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CAPITULO I
As Damas de Gouldsboro — No quarto da Diaba
ESTADA EM GOULDSBORO
Fazia um dia lindo quandoo Arc-en-Ciel lançou âncora diante de Gouldsboro. Enquantoesperavam a execução das manobras, que
consistiam em reunir as bagagens na ponte, descer as chalupas ao mar, ajudar os passageiros a se acomodar — e que passageiros nas
pessoas de Raimundo Rogério e Gloriandra de Peyrac! —, os primeiros emissários de Gouldsboro se apresentaram aonavio e subiram
pelas escadas de corda ou pelos cordames.
Entre eles, o ativo e empreendedor MarcialBerne, irmão mais velho de Severina, e seu grupode jovens patrulheiros da baía,ladeado
pelo fiel escocês George Crowley, que se gabava de ser o primeiro colono do lugar,e dovelho chefe Massaswa com sua flotilha de índios
que quase nãose via noresto do ano, mas que surgia como por milagre de todas as angras circundantes assim que o pavilhão doConde
de Peyrac era avistado no horizonte.
No fim de um instante, todo mundoestava reunidoem volta dos pequenos pacotes brancos carregados por suas amas-de-leite e babás,e
a manobra nãoprogredia mais. Enfim,conseguiram dispersar o ajuntamento, e Angélica obteve, depois de muito insistir, algumas
notícias e algumas respostas a suas perguntas.
Todos estavam de acordo. O outono seria longo, e o sol doverão indígena, sempre especialmente quente e imutável, prometia brilhar
pelo menos até os últimos dias de outubro, se nãoaté meados de novembro. O que permitia permanecer pelo menos uma ou duas
semanas nas praias, sem correr o risco de ser surpreendidopelos primeiros frios durante a viagem de volta para Wapassu,com os
pequenos príncipes.
Houve, todavia, um contratempo. O navio Gouldsboro, que deixara o porto de atracação em junhoem direção à Europa, como fazia
anualmente,ainda não voltara, assim como a embarcação menor, Le Rochelais, encarregadode uma missão especial e secreta no
Mediterrâneo.Esse atraso não podia ainda ser considerado inquietante,mas o Gouldsboro e seu CapitãoErikson os habituara a vê-los
efetuar ida e volta através do oceano com tanta celeridade e êxito, que acabaram por esquecer que podiam, como os outros, encontrar
pela frente tempestades,calmarias ou piratas. Ninguém encarava a possibilidade de um naufrágio. Foram tranquilizados, na hora
seguinte, graças a uma mensagem que lhes foi entregue pelo corsário holandês, um amigo que bordejava nas paragens e que os avisava
que encontrara a embarcação ancorada num fiorde da ilha Royale, onde esperava o Le Rochelais, mais lento que ele, antes de começarem
a contornar juntos a Nova Escócia e chegar ao porto.
Só podiam esperar que eles chegassem antes da partida obrigatória para o Alto Kennebec,pois esses navios seriam carregados de mil
objetos, instrumentos e mercadorias preciosas para a invernagem,e seria lamentável nãopoder, encaminhá-las para Wapassu.
Enfim Marcial Berne ia partir para estudar em Harvard. Seu pai nãoqueria vê-lo tornar-se um pirata da baía Francesa. Iria depois para
Newport e, em seguida, para Nova York, fazer comércio. — Fique bravo, fique com raiva, fique!Eu vi tudo isso antes de você! —
cantarolou Severina, esfregandoum indicador no outro e apontando-opara ele. — Não lhe contarei nada!
La Rochelle francesa,sua volubilidade, seus maneirismos tradicionais, que nãomorrem depressa, brilhavam ao sol... E Angélica
preparou-se para enfrentar Gouldsboroe suas damas. Os laços que uniam Angélica à parte majoritária da população, os huguenotes
franceses de La Rochelle, eram profundos,indefectíveis, mas ambíguos, e, a priori, continuariam a sê-lo para sempre.
Censuravam-na por tê-los obrigado a subir nonavio de Joffrey de Peyrac, um pirata,a seus olhos. Ela pedira-lhes misericórdia de joelhos
quandose rebelaram contra ele durante a travessia, merecendopor isso a forca.
Em circunstâncias em que toda mulher honesta deveria esconder-se de vergonha,pois ela era acusada de adultériocom Barba de Ouro,
ela os enfrentara com uma desenvoltura desconcertante. Sabia que, aos olhos deles, não importava o que fizesse, sua conduta tinha
sempre alguma coisa de chocante. Enquantoo Arc-en-Ciel entrava na enseada,Angélica, com a luneta assestada, viu na primeira fila,
num grupocompacto e dominador, identificáveis por suas roupas escuras e suas belas coifas brancas, aquelas que tinham sidoas damas
de La Rochelle e se tornaram as Damas de Gouldsboro, tão arraia miúda pareciam, ao lado delas,os outros habitantes dolugar, não
menos numerosos.
Angélica, que gostava delas por tudoo que tinham vivido juntas e que desejaria agradar-lhes e receber sua aprovação, suspirava, pois
sabia que sempre lhes inspirava, nãoimportava o que fizesse, um sentimento de reprovação. Que ela tivesse se introduzido entre elas em
La Rochelle, inicialmente como humilde criada, para se revelar a seguir dama de alta nobreza, isso nãomudava nada de nada,explicava
de bom gradoa autoritária Sra. Manigault.Pois, quer fosse a empregada de GabrielBerne quer fosse a mulher do pirata aoqualdeviam
sua salvação e sua instalação no Novo Mundo,ela sempre os havia dirigido com a mesma autoridade e os dominara com a mesma
maneira desenvolta, não tendojamais tido consciência de que estivesse tratandocom gente séria e senhora de seu destino, eles, os
huguenotes de La Rochelle. Angélica sabia também que, nofim de alguns dias, após discutirem o assunto, eles se informariam sobre se se
poderia mudá-la ou melhorá-la. Reconheceriam, pela enésima vez, que ela possuía uma mentalidade muito diferente da deles para que
não houvesse atritos ou mal-entendidos, que ela era uma mulher fantasiosa, se não leviana, em todo caso demasiadoindependente,para
que se incomodassem, mas acabariam por convir que a amavam muito, Dame Angélica de La Rochelle ou de Gouldsboro, tal como ela era,
que nãoa queriam diferente,e que estavam muito contentes por vê-la entre eles.
Mas os reencontros eram sempre difíceis. Era inútil, dar-se ao trabalhode tratar todo mundocom cuidadoe nãochocar ninguém, ela
sentia rapidamente que sua vinda perturbava oequilíbriode sua existência bem regrada.Acabara por compreender que nãodependia
dela que as coisas fossem diferentes.Só era responsávelpelo lugar importante que,a despeitode si mesmos e a despeitode muitos
escândalos, ela ocupava em seus corações sombrios, pouco inclinados à indulgência e a capitular diante da sedução.
“O que foi que fizao céu”, perguntava-se por vezes Angélica, “para que a afeição que me devotam me traga com tanta frequência
desconfortos e perigos? Os homens brigam entre si, por minha causa,as mulheres se sentem frustradas se não dedico a cada uma minha
atenção exclusiva...”
Com exceção da sábia e terna Abigail, tinha de resignar-se com as outras, ao vê-las com cara de enterro,os lábios apertados numa
censura reprimida e sem se poder determinar a propósito de quê; tinha certeza de que iria, uma vez mais, causar-lhes muitas razões de
descontentamento.
De imediato, as damas abominaram Ruth e Noémia. Não porque fossem inglesas, mas elas adivinharam logo o lado suspeito de sua
personalidade e o lugar privilegiado que ocupavam no coração de Angélica. Por isso, foram de preferência muito mais solícitas com a
parteira irlandesa e suas moças, enquantoas duas jovens babás eram sistematicamente postas de lado.
Na confusãodo desembarque,Angélica preocupara-se principalmente em designar o lugar onde ia alojar os pequenos heróis do dia,
cujas cestinhas de vime, carregadas cada uma na cabeça de um marinheiro, abordaram na praia num silêncio quase religioso, para ser,
em seguida, objeto de alegres clamores, enquantoseus carregadores subiam a praia com orgulho.
Desde que tinham ido, como marido e mulher,a esse ponto do litoral do Maine, Angélica e Joffrey de Peyracnão tiveram nunca a
oportunidade de residir por muito tempoali. Tinham conservado o costume de se alojar em seu forte de madeira, rústico mas sólido, que
se erguia na extremidade da ponta rochosa e que fechava a angra,transformada posteriormente em porto.
Edificado sobre as ruínas de antigos fortins pelos primeiros visitantes do lugar,talvez Champlain ou pescadores ingleses surpreendidos
pela invernagem, ampliadode um cercado fechadopor uma paliçada de estacas, esse forte fora por muito tempoa única habitação digna
desse nome. Joffrey de Peyrac, vindo das Caraíbas, onde reunira uma fortuna resgatandoos tesouros dos galeões espanhóis, ali se
acantonava com sua tripulação e suas levas de mercenários, entre duas explorações na hinterlândia ou de reconhecimentos ao longo das
violentas costas de um território, sobre o qualacabara de obter, das autoridades doMassachusetts, o direito de estabelecimento e
explorações das minas de prata.
O forte tinha dois andares e comportava, embaixo, uma grande sala comum que servia também de escritório para o comércio e a troca,
ladeada de lojas e entrepostos diversos para os víveres e as armas.
Em cima, o andar era ocupado por um amploquarto e dois outros menores, e era ali que Angélica ia se instalar com suas malas e cofres.
O quarto estava mobiliado com um grande leito, mesa e poltronas, e escabelos, com revestimentos e tapeçarias nas paredes para
proteger contra o frio e a umidade.Havia também um armário, o que nãoera frequente nessas regiões. Ali se podiam dispor objetos de
toalete, bibelôs, joias, e depositar as diversas mercadorias trazidas da Europa pelos navios, depois de separá-las e decidir para que
outros lugares ou casas deviam ser encaminhadas.
Foi, portanto, naturalmente para o forte que se dirigiram os carregadores dos bercinhos de Raimundo Rogério e Gloriandra. Mas, no
momento de fazê-lo subir para o quartomaior, Angélica se lembrou de que a Sra. de Maudribourg,a demoníaca amiga doPadre
d'Orgeval,ali se hospedara.E foi tomada de pânico.
Receou, pelos preciosos inocentes que trazia de Salem, que ali permanecessem eflúvios do mal destruidor... Fora nesse quartoque,uma
noite, acordando, arrepiada de terror, divisara num canto um “ser”' sombrio. Era em volta desse leito que as pobres Moças doRei,
subjugadas,enfeitiçadas,sofriam a ascendência do demónio súcubo. Nesse aposento tinham começado as mentiras e daí partiram as
ordens de morte, a génese dos crimes.
Mandou que ocortejo esperasse na sala de baixo, o que permitiu à multidão contemplar mais de perto os dois bebês,colocados em suas
cestas sobre a mesa de madeira,e que se mantinham tranquilos, não tendoainda notado que os tinham separadode novo. Fazendo sinal
a Ruth e Noémia para que a seguissem, subiu com elas.
Rapidamente,explicou-lhes o que acontecera naqueles lugares e pediu-lhes que procedessem a um exame das influências nocivas que
deviam ali existir e, se possível, à sua anulação.
Agar imediatamente retirou da mochila a varinha de feiticeira e, murmurandofórmulas, entregou-a a Ruth Summers. Depois, sentou-se
contra o batente da porta, com seus grandes olhos de cigana à espreita, inspecionando com uma mistura de medoe de intensa
curiosidade o conjunto doquarto, enquantoAngélica, permanecendotambém na soleira, olhava as idas e vindas das duas silhuetas, uma
atrás da outra, das moças de Salem: Ruth, com a varinha entre os dedos, Noémia seguindo-a com gestos de mãos que se erguiam como
que para captar não se sabe que correntes invisíveis, sua pequena silhueta frágilgirandosobre si mesma, ora à direita, ora à esquerda.
Mas, às vezes, uma expressão de dor crispava-lhe o rosto, e ela não concluía o giro. Depois, retomavam sua marcha processional,
trocando ideias num tom de conversa banal.
Tendoo sol se deslocado, reinava uma luz pálida, a luz dodia misturada ao reflexodo céu no mar, ao pé do promontório. Uma claridade
suave, neutra,transparente,onde as duas mágicas passavam com a discrição de fantasmas acostumados a não serem vistos pelo olhar
dos homens. Depois, voltaram-se para Angélica, e Ruth arrumou sua varinha com gestos precisos de dona de casa nosaco que a cigana,
que se levantara prontamente, lhe estendia.
— Então? — interrogou Angélica. — Então nadai — disse Ruth, sacudindo a cabeça. — Nada!— repetiu Angélica. — E, no entanto, ela
viveu aqui!Como explicam isso? Ruth voltou-se para Noémia. — O gato captou tudo — declarou esta, abrindoas mãos num gesto que
significava: é assim. — O gato? — Ele nãoestava aqui? — Com efeito...
E nesse mesmo dia ele aparecera,o Senhor Gato, que atualmente passeava,solene e bem nutrido, pelos caminhos de Gouldsboro. Ele não
passava então de um miserável gatinho de navio, não maior que a mão do grumete que devia tê-lo jogado na praia, entre as poças d'água.
Subitamente,Angélica, sentada à cabeceira de Ambrosina, o vira ali, contra sua saia, como que surgidodo assoalho, tão fraco, héctico e
vacilante em suas patas finas, que nãotinha forças para miar. Fixava-a com seus olhos dilatados, com uma tal expressão de espera,tão
cheia de esperança e de confiança... Ela o pegara no colo para aquecê-lo,cuidar dele... Senhor Gato! Pequenogénio doBem. Enviado para
captar o Mal...
— Por que nos olha assim? — perguntou Ruth.— Sabemos tão pouco sobre os mistérios que escoltam os seres humanos... Mais seres do
que você imagina vivem com poderes secretos, e muitos mais deveriam sabê-lo. Tantas forças e tantos tesouros que nos foram revelados
se perdem,em nossos dias! Mas o papele o objetivo de Satã é privar o homem de seus dons místicos e afastar dele as ajudas divinas.
CAPITULO II
Os Huguenotes e Bertille Mercelot
E como perguntasse sobre o jovem Laurier Berne, o segundoirmão de Severina e que era para ela um de seus filhos adotivos de La
Rochelle, viu-o correr. — O gato apareceu em nossa casa em primeiro lugar — gritou. — Venha depressa,Dame Angélica, nós a
esperamos para a refeição.
Na casa dos Berne, em volta do diplomata visitante, o Senhor Gato, sobre a mesa, reencontrava Abigail, seu esposo, suas encantadoras
filhinhas, uma,Elisabeth, de dois anos, a outra, Apolina, de seis meses. Notando uma outra cabeça loura, Angélica perguntou onome do
pequenovizinho. — É o pequenoCarlos Henrique,você sabe... Na ausência de sua madrasta, Bertille, que viajou para acompanhar seu
pai, o Sr. Mercelot, à Nova Inglaterra, para ajudá-locom suas escritas, nós ficamos cuidandodele.
— Ah! sim, Carlos Henrique! — disse ela, entristecida. — Seus avós, os Manigault, nãopodiam cuidar dele? ou suas filhas, Sara e Débora,
que são tias dele, em vez de sempre recorrerem a você, Abigail, que é apenas uma vizinha, carregada de filhos?! Abigail teve uma
expressãodubitativa e acariciou a cabeça da criança, que era bela e desenvolvida para seus três anos, mas que tinha o hábito de manter
os grandes olhos sempre arregalados,como se estivessem lhe explicando algo estarrecedor que ela nãocompreendesse.
Ela respondeu,com mansidão: — Você sabe como eles se sentem em relação a este pobrezinho. Ê preciso desculpá-los. Uma nuvem de
tristeza passou pelo rosto das pessoas presentes,enquantotomavam assento em volta da grande mesa de madeira e mestre Gabriel
Berne, depois- de tirar dotonel um pouco do vinho de uma remessa nova, aberta com o próprio facão, o seria nos cálices de estanho,
dispostos por Severina.
Para evitar um assunto de preocupaçãolatente na comunidade de Gouldsboro, o desaparecimentoda mãe verdadeira de Carlos
Henrique,começaram a congratular-se: naquele ano, pelo menos, o verão parecia ter trazido apenas satisfações. Não houvera piratas,
corsários atracados nas ilhas para vistoriar os navios que chegavam da Europa com seus carregamentos de provisões, indesejáveis entre
esses bacalhoeiros estrangeiros, ingleses em busca de desforra sobre os postos da Acácia Francesa, reides iroqueses ou guerra santa de
abenakis contra o herege.Paz, portanto, na baía Francesa.
— Assim seja — aprovou Severina, impulsiva e ardente, e que,voltando para casa, tinha muitas novidades para contar. Com um braço
em volta dos ombros de seu pai e de sua segunda mãe,de quem gostava muito, continuou: — Concordo! Reconheço que oclima de
Gouldsboro é um dos mais agradáveis, e que a gente sente o coração leve e cheio de amizade pelo próximo... Mas, em sua opinião, estava
na hora de todas as pessoas de bom senso reconhecerem uma coisa, que saltava aos olhos. Se aquele ano, ali, a atmosfera estava calma,
cordial, nãoera apenas devidoaos triunfos doverão — boas colheitas, boas notícias da Europa,boa pesca, bons negócios e comércio,
boas chegadas e boas partidas de navios e o feliz nascimento dos gêmeos de Peyrac, que coroava tudo, mas também... porque tinham se
livrado de Bertille Mercelot.
Sem ousar dizê-lo em voz alta, por medo à Sra. Manigault, sempre muito autoritária, mas alguns ousando cochichá-lo ao ouvido de
outros, acabaram por constatar que,sem Bertille Mercelot, todo mundose entendia melhor em Gouldsboro. E quandoSeverina contou
como a insolente, que ela reencontrara em Salem, se comportara com a Sra. de Peyrac, nem bem refeita doparto, as línguas se
desataram.
Bertille Mercelot, declararam, nãoparava de fazer o papelde pomo da discórdia, e isso desde que nascera. Os que em La Rochelle a
viram crescer contavam que,ainda bem pequena,ela já semeava a cizânia entre os garotos do Bairro das Muralhas,com os quais
aprendia a ler a Bíblia na casa de duas moças muito honestas. Depois da passagem de Bertille por suas pequenas oficinas, onde, sem
malícia e dedicadamente,ensinavam às pequenas huguenotes da cidade a se manter eretas e a fazer gentilmente a reverência, curta e
modesta, e um pouco de costura e de tricô, elas tiveram de renunciar a prosseguir com seus ensinamentos. Por ser bonita, e mesmo
fascinante, filha única e herdeira de uma considerável fortuna,devida a um próspero comércio de papelaria, Bertille Mercelot sempre se
julgou irresistível, considerando um insulto à sua pessoa nãoo reconhecer.
