
tavam uma série de dificuldades profissionais e
pessoais.
Além de um tempo médio de estudo de dez
anos, eles ainda eram submetidos a um exame
para a concessão de licença para exercer a
profissão.
Quando esta era concedida, aqueles que se
locomoviam entre as pequenas vilas precisavam
requerer permissão especial para adquirir mua-
res, um meio de transporte essencial para a
época, mas de difícil obtenção – o governo
português incentivava mais a criação de cavalos
para uso militar. Foi o que aconteceu com Garcia
da Orta, médico que acompanhou a empreitada
de Martim Afonso de Souza e que viu nascer a
vila de São Vicente, no litoral de São Paulo. Ele
não deixou nenhuma observação sobre o que
encontrou no Brasil, mas dirigiu-se às Índias, que
lhe prometiam lucros fabulosos. Lá ele foi o
primeiro médico ocidental a descrever um surto
de cólera, então conhecida por mordexim, e
mesmo após sua morte, foi vítima da inquisição.
Seus ossos foram desenterrados e queimados por
acusação de judaísmo.
Mas e o Brasil? Bem, esta não era apenas uma
terra de oportunidades, mas também de índios
Médicos do Brasil Colonial
Boletim da FCM - 17
Profa. Dra. Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel
Grupo de Estudos História das Ciências da Saúde
FCM, Unicamp
hostis e de ínfima população que pudesse
usufruir dos benefícios de um serviço de
assistência privilegiado. Quando pagos,
muitas vezes os médicos eram ressarcidos em
gêneros alimentícios (porcos, galinhas, farinha),
ou tecidos e outras manufaturas vindas da
metrópole. Por este motivo, na desvalorizada
profissão seus executantes eram obrigados a
trabalhar em outras áreas para a sua sobrevivên-
cia. Quando presentes, preferiam se instalar em
praças maiores como Salvador, Recife e, posteri-
ormente, o Rio de Janeiro, onde enfrentavam a
concorrência de cirurgiões e daqueles que
exerciam práticas médicas populares.
Os nascentes hospitais, representados por
instituições militares e pelas Santas Casas,
tinham dificuldades na contratação de profissio-
nais e os Senados das Câmaras de vilas e cida-
des, com frequência enviavam ao governo
colonial requerimento para a vinda de médicos.
No primeiro hospital do Brasil – a Santa Casa de
Santos – o trabalho médico era voluntário no
atendimento à população local e de marinheiros,
que adoeciam após extenuada travessia do
Atlântico.
Escassos também em Portugal, os físicos eram
mandados em caráter excepcional, como ocorreu
na grande epidemia de febre amarela em Recife.
Em 1690, o médico João Ferreira Rosa, mediante
o contrato de uma pensão de 20 mil réis e uma
ajuda de custo de 50 mil réis, apresentou as
regras para uma campanha considerada como a
primeira de caráter profilático das Américas.
Dentre medidas hoje consideradas curiosas,
como o acendimento de fogueiras, a expulsão
das meretrizes da cidade e a emanação de tiros
de canhão para afugentar a epidemia, o médico
também ordenou medidas higiênicas que resul-
taram no enfraquecimento gradativo do mal.
A competência de Rosa teria sido exceção,
segundo relatos contemporâneos. A própria
medicina da época, utilizando-se de uma tera-
pêutica agressiva, teria contribuído para a má
reputação de seus profissionais, mas no Brasil a
situação parecia ser pior. O famoso médico
Curvo Semedo, que visitou o país por volta de
1691, testemunhou que aqui os físicos eram
afeitos ao exagero e sangravam doentes de 20 a
30 vezes, até que morressem. Tal situação não
parece ter mudado no século seguinte, quando,
em um de seus sermões, Frei Caetano Brandão,
Bispo do Grão Pará e Maranhão, proferiu “... é
melhor trata-se a gente com um tapuia do sertão,
que observa com mais desembaraçado instinto, do
que com médico de Lisboa”...
Declaração embaraçosa para os profissionais
que já não eram muito valorizados - os tapuias
eram indígenas então considerados como os
mais primitivos da colônia.
A escassez de médicos foi patente durante
todo o período colonial. No final do século XVIII,
relatos de visitantes estrangeiros, como os de
von Martius, informavam que em todo o Brasil
não existiriam mais de 12 médicos formados.
Desta forma, não é estranho que uma das
primeiras medidas de D. João, ao chegar ao país,
tenha sido a fundação de duas escolas de
cirurgia que, posteriormente, se transformaram
em médicas por força das circunstâncias.

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  • 2. Boletim da FCM - 17 Profa. Dra. Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel Grupo de Estudos História das Ciências da Saúde FCM, Unicamp hostis e de ínfima população que pudesse usufruir dos benefícios de um serviço de assistência privilegiado. Quando pagos, muitas vezes os médicos eram ressarcidos em gêneros alimentícios (porcos, galinhas, farinha), ou tecidos e outras manufaturas vindas da metrópole. Por este motivo, na desvalorizada profissão seus executantes eram obrigados a trabalhar em outras áreas para a sua sobrevivên- cia. Quando presentes, preferiam se instalar em praças maiores como Salvador, Recife e, posteri- ormente, o Rio de Janeiro, onde enfrentavam a concorrência de cirurgiões e daqueles que exerciam práticas médicas populares. Os nascentes hospitais, representados por instituições militares e pelas Santas Casas, tinham dificuldades na contratação de profissio- nais e os Senados das Câmaras de vilas e cida- des, com frequência enviavam ao governo colonial requerimento para a vinda de médicos. No primeiro hospital do Brasil – a Santa Casa de Santos – o trabalho médico era voluntário no atendimento à população local e de marinheiros, que adoeciam após extenuada travessia do Atlântico. Escassos também em Portugal, os físicos eram mandados em caráter excepcional, como ocorreu na grande epidemia de febre amarela em Recife. Em 1690, o médico João Ferreira Rosa, mediante o contrato de uma pensão de 20 mil réis e uma ajuda de custo de 50 mil réis, apresentou as regras para uma campanha considerada como a primeira de caráter profilático das Américas. Dentre medidas hoje consideradas curiosas, como o acendimento de fogueiras, a expulsão das meretrizes da cidade e a emanação de tiros de canhão para afugentar a epidemia, o médico também ordenou medidas higiênicas que resul- taram no enfraquecimento gradativo do mal. A competência de Rosa teria sido exceção, segundo relatos contemporâneos. A própria medicina da época, utilizando-se de uma tera- pêutica agressiva, teria contribuído para a má reputação de seus profissionais, mas no Brasil a situação parecia ser pior. O famoso médico Curvo Semedo, que visitou o país por volta de 1691, testemunhou que aqui os físicos eram afeitos ao exagero e sangravam doentes de 20 a 30 vezes, até que morressem. Tal situação não parece ter mudado no século seguinte, quando, em um de seus sermões, Frei Caetano Brandão, Bispo do Grão Pará e Maranhão, proferiu “... é melhor trata-se a gente com um tapuia do sertão, que observa com mais desembaraçado instinto, do que com médico de Lisboa”... Declaração embaraçosa para os profissionais que já não eram muito valorizados - os tapuias eram indígenas então considerados como os mais primitivos da colônia. A escassez de médicos foi patente durante todo o período colonial. No final do século XVIII, relatos de visitantes estrangeiros, como os de von Martius, informavam que em todo o Brasil não existiriam mais de 12 médicos formados. Desta forma, não é estranho que uma das primeiras medidas de D. João, ao chegar ao país, tenha sido a fundação de duas escolas de cirurgia que, posteriormente, se transformaram em médicas por força das circunstâncias.