Sendouma menina inteligente e que aprendia mais depressa que as outras, era difícil negar essa superioridade,que ela afirmava por sua
simples e incomparávelpresença, e suas companheiras de infância acabaram por admitir, domesmo modo que ela, que Bertille Mercelot
nascera para ocupar o primeiro lugar em tudoe para deixar aos outros apenas os restos. Quandochegou à idade de atrair o olhar dos
homens, tevê de enfrentar a difícil escolha de atrair todos eles, mas nem por isso recuou em sua ambição de atrelar a seu carro o maior
númeropossível, pelo menos para nãoabandoná-los às outras.
Era difícil distinguir num primeiro olhar as paixões que dormitavam sob essa água parada.Ela sabia como desviar os espíritos de sua
responsabilidade em uma querela,pois, para ousar a linguagem papista, “ ter-lhe-iam dadoo Bom Deus sem confissão”. Tinham, pois,
paciência com ela, fosse por cegueira, fosse por poupar seus pais, que eram as melhores pessoas domundoe que nunca perceberam que
sua filha adorada era uma rameira.
Mas, agora que seu paitivera a boa ideia de levá-la em sua visita aos moinhos de papelda Nova Inglaterra, mediam, peloalívio que isso
lhes trouxera,o peso que suas dissimulações exerciam sobre a comunidade. Com Bertille, a gente sempre se perguntava qualseria o
próximo lar que ela ia tentar destruir e, com esses piratas arrependidos do outro ladodo porto, papistas, portantolibertinos por
natureza, se o bom entendimentoestabelecidopor Colin Patureltivesse um dia razões para se romper, as imprudentes incursões de
Bertille entre eles não seriam estranhas.Com efeito, ela só respeitava Colin, o governador, e Abigail Berne,e mesmo assim, nãose sabia
se nãose deixariam lograr um dia por seus trajetos, seus comadrismos, suas palavras ao mesmo tempo doces e avinagradas.
Gabriel Berne servia generosamente o vinho brancoda Garonne, e Angélica achava repousante, depois de Salem, tagarelar com toda a
tranquilidade com os amigos sobre assuntos referentes à vizinhança, que são igualmente importantes e sem importância. Laurier trazia
um prato de camarões e de ostras frescas. Tia Ana e a velha Rebeca chegavam, davam-lhes lugar à mesa e recomeçavam a falar em todos
os sentidos sobre Bertille Mercelot, enquantoGabrielBerne abria as ostras com um gesto peremptório.
Tia Ana, que era um pouco distraída, opinou que era preciso casar a perturbadora Bertille. O que provocou a indignação geral. — Mas ela
já é casada, vocês o sabem muito bem! — Com esse cretino do Joseph Garret, que fica correndoos bosques em vez de vigiar sua mulher!
— Se Jenny Manigault nãose tivesse deixadoraptar pelos índios... — Cuidadocom o que falam diante do menino! — É verdade!Tenham
cuidado, ele pode compreender. — Não, ele é pequenodemais. Beijavam o pobre Carlos Henrique e recomeçavam a falar de —Bertille
Mercelot, a fim de encontrar uma solução para o problema. Era um equívoco habitualsugerir, como Tia Ana, que era preciso arranjar-lhe
um bom marido, e muitos insistiam nele até o momento em que observavam que ela já tinha um marido, pois era casada, e isso havia
quase dois anos, com Joseph Garret, o genrodos Manigault.Ela sempre sonhara em entrar para a família dos Manigault, uma das mais
importantes de La Rochelle e uma das mais importantes dentre os armadores, mas não se via como, pois, essa família de ricos burgueses
só tinha um filho homem,um pequenotemporão,Jeremias, nascido depois de quatrofilhas, contemporâneas de Bertille. Esta sempre
tivera ciúmes de Jenny,a mais velha, e muito mais ainda quandoa viu casar-se, antes dela, com o tal Garret, belo rapaz, de bom
nascimento, oficial num regimento de Saintonge. Ora, atualmente,Bertille Mercelot era a esposa de Garret, mas, por quais meandros de
que trágicos acasos?
A encantadora Jenny Manigault poderia prever em sua juventude felize mimada de La Rochelle que, por ter nascido huguenote,seria um
dia lançada,com sua família, nos caminhos do exílio e que,à sua fuga de proscritos, acrescentaria dois dramáticos privilégios: o de ter
posto no mundoa primeira criança de Gouldsboro, nascida nos primeiros dias de seu desembarque,a quem chamaram de Carlos
Henrique,e o de ter sido a primeira a pagar seu tributoà cruelAmérica: alguns dias depois de sua festa de purificação, quandose dirigia
com os seus para o campo de Champlain,fora raptada por um grupode índios que andavam por ali, iroqueses ou algonquinos, nunca se
soube, e desaparecera para sempre. Duras primícias a oferecer aos deuses selvagens da América do Norte para obter a graça de
sobreviver e recomeçar ali uma nova vida!
Na casa dos Manigault, por muito tempoentristecidos e revoltados, a ferida começava a cicatrizar-se. Suas outras filhas eram belas e
boas. Jeremias crescia, fariam dele um ativo armador doNovo Mundoe, para começar, iria também para Harvard,na Nova Inglaterra.Os
negócios iam tomando jeito. Em sua casa nãose falava nunca em Jenny, morta sem sepultura onde pudesse ser pranteada.Bertille,
seduzindoe desposandodesde o primeiro inverno o jovem viúvo desamparado,demonstrara na ocasião mais precipitação do que juízo.
Isso não a aproximara em nada dos Manigault,e ela poderia ter pensadoque havia uma diferença em se tornar parente dos Manigault de
La Rochelle, quandoeles moravam em seu suntuosopalácio particular, ou dos semináufragos sob um teto de colmo e cabana de achas ou
pranchas de madeira, como foram os imigrantes dos primeiros tempos, todos pioneiros da América, todos na mesma situação, ricos ou
pobres de nascimento. Por isso, a nova família Garret nunca deu muitocerto. Bertille não gostava do pequenoCarlos Henrique.
Ela o deixava na casa da vizinha Abigail, tendoos avós Manigault também se desinteressadodesse netoque lhes lembrava um luto cruel
e, com efeito, não podiam suportar sua presença. Bertille, por sua vez, se encontrava a maior parte do tempoem casa dos pais, e
continuavam a chamá-la de Bertille Mercelot. Algumas vezes voltava para casa, pegandoa criança com grandes demonstrações de afeto,
para que dissessem que ela era perfeita, tocante, devotada.Suas reaparições coincidiam, observou-se, com a chegada dos navios da
Europa, os anúncios de visitantes interessantes à baía Francesa, ás vezes com as voltas de Joseph, seu esposo, que por conta de uma
companhia meio inglesa, meia holandesa, se associara aos bosslopers ou bushrangers, como eram designados os exploradores de bosques
ingleses que iam até os índios comprar ou pegar as peles.
Em suma,todo mundoem Gouldsboro estava aliviado pelo fatode Bertille estar ausente.Nas crônicas futuras, o ambiente que reinava no
coração doverão em questãoseria julgadoidílico e falariam dele com frequência.E, antes de mais nada,comentariam essa volta do Arc-
en-Ciel, que entrara na enseada carregadode auriflamas e de “armadouras” escarlates,como um navio real, e a volta do Conde e da
Condessa de Peyrac, essas duas personagens que nãoeram iguais aos outros, que por vezes se pensava odiar, temer ou rejeitar, mas que
acabavam por agradar em virtude de seu gosto por festas e sua sede de viver, e que tinham voltado dessa vez com as duas crianças
milagrosas, em vestidos de veludo, belos, uns amores em suas almofadas bordadas. E a existência em Gouldsboro era suficientemente
difícil para que virassem as costas ao prazer e se deixassem envenenar por moças maléficas como Bertille. Haveria também a volta do
Gouldsboro e do Le Rochelais com seus carregamentos soberbos, e a populaçãose apegava cada vez mais à sua cidade, havia um
movimento louco de troca e de comércio, visitas e alianças...
Mas nada era melhor que a ausência de Bertille Mercelot. Acabavam de compreender que nãose enganavam aoconsiderá-la um
verdadeiroveneno. Abigail, sempre caridosa, teve de convir com isso também. — Mas o que vai ser desse meninocom uma mãe tão
ruim? Angélica continuava a esperar que se tratasse apenas de futilidade,que a jovem se emendasse.Apesar de ter servido de alvo aos
maus propósitos de Bertille, considerava-a apenas uma criança um pouco tola.
Se lhe construíssem um dia em Gouldsboro uma casa bonita, tal como as que ela vira na Nova Inglaterra, ela se sentiria bem ali, como em
outra parte qualquer.Issolhe permitiria exibir-se. Era preciso principalmente conseguir que seu marido voltasse dos bosques.Ele não
poderia ser mais útil ali, como antigo oficial dorei, ocupando-se da milícia, formandoum destacamentode bons militares, em vez de
seguir os bushrangers ingleses para negociar peles, que alieram negociadas em pequena escala,a fim de não desagradar aos índios?
— Em compensação — disse ele —, se um dia ele, que é um francês reformado,isto é, herege, acompanhandoos oponentes ingleses, der
com os franceses doCanadá,que são tão zelosos de seu monopólio e consideram que todas as peles da América do Norte pertencem a
eles, não dou muito tempo para sua cabeleira. Abigail teve um sobressalto e suspirou: “Pobre rapaz!”,e depois, “ Pobrezinho”! olhando
para Carlos Henrique,que já imaginava privado de todo apoio, paternoe materno; Gabriel Berne aprovou Angélica em suas opiniões.
Fazendo pouco dos prognósticos demasiadosombrios, os três decidiram que,ao invés de tentar convencer os Manigault a cuidar de seu
neto, convenceriam Garret a voltar, criando-lhe obrigações e responsabilidades cívicas que o retivessem em casa, juntoà sua jovem
mulher e ao filho. Iam falar com o Governador Paturel.
CAPÍTULO III
Relações acadianas
Gouldsboro tornara-se tão povoada que as pessoas não mais se conheciam, e uma grande parte da populaçãosob a jurisdição de Colin
Paturelera agora estranha para Angélica. Não podia ser apresentada a todos e, durante sua permanência,iria sobretudorever seus
amigos e as pessoas conhecidas que vinham a Gouldsboro para encontrá-la. — Sra.de Peyrac! Sra.de Peyrac!
Angélica, que atravessava a praça correndo, resolveu fazer-se de surda a esses chamados que,vinte vezes por dia, chegavam a ela, assim
que punha os pés na rua.
Pelas onomatopeias que eram trocadas quandobotes e chalupas traziam os ocupantes de um navio para a praia podia-se saber de que
pontos da costa ou de que ilhas chegavam, vozes inglesas ou francesas,ou às vezes cordialmente misturadas quandose tratava da
longínqua ilha de Monégan ou dos estabelecimentos da foz do Kennebec,dos quais várias bandeiras guardavam a entrada,até a do
mercador holandês Peter Boggen.
Havia anunciadoa chegada dos acadianos de Port-Royal. Angélica, que se atrasara novamente em casa dos Berne, tentava passar sem ser
notada, com a preocupação de voltar para o forte a fim de “se arranjar” um pouco, nocaso de a Sra. de la Roche-Posay estar entre os que
chegavam. Queria também dar uma olhada nos gêmeos, censurando-se por haver-se descuidadodeles, apesar e talvez por causa do
númerode pessoas que assumiam sua guarda e cuidados no barco. Um velho marinheiro, de origem circassiana, vendoo enxame de
vasquinhas e de toucas que se debatia em volta dos dois tesouros, advertira-a várias vezes, desferindo-lhe com ar sinistro um provérbio
russo, fruto da sabedoria e da experiência popular: “Uma criança que tem sete babás fica caolha!”
Estava, pois, andandorapidamente e fezde conta que nãoescutava a voz fresca e jovem que a chamava: “Sra.de Peyrac!... Sra. de
Peyrac!” Todavia, olhandode lado, viu que se tratava de uma mulher, evidentemente grávida,e que se apressava um pouco pesadamente
na areia para encontrá-la. Foi forçada a parar e retroceder. — Oh! Sra. de Peyrac, estou feliz por revê-la — disse a jovem, ofegante. —
Queria tanto que me desse notícias de minha irmã! Chegandopertode Angélica, jogou-se espontaneamente em seus braços, e esta não
teve outra saída senãoabraçá-la. — Quem é você, minha cara? '— Não me reconhece?
A jovem tinha um leve sotaque áspero, talvez inglês. Angélica pensou na jovem Ester Holby, que viajara com ela na barca de Jack Merwin,
depois de ter escapado a um massacre perpetradopelos índios abenakis e em que perdera toda a família, tendosido recolhida por um de
seus tios da ilha Martinicus. Mas Ester era muito mais alta e desenvolvida que esta jovem, pequena e vivaz, mas que,sem sua barriga
redonda,passaria por uma menina de doze anos. Tinha na cabeça uma bonita touca de renda e um capuz de lã branca.
— Verdade? Não me reconhece? Eu,no entanto, estou longe de esquecê-la, você me tirou da água e me carregou como um bebê,no dia
do naufrágio.E parece que agora tem dois bebês.E eu também vou ter um! Não é lindo tudoisso?
Sua exuberância nãotinha nada de britânico e a palavra “naufrágio” pôs Angélica na pista correta. — Será que... — disse, hesitando, será
que você é uma das Moças do Rei cujo navio se chocou contra os rochedos diante de Gouldsboro, há dois anos? — Isso mesmo! Sou eu,a
pequena Germana,nãose lembra? Germana Maillotin. É verdade que eu era a caçula, e tão pequena que nunca me chamavam pelonome,
e sim diziam: a pequena ou a menina, então isso não lhe chamou a atenção. E depois, com tudo o que acontecia, não é de admirar: o
naufrágio,os piratas. Poderia dar-me notícias de minha irmã e da Sra. de Maudribourg,nossa Benfeitora?
Angélica, embaraçada,sentiu um frio percorrer-lhe a espinha.Os acontecimentos datavam de quase dois anos, mas era sempre
desagradávelpara ela falar a seu respeito. Tomou o braço da jovem. — Venha,minha cara, acompanhe-me até o forte. Pelo que
compreendi, você deixou suas companheiras e sua benfeitora,a Sra. De Maudribourg,em Port-Royal, e desde então nãoteve mais
notícias delas.
— Sim, escondi-me quandooinglês as fezsubir, prisioneiras, em seu navio! Eu estava com medo, estava farta de todas aquelas coisas e,
depois, conheci em Gouldsboro um marinheiro que me agradava e com quem queria me casar, como nos propôs o Sr. Governador
Paturel. Ela andava enquantofalava e agora, em sua elocução precipitada, despertava um outro sotaque, inconfundível,dos habitantes
pobres de Paris.
— Fui criada na Pitié. Fui ali admitida desde os quatroanos de idade,com minha irmã mais velha, enquantonossa mãe estava encerrada
no Conventodas Mulheres Arrependidas. Fui bem-educada,acredite,senão o Sr. Colbert não nos teria escolhido para povoar o Canadá.
Mas eu estava a mais no comboio. A Sra. de Maudribourg sóqueria minha irmã, mas tive de continuar, porque minha irmã era tudo o que
eu tinha no mundo, e ela insistiu em nãome deixar para trás. Agora que estou tãofeliz, esqueço todas essas tristezas..., mas gostaria
muito de ter notícias dela e de minha pobre irmã.
Tinham chegado aoforte, e, antes de levá-la para ver as crianças, Angélica a fez sentar-se na sala de baixo para servir-lhe uma bebida
fresca. Pobre náufraga!Do La Licorne e da vida! A Acádia a recolhera. Tinha um rostinho astuto, amável, mas, no comboio de jovens
imigrantes, nada devia distingui-la do grupoaflito que cercava a Sra. de Maudribourg,sob o cajado da gorda Petronilha Damourt.
Como ela, havia uma dezena de Moças do Rei que faziam parte da escolta da duquesa,rezandoas horas de joelhos ou seguindo-a em
grupoe que,dóceis ou aterrorizadas, quase não saíam do anonimato. Angélica tivera bastante dificuldade para se aproximar de algumas
e obter suas confidências. Delfina du Rosoy, Maria, a Meiga, que tinha sido assassinada por lhe haver falado, Juliana,a engraçada,que,ao
chegar a Gouldsboro, conseguira esquivar-se reunindo-se ao Irmão da Costa, Aristides Beaumarchand, pirata fugitivo que só merecia a
forca e que,no entanto, fora o primeiro a contrair com ela legítimas núpcias.
— Quer dizer entãoque você nãosoube que a Sra. de Maudribourg morreu? — disse Angélica. A jovenzinha, que escapara a tantos
contratempos, sobressaltou-se e pulou. Mas era de alegria. — Morta! Você irá me achar pouco caridosa, Angélica, mas fico contente com
isso e... já o esperava. Não fazmuito tempo, alguém da costa leste, que vinha vender seu carvão em Port-Royal, falou disso, mas não ousei
acreditar. Agora que é você quem odiz, Angélica, e que posso estar segura,vou poder dormir em paz. Ainda que isso nãoseja um bom
sentimento — persignou-se —, mas nunca houve mulher mais malvada que ela no mundo.A mim, que não“servia para nada”,como ela
dizia, ela não parava de cutucar, e até, às vezes, me queimava com brasas ardentes do seu aquecedorzinho, nonavio.
— Pobres crianças! — disse Angélica, com o coração apertado,como acontecia toda vez que evocava a situação daquelas pobres moças e
jovens senhoras entregues a um ser tão demoníaco, com a bênçãode toda as pessoas de bem, eclesiásticos, religiosos, ministros,
benfeitores,que se deixaram enganar pelos belos olhos e a devoção da enviada do Padre d'Orgeval. Ficou com lágrimas nos olhos e disse
a si mesma que o partoa tornara sensível demais. A pequena Germana,que percebera sua emoção, ficou comovida.
— Oh!Angélica, como você é bondosa! Sempre foi um anjo para nós! Como foi belochegar a Gouldsboro e, apesar do medodo naufrágio,
vê-la na praia correndo para nós e lançando-se à água para me salvar. E acrescentou, com uma gravidade de órfã prematuramente
amadurecida: — A bondade de uma mulher compensava a maldade da outra.
Angélica julgou lembrar-se de que,nesse naufrágio,tivera principalmente de tirar para fora da água a enorme Petronilha Damourt. Mas,
já que a pequena se alegrava por ter sido salva por ela...
— O homem da costa leste dizia também que vocês haviam trazido, o Sr. de Peyrace você, minhas companheiras para Quebec,que era o
fim de nossa viagem. Entãopensei que,se minha irmã estivesse em Quebec,poderia ter tentadome dar notícias e procurar saber o que
me acontecera. Receandomenos encontrar nossa Benfeitora, vim hoje. E a primeira vez que ouso deixar nosso caro Port-Royal.
— Como se chama sua irmã? — Henriqueta.— Pois bem,alegre-se, acontece que posso dar-lhe excelentes notícias dela. — Ela se casou?
— Não, ainda não. Mas nãotardará muito, pois tem muitos pretendentes.Mas ela quer fazer sua escolha. Enquantoisso, empregou-se
como camareira em casa da Sra. de Beaumont, que está muito contente com seus serviços e com seu génio alegre e impulsivo.
Germana olhou-a com espanto. — Quer dizer que ela é alegre, feliz, ativa? — Certamente!Ela tem muito sucesso, ajuda essas senhoras
em suas obras, e Quebecinteira elogia seus méritos. — Ah! como estou contente! Minha irmã tinha tantoapego à Sra. de Maudribourg,
que eu receava, ao saber de sua morte, que isso acarretasse o fim de minha irmã, que era como que sua escrava. Ela perdia a voz,
servindo-a como uma sombra. Era uma verdadeira doença,e nos últimos tempos, parecia não mais me ver. Em vão, supliquei-lhe: “Fique
comigo em Port-Royal”. Ela estava pronta a segui-la até o inferno.
— Bom, como você vê, quandouma influência negativa cessa, a vida renasce — disse Angélica, que jamais conhecera a sensata e alegre
Henriqueta sob esse prisma. Subitamente,faltou-lhe coragem. A visão da louca Ambrosina acabava de atravessar seus pensamentos,
como um vampiro batendoas asas de sua grande capa preta forrada de cetim vermelho. Empalideceu.
As palavras e considerações da pequena parisiense confirmavam tudoaquilo que acabaram por atribuir à personalidade de Ambrosina, e
que algumas vezes receava ter imaginado ou exagerado. E que essa mulher era como um vampiro que enfraquecia suas vítimas e lhes
devorava a alma. Fora de sua órbita, elas voltavam à normalidade. A jovem que estava diante dela era ingénua e simples. Falara
espontaneamente,e seu julgamento confirmava que nãohouvera nenhum exageronaquele que haviam feitosobre a Duquesa de
Maudribourg.
Para mudar de conversa, Angélica observou a Germana que ela não parecia ter desposadoseu marinheirode Gouldsboro, porque ficara
em Port-Royal, o que nãoa impedia de ter um esposo. A moça riu e disse que,com efeito, como não tivera oportunidade de voltar para o
outro lado da baía, casara-se com um escocês, daí o seu sotaque,influenciado pelo de seu marido, descendente dos soldados de Sir
Alexandre.
A jovem acadiana admirou os bebês,que dormiam em seu quarto, no primeiro andar.Estavam bem guardados pelas filhas da parteira
irlandesa, que bordavam e tricotavam à sua cabeceira. — Como são engraçadinhos! — admirou a pequena Germana Maillotin. — A
menina é redondinha e o menino, comprido. Eu também gostaria muito de ter gêmeos. As crianças trazem alegria aolar. Não tenhomedo
de trabalho. Aprendia fiar a lã, o linho, e a tecer panos para lençóis e camisas. Quando nosso filho nascer, vamos partir com alguns casais
jovens para nos estabelecermos numa outra aldeia onde estão precisandode braços, em Grandpré.
O estabelecimento em questãotinha já três ou quatroanos de fundação.Um colono de Port-Royal tinha ido para lá secar os pântanos,
como já se fizera nos arredores do primeiro estabelecimento. Os setores de território protegidos eram raros na costa norte da península
de Acádia. Mas as fortes marés tinham-se acumuladonas enseadas das terras finas que os acadianos, depois de protegê-las com
pequenos diques,à maneira holandesa, transformaram em pastos e vergéis.
O Sr. de Peyracprometera ajudá-los, sobretudopara abastecer os pioneiros com ferramentas e produtos manufaturados da Europa,pois,
era isso principalmente o que faltava aos franceses, e não coragem, disposição para o trabalhoe gosto pelo cultivo da terra e pela criação
de animais. — Venha ver-nos em Port-Royal — insistia a Sra. de La Roche-Posay, antes de tornar a embarcar, no dia seguinte, com todo o
seu bando. Viera de seu feudocom os numerosos filhos e a governanta, a Sita. Radegunda de Ferjac. O Sr. de la Roche-Posay tinha ficado,
pois sempre receava incursões de navios ingleses, e era melhor ter cuidado. A castelã de Port-Royal estava agradecida pelos presentes
que lhe foram enviados com os produtos de primeira necessidade,vinho, óleo, chumbo,quinquilharia e tecidos, e que lhes fazia muita
falta quando os navios da companhia nãochegavam. Então, nãose fazia ideia das dificuldades que um governador de estabelecimento
tinha para manter seu posto nesses países da América. Felizmente, agora, não longe de Port-Royal, estavam estabelecidos simpáticos e
solícitos vizinhos. E a vida para os pobres senhores franceses mudou.As meninas tinham levadosuas belas boneca de Salem, uma das
maiores alegrias de sua existência de pequenas nobres exiladas.
Mas era preciso pensar,dizia sua mãe, em enviar as mais velhas para a França, a um convento, para aperfeiçoar sua educação, pois,
apesar dos bons cuidados de Radegunda de Ferjac e do capelão preceptor, que cuidavam de ensinar-lhes latim e boas maneiras, toda
essa juventude sofria a influência da selvageria local, só pensava em percorrer a floresta ou andar de barco, pescar truta ou salmão,
apanhar peles,visitar os índios para fazer com eles grandes festins, depois de participar de uma caçada, e as moças, quandocrescessem,
não encontrariam bons partidos.
— Por que não envia suas filhas para as ursulinas de Quebecou para a casa de Margarida Bourgeoys, em Montreal? — perguntou
Angélica. A Sra. de la Roche-Posay fez uma careta. — Nós, da Acádia, não nos entendemos muito bem com essa gente já “de cima” —
disse ela com um gesto da mão indicando o norte, onde ficava Quebec,capital da Nova França. — Os funcionários dorei, que sóse
lembram de nós para cobrar taxas e direitos, supõem que estamos enriquecendo desavergonhadamente e que conspiramos com os
ingleses, quandosomos periodicamente arruinados por esses imprudentes inimigos e, além disso, abandonados por nossos
compatriotas. As grandes famílias do Canadá nos olham do alto, sob o pretextode que construíram suas casas antes de nós na América
do Norte, quandoisso é totalmente falso, pois Samuelde Champlain fundou Port-Royal com o Sr. de Monts muito antes de Quebec.E
depois, confesso-lhe que gostaria que minhas filhas tivessem uma formação mais refinada,obtendoum cargo de dama de companhia
junto a uma princesa de alta classe, na corte... E mais fácil consegui-lo saindo de um convento renomado de Paris doque daqueles de
nossas pobres colónias, que sãotão desprezados pelas pessoas pretensiosas da sociedade, que só têm valor por borboletearem no
círculo dorei. Mas, que se há de fazer? Não podemos mudá-lo,e é preciso passar por isso, se quisermos chegar a Versalhes. Parece que
seus filhos e o jovem Castel-Morgeat, apesar de ter vindoda Nova França, estão nesse momento no serviço de armas como cortesãos.
Você tem notícias deles?
Sim, tivera, e o Gouldsboro, que estava sendo esperado,certamente traria notícias. — Volte a visitar-nos, cara Sra. de Peyrac — suplicou
a Sra.de la Roche-Posay. — Todos nós guardamos uma lembrança muito favorável de sua estada aqui, no último verão, em que veio com
aquela grande dama benfeitora,que era um pouco estranha,mas muito bela e culta também, a Sra. de Maudribourg,não é? Ela deixou
suas Moças doRei em minhas mãos, sem nenhuma cerimônia. Não nos queixemos! Com isso, ganhamos três noivas para os jovens
celibatários de nossa comunidade como essa moça, Germana,que desejava pedir-lhe notícias de sua irmã. Eram todas moças de
qualidade.— A mulher continuou: — Houve muitos comentários em Quebecporque elas não foram para lá? Esse contratempo se deu
totalmente independente de minha vontade.Elas se escondiam para nãoir embora. E hoje, achoque estão felizes conosco, e gostamos
muito delas. Enfim, esperoque nãotenhamos problemas com a administração “lá de cima”. Tudo é tão complicado, e os correios tão
lentos! Os aborrecimentos nos caem na cabeça, quandojá tínhamos até esquecidohá muito o que os provocara, e é um nunca acabar de
processos e arrazoados!
Ela suspirava,depois convinha em que preferia esse Novo Mundo,que gostava dessa vida e que tinha sido muito feliz com seu marido
em seu forte de madeira, dominandoa vasta extensãode água da baía de Port-Royal, que se ornamentava com uma tão suave cor malva,
ao alvorecer... quandonãoera invadida pelo nevoeiro. — Prometa-me que voltará para uma temporada em nossos domínios — insistiu
—, com seus filhos, sua criadagem, sua guarda.E também seu esposo, se possível. Pois só o vemos precipitadamente, quandonos vem
ajudar a resolver um litígio com os ingleses ou os piratas holandeses ou outros, sempre em pé de guerra, jamais em paz. Mas nãoperco
as esperanças de chegarmos um dia a isso. Prometa-me que voltará.
Angélica prometeu e tornou a prometer, solenemente, enquantoperguntava a simesma se teria um dia oportunidade de ir navegar do
outro lado da baía, por simples prazer. Mas era sincera ao afirmar que gostaria de rever Port-Royal, um lugar encantador, com suas casas
de madeira, de telhados de ripas ou de colmo, suas duas igrejas, seu moinho de rodas, suas grandes campinas ao redor das quais se
elevava o mugido dos rebanhos. Jamais culpou a inocente aldeia acadiana,guarnecida de cerejeiras e de bosquezinhos de tremoços
gigantes, pelas agruras que ali atravessara.
CAPITULO IV
As esperanças do escravo Siriki — Os cordeiros e os lobos
Colin Paturelmandara-lhe um recadoatravés de seu escrevente, Marcial Berne. O rapaz, quandonãoestava a vagabundear pelomar,
servia-lhe de secretário. O governador precisava pedir-lhe conselho para estatuir sobre a sorte de novos forasteiros.
O antigo pirata, atrás de uma enorme escrivaninha de carvalho coberta de maços de papéis, sentado numa poltrona de espaldar alto, tipo
cátedra de bispo, destinada a impressionar os litigantes ou reivindicadores que ele recebia em determinadas horas, estudava e conferia
com cuidado a lista de nomes.
Tendo-a convidado a sentar-se,pediu-lhe que o desculpasse por tê-la incomodado. Sem levar em conta a ausência do Sr. de Peyrac, que
inspecionava os canteiros dos estaleiros, ele achava que a opinião de uma mulher o ajudaria a compreender melhor uma decisão que
tinha de tomar em relação a pessoas cuja mentalidade e cujas reações não eram muito simples e que não lhe era fácil adivinhar.
Tratava-se do grupode valões e de valdenses, de que Natanaelde Rambourg fazia parte,que pedira aos huguenotes de la Rochelle,
encontrados em Salem, que lhes dessem oportunidade de se encontrar com seus compatriotas franceses.
Mas, chegandoa Gouldsboro, ficaram indignados por ver que ali se encontravam católicos, igrejas, cruzes, que diziam missa, e que se
arriscavam a encontrar padres capelães e até jesuítas. GabrielBerne, que,na ausência de Manigault e de Mercelot, os recebia,
esquecendo-se de que fora um dos que mais se insurgira contra isso, dissera-lhes com arrogância: — Em Gouldsboro é assim! Nós,
huguenotes de La Rochelle, que nos equiparamos a vocês na observância da religião, acomodamo-nos a isso. Façam como nós ou voltem
para o local de onde vieram!
Então, foram queixar-se ao governador. Iriam realmente impor-lhes ouvir aqueles sinos, ver as procissões e as bandeiras?
O olhar azul de Colin Paturelobservara-os, perplexo.Era uma mistura curiosa. Ele, que vira todo tipo de fórmulas entre os filhos de
Cristo, sentia dificuldade em situá-los.
Talvez ela soubesse indicar-lhe de onde eles vinham e o que queriam.
Angélica disse-lhe que,à exceção de Natanael,que era amigo de seu filho mais velho e pertencia à Religião Reformada oficial, isto é,
aquela nascida depois do Edito de Nantes, nãoestava mais bem informada doque ele. O denominador comum com a populaçãode
Gouldsboro era que eles eram de origem e de língua francesas.
Segundoo que Lorde Cranmer lhe explicara, os valões eram originários dos primeiros reformados calvinistas donorte da França e de
Lille, Roubaix, Arras, que fugiram da Inquisição espanhola quando esta se instalara em Flandres, após sua cessão à coroa da Espanha.
Refugiados inicialmente nos Países Baixos, na região vala, depois nas Províncias Unidas, em Leyden entre outras, Delft e Amsterdam,
tinham se misturado aos dissenters ingleses, exilados como eles, de modo que se encontravam em grande númeroentre os peregrinos do
Mayflower. E fora, pois, um valão, PedroMinuit, quem comprara para os neerlandeses oterreno da Nova Amsterdam, que se tornou
Nova York.
Quantoos valdeuses, descendentes dos “pobres de Lyon”, uma seita cristã fundada noséculoXII por um tal João Valdo, um rebelde que
censurava a Igreja por suas riquezas, antes mesmo dos cátaros do Languedoc, era a primeira vez que ela os via. Julgava-os exterminado
há muito tempo, pois tinham sido impiedosamente perseguidos até o século XVI. De fato, quandoveio a Reforma, misturaram-se a ela,
muitos deles deixaram seu refúgioalpino, onde estavam enterrados os últimos sobreviventes. Desde então, tinham seguido as
vicissitudes dos calvinistas franceses, sofrendotréguas, perseguições e exílio. O que os caracterizava é que eram, mais doque os outros,
voltados para si mesmos, suas tradições e sua língua francesa,porque, estavam habituados a viver entre estrangeiros.
Depois de alguma reflexão, Angélica sugeriu que fossem instalados no acampamentoChamplain,onde havia toda uma colónia inglesa,
refugiados da Nova Inglaterra-, entre outros. Habituados a ouvir falar inglês à sua volta, talvez se sentissem menos deslocados e mais
distantes dos sinos “papistas”.Colin sorriu. Era exatamente isso o que esperava dela.Encontrar para os recém-chegados um modus
vivendi que os ajudasse a pacientar, nodesconforto de suas andanças.Escreveu um bilhete para ser levado a Gabriel Berne.
Desde sua entrada na sala, Angélica percebeu um detalhe novo, inabitual, e procurava-o com os olhos. Essa sala, que era a de reuniãodo
Conde de Peyrac e às vezes a dos banquetes nos primeiros tempos de sua instalação na costa, a mesma sala onde os dois homens se
enfrentaram,tornara-se a casa comum e o cartório dolugar. E também sala de justiça e gabinete do governador. Foi ao ver Colin Paturel
mergulhar sua pena notinteiro e lançar um olhar para a lista de nomes que copiava, que Angélica soube o que a intrigava, como uma
inovação que nunca lhe teria ocorrido ao espírito. — Oh!Colin... — exclamou. — Você sabe ler?... Sabe escrever?...
— Aprendia fazê-lo! — disse ele, erguendoos olhos de seu trabalho, e havia como que um ingénuo orgulhoem seu olhar por fazer-lhe
essa surpresa.Ficaria mal a um governador nãopoder decifrar e julgar por si mesmo todos os papéis, listas dos navios, petições e
contratos que lhe punham sob os olhos e que lhe pediam que assinasse e julgasse! — O pastor Beaucaire teve a paciência de me ensinar,
e verificou-se que eu nãotinha uma cachola tão dura para aprender.Até então, eu não tivera muita necessidade de ler e escrever. Nos
navios, onde eu era o meu próprio mestre, sempre tinha a bordo um imediato, ou o capelão ou o cirurgião, para cuidar da escrita. Devo
isso a Gouldsboro. Antes disso, tendo deixadoainda grumete o Havre-de-Grâce, desde os quatorze anos, onde encontraria oportunidade,
tempo, gosto e possibilidade de aprender a ler: nas galés de Mulay Ismael? Vagandopelo mar da China e por todos os azimutes? No
início, o jovem Marcial Berne me ajudou, mas com o aumentode minha tarefa, agora ele serve de secretário para classificar os dossiês.
Ele vai para o colégio, e preciso encontrar alguém capazde substituí-lo.
Angélica pensou em Natanaelde Rambourg. O cargo lhe conviria. Explicou a Colin que havia “alguma coisa” entre o jovem nobre exilado
e a pequena Severina Berne.Ele seria estimulado a ficar, e isso lhes permitiria conheceram-se melhor.
Uma longa e delgada silhueta aparecia na soleira e se esgueirava para o interior. Não era Natanael, mas o velhonegro Siriki, o serviçal
dos Manigault.Apertava contra o peito, como uma coisa preciosa, um pacote. Era, parecia, uma peça de casemira fina, de um belo
vermelho-amaranto, que Angélica e o Sr. de Peyraclhe trouxeram de sua viagem, a fim de que pudesse mandar fazer uma nova libré. Pois
aquela que estava vestindo quandodeixara La Rochelle, e que ele sentiria nãopoder vestir para servir seus amos à mesa, começava a
esgarçar-se. Ao presente juntaram-se dois galões de fio de ouro, para os bordados dos punhos nas extremidades de uma renda da
largura de uma mão. Ele já a amarrara em volta do pescoço, formandoum peitinho.
Angélica aconselhou-o a pedir ajuda às filhas da parteira irlandesa,peritas em trabalhos de costura. Entretanto, era evidente que não
tinha vindo ao seu encontro na casa do Sr. Paturelapenas para expressar seu reconhecimento.
Sentou-se na ponta de uma cadeira, com o pacote sobre os joelhos. Seu olhar ia de um para outro com ansiedade,mas mantinha o
pescoço muito ereto, com muita dignidade.Era, em toda Gouldsboro, a personagem que apresentava maior distinção e o Porte mais
nobre. — Fale, meu caro Siriki — encorajou-o Angélica. — Você sabe que é com a maior alegria que escutaremos e acederemos a seu
pedido, se tiver algum a nos fazer. Siriki meneou a cabeça. Não duvidava de sua bondade.Mas teve ainda de engolir a saliva várias vezes
e verificar a apresentaçãode seu jabôde renda, antes de se decidir a falar. Angélica sabia que ele nãoiria direto ao assunto, que,
provavelmente, começaria pelo incidente menos relacionado ao que tinha- na mente.
Falou, portanto, primeiro de seu jovem mestre, Jeremias Manigault,que atingia a idade de onze anos e que os pais pensavam em mandar
estudar com os novos ingleses, no colégio de Harvard. Depois, fez alusãoà triste situação, que lhe era infinitamente penosa, que afastava
do lar dos Manigault uma criança de três anos, Carlos Henrique, doqualpodia se considerar, ele, Siriki, avô adotivo, pois criara, por
assim dizer, sua mãe, a pequena Jenny,assim como os outros filhos dos Manigault. Essa série de acontecimentos lhe havia inspirada o
desejo — baixou as pálpebras a fim de reunir coragem antes de se entregar a uma talconfissão — de garantir para si, um pobre escravo,
uma descendência,e esse sonho, que o atormentava havia já algum tempo, subitamente tomara corpo quando avistara, entre os
passageiros que desembarcavam doArc-en-Ciel, a grande mulher negra que oSr. de Peyraccomprara em Rhode Island. Alguma coisa
nele, surda e terrível, gritara: “Ela é de sua raça. Ela é de sua terra natal”.Abriu novamente os olhos e fixou Colin Paturel: — Notei que o
senhor conversava com ela e conhecia o idioma de sua tribo. — Com efeito. Era a língua da grande sultana Leila, a primeira mulher de
Mulay Ismael, sultão do reino do Marrocos, e desse país vinha também o Grande EunucoOsman Ferradji. Os dois eram oriundos dessas
regiões de Sahel, Sudão, Somália, no centro da África, da orla da floresta ao sul e do desertoao norte. Os povos de lá são nômades,
criadores de búfalos selvagens, e muito altos.
— É isso! Não estou certo — murmurou Siriki. — Presteiatenção em suas palavras, mas nenhuma reminiscência me veio à cabeça. Eu
era muito moço quandoos mercadores árabes, vindos peloNilo, me capturaram.De mercadoem mercado, chegueia La Rochelle, e ali o
Sr. Manigault me comprou, de um lote que devia embarcar para as índias Ocidentais. Em todos os lugares me consideraram negro
demais e muito alto para a minha idade e sem nenhuma serventia.Estava doente.Amo Manigault teve piedade de mim. Deus o abençoe!'
Angélica não se surpreendia por ouvir o “velho” Siriki falar de si mesmo como de um jovem escravo comprado por um mercador que,
com cinquenta anos, parecia mais jovem doque ele. Mas já observara que os negros, desde a puberdade,parecem logo adultos de trinta
anos e, também subitamente,ficam de cabelos brancos, antes de atingirem os quarenta anos.
Siriki, e Kuassi-Ba, que havia muito tempo se consideravam “antigos”,não tinham provavelmente passado dessa idade. — Eu me
informei — continuava Siriki. — A jovem negra “marrona” que a senhora comprou também vai logo pôr no mundouma criança, cujo pai
é esse bantoafricano da floresta que a acompanha. Ela nasceu na Martinica. Não conheço toda a sua história, pois ela se cala, e o outro, o
bantoda floresta, não conhece senãoa linguagem dos grandes macacos. Colin Paturelo interrompeu.
— Está enganado,Siriki. Ela fala o swahili, que é uma das línguas veiculares da África, das costas do Atlântico às dooceano Índico.
— Perdão,não quis insultar um irmão de infortúnio. E que me importam essas línguas africanas que nãocompreendo? O que entendié
que seu filho logo vai nascer em Gouldsboro. Então, meu sonho se tornou cada vez mais próximo. Eu lhes dizia de minha tristeza de ver
ir-se meu pequenoamoJeremias. Um lar sem crianças engendra a tristeza. A pobre Sara não resistirá, eu a conheço. Falava sempre,com
uma indulgência protetora, de Sara Manigault, a mãe, considerada uma mulher autoritária e que maltratava as pessoas que a cercavam.
Ele, porém, era o único que sabia acalmá-la quandose abandonava a crises de melancolia, pensandoem sua bela casa de La Rochelle, que
tivera de deixar precipitadamente certa manhã, e no aparelhode faiança de Bernard Palissy, que tivera de abandonar em sua fuga pela
charneca, pisoteado e quebradopelos cavalos dos dragões do rei, lançados em sua perseguição.
Todas essas preocupações com a família, que ele assumia, persuadiam-nocada vez mais da bem-vinda chegada de seu sonho.
— O que compreendi — explicava — é que nada impedia que,em Gouldsboro, às nossas crianças pequenas que correm pela praia, às
nossas crianças da cor branca da lua, às nossas crianças índias cor de ouro, viessem se misturar criancinhas cor da noite, que poderiam
ser as minhas. Tendoafinal dito tudosobre seu grande sonho, ficou em silêncio. Depois, retomando seu arrazoado, pedia humildemente
a Colin Paturelque falasse por ele com a “nobre dama doSahel”,caso ela estivesse livre para escolher seu destino. Pois ignorava com que
intenção o Sr. de Peyrac fizera sua aquisição. Olhou para Angélica com esperança.Mas ela ignorava-o também.O que dissera Severina a
propósito de Kuassi-Ba eram apenas suposições, e,se Colin sabia de alguma coisa, não deixou transparecer nada.
Siriki, sentindo que seu caso estava em mãos amigáveis, retirou-se, radiante.Depois que ele saiu, Colin reconheceu nãoestar bem a par
dessa aquisição de escravos. Angélica, por diversas razões, não tivera tempode interrogar seu marido. Angélica quis se incumbir de
levar a missiva para Gabriel Berne,em sua casa. Isso lhe daria o ensejo de passar calmamente alguns momentos com seus amigos.
Peixes dignos das praias evangélicas eram despejados e separados nos tablados do porto, e vendidos em leilão, e as donas de casa
tinham muito trabalhopara preparar as reservas de inverno, que mudariam um pouco quandoa tempestade ou o gelo tornassem
perigosa a saída dos barcos aomar. Abigail, ajudada por Severina, colocava filés de cavala e de arenque em jarras cheias de água e
vinagre, fortemente condimentada,pois, felizmente, em Gouldsboro as especiarias nãofaltavam, como nos outros estabelecimentos
franceses. Depois de cozidos em fogobaixo durante alguns minutos e preparados com bem pouco sal, eram escorridos e conservados em
covas feitas na própria terra e não caiadas, no mesmo lugar onde também se guardavam tubérculos e raízes, como cenouras, nabos,
batatas. Depois de ter falado da situação dos valões, dos valdenses e dá passagem de Natanael de Rambourg, o que deixou Severina
sonhadora, Angélica despediu-se,pois o tempo passava e ainda tinha de fazer outras visitas.
— Vou avisar Marcial que já se arranjou alguém para sucedê-lo nas escritas do Sr. Paturel — disse Abigail, acompanhando-a até a porta.
Ela terminou um pouco depressa sua frase,como se o olhar que lançara pela abertura ensolarada da porta lhe houvesse reveladoalguma
coisa ou alguém cuja visão a surpreendesse. Olhandopor sua vez naquela direção,Angélica viu duas silhuetas escuras de penitentes,
Ruth e Noémia, acompanhadas de Agar, que subiam rumoà casa dos Berne. Perguntou a si mesma por que tinham tornadoa vestir suas
capas alemãs. Ficou a porta, esperando-as.Sentiu-se penalizada, se nãosurpresa, com o movimento de reticência que percebera em
Abigail, ao vê-las.
Existia, noentanto, a seus olhos, uma semelhança fraterna entre Abigail e as magas quacres de Salem: a dignidade e o pudor contidos, as
mesmas maneiras suaves e comedidas de se deslocar sem agitação, de manter a cabeça bem levantada,modestas mas nãosem graça,
segundoo aspecto recomendadopela religião calvinista a seus adeptos dosexo feminino, que aumentavam o encantode sua beleza
loura, um pouco virginal.
Como Abigail, francesa de La Rochelle, Ruth e Noémia, inglesas doMassachusetts, tinham esse meio sorriso cheio de modéstia e de
bondade acolhedora. Todavia, Angélica não se iludia sobre a desconfiança que elas inspiravam. Olhando-as vir em sua direção,
perguntava-se a que ela se devia e nãoencontrava explicação para essa rejeição que mesmo as melhores pessoas lhes opunham,não a
elas, pobres inocentes, mas aomelancólico instinto do ser abatido, que vê na beleza, na iluminação do coração, na imagem demasiado
perfeita da serenidade e da felicidade um reflexodo Paraíso perdidoe que renega tantomais quanto o inveja. Aquele também que,em
sua preguiça de pensamentoe em seu modo de ser expulsodo rebanho,dirige suas forças de ódio contra os que, por suas palavras ou
por seu comportamento, se diferenciam da lei comum, ao abrigo da qualele se refugiou.
Que mais se podia censurar-lhes, a elas, cujas mãos abertas e o olhar luminoso só distribuíam caridade? Ouviu,na parte de trás, os
passos de Severina, que procurava deixar a casa pelos fundos. Ela tampouco gostava delas. Mas Abigail, sempre virtuosa, permaneceu ao
lado delas e respondeu em inglês, com sua graça habitual, à sua saudação. Pediu-lhes que entrassem e se sentassem, colocou uma bilha
de água e bebidas sobre a mesa, mas as duas moças nada aceitaram. E a própria Angélica permaneceu de pé,assim como Abigail.
Só Agar se ajoelhara na soleira, apoiada ao batente,olhando ora para o horizonte, ora para o interior da casa, onde não parecia
preocupada em encontrar senão o olhar dogato, sentadocompungidamente nocanto de um guarda-louça e piscando intermitentemente
em sua direção. Sem uma palavra,Ruth Summers estendeu a Angélica um envelope de pergaminhocujo lacre de cera estava partido.
As palavras em inglês dessa missiva pareceram-lhe muito herméticas, e teve de pedir-lhes,por diversas vezes, explicações, pois se
tratava de uma carta do tribunalde Salem, e, em qualquer língua, nãoexiste nada mais absconso que os termos jurídicos empregados
num documento oficial de intimação ou de convocação, que emanam de um supremo tribunalreunidopara decidir a sorte de simples
indivíduos que,com muita frequência,malsabem ler ou falar... Não era o caso de Ruth e Noémia. Elas eram eruditas. Puderam explicar
que essas palavras incongruentes significavam que,se em oito dias não se apresentassem diante do tribunalda cidade, capital doEstado
do Massachusetts,suas “casas e bens” seriam queimados, e uma dezena de concidadãos, escolhidos entre seus conhecidos amigos
quacres ou outros, seriam convocados, julgados e condenados,em seu lugar, ao degredoou... ao enforcamento.
— Mas que bicho os mordeu? — exclamou Angélica. — Do que mais lhes podem acusar e por que crime as condenam? Ruth sacudiu a
cabeça, sem emoção. — Eu sei o que se esconde por trás disso. Um dos marinheiros do barco de pesca que me trouxe esta carta contou-
me que o velho Sr. SamuelWexter está muito mal. Lady Cranmer teve muito trabalhopara obter dos juízes este documento, a fim de que
voltássemos o mais rápidopossível para salvá-lo. Assim vão e vêm os sentimentos dos homens.No infortúnio, Salem, atormentada pelo
medo da morte, e as secretas ternuras que os mais rigoristas nãopodiam deixar de dedicar a seus pais ou filhos, Salem reclamava suas
magas quacres. Salem não podia dispensá-las.Mas isso não passava de remissão. Angélica foi tomada pela angústia. Não apenas ao
pensar que essas duas maravilhosas criaturas iam desaparecer de seu horizonte, mas ao pensar na sorte que,cedo ou tarde, sofreriam.
Lá em Salem, naquela Nova Inglaterra de alma tão gelada quantosuas margens, de coração tão árido quantosua terra, paralisada por um
medo constante do infernoe pelotemor a um Deus onipotente e sem perdão, dirigida por essa ramo docristianismo atormentado,
podadoe rasgadoaté a sensibilidade da madeira descascada, o congregacionalismo, esse credo nascido de Cristo, cuja mensagem de
amor ela esquecia cada dia um pouco mais entre aqueles homens de cérebro obsedadopor vosões de chamas e que se atormentavam
incessantemente com os Mistérios da Palavra, aqueles eruditos e pastores que trabalhavam pela purificaçãoda Igreja,da qualforam
encarregados pelo céu e pelo povo, aqueles ministros investidos de poderes desmedidos e que zelavam pelos interesses divinos, com
uma consciência ainda mais feroz e minuciosa doque a que utilizavam em seus interesses monetários, o que os tornava incorruptíveis e
deixava entrever muita coisa sobre suas competências e seu furor, entre essas “terríveis pessoas de bem”,elas estavam perdidas.Se as
manifestações da intolerância puritana tinham-se apagadoum pouco de sua memória, voltavam-lhes naquele momento. Não podia
esquecer que a sentia fortemente,quandoas escutava falar de suas vidas. Em Salem, não podiam sair de sua cabana dofundodos
bosques sem se expor todas as vezes às piores humilhações, às piores sevícias, dentre as quais eram comuns os insultos, escarros;
lapidações, prisão, exposição ao pelourinho. A acumulação das acusações contra elas as levaria um dia ao pé do cadafalso ou a serem
amarradas a uma cadeira na água do lago, onde seriam mergulhadas seguidamente até que a água,com sua morte, decidisse que não
eram culpadas, nem possuídas. Acusavam-nas ali de, aopassar na frente da cerca de uma casa, fazer estragar a carne na salgadeira, o
queijo noescorredor, de fazer secar no pé as abóboras do jardim, enegrecer o linho que estava fervendo na lixívia, embaciar os
espelhos... Se não as viam nodia em que essas calamidades aconteciam, era porque tinham passado a noite montadas em sua vassoura,
quandoiam para o sabá. A realidade das ameaças que as espreitavam não deixava dúvida.Não era uma brincadeira.Sua segurança de
cada dia naquele lugar se mantinha por milagre. Loucos, empurrados “peloDiabo”, podiam se lançar sobre elas e violentá-las, mulheres
ciumentas podiam, em nome da moral, assaltá-las em plena praça do mercado e desfigurá-las com unhadas ou com vinagre fervente.
Havia períodos de clemência, como o “que acabavam de atravessar, em que outros acontecimentos tinham desviadoos espíritos
inquietos de sua maníaca vigilância, mas viria o inverno, que retarda os trabalhos dos campos e os tráficos nomar, levando o homem a
se voltar para si mesmo e para seus santos livros, meditações alimentadas pelos sermões cotidianos e o uivar das tempestades do
Atlântico, o assobiar das rajadas de neve em volta da casa ou da Meeting House, povoada de seres transidos de frio e de terror sagrado.
— Ruth — disse, em voz alta. — Eu lhes suplico, não voltem para Salem. Esta carta é uma armadilha. Quandovocês subiam a bordo do
Arc-en-Ciel, surpreendia expressãode muitos rostos entre a multidão que nos cercava e fiqueiapavorada. A mímica das altas
personagens que foram ao porto e que davam ordens aos milicianos de sua escolta para prendê-las nãome passou despercebida.
Felizmente, os soldados não ousaram intervir, o que não poderiam fazer sem provocar uma confusãocom os mercenários, que,por
diversas razões, procuraram honrar e não insultar gravemente,impediu-os de retê-las à força em terra, graças sobretudoà presença de
nossos homens da tripulação, numerosos e bem-armados.
Nossos alabardeiros espanhóis as cercavam, e fiquem sabendoque nãofoi por acaso que meu esposo os dispôs dessa forma. — Angélica
continuou: — Se voltarem para lá, nunca mais poderão escapar desses lugares onde a perseguição contra vocês não cessará daí em
diante. As curas que vocês operam não serão suficientes para que um dia as consciências se abram e para que lhes façam justiça e as
deixem em paz. Seus poderes benéficos as preservaram até aqui,mas podem também voltar-se contra vocês, se deliberarem que eles
procedem de Lúcifer. E é menos o bem vocês fazem que os encoraja a serem pacientes com vocês do que a certeza de que,enquantoem
Salem, não poderãoescapar ao castigo. Este é o motivo pelo qualquerem que voltem. Não toleram a ideia de que a mãode sua justiça
não possa mais abater-se sobre vocês, que pese em sua consciência a censura divina por ter deixadofugir “criaturas do Diabo”, como as
designam, sem terem-nas feito pagar por seus crimes. Não é uma loucura que se possa racionalizar, pois ela” é considerada de direito e
de razão e está profundamente arraigada neles.— Ela continuou: — O velho SamuelWexter pode hoje permitir-se uma serena filosofia,
mas, durante os anos em que era responsávelpelo governo da cidade, vocês sabem, como eu,que mandou enforcar muitos “pecadores”
por crimes que nãotinham nenhuma relação com os de direito comum: furtos, crimes ou outra violência contra a sociedade, mas por
erros como a inobservância dos ofícios, atitudes, reflexões incrédulas ou que contrariavam seu poder, e que bastavam para que uma
sentença de morte fosse pronunciada.Roger William, que fundou oEstadode Rhode Island, por que ele o abrigou a fugir em pleno
inverno para a floresta, senão porque sua vida estava ameaçada? Ele, que era um dos pastores mais ciosos de Salem, cujos sermões
atraíam multidões! Mas ele reclamava mais liberdade para as consciências, leis religiosas menos severas, em suma, mais caridade cristã,
para o pobre povo que perde a cabeça. Digam-me, estou enganada? Julgueimalo espírito da Nova Inglaterra, sobretudoo de Boston ou
de Salem, tendoJohn Wintrop rompido com Salem e fundadoBoston apenas para proclamar leis ainda mais intolerantes e rígidas?
Digam-me: estou enganada? Elas sacudiram a cabeça negativamente. — Creiam-me,sempre haverá alguém em seu governo que,no
temor de que os mandamentos não sejam respeitados com suficiente rigor, na obsessão de que um relaxamentoou uma indulgência
aparentes induziam ao mal as almas fracas, que,percebendosubitamente um momento de graça, como o que conhecemos nessa estada
em Salem, se inquietará,lembrará que se deve ficar sempre atentopara servir a Deus,que as desgraças que se abatem sobre os justos,
como essas guerras indígenas e esses massacres de inocentes nas fronteiras, se devem à negligência culposa, ao esquecimentodos
preceitos, e que,para apaziguar a cólera do Senhor, é preciso imolar aqueles pelos quais o escândalo acontece, fazer uma retratação
pública, provandopor condenações que o torpor perigoso cessou; haverá sempre alguém que quererá ser mais exigente que ooutro e
que fará um sobre lanço, até que a loucura se apodere deles, pois é uma fatalidade que se abate sobre todo governo coercitivo nãover
outra saída para obter obediência a nãoser a perseguição ao bode expiatório. O braço nãopode mais parar de golpear, e os juízes, de
condenar. — Depois de uma pausa, ela continuou: — Oh!conheço-os muito bem! Parece que os estou ouvindo! Eles têm preciosas
qualidades,é verdade,de inteligência, de fé e de coragem, e pela estima que eu tinha por eles, pude adormecer sua desconfiança, apesar
de ser mulher.Mas eles despertam, e sua cólera é ainda maior contra vocês. Suplico-lhes, nãopartam.
Parou, meio sem fôlego, dizendo-se que essa forma de discurso, cara aos ingleses puritanos e aos reformados em geral, parecia influir
sobre elas. Ruth e Noémia escutavam-na numa bela imobilidade de fiéis durante um sermão, e todos, até a menina em seu berço, lhe
prestavam a atençãoque inspira uma voz patética e convincente. Mas via nos lábios das duas interlocutoras um sorriso resignado, um
pouco desiludido, que tinham diante de seu ardor em reclamar justiça e liberdade para elas, e essa expressãode dúvida lançou-a
novamente em seu desejo de encorajá-las a ficar e, assim, salvar suas vidas.
— Suplico-lhes, não voltem. Receio por vocês. Permaneçam aquiem Gouldsboro, onde pensavam que a pequena Agar,se quisesse,
estaria em mais segurança. E puderam constatar que tinham razão. As mais diversas pessoas, de nações e de religiões diferentes,se
organizaram para viver aquiem bom entendimento.Ninguém é perfeito, mas, sob a jurisdição doSr. Paturel, todo habitante dolugar
pode receber sua proteção. Ninguém pode ameaçá-las de morte, nem de maus-tratos, e menos ainda de prisão arbitrária, e se as pessoas
más, os causadores de distúrbios, os ladrões, os libertinos ou os que usam os punhos ou armas brancas, se veem repreendidos,punidos
ou expulsos, é sempre com justiça, e pela paz e a defesa dos cidadãos do lugar.Vocês têm compatriotas e correligionários, a maior parte
refugiados, os que saíram ilesos de ataques indígenas e que não puderam voltar para suas aldeias. Estão agrupados num local tranquilo
chamadoacampamentoChamplain. Ali existe uma escola, uma casa de orações. Ali encontrarão, ou lhes construirão, uma casa, e assim
poderãozelar por Agar, colocando-a ao abrigo dos perigos que a espreitam através de vocês. Falava com a esperança de obter sua
adesão, mas via o mesmo doce sorriso paciente em seus lábios e compreendia que elas recusariam. Ruth olhou-a com ternura.
— Como lhe agradecer, minha irmã? Graças a você, graças a sua generosidade sem limites, pudemos, durante algumas semanas, viver no
esquecimentode nossa maldição, crendo que éramos, também nós, livres e felizes e amadas entre os nossos, criaturas humanas entre
seus irmãos, à sua imagem, criadas como eles por Deus conforme Sua imagem... Mas, por mais constante que seja seu coração, por mais
inabalávele generosa que seja a proteção das armas de seu esposo, por maior que seja o poder que você tenha recebido como apanágioe
reter as feras prontas para saltar, e de acalmar por sua simples presença, seu simples olhar, seus humores belicosos, vingativos ou
sectários, você o disse: um dia, eles despertam, e não poderá nos preservar para sempre,aqui... ou em outra parte — disse ela vendo que
Angélica estava prestes a gritar: “Entãovenham conosco até Wapassau” — Não, isso não mudaria nada,você sabe disso. Depois de um
momento de silêncio, acrescentou:
— Você é uma mulher única... e esta é sua fraqueza.Pois ainda nãochegou o tempoem que haverá outras mulheres como você sobre a
terra. Você é única. Como uma estrela. E por isso todo mundoolha para você. Mas pode-se também ficar assustadocom a direção que a
estrela indica. Mas o Amor a protege... ficar aqui,diz, nesse estabelecimento que ele e você fundaram? Integrar-se numa dessas
comunidades que se esforçam por viver em bom entendimentoe o conseguem? Agar, ela, sim, poderia fazê-lo. O Sr. Paturelsaberia a
quem confiá-la. Não duvidoque haja em Gouldsboro famílias ou pessoas de bom coração, com espírito cristão, que,ainda que ela seja
uma pobre “cigana”,estejam dispostas a acolhê-la. Agar, sim, mas nãonós. Tinham,portanto, sentido crescer a hostilidade à sua volta.
— Pelo menos, Ruth, aproveitem a oportunidade que lhes foi dada de sair ao mar para pedir asilo em outras colónias, aos governos mais
liberais. Se voltarem a Salem, essa oportunidade talvez não se renove, e, sozinhas, não poderãofugir pela floresta para alcançar a
Providence's Plantation em Rhode Island ou New Haven, no Connecticut, que foram fundadas comoprotesto contra o rigorismo do
Massachusetts...
— Que governo poderia nos acolher, fora de sua proteção mágica? — disse Ruth com um ternosorriso de ironia.
— Ruth e Noémia, escutem-me, talvez exista uma esperança,se tiverem paciência. Durante nossa viagem, encontramos, creio que em
Providence ou em Nova York, um jovem quacre de alta posição, o filhodo Almirante Penn.Parece que,para o almirante, que conquistou
a Jamaica para a coroa da Inglaterra, era desastroso ter um filho que tivera a loucura de se tornar quacre.Mas este não era destituído de
audácia, queria fundar uma colónia, um refúgio para os quacres.Seu pai apoiou-o em seus projetos, e o rei, em lembrança aos serviços
prestados pelo pai, vai conceder a William Penn uma carta, a fim de criar um território onde todos os quacres possam ficar em casa e não
se arriscar a nada.A realização desse projeto nãotardará. Tentem reunir-se ao grupodeles. — E depois, eles também nos expulsarão.
Porque nós amamos e curamos por um poder que se pode supor vindo de Satã! Que governo, diga-me, pode, em nossos dias, absolver
esses pecados? E, no entanto, trata-se apenas de Amor e de Caridade. Ruth Summers colocou os braços em volta dos ombros de Noémia
Shiperhall. — Às vezes, quandopensonesta cara criatura que me foiconfiada, quandoconsidero a sorte de Agar, desta pobre menina
selvagem abandonada,que sótem para defendê-la duas mulheres réprobas,elas mesmas em perigoconstante, o temor das infelicidades
que as espreitam me acabrunha.Não creia, minha irmã, que eu seja insensível a seus apelos à prudência e que eu negue que suas
advertências tenham fundamento.A cada dia, a cada noite, os mesmos terrores me torturam, e sinto uma terrível vontade, para protegê-
las, de tornar-me “como as outras”,de me cobrir novamente com as vestes comuns, de recolocar meu pescoço sob a canga da lei que
“eles” exigem, ainda que seja apenas para apaziguar sua terrível cólera de homens justos ou para acalmar o terror imbecil de suas
ovelhas, que eles doutrinam e que se mantêm prontas, a um único sinal desses temíveis pastores, a se atirar sobre nós e nos despedaçar,
às três. Lembro-me então de que esta sempre foi minha pior tentaçãoe meu único pecadoverdadeiro, e que devoexpiá-lo. Dias e dias,
durante anos, eu recusava,recusava o caminho indicado. Tinha-lhe horror. Seu olhar pousou com doçura na jovem mulher a seu lado.
— Ela, Noémia, sempre suportou sem um murmúrio a sorte que lhe era destinada pelocéu. Os dons curativos saíam-lhe das mãos e do
olhar, e ela os distribuía. Desde os sete anos de idade, era fustigada em praça pública.Era desonrada,batida,sequestrada,escarnecida,
submetida a todo tipo de tormento para que oDiabo saísse dela. Mas não via o mal, nem no que fazia, nem no que eles lhe faziam. Eu, de
minha parte, me revoltei. O medode ser expulsa dorebanhoé um medoanimal, primitivo, nofundode cada um de nós, desde os
primeiros tempos. Ruth Summers baixou as pálpebras e disse, num tom sofrido: — Poderia ter curado minha mãe, eu sei. Sentia forças
em mim. Poderia salvar minha mãe quandoa levaram, ensanguentada,depois doflagelo. Poderia tê-la ajudadoa lutar contra sua febre,
ajudar sua própria natureza a triunfar sobre a putrefaçãoque lhe corroía as feridas. Mas receava acrescentar à minha infelicidade de ser
quacre a de ser apontada como feiticeira. Estava paralisada pelo medo. Deixei-a morrer. Com essa falta cometida, eu renegava toda a
minha educação. Revestia-me deleitosamente da libré comum e me tranquilizava por ter-me tornado uma pessoa igualàs outras, ainda
que o fogo interior de minha vida se transformasse, pouco a pouco, em cinzas, ao contato com eles. Até o dia em que fuiatingida uma
segunda vez, e de maneira ainda mais terrível. Fui atingida pelo Amor. O véu rasgou-se, o dique rompeu-se.Então, corri para arrancar
Noémia do lago gelado e aceitei o Caminho. Como é doce renunciar a tudoe ser expulsa da barreira dos justos por uma tal luz! Você
acredita que SãoPaulo, tocado, na estrada de Damasco, pela revelação do Amor divino, procurava o ancião Ananias para pedir-lhe
apenas que lhe devolvesse a visão?
Não. Ele, o fariseu,o guardiãoda lei, procurava-o para ouvi-lo e sobretudopara falar-lhe desse sentimento desconhecido de amor que
lhe fascinara o coração em sua visão. — Depois de uma pausa,ela continuou; — Recolhi Noémia e amei-a, e nãolamento de forma
alguma esse amor que nenhuma palavra pode descrever. Ele também existia entre aqueles que têm nosso nome na Bíblia. Por mais
amargo que sejam às vezes seus frutos, a gente se lembra de que océu se abriu. Ignoro aonde nos leva o Caminho, mas afirmo apenas
uma coisa: é proibido esquecer o êxtase. Se se tiver sido privilegiado por ele uma única vez na vida inteira, ele continua a guiar e
iluminar nossas certezas nas trevas. Cara senhora, devemos retornar a Salem. O velho senhor está doente,e não é tanto seu corpo que
está doente,mas seu coração humilhado,e Lady Cranmer, sua filha, torce as mãos à sua cabeceira, e eles nos esperam.São filhos, nossos
pobres filhos, e todos eles precisam de nós. — Mas eles as matarão. Eles as apedrejarão.Eles as enforcarão.
— Um dia, talvez — replicou Ruth, rindo. — Mas,como você mesma notou, quandosabem que estamos perto deles e estão seguros de
que a todo momento poderemos sofrer nosso castigo, podem permitir-se ter mais paciência. E assim, dia após dia, deixando-nos a vida,
fazem-nos um presente inestimável. Pois cada hora de felicidade vivida pelo homem constrói a Jerusalém celeste. Tinham ainda de
reunir alguns trastes. O sr. de Peyrac e o Sr. Paturel recorreram ao capitão de um navio que voltava na hora da maré e as levaria a bordo.
Depois de avisá-la, elas voltaram para cuidar das bagagens.Rever-se-iam no momento das despedidas.Deixou-as distanciarem-se.
Estivera prestes a pedir-lhes que tirassem suas altas toucas fechadas,a fim de revê-las uma vez mais com seus cabelos dourados nos
ombros, a fim de se persuadir de que eram realmente os anjos que tinham vindo, pois as coisas iam-se apagar e perguntariam um dia se
não haviam sonhadocom elas. Não ousara, por causa da presença de Abigail, cujo pensamentoela ignorava.
Olhou-as descer o caminho, silhuetas frágeis encapuçadas de preto. Iam, hereges entre hereges,loucas talvez, desarmadas... Angélica
deixou-se cair, esgotada, nobanco junto à mesa. — Oh!Abigail, eu lhe suplico, diga-me, o que você pensa delas? Um soluço respondeu-
lhe. Levantandoos olhos, viu que sua amiga tinha o rosto mergulhadoentre as mãos. A jovem rochelesa calvinista levou um certo tempo
para dominar suas lágrimas. Enfim, ergueu novamente a cabeça. — Que Deus me perdoe. Que Deus me perdoe por tê-las julgado. Eu
penso... creio que foi por causa delas que ele escreveu: Eu os enviareicomo cordeiros entre os lobos...”.
CAPÍTULO V
As partidas para Salem — A descoberta de Severina Berne
O navio que as conduzia era uma embarcação da Inglaterra que voltava a Londres, e Angélica quis confirmar se fariam escalas em
Massachusetts.
Certamente,milady — garantiu o capitão — nesta estação, todo navio que faza travessia doAtlântico começa por deter-se em Boston
para se abastecer de maçãs. Elas são as mais belas, as maiores e as mais resistentes. Por isso, carregam-se tonéis cheios na coberta, para
a saúde da tripulação. Mas as de Salem são tão boas quantoas de lá e nos contentaremos com elas, depois de ter deixadoessas damas sãs
e salvas em bom porto.
O esquife que as levava ao navio na enseada se afastou, dançandosobre a crista branca das vagas, encapeladas aquele dia. As três
mulheres,modestamente sentadas entre as sobrecasacas vermelhas dos oficiais e os tricórnios engalonados, desapareciam de vista.
Eram de espécies tão opostas, que era entre esses rudes homens do mar que as pobres puritanas se encontravam mais seguras. Nunca se
ouvira dizer que piratas e flibusteiros tivessem alguma vez molestado as virtuosas mulheres dos primeiros estabelecimentos religiosos
da costa norte da América, quando desembarcavam para prover-se de água doce ou comprar víveres frescos. “Éramos mais pobres que
os mais pobres”,contara-lhe Mrs. Wiliam, a avó de Rose Ann, “e” esses ferozes bandidos do mar, sempre enfeitados, nos olhavam de
longe com nossas golas brancas, nossas roupas escuras. Mas jamais teriam pensadoem nos fazer mal, e alguns nos ofereciam pequenas
joias, tal era a piedade que sentiam por nosso despojamento...”
Os tempos tinham mudado,mas ainda existia um contrato de honra de proteção por parte dos flibusteiros em relação aos piedosos
deserdados das orlas, assim como em relação às passageiras que um capitão aceitava levar a bordoe que devia defender com um rigor
impiedoso.
A chalupa diminuía, apagava-se por trás de um promontório.
Levaram-se os bebês à praia para as despedidas,mas carregaram-nos rapidamente de volta para dentro, pois ventava muito.
E os adultos voltaram em grupo, a passo lentos, em direção às primeiras casas em torno da praça.
Angélica pensava em SamuelWexter. Ruth tinha razão, julgando-omais atingido em sua alma que em seu corpo. A cena com o jesuíta o
arrasara, e ele fora para a cama no dia seguinte.
Angélica, pouco antes de partir, fora visitá-lo e encontrara-o queimandoem febre,repisandoas acusações que o irascível interlocutor lhe
lançara ao rosto e as que nãotivera sangue-friopara devolver-lhe.
— E, noentanto, tínhamos uma língua comum — gemia — e que,certamente,empregaríamos, tanto um como o outro, com mais
facilidade do que nossos idiomas mútuos: o latim. Não penseinisso...
— Não se desole, Sir Samuel,latim ou não, sempre vi as discussões entre teólogos da Reforma e do catolicismo terminarem mal, muito
mal. Não existem concessões possíveis.
O que mais afligia o ancião era ter-se deixadolevar em sua cólera a lançar uma blasfémia. Cortava-se a língua a um pobre-diabopor
menos que isso.
— Esses jesuítas são hábeis em nos tirar doeixo. O governador de Orange vingou-se muito bem de nós, enviando-o para nossos muros.
Avisarei Andros. Os holandeses nunca perdem uma oportunidade de nos meter em apuros.
— Os ingleses tomaram-lhes a Nova Amsterdam e os territórios da Nova Holanda.
— Não teriam dado a esses escritórios o progresso que lhe demos.
Mas a discussão reconfortara-a um pouco.
Esperaram o navio singrar em direção ao horizonte, com todas as velas abertas, para deixar a praia.
Angélica pensava nas palavras muito importantes que Ruth lhe dissera e sobre as quais precisaria refletir. Mas não naquele momento,
mais tarde: quandoestivesse em Wapassu.
Ruth dissera-lhe “Você é uma mulher única”. Falara dos poderes, dessas forças ocultas que Angélica possuía e que a feiticeira Melusina
reconhecera nela, em sua infância. Mas a infância tem as mãos cheias de tesouros. A vida obriga-nos a selecioná-los, negligenciá-los,
abandoná-los.“Minha vida era outra...” Todavia, a dor com que Ruth se expressara ao dizer: “poderia ter curadominha pobre mãe...”
despertara o eco que atormentava sua consciência quandopensava nojovem Emanuel: “Eu poderia tê-lo salvo... deveria ter oposto
minha força àquela que se erguia diante de mim... muitas coisas acontecem quandonãose está ainda pronto, quandonãose deseja ver
bem claro, quandoa cortina ainda não se rasgou. Prefere-se naquiloque está estabelecido”.Voltou a subir a praia, enquantoa multidão
se dispersava e grupos de pessoas se dirigiam para o Albergue Sob o Forte, dirigido pelas Sra. Carrere e seus filhos.
Um bandode pássaros passou piando,girando, buscandoa maré alta dos pontos para pousar,parou, continuou viagem. Apareciam com
frequência e chegavam como a tempestade,obscurecendo o sol, e em seguida fugiam para longe. Angélica observava que sublinhavam,
como uma manifestaçãopessoal, aos acontecimentos ocorridos em Gouldsboro, chegadas,partidas, nascimentos, batalhas.Mas essa era
uma ideia dela. As outras pessoas não viam nenhuma coincidência. Estavam habituadas a essas nuvens de pássaros, como estavam
habituadas às pescas milagrosas, às peles, trazidas pelos índios, às tempestades...
Angélica olhava os pássaros pensandona confissão de Ambrosina; “Aprendia odiar o mar e os pássaros que passam, porque você os
amava. Poder-se-ia exprimir mais intensamente a inveja, o ciúme, o ódio por um ser?Seu pensamentovoltou a deter-se nas duas
mulheres caridosas que tinham voltado, levandoseu segredode amor e de ternura.Nesta mesma areia, tinham colocado o pé.
O mar impávido se retiraria, até deixar apenas um deserto de algas pardas até o horizonte, depois voltaria, bainha fremente que
avançava às escondidas em galope, depois lançaria para o céu, batendo nos rochedos, seus ramalhetes de espuma. E as pessoas
continuariam a ir e vir, sob sua guarda e sua dança,e a colocar o pé na areia e a correr, a estender os braços e os punhos,uns trazendoo
ódio, outros, o amor.
Como ovelhas entre os lobos!... O que iria acontecer-lhes em Salem? — Ah! eu nãopoderia viver na Nova Inglaterra — suspirou. — Oh,
sim, poderia perfeitamente — disse alegremente a voz de Joffrey juntodela. — Em que lugar, ao cabode algumas horas, nãoencontraria
alguns encantos? Não é verdade,Sr. Paturel? — Certamente — respondeu,nomesmo tom de brincadeira afetuosa,o sólido normando,
que igualmente se encontrava perto, à sombra. — Certamente,no fim de algumas horas, esqueceria os inconvenientes das
intransigências puritanas,para ver apenas a beleza das flores dos jardins... — ...ou apreciar as delícias dochá da China. — Esqueceria o
mau humor de Mrs. Cranmer,para se interessar por seus amores atormentados, com o original Lorde Cranmer. — No próprio inferno,
depois de passadoo primeiro choque, a Sra. de Peyrac nãose poria imediatamente a decidir alguns acertos para tornar a situação
menos... abrasiva? — continuou Peyrac. — E o faria, tentandoentender-se com algum diabrete um pouco menos mau que os outros, o
que teria discernido ao primeiro olhar. Ela o faria entrever o perdãode sua pena,pois ele só estaria naquele lugar por uma distração de
São Pedro... — Mas todo mundoestá contra mim! — disse ela, rindo.
— Conte!Conte o que mais você fará quandoestiver no inferno — implorou a pequena Honorina, que andava por ali entre eles. Joffrey
enlaçara-lhe a cintura.Ela sentia seu caloroso sentimento expressar-se através das brincadeiras. Eles a provocavam, mas, na verdade,
gostavam de seu amor pela vida, os seres e as coisas, a natureza, tão bela e constante em toda parte! Ficaram um bom tempo no
albergue,enquantoos irmãos Carrere acendiam os candelabros no teto e as lanternas. Os dias começavam a ficar mais curtos. O canto
dos grilos e das cigarras nas dunas e junto aos bosques tornava-se menos veemente.Mas podia-se prever a chegada doGouldsboro para
dali a dois dias, e os preparativos para a caravana, exceto algumas encomendas que seriam acrescentadas quandoo navio chegasse, já
tinham sido feitos.
— Vou ter de arranjar um escriba — observou o Governador Paturel. — Que quer dizer? — perguntou Angélica. Foi assim que soube que
Natanaelde Rambourg tinha voltado com o navio inglês. Ele resolvera voltar para Nova York, a fim de poder discutir com o intendente
Molines as possibilidades de entrar na posse de sua herança,composta de terras e fazendas, na província do Poitou, na França. Avisara
ao governador e ao Sr. de Peyracsobre suas intenções, pedindo-lhes o obséquiode adiantar-lhe uma soma em dinheiroe assinar-lhe
algumas letras de câmbio, que lhe permitiriam viver decentemente até chegar a Nova York e pagar sua passagem a bordo dos navios ou
das diligências pastais que já circulavam com bastante regularidade entre Boston e as margens de Hudson.
Angélica, com efeito, pareceu ter visto um ou dois chapéus puritanos numa chalupa,mas pensava que se tratasse de valões ou de
valdenses decepcionados, que estivessem voltando para lugares menos contaminados, e estava longe de pensar que sua região, o Poitou,
lhe pregaria uma peça. — Poderia aomenos apresentar-me seus cumprimentos! Que sujeito engraçado esse Natanael! Do lado de fora,os
Berne vagavam, procurandoSeverina. Ao saber da partida dojovem Rambourg, inquietaram-se, pois nãoa encontravam em parte
alguma. Talvez tivesse ido esconder-se, para dissimular um sofrimento atroz. — E se tivesse embarcadocom ele?
Foram de casa em casa interrogar os vizinhos e os transeuntes,primeiro com um tom despreocupado, que se tornava, porém, mais
nervoso à medida que continuavam as respostas negativas.
Gabriel Berne subitamente quase quebrou sua lanterna,num gesto de fúria.Conteve-se para nãojogá-la ao chão, tal era sua cólera
contida.
Deu meia-volta e declarou que ia ao porto procurar uma barca, um iate, um navio, qualquer coisa que fizesse vela para o sudoeste.
Passaria ali o inverno, se fosse preciso, mas perseguiria aquela ordinariazinha até a Virgínia, o Brasil, a Terra do Fogo. Sempre fora uma
cabeça-dura,indisciplinada. Sempre quisera ser menino. Ele lhe ensinaria como uma mulher deve se comportar e ficar em seu lugar.
Mas, também,ela tivera maus exemplos... Angélica acompanhou Abigail, toda trémula, até sua casa. — Estou transtornada.Receio por
Severina. Gabriel é muito bom, mas nofundoé violento e desconhece a força que tem. Pode se tornar muito perigoso, se deixar explodir
sua cólera. — Eu sei como é!Não fique com medo. Vou falar com ele, e não o deixaremos partir sem chamá-lo à razão. Alguém irá com
ele, se for necessário.
Pela porta aberta da casa iluminada, a voz de Severina escapava, cantandoos versos do salmo, Saepe expugnaverunt me musicado por
Cláudio Goudimel:
— “Desde minha juventude, fizeram-me mil assaltos,mas não puderam vencer-me e me destruir”.
A sala comum estava acesa. Severina instalara a pequena Elisabete diante de sua sopa com leite e acalmara a garota com um pedaçode
pão. Laurier colocava as tigelas na mesa para o jantar. Enquantovocalizava, Severina continuava a fazer as conservas, manejandoa
concha como teria feito com uma batuta de maestro, escumandoo cozido, depois arranjandoos filés de cavalas e de arenques nos potes
com vinagre.
— Onde você estava? — Não muito longe... — Nós a procuramos por todo lado. — Por quê?
Enviaram Laurier para avisar Mestre Berne. Angélica saiu mais tranquila. Ia dar um jeito de interceptar Gabriel Berne no caminho de
volta e pedir-lhe que nãobancasse o pater familias romano com a filha. Pois, sob o pesodo medoe da cólera que havia sentido, era capaz
de dar-lhe uma surra, quandonãotinha nada a censurar-Ihe.Certamente conseguiria acalmá-lo perguntando-lhe oque quisera dizer ao
falar de “maus exemplos recebidos por sua filha”... Ela, Angélica, que levara a jovem a uma viagem de recreio, tinha algo a ver com a
alusão? Um passo leve alcançou-a nocaminho. Severina deslizou um braço sobre o seu e ergueu orosto para ela. Uma lua fina e uma
sementeira de estrelas começavam a difundir uma luz suave ao redor e se refletiam nos olhos negros da adolescente.
Disse, com fervor: — Obrigada.— Por quê,minha cara? — Por essa carta sobre o amor que me leu. Penseinovamente em seus termos e
sobretudonaqueles do parágrafosobre o amor dos amantes.O VerdadeiroAmor. Isso me ajudou a compreender o valor do que eu
sentia... A não confundir o interesse, o divertimento e o sentimento. A não me perder,nem me deixar assustar por fantasmas... tomou-lhe
a mãopara pousar-lhe os lábios. — Obrigada... E tãobom que você exista!
CAPÍTULO VI
Presépio negro — As razões de Joffrey de Peyrac
Ainda nãoera Natal, e, se o nevoeiro espesso que envolvia a natureza não consentia em fundir-se abruptamente senãopara deixar
entrever o fantasma de uma silhueta humana tateandocom o pé seu caminhoou a girândola de uma pequena bétula subitamente
transformada em ouro ou o intenso braseiro de uma cerejeira silvestre que resolveu revestir, antes das outras, sua folhagem vermelha,
se o grande mantocinza e vaporoso, que a baía dos Franceses gosta tanto de exibir, bancandoa misteriosa e a tímida, quandonãoexiste
outra mais ousada e desenvolta, se essas cortinas, velas e echarpes de sonho descorado faziam reinar, naquele dia, uma claridade
invernalenganadora,ninguém esquecia que estavam apenas nas primícias do outono.
E, no entanto,com o númerode pessoas que se puseram a caminho, cheias de alegria e curiosidade, cada qualquerendose munir de um
pequenopresente,com o frágilapelo de um sino abafadopelas brumas,mas que convidava curiosos e trabalhadores a parar suas
brincadeiras ou suas tarefas e se dirigir, intrigados e enternecidos, a uma pobre cabana, havia como que uma evocação de Natividade e
de Epifania em volta do presépio.
Só que o MeninoJesus era negro. Por mais discreta que tenha sido a passagem desse nascimento durante a noite, na casa de toras de
pinheiro onde se alojaram os escravos comprados em Rhode Island, seu anúncio correra desde a alvorada de uma ponta a outra da
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  • 1. CAPITULO I As Damas de Gouldsboro — No quarto da Diaba ESTADA EM GOULDSBORO Fazia um dia lindo quandoo Arc-en-Ciel lançou âncora diante de Gouldsboro. Enquantoesperavam a execução das manobras, que consistiam em reunir as bagagens na ponte, descer as chalupas ao mar, ajudar os passageiros a se acomodar — e que passageiros nas pessoas de Raimundo Rogério e Gloriandra de Peyrac! —, os primeiros emissários de Gouldsboro se apresentaram aonavio e subiram pelas escadas de corda ou pelos cordames. Entre eles, o ativo e empreendedor MarcialBerne, irmão mais velho de Severina, e seu grupode jovens patrulheiros da baía,ladeado pelo fiel escocês George Crowley, que se gabava de ser o primeiro colono do lugar,e dovelho chefe Massaswa com sua flotilha de índios que quase nãose via noresto do ano, mas que surgia como por milagre de todas as angras circundantes assim que o pavilhão doConde de Peyrac era avistado no horizonte. No fim de um instante, todo mundoestava reunidoem volta dos pequenos pacotes brancos carregados por suas amas-de-leite e babás,e a manobra nãoprogredia mais. Enfim,conseguiram dispersar o ajuntamento, e Angélica obteve, depois de muito insistir, algumas notícias e algumas respostas a suas perguntas. Todos estavam de acordo. O outono seria longo, e o sol doverão indígena, sempre especialmente quente e imutável, prometia brilhar pelo menos até os últimos dias de outubro, se nãoaté meados de novembro. O que permitia permanecer pelo menos uma ou duas semanas nas praias, sem correr o risco de ser surpreendidopelos primeiros frios durante a viagem de volta para Wapassu,com os pequenos príncipes. Houve, todavia, um contratempo. O navio Gouldsboro, que deixara o porto de atracação em junhoem direção à Europa, como fazia anualmente,ainda não voltara, assim como a embarcação menor, Le Rochelais, encarregadode uma missão especial e secreta no Mediterrâneo.Esse atraso não podia ainda ser considerado inquietante,mas o Gouldsboro e seu CapitãoErikson os habituara a vê-los efetuar ida e volta através do oceano com tanta celeridade e êxito, que acabaram por esquecer que podiam, como os outros, encontrar pela frente tempestades,calmarias ou piratas. Ninguém encarava a possibilidade de um naufrágio. Foram tranquilizados, na hora seguinte, graças a uma mensagem que lhes foi entregue pelo corsário holandês, um amigo que bordejava nas paragens e que os avisava que encontrara a embarcação ancorada num fiorde da ilha Royale, onde esperava o Le Rochelais, mais lento que ele, antes de começarem a contornar juntos a Nova Escócia e chegar ao porto. Só podiam esperar que eles chegassem antes da partida obrigatória para o Alto Kennebec,pois esses navios seriam carregados de mil objetos, instrumentos e mercadorias preciosas para a invernagem,e seria lamentável nãopoder, encaminhá-las para Wapassu. Enfim Marcial Berne ia partir para estudar em Harvard. Seu pai nãoqueria vê-lo tornar-se um pirata da baía Francesa. Iria depois para Newport e, em seguida, para Nova York, fazer comércio. — Fique bravo, fique com raiva, fique!Eu vi tudo isso antes de você! — cantarolou Severina, esfregandoum indicador no outro e apontando-opara ele. — Não lhe contarei nada! La Rochelle francesa,sua volubilidade, seus maneirismos tradicionais, que nãomorrem depressa, brilhavam ao sol... E Angélica preparou-se para enfrentar Gouldsboroe suas damas. Os laços que uniam Angélica à parte majoritária da população, os huguenotes franceses de La Rochelle, eram profundos,indefectíveis, mas ambíguos, e, a priori, continuariam a sê-lo para sempre. Censuravam-na por tê-los obrigado a subir nonavio de Joffrey de Peyrac, um pirata,a seus olhos. Ela pedira-lhes misericórdia de joelhos quandose rebelaram contra ele durante a travessia, merecendopor isso a forca. Em circunstâncias em que toda mulher honesta deveria esconder-se de vergonha,pois ela era acusada de adultériocom Barba de Ouro, ela os enfrentara com uma desenvoltura desconcertante. Sabia que, aos olhos deles, não importava o que fizesse, sua conduta tinha sempre alguma coisa de chocante. Enquantoo Arc-en-Ciel entrava na enseada,Angélica, com a luneta assestada, viu na primeira fila, num grupocompacto e dominador, identificáveis por suas roupas escuras e suas belas coifas brancas, aquelas que tinham sidoas damas de La Rochelle e se tornaram as Damas de Gouldsboro, tão arraia miúda pareciam, ao lado delas,os outros habitantes dolugar, não menos numerosos. Angélica, que gostava delas por tudoo que tinham vivido juntas e que desejaria agradar-lhes e receber sua aprovação, suspirava, pois sabia que sempre lhes inspirava, nãoimportava o que fizesse, um sentimento de reprovação. Que ela tivesse se introduzido entre elas em La Rochelle, inicialmente como humilde criada, para se revelar a seguir dama de alta nobreza, isso nãomudava nada de nada,explicava de bom gradoa autoritária Sra. Manigault.Pois, quer fosse a empregada de GabrielBerne quer fosse a mulher do pirata aoqualdeviam sua salvação e sua instalação no Novo Mundo,ela sempre os havia dirigido com a mesma autoridade e os dominara com a mesma maneira desenvolta, não tendojamais tido consciência de que estivesse tratandocom gente séria e senhora de seu destino, eles, os huguenotes de La Rochelle. Angélica sabia também que, nofim de alguns dias, após discutirem o assunto, eles se informariam sobre se se poderia mudá-la ou melhorá-la. Reconheceriam, pela enésima vez, que ela possuía uma mentalidade muito diferente da deles para que não houvesse atritos ou mal-entendidos, que ela era uma mulher fantasiosa, se não leviana, em todo caso demasiadoindependente,para que se incomodassem, mas acabariam por convir que a amavam muito, Dame Angélica de La Rochelle ou de Gouldsboro, tal como ela era, que nãoa queriam diferente,e que estavam muito contentes por vê-la entre eles.
  • 2. Mas os reencontros eram sempre difíceis. Era inútil, dar-se ao trabalhode tratar todo mundocom cuidadoe nãochocar ninguém, ela sentia rapidamente que sua vinda perturbava oequilíbriode sua existência bem regrada.Acabara por compreender que nãodependia dela que as coisas fossem diferentes.Só era responsávelpelo lugar importante que,a despeitode si mesmos e a despeitode muitos escândalos, ela ocupava em seus corações sombrios, pouco inclinados à indulgência e a capitular diante da sedução. “O que foi que fizao céu”, perguntava-se por vezes Angélica, “para que a afeição que me devotam me traga com tanta frequência desconfortos e perigos? Os homens brigam entre si, por minha causa,as mulheres se sentem frustradas se não dedico a cada uma minha atenção exclusiva...” Com exceção da sábia e terna Abigail, tinha de resignar-se com as outras, ao vê-las com cara de enterro,os lábios apertados numa censura reprimida e sem se poder determinar a propósito de quê; tinha certeza de que iria, uma vez mais, causar-lhes muitas razões de descontentamento. De imediato, as damas abominaram Ruth e Noémia. Não porque fossem inglesas, mas elas adivinharam logo o lado suspeito de sua personalidade e o lugar privilegiado que ocupavam no coração de Angélica. Por isso, foram de preferência muito mais solícitas com a parteira irlandesa e suas moças, enquantoas duas jovens babás eram sistematicamente postas de lado. Na confusãodo desembarque,Angélica preocupara-se principalmente em designar o lugar onde ia alojar os pequenos heróis do dia, cujas cestinhas de vime, carregadas cada uma na cabeça de um marinheiro, abordaram na praia num silêncio quase religioso, para ser, em seguida, objeto de alegres clamores, enquantoseus carregadores subiam a praia com orgulho. Desde que tinham ido, como marido e mulher,a esse ponto do litoral do Maine, Angélica e Joffrey de Peyracnão tiveram nunca a oportunidade de residir por muito tempoali. Tinham conservado o costume de se alojar em seu forte de madeira, rústico mas sólido, que se erguia na extremidade da ponta rochosa e que fechava a angra,transformada posteriormente em porto. Edificado sobre as ruínas de antigos fortins pelos primeiros visitantes do lugar,talvez Champlain ou pescadores ingleses surpreendidos pela invernagem, ampliadode um cercado fechadopor uma paliçada de estacas, esse forte fora por muito tempoa única habitação digna desse nome. Joffrey de Peyrac, vindo das Caraíbas, onde reunira uma fortuna resgatandoos tesouros dos galeões espanhóis, ali se acantonava com sua tripulação e suas levas de mercenários, entre duas explorações na hinterlândia ou de reconhecimentos ao longo das violentas costas de um território, sobre o qualacabara de obter, das autoridades doMassachusetts, o direito de estabelecimento e explorações das minas de prata. O forte tinha dois andares e comportava, embaixo, uma grande sala comum que servia também de escritório para o comércio e a troca, ladeada de lojas e entrepostos diversos para os víveres e as armas. Em cima, o andar era ocupado por um amploquarto e dois outros menores, e era ali que Angélica ia se instalar com suas malas e cofres. O quarto estava mobiliado com um grande leito, mesa e poltronas, e escabelos, com revestimentos e tapeçarias nas paredes para proteger contra o frio e a umidade.Havia também um armário, o que nãoera frequente nessas regiões. Ali se podiam dispor objetos de toalete, bibelôs, joias, e depositar as diversas mercadorias trazidas da Europa pelos navios, depois de separá-las e decidir para que outros lugares ou casas deviam ser encaminhadas. Foi, portanto, naturalmente para o forte que se dirigiram os carregadores dos bercinhos de Raimundo Rogério e Gloriandra. Mas, no momento de fazê-lo subir para o quartomaior, Angélica se lembrou de que a Sra. de Maudribourg,a demoníaca amiga doPadre d'Orgeval,ali se hospedara.E foi tomada de pânico. Receou, pelos preciosos inocentes que trazia de Salem, que ali permanecessem eflúvios do mal destruidor... Fora nesse quartoque,uma noite, acordando, arrepiada de terror, divisara num canto um “ser”' sombrio. Era em volta desse leito que as pobres Moças doRei, subjugadas,enfeitiçadas,sofriam a ascendência do demónio súcubo. Nesse aposento tinham começado as mentiras e daí partiram as ordens de morte, a génese dos crimes. Mandou que ocortejo esperasse na sala de baixo, o que permitiu à multidão contemplar mais de perto os dois bebês,colocados em suas cestas sobre a mesa de madeira,e que se mantinham tranquilos, não tendoainda notado que os tinham separadode novo. Fazendo sinal a Ruth e Noémia para que a seguissem, subiu com elas. Rapidamente,explicou-lhes o que acontecera naqueles lugares e pediu-lhes que procedessem a um exame das influências nocivas que deviam ali existir e, se possível, à sua anulação. Agar imediatamente retirou da mochila a varinha de feiticeira e, murmurandofórmulas, entregou-a a Ruth Summers. Depois, sentou-se contra o batente da porta, com seus grandes olhos de cigana à espreita, inspecionando com uma mistura de medoe de intensa curiosidade o conjunto doquarto, enquantoAngélica, permanecendotambém na soleira, olhava as idas e vindas das duas silhuetas, uma atrás da outra, das moças de Salem: Ruth, com a varinha entre os dedos, Noémia seguindo-a com gestos de mãos que se erguiam como que para captar não se sabe que correntes invisíveis, sua pequena silhueta frágilgirandosobre si mesma, ora à direita, ora à esquerda. Mas, às vezes, uma expressão de dor crispava-lhe o rosto, e ela não concluía o giro. Depois, retomavam sua marcha processional, trocando ideias num tom de conversa banal. Tendoo sol se deslocado, reinava uma luz pálida, a luz dodia misturada ao reflexodo céu no mar, ao pé do promontório. Uma claridade suave, neutra,transparente,onde as duas mágicas passavam com a discrição de fantasmas acostumados a não serem vistos pelo olhar dos homens. Depois, voltaram-se para Angélica, e Ruth arrumou sua varinha com gestos precisos de dona de casa nosaco que a cigana, que se levantara prontamente, lhe estendia.
  • 3. — Então? — interrogou Angélica. — Então nadai — disse Ruth, sacudindo a cabeça. — Nada!— repetiu Angélica. — E, no entanto, ela viveu aqui!Como explicam isso? Ruth voltou-se para Noémia. — O gato captou tudo — declarou esta, abrindoas mãos num gesto que significava: é assim. — O gato? — Ele nãoestava aqui? — Com efeito... E nesse mesmo dia ele aparecera,o Senhor Gato, que atualmente passeava,solene e bem nutrido, pelos caminhos de Gouldsboro. Ele não passava então de um miserável gatinho de navio, não maior que a mão do grumete que devia tê-lo jogado na praia, entre as poças d'água. Subitamente,Angélica, sentada à cabeceira de Ambrosina, o vira ali, contra sua saia, como que surgidodo assoalho, tão fraco, héctico e vacilante em suas patas finas, que nãotinha forças para miar. Fixava-a com seus olhos dilatados, com uma tal expressão de espera,tão cheia de esperança e de confiança... Ela o pegara no colo para aquecê-lo,cuidar dele... Senhor Gato! Pequenogénio doBem. Enviado para captar o Mal... — Por que nos olha assim? — perguntou Ruth.— Sabemos tão pouco sobre os mistérios que escoltam os seres humanos... Mais seres do que você imagina vivem com poderes secretos, e muitos mais deveriam sabê-lo. Tantas forças e tantos tesouros que nos foram revelados se perdem,em nossos dias! Mas o papele o objetivo de Satã é privar o homem de seus dons místicos e afastar dele as ajudas divinas. CAPITULO II Os Huguenotes e Bertille Mercelot E como perguntasse sobre o jovem Laurier Berne, o segundoirmão de Severina e que era para ela um de seus filhos adotivos de La Rochelle, viu-o correr. — O gato apareceu em nossa casa em primeiro lugar — gritou. — Venha depressa,Dame Angélica, nós a esperamos para a refeição. Na casa dos Berne, em volta do diplomata visitante, o Senhor Gato, sobre a mesa, reencontrava Abigail, seu esposo, suas encantadoras filhinhas, uma,Elisabeth, de dois anos, a outra, Apolina, de seis meses. Notando uma outra cabeça loura, Angélica perguntou onome do pequenovizinho. — É o pequenoCarlos Henrique,você sabe... Na ausência de sua madrasta, Bertille, que viajou para acompanhar seu pai, o Sr. Mercelot, à Nova Inglaterra, para ajudá-locom suas escritas, nós ficamos cuidandodele. — Ah! sim, Carlos Henrique! — disse ela, entristecida. — Seus avós, os Manigault, nãopodiam cuidar dele? ou suas filhas, Sara e Débora, que são tias dele, em vez de sempre recorrerem a você, Abigail, que é apenas uma vizinha, carregada de filhos?! Abigail teve uma expressãodubitativa e acariciou a cabeça da criança, que era bela e desenvolvida para seus três anos, mas que tinha o hábito de manter os grandes olhos sempre arregalados,como se estivessem lhe explicando algo estarrecedor que ela nãocompreendesse. Ela respondeu,com mansidão: — Você sabe como eles se sentem em relação a este pobrezinho. Ê preciso desculpá-los. Uma nuvem de tristeza passou pelo rosto das pessoas presentes,enquantotomavam assento em volta da grande mesa de madeira e mestre Gabriel Berne, depois- de tirar dotonel um pouco do vinho de uma remessa nova, aberta com o próprio facão, o seria nos cálices de estanho, dispostos por Severina. Para evitar um assunto de preocupaçãolatente na comunidade de Gouldsboro, o desaparecimentoda mãe verdadeira de Carlos Henrique,começaram a congratular-se: naquele ano, pelo menos, o verão parecia ter trazido apenas satisfações. Não houvera piratas, corsários atracados nas ilhas para vistoriar os navios que chegavam da Europa com seus carregamentos de provisões, indesejáveis entre esses bacalhoeiros estrangeiros, ingleses em busca de desforra sobre os postos da Acácia Francesa, reides iroqueses ou guerra santa de abenakis contra o herege.Paz, portanto, na baía Francesa. — Assim seja — aprovou Severina, impulsiva e ardente, e que,voltando para casa, tinha muitas novidades para contar. Com um braço em volta dos ombros de seu pai e de sua segunda mãe,de quem gostava muito, continuou: — Concordo! Reconheço que oclima de Gouldsboro é um dos mais agradáveis, e que a gente sente o coração leve e cheio de amizade pelo próximo... Mas, em sua opinião, estava na hora de todas as pessoas de bom senso reconhecerem uma coisa, que saltava aos olhos. Se aquele ano, ali, a atmosfera estava calma, cordial, nãoera apenas devidoaos triunfos doverão — boas colheitas, boas notícias da Europa,boa pesca, bons negócios e comércio, boas chegadas e boas partidas de navios e o feliz nascimento dos gêmeos de Peyrac, que coroava tudo, mas também... porque tinham se livrado de Bertille Mercelot. Sem ousar dizê-lo em voz alta, por medo à Sra. Manigault, sempre muito autoritária, mas alguns ousando cochichá-lo ao ouvido de outros, acabaram por constatar que,sem Bertille Mercelot, todo mundose entendia melhor em Gouldsboro. E quandoSeverina contou como a insolente, que ela reencontrara em Salem, se comportara com a Sra. de Peyrac, nem bem refeita doparto, as línguas se desataram. Bertille Mercelot, declararam, nãoparava de fazer o papelde pomo da discórdia, e isso desde que nascera. Os que em La Rochelle a viram crescer contavam que,ainda bem pequena,ela já semeava a cizânia entre os garotos do Bairro das Muralhas,com os quais aprendia a ler a Bíblia na casa de duas moças muito honestas. Depois da passagem de Bertille por suas pequenas oficinas, onde, sem malícia e dedicadamente,ensinavam às pequenas huguenotes da cidade a se manter eretas e a fazer gentilmente a reverência, curta e modesta, e um pouco de costura e de tricô, elas tiveram de renunciar a prosseguir com seus ensinamentos. Por ser bonita, e mesmo fascinante, filha única e herdeira de uma considerável fortuna,devida a um próspero comércio de papelaria, Bertille Mercelot sempre se julgou irresistível, considerando um insulto à sua pessoa nãoo reconhecer.
  • 4. Sendouma menina inteligente e que aprendia mais depressa que as outras, era difícil negar essa superioridade,que ela afirmava por sua simples e incomparávelpresença, e suas companheiras de infância acabaram por admitir, domesmo modo que ela, que Bertille Mercelot nascera para ocupar o primeiro lugar em tudoe para deixar aos outros apenas os restos. Quandochegou à idade de atrair o olhar dos homens, tevê de enfrentar a difícil escolha de atrair todos eles, mas nem por isso recuou em sua ambição de atrelar a seu carro o maior númeropossível, pelo menos para nãoabandoná-los às outras. Era difícil distinguir num primeiro olhar as paixões que dormitavam sob essa água parada.Ela sabia como desviar os espíritos de sua responsabilidade em uma querela,pois, para ousar a linguagem papista, “ ter-lhe-iam dadoo Bom Deus sem confissão”. Tinham, pois, paciência com ela, fosse por cegueira, fosse por poupar seus pais, que eram as melhores pessoas domundoe que nunca perceberam que sua filha adorada era uma rameira. Mas, agora que seu paitivera a boa ideia de levá-la em sua visita aos moinhos de papelda Nova Inglaterra, mediam, peloalívio que isso lhes trouxera,o peso que suas dissimulações exerciam sobre a comunidade. Com Bertille, a gente sempre se perguntava qualseria o próximo lar que ela ia tentar destruir e, com esses piratas arrependidos do outro ladodo porto, papistas, portantolibertinos por natureza, se o bom entendimentoestabelecidopor Colin Patureltivesse um dia razões para se romper, as imprudentes incursões de Bertille entre eles não seriam estranhas.Com efeito, ela só respeitava Colin, o governador, e Abigail Berne,e mesmo assim, nãose sabia se nãose deixariam lograr um dia por seus trajetos, seus comadrismos, suas palavras ao mesmo tempo doces e avinagradas. Gabriel Berne servia generosamente o vinho brancoda Garonne, e Angélica achava repousante, depois de Salem, tagarelar com toda a tranquilidade com os amigos sobre assuntos referentes à vizinhança, que são igualmente importantes e sem importância. Laurier trazia um prato de camarões e de ostras frescas. Tia Ana e a velha Rebeca chegavam, davam-lhes lugar à mesa e recomeçavam a falar em todos os sentidos sobre Bertille Mercelot, enquantoGabrielBerne abria as ostras com um gesto peremptório. Tia Ana, que era um pouco distraída, opinou que era preciso casar a perturbadora Bertille. O que provocou a indignação geral. — Mas ela já é casada, vocês o sabem muito bem! — Com esse cretino do Joseph Garret, que fica correndoos bosques em vez de vigiar sua mulher! — Se Jenny Manigault nãose tivesse deixadoraptar pelos índios... — Cuidadocom o que falam diante do menino! — É verdade!Tenham cuidado, ele pode compreender. — Não, ele é pequenodemais. Beijavam o pobre Carlos Henrique e recomeçavam a falar de —Bertille Mercelot, a fim de encontrar uma solução para o problema. Era um equívoco habitualsugerir, como Tia Ana, que era preciso arranjar-lhe um bom marido, e muitos insistiam nele até o momento em que observavam que ela já tinha um marido, pois era casada, e isso havia quase dois anos, com Joseph Garret, o genrodos Manigault.Ela sempre sonhara em entrar para a família dos Manigault, uma das mais importantes de La Rochelle e uma das mais importantes dentre os armadores, mas não se via como, pois, essa família de ricos burgueses só tinha um filho homem,um pequenotemporão,Jeremias, nascido depois de quatrofilhas, contemporâneas de Bertille. Esta sempre tivera ciúmes de Jenny,a mais velha, e muito mais ainda quandoa viu casar-se, antes dela, com o tal Garret, belo rapaz, de bom nascimento, oficial num regimento de Saintonge. Ora, atualmente,Bertille Mercelot era a esposa de Garret, mas, por quais meandros de que trágicos acasos? A encantadora Jenny Manigault poderia prever em sua juventude felize mimada de La Rochelle que, por ter nascido huguenote,seria um dia lançada,com sua família, nos caminhos do exílio e que,à sua fuga de proscritos, acrescentaria dois dramáticos privilégios: o de ter posto no mundoa primeira criança de Gouldsboro, nascida nos primeiros dias de seu desembarque,a quem chamaram de Carlos Henrique,e o de ter sido a primeira a pagar seu tributoà cruelAmérica: alguns dias depois de sua festa de purificação, quandose dirigia com os seus para o campo de Champlain,fora raptada por um grupode índios que andavam por ali, iroqueses ou algonquinos, nunca se soube, e desaparecera para sempre. Duras primícias a oferecer aos deuses selvagens da América do Norte para obter a graça de sobreviver e recomeçar ali uma nova vida! Na casa dos Manigault, por muito tempoentristecidos e revoltados, a ferida começava a cicatrizar-se. Suas outras filhas eram belas e boas. Jeremias crescia, fariam dele um ativo armador doNovo Mundoe, para começar, iria também para Harvard,na Nova Inglaterra.Os negócios iam tomando jeito. Em sua casa nãose falava nunca em Jenny, morta sem sepultura onde pudesse ser pranteada.Bertille, seduzindoe desposandodesde o primeiro inverno o jovem viúvo desamparado,demonstrara na ocasião mais precipitação do que juízo. Isso não a aproximara em nada dos Manigault,e ela poderia ter pensadoque havia uma diferença em se tornar parente dos Manigault de La Rochelle, quandoeles moravam em seu suntuosopalácio particular, ou dos semináufragos sob um teto de colmo e cabana de achas ou pranchas de madeira, como foram os imigrantes dos primeiros tempos, todos pioneiros da América, todos na mesma situação, ricos ou pobres de nascimento. Por isso, a nova família Garret nunca deu muitocerto. Bertille não gostava do pequenoCarlos Henrique. Ela o deixava na casa da vizinha Abigail, tendoos avós Manigault também se desinteressadodesse netoque lhes lembrava um luto cruel e, com efeito, não podiam suportar sua presença. Bertille, por sua vez, se encontrava a maior parte do tempoem casa dos pais, e continuavam a chamá-la de Bertille Mercelot. Algumas vezes voltava para casa, pegandoa criança com grandes demonstrações de afeto, para que dissessem que ela era perfeita, tocante, devotada.Suas reaparições coincidiam, observou-se, com a chegada dos navios da Europa, os anúncios de visitantes interessantes à baía Francesa, ás vezes com as voltas de Joseph, seu esposo, que por conta de uma companhia meio inglesa, meia holandesa, se associara aos bosslopers ou bushrangers, como eram designados os exploradores de bosques ingleses que iam até os índios comprar ou pegar as peles. Em suma,todo mundoem Gouldsboro estava aliviado pelo fatode Bertille estar ausente.Nas crônicas futuras, o ambiente que reinava no coração doverão em questãoseria julgadoidílico e falariam dele com frequência.E, antes de mais nada,comentariam essa volta do Arc- en-Ciel, que entrara na enseada carregadode auriflamas e de “armadouras” escarlates,como um navio real, e a volta do Conde e da Condessa de Peyrac, essas duas personagens que nãoeram iguais aos outros, que por vezes se pensava odiar, temer ou rejeitar, mas que
  • 5. acabavam por agradar em virtude de seu gosto por festas e sua sede de viver, e que tinham voltado dessa vez com as duas crianças milagrosas, em vestidos de veludo, belos, uns amores em suas almofadas bordadas. E a existência em Gouldsboro era suficientemente difícil para que virassem as costas ao prazer e se deixassem envenenar por moças maléficas como Bertille. Haveria também a volta do Gouldsboro e do Le Rochelais com seus carregamentos soberbos, e a populaçãose apegava cada vez mais à sua cidade, havia um movimento louco de troca e de comércio, visitas e alianças... Mas nada era melhor que a ausência de Bertille Mercelot. Acabavam de compreender que nãose enganavam aoconsiderá-la um verdadeiroveneno. Abigail, sempre caridosa, teve de convir com isso também. — Mas o que vai ser desse meninocom uma mãe tão ruim? Angélica continuava a esperar que se tratasse apenas de futilidade,que a jovem se emendasse.Apesar de ter servido de alvo aos maus propósitos de Bertille, considerava-a apenas uma criança um pouco tola. Se lhe construíssem um dia em Gouldsboro uma casa bonita, tal como as que ela vira na Nova Inglaterra, ela se sentiria bem ali, como em outra parte qualquer.Issolhe permitiria exibir-se. Era preciso principalmente conseguir que seu marido voltasse dos bosques.Ele não poderia ser mais útil ali, como antigo oficial dorei, ocupando-se da milícia, formandoum destacamentode bons militares, em vez de seguir os bushrangers ingleses para negociar peles, que alieram negociadas em pequena escala,a fim de não desagradar aos índios? — Em compensação — disse ele —, se um dia ele, que é um francês reformado,isto é, herege, acompanhandoos oponentes ingleses, der com os franceses doCanadá,que são tão zelosos de seu monopólio e consideram que todas as peles da América do Norte pertencem a eles, não dou muito tempo para sua cabeleira. Abigail teve um sobressalto e suspirou: “Pobre rapaz!”,e depois, “ Pobrezinho”! olhando para Carlos Henrique,que já imaginava privado de todo apoio, paternoe materno; Gabriel Berne aprovou Angélica em suas opiniões. Fazendo pouco dos prognósticos demasiadosombrios, os três decidiram que,ao invés de tentar convencer os Manigault a cuidar de seu neto, convenceriam Garret a voltar, criando-lhe obrigações e responsabilidades cívicas que o retivessem em casa, juntoà sua jovem mulher e ao filho. Iam falar com o Governador Paturel. CAPÍTULO III Relações acadianas Gouldsboro tornara-se tão povoada que as pessoas não mais se conheciam, e uma grande parte da populaçãosob a jurisdição de Colin Paturelera agora estranha para Angélica. Não podia ser apresentada a todos e, durante sua permanência,iria sobretudorever seus amigos e as pessoas conhecidas que vinham a Gouldsboro para encontrá-la. — Sra.de Peyrac! Sra.de Peyrac! Angélica, que atravessava a praça correndo, resolveu fazer-se de surda a esses chamados que,vinte vezes por dia, chegavam a ela, assim que punha os pés na rua. Pelas onomatopeias que eram trocadas quandobotes e chalupas traziam os ocupantes de um navio para a praia podia-se saber de que pontos da costa ou de que ilhas chegavam, vozes inglesas ou francesas,ou às vezes cordialmente misturadas quandose tratava da longínqua ilha de Monégan ou dos estabelecimentos da foz do Kennebec,dos quais várias bandeiras guardavam a entrada,até a do mercador holandês Peter Boggen. Havia anunciadoa chegada dos acadianos de Port-Royal. Angélica, que se atrasara novamente em casa dos Berne, tentava passar sem ser notada, com a preocupação de voltar para o forte a fim de “se arranjar” um pouco, nocaso de a Sra. de la Roche-Posay estar entre os que chegavam. Queria também dar uma olhada nos gêmeos, censurando-se por haver-se descuidadodeles, apesar e talvez por causa do númerode pessoas que assumiam sua guarda e cuidados no barco. Um velho marinheiro, de origem circassiana, vendoo enxame de vasquinhas e de toucas que se debatia em volta dos dois tesouros, advertira-a várias vezes, desferindo-lhe com ar sinistro um provérbio russo, fruto da sabedoria e da experiência popular: “Uma criança que tem sete babás fica caolha!” Estava, pois, andandorapidamente e fezde conta que nãoescutava a voz fresca e jovem que a chamava: “Sra.de Peyrac!... Sra. de Peyrac!” Todavia, olhandode lado, viu que se tratava de uma mulher, evidentemente grávida,e que se apressava um pouco pesadamente na areia para encontrá-la. Foi forçada a parar e retroceder. — Oh! Sra. de Peyrac, estou feliz por revê-la — disse a jovem, ofegante. — Queria tanto que me desse notícias de minha irmã! Chegandopertode Angélica, jogou-se espontaneamente em seus braços, e esta não teve outra saída senãoabraçá-la. — Quem é você, minha cara? '— Não me reconhece? A jovem tinha um leve sotaque áspero, talvez inglês. Angélica pensou na jovem Ester Holby, que viajara com ela na barca de Jack Merwin, depois de ter escapado a um massacre perpetradopelos índios abenakis e em que perdera toda a família, tendosido recolhida por um de seus tios da ilha Martinicus. Mas Ester era muito mais alta e desenvolvida que esta jovem, pequena e vivaz, mas que,sem sua barriga redonda,passaria por uma menina de doze anos. Tinha na cabeça uma bonita touca de renda e um capuz de lã branca. — Verdade? Não me reconhece? Eu,no entanto, estou longe de esquecê-la, você me tirou da água e me carregou como um bebê,no dia do naufrágio.E parece que agora tem dois bebês.E eu também vou ter um! Não é lindo tudoisso? Sua exuberância nãotinha nada de britânico e a palavra “naufrágio” pôs Angélica na pista correta. — Será que... — disse, hesitando, será que você é uma das Moças do Rei cujo navio se chocou contra os rochedos diante de Gouldsboro, há dois anos? — Isso mesmo! Sou eu,a pequena Germana,nãose lembra? Germana Maillotin. É verdade que eu era a caçula, e tão pequena que nunca me chamavam pelonome, e sim diziam: a pequena ou a menina, então isso não lhe chamou a atenção. E depois, com tudo o que acontecia, não é de admirar: o naufrágio,os piratas. Poderia dar-me notícias de minha irmã e da Sra. de Maudribourg,nossa Benfeitora?
  • 6. Angélica, embaraçada,sentiu um frio percorrer-lhe a espinha.Os acontecimentos datavam de quase dois anos, mas era sempre desagradávelpara ela falar a seu respeito. Tomou o braço da jovem. — Venha,minha cara, acompanhe-me até o forte. Pelo que compreendi, você deixou suas companheiras e sua benfeitora,a Sra. De Maudribourg,em Port-Royal, e desde então nãoteve mais notícias delas. — Sim, escondi-me quandooinglês as fezsubir, prisioneiras, em seu navio! Eu estava com medo, estava farta de todas aquelas coisas e, depois, conheci em Gouldsboro um marinheiro que me agradava e com quem queria me casar, como nos propôs o Sr. Governador Paturel. Ela andava enquantofalava e agora, em sua elocução precipitada, despertava um outro sotaque, inconfundível,dos habitantes pobres de Paris. — Fui criada na Pitié. Fui ali admitida desde os quatroanos de idade,com minha irmã mais velha, enquantonossa mãe estava encerrada no Conventodas Mulheres Arrependidas. Fui bem-educada,acredite,senão o Sr. Colbert não nos teria escolhido para povoar o Canadá. Mas eu estava a mais no comboio. A Sra. de Maudribourg sóqueria minha irmã, mas tive de continuar, porque minha irmã era tudo o que eu tinha no mundo, e ela insistiu em nãome deixar para trás. Agora que estou tãofeliz, esqueço todas essas tristezas..., mas gostaria muito de ter notícias dela e de minha pobre irmã. Tinham chegado aoforte, e, antes de levá-la para ver as crianças, Angélica a fez sentar-se na sala de baixo para servir-lhe uma bebida fresca. Pobre náufraga!Do La Licorne e da vida! A Acádia a recolhera. Tinha um rostinho astuto, amável, mas, no comboio de jovens imigrantes, nada devia distingui-la do grupoaflito que cercava a Sra. de Maudribourg,sob o cajado da gorda Petronilha Damourt. Como ela, havia uma dezena de Moças do Rei que faziam parte da escolta da duquesa,rezandoas horas de joelhos ou seguindo-a em grupoe que,dóceis ou aterrorizadas, quase não saíam do anonimato. Angélica tivera bastante dificuldade para se aproximar de algumas e obter suas confidências. Delfina du Rosoy, Maria, a Meiga, que tinha sido assassinada por lhe haver falado, Juliana,a engraçada,que,ao chegar a Gouldsboro, conseguira esquivar-se reunindo-se ao Irmão da Costa, Aristides Beaumarchand, pirata fugitivo que só merecia a forca e que,no entanto, fora o primeiro a contrair com ela legítimas núpcias. — Quer dizer entãoque você nãosoube que a Sra. de Maudribourg morreu? — disse Angélica. A jovenzinha, que escapara a tantos contratempos, sobressaltou-se e pulou. Mas era de alegria. — Morta! Você irá me achar pouco caridosa, Angélica, mas fico contente com isso e... já o esperava. Não fazmuito tempo, alguém da costa leste, que vinha vender seu carvão em Port-Royal, falou disso, mas não ousei acreditar. Agora que é você quem odiz, Angélica, e que posso estar segura,vou poder dormir em paz. Ainda que isso nãoseja um bom sentimento — persignou-se —, mas nunca houve mulher mais malvada que ela no mundo.A mim, que não“servia para nada”,como ela dizia, ela não parava de cutucar, e até, às vezes, me queimava com brasas ardentes do seu aquecedorzinho, nonavio. — Pobres crianças! — disse Angélica, com o coração apertado,como acontecia toda vez que evocava a situação daquelas pobres moças e jovens senhoras entregues a um ser tão demoníaco, com a bênçãode toda as pessoas de bem, eclesiásticos, religiosos, ministros, benfeitores,que se deixaram enganar pelos belos olhos e a devoção da enviada do Padre d'Orgeval. Ficou com lágrimas nos olhos e disse a si mesma que o partoa tornara sensível demais. A pequena Germana,que percebera sua emoção, ficou comovida. — Oh!Angélica, como você é bondosa! Sempre foi um anjo para nós! Como foi belochegar a Gouldsboro e, apesar do medodo naufrágio, vê-la na praia correndo para nós e lançando-se à água para me salvar. E acrescentou, com uma gravidade de órfã prematuramente amadurecida: — A bondade de uma mulher compensava a maldade da outra. Angélica julgou lembrar-se de que,nesse naufrágio,tivera principalmente de tirar para fora da água a enorme Petronilha Damourt. Mas, já que a pequena se alegrava por ter sido salva por ela... — O homem da costa leste dizia também que vocês haviam trazido, o Sr. de Peyrace você, minhas companheiras para Quebec,que era o fim de nossa viagem. Entãopensei que,se minha irmã estivesse em Quebec,poderia ter tentadome dar notícias e procurar saber o que me acontecera. Receandomenos encontrar nossa Benfeitora, vim hoje. E a primeira vez que ouso deixar nosso caro Port-Royal. — Como se chama sua irmã? — Henriqueta.— Pois bem,alegre-se, acontece que posso dar-lhe excelentes notícias dela. — Ela se casou? — Não, ainda não. Mas nãotardará muito, pois tem muitos pretendentes.Mas ela quer fazer sua escolha. Enquantoisso, empregou-se como camareira em casa da Sra. de Beaumont, que está muito contente com seus serviços e com seu génio alegre e impulsivo. Germana olhou-a com espanto. — Quer dizer que ela é alegre, feliz, ativa? — Certamente!Ela tem muito sucesso, ajuda essas senhoras em suas obras, e Quebecinteira elogia seus méritos. — Ah! como estou contente! Minha irmã tinha tantoapego à Sra. de Maudribourg, que eu receava, ao saber de sua morte, que isso acarretasse o fim de minha irmã, que era como que sua escrava. Ela perdia a voz, servindo-a como uma sombra. Era uma verdadeira doença,e nos últimos tempos, parecia não mais me ver. Em vão, supliquei-lhe: “Fique comigo em Port-Royal”. Ela estava pronta a segui-la até o inferno. — Bom, como você vê, quandouma influência negativa cessa, a vida renasce — disse Angélica, que jamais conhecera a sensata e alegre Henriqueta sob esse prisma. Subitamente,faltou-lhe coragem. A visão da louca Ambrosina acabava de atravessar seus pensamentos, como um vampiro batendoas asas de sua grande capa preta forrada de cetim vermelho. Empalideceu. As palavras e considerações da pequena parisiense confirmavam tudoaquilo que acabaram por atribuir à personalidade de Ambrosina, e que algumas vezes receava ter imaginado ou exagerado. E que essa mulher era como um vampiro que enfraquecia suas vítimas e lhes devorava a alma. Fora de sua órbita, elas voltavam à normalidade. A jovem que estava diante dela era ingénua e simples. Falara espontaneamente,e seu julgamento confirmava que nãohouvera nenhum exageronaquele que haviam feitosobre a Duquesa de Maudribourg.
  • 7. Para mudar de conversa, Angélica observou a Germana que ela não parecia ter desposadoseu marinheirode Gouldsboro, porque ficara em Port-Royal, o que nãoa impedia de ter um esposo. A moça riu e disse que,com efeito, como não tivera oportunidade de voltar para o outro lado da baía, casara-se com um escocês, daí o seu sotaque,influenciado pelo de seu marido, descendente dos soldados de Sir Alexandre. A jovem acadiana admirou os bebês,que dormiam em seu quarto, no primeiro andar.Estavam bem guardados pelas filhas da parteira irlandesa, que bordavam e tricotavam à sua cabeceira. — Como são engraçadinhos! — admirou a pequena Germana Maillotin. — A menina é redondinha e o menino, comprido. Eu também gostaria muito de ter gêmeos. As crianças trazem alegria aolar. Não tenhomedo de trabalho. Aprendia fiar a lã, o linho, e a tecer panos para lençóis e camisas. Quando nosso filho nascer, vamos partir com alguns casais jovens para nos estabelecermos numa outra aldeia onde estão precisandode braços, em Grandpré. O estabelecimento em questãotinha já três ou quatroanos de fundação.Um colono de Port-Royal tinha ido para lá secar os pântanos, como já se fizera nos arredores do primeiro estabelecimento. Os setores de território protegidos eram raros na costa norte da península de Acádia. Mas as fortes marés tinham-se acumuladonas enseadas das terras finas que os acadianos, depois de protegê-las com pequenos diques,à maneira holandesa, transformaram em pastos e vergéis. O Sr. de Peyracprometera ajudá-los, sobretudopara abastecer os pioneiros com ferramentas e produtos manufaturados da Europa,pois, era isso principalmente o que faltava aos franceses, e não coragem, disposição para o trabalhoe gosto pelo cultivo da terra e pela criação de animais. — Venha ver-nos em Port-Royal — insistia a Sra. de La Roche-Posay, antes de tornar a embarcar, no dia seguinte, com todo o seu bando. Viera de seu feudocom os numerosos filhos e a governanta, a Sita. Radegunda de Ferjac. O Sr. de la Roche-Posay tinha ficado, pois sempre receava incursões de navios ingleses, e era melhor ter cuidado. A castelã de Port-Royal estava agradecida pelos presentes que lhe foram enviados com os produtos de primeira necessidade,vinho, óleo, chumbo,quinquilharia e tecidos, e que lhes fazia muita falta quando os navios da companhia nãochegavam. Então, nãose fazia ideia das dificuldades que um governador de estabelecimento tinha para manter seu posto nesses países da América. Felizmente, agora, não longe de Port-Royal, estavam estabelecidos simpáticos e solícitos vizinhos. E a vida para os pobres senhores franceses mudou.As meninas tinham levadosuas belas boneca de Salem, uma das maiores alegrias de sua existência de pequenas nobres exiladas. Mas era preciso pensar,dizia sua mãe, em enviar as mais velhas para a França, a um convento, para aperfeiçoar sua educação, pois, apesar dos bons cuidados de Radegunda de Ferjac e do capelão preceptor, que cuidavam de ensinar-lhes latim e boas maneiras, toda essa juventude sofria a influência da selvageria local, só pensava em percorrer a floresta ou andar de barco, pescar truta ou salmão, apanhar peles,visitar os índios para fazer com eles grandes festins, depois de participar de uma caçada, e as moças, quandocrescessem, não encontrariam bons partidos. — Por que não envia suas filhas para as ursulinas de Quebecou para a casa de Margarida Bourgeoys, em Montreal? — perguntou Angélica. A Sra. de la Roche-Posay fez uma careta. — Nós, da Acádia, não nos entendemos muito bem com essa gente já “de cima” — disse ela com um gesto da mão indicando o norte, onde ficava Quebec,capital da Nova França. — Os funcionários dorei, que sóse lembram de nós para cobrar taxas e direitos, supõem que estamos enriquecendo desavergonhadamente e que conspiramos com os ingleses, quandosomos periodicamente arruinados por esses imprudentes inimigos e, além disso, abandonados por nossos compatriotas. As grandes famílias do Canadá nos olham do alto, sob o pretextode que construíram suas casas antes de nós na América do Norte, quandoisso é totalmente falso, pois Samuelde Champlain fundou Port-Royal com o Sr. de Monts muito antes de Quebec.E depois, confesso-lhe que gostaria que minhas filhas tivessem uma formação mais refinada,obtendoum cargo de dama de companhia junto a uma princesa de alta classe, na corte... E mais fácil consegui-lo saindo de um convento renomado de Paris doque daqueles de nossas pobres colónias, que sãotão desprezados pelas pessoas pretensiosas da sociedade, que só têm valor por borboletearem no círculo dorei. Mas, que se há de fazer? Não podemos mudá-lo,e é preciso passar por isso, se quisermos chegar a Versalhes. Parece que seus filhos e o jovem Castel-Morgeat, apesar de ter vindoda Nova França, estão nesse momento no serviço de armas como cortesãos. Você tem notícias deles? Sim, tivera, e o Gouldsboro, que estava sendo esperado,certamente traria notícias. — Volte a visitar-nos, cara Sra. de Peyrac — suplicou a Sra.de la Roche-Posay. — Todos nós guardamos uma lembrança muito favorável de sua estada aqui, no último verão, em que veio com aquela grande dama benfeitora,que era um pouco estranha,mas muito bela e culta também, a Sra. de Maudribourg,não é? Ela deixou suas Moças doRei em minhas mãos, sem nenhuma cerimônia. Não nos queixemos! Com isso, ganhamos três noivas para os jovens celibatários de nossa comunidade como essa moça, Germana,que desejava pedir-lhe notícias de sua irmã. Eram todas moças de qualidade.— A mulher continuou: — Houve muitos comentários em Quebecporque elas não foram para lá? Esse contratempo se deu totalmente independente de minha vontade.Elas se escondiam para nãoir embora. E hoje, achoque estão felizes conosco, e gostamos muito delas. Enfim, esperoque nãotenhamos problemas com a administração “lá de cima”. Tudo é tão complicado, e os correios tão lentos! Os aborrecimentos nos caem na cabeça, quandojá tínhamos até esquecidohá muito o que os provocara, e é um nunca acabar de processos e arrazoados! Ela suspirava,depois convinha em que preferia esse Novo Mundo,que gostava dessa vida e que tinha sido muito feliz com seu marido em seu forte de madeira, dominandoa vasta extensãode água da baía de Port-Royal, que se ornamentava com uma tão suave cor malva, ao alvorecer... quandonãoera invadida pelo nevoeiro. — Prometa-me que voltará para uma temporada em nossos domínios — insistiu —, com seus filhos, sua criadagem, sua guarda.E também seu esposo, se possível. Pois só o vemos precipitadamente, quandonos vem ajudar a resolver um litígio com os ingleses ou os piratas holandeses ou outros, sempre em pé de guerra, jamais em paz. Mas nãoperco as esperanças de chegarmos um dia a isso. Prometa-me que voltará.
  • 8. Angélica prometeu e tornou a prometer, solenemente, enquantoperguntava a simesma se teria um dia oportunidade de ir navegar do outro lado da baía, por simples prazer. Mas era sincera ao afirmar que gostaria de rever Port-Royal, um lugar encantador, com suas casas de madeira, de telhados de ripas ou de colmo, suas duas igrejas, seu moinho de rodas, suas grandes campinas ao redor das quais se elevava o mugido dos rebanhos. Jamais culpou a inocente aldeia acadiana,guarnecida de cerejeiras e de bosquezinhos de tremoços gigantes, pelas agruras que ali atravessara. CAPITULO IV As esperanças do escravo Siriki — Os cordeiros e os lobos Colin Paturelmandara-lhe um recadoatravés de seu escrevente, Marcial Berne. O rapaz, quandonãoestava a vagabundear pelomar, servia-lhe de secretário. O governador precisava pedir-lhe conselho para estatuir sobre a sorte de novos forasteiros. O antigo pirata, atrás de uma enorme escrivaninha de carvalho coberta de maços de papéis, sentado numa poltrona de espaldar alto, tipo cátedra de bispo, destinada a impressionar os litigantes ou reivindicadores que ele recebia em determinadas horas, estudava e conferia com cuidado a lista de nomes. Tendo-a convidado a sentar-se,pediu-lhe que o desculpasse por tê-la incomodado. Sem levar em conta a ausência do Sr. de Peyrac, que inspecionava os canteiros dos estaleiros, ele achava que a opinião de uma mulher o ajudaria a compreender melhor uma decisão que tinha de tomar em relação a pessoas cuja mentalidade e cujas reações não eram muito simples e que não lhe era fácil adivinhar. Tratava-se do grupode valões e de valdenses, de que Natanaelde Rambourg fazia parte,que pedira aos huguenotes de la Rochelle, encontrados em Salem, que lhes dessem oportunidade de se encontrar com seus compatriotas franceses. Mas, chegandoa Gouldsboro, ficaram indignados por ver que ali se encontravam católicos, igrejas, cruzes, que diziam missa, e que se arriscavam a encontrar padres capelães e até jesuítas. GabrielBerne, que,na ausência de Manigault e de Mercelot, os recebia, esquecendo-se de que fora um dos que mais se insurgira contra isso, dissera-lhes com arrogância: — Em Gouldsboro é assim! Nós, huguenotes de La Rochelle, que nos equiparamos a vocês na observância da religião, acomodamo-nos a isso. Façam como nós ou voltem para o local de onde vieram! Então, foram queixar-se ao governador. Iriam realmente impor-lhes ouvir aqueles sinos, ver as procissões e as bandeiras? O olhar azul de Colin Paturelobservara-os, perplexo.Era uma mistura curiosa. Ele, que vira todo tipo de fórmulas entre os filhos de Cristo, sentia dificuldade em situá-los. Talvez ela soubesse indicar-lhe de onde eles vinham e o que queriam. Angélica disse-lhe que,à exceção de Natanael,que era amigo de seu filho mais velho e pertencia à Religião Reformada oficial, isto é, aquela nascida depois do Edito de Nantes, nãoestava mais bem informada doque ele. O denominador comum com a populaçãode Gouldsboro era que eles eram de origem e de língua francesas. Segundoo que Lorde Cranmer lhe explicara, os valões eram originários dos primeiros reformados calvinistas donorte da França e de Lille, Roubaix, Arras, que fugiram da Inquisição espanhola quando esta se instalara em Flandres, após sua cessão à coroa da Espanha. Refugiados inicialmente nos Países Baixos, na região vala, depois nas Províncias Unidas, em Leyden entre outras, Delft e Amsterdam, tinham se misturado aos dissenters ingleses, exilados como eles, de modo que se encontravam em grande númeroentre os peregrinos do Mayflower. E fora, pois, um valão, PedroMinuit, quem comprara para os neerlandeses oterreno da Nova Amsterdam, que se tornou Nova York. Quantoos valdeuses, descendentes dos “pobres de Lyon”, uma seita cristã fundada noséculoXII por um tal João Valdo, um rebelde que censurava a Igreja por suas riquezas, antes mesmo dos cátaros do Languedoc, era a primeira vez que ela os via. Julgava-os exterminado há muito tempo, pois tinham sido impiedosamente perseguidos até o século XVI. De fato, quandoveio a Reforma, misturaram-se a ela, muitos deles deixaram seu refúgioalpino, onde estavam enterrados os últimos sobreviventes. Desde então, tinham seguido as vicissitudes dos calvinistas franceses, sofrendotréguas, perseguições e exílio. O que os caracterizava é que eram, mais doque os outros, voltados para si mesmos, suas tradições e sua língua francesa,porque, estavam habituados a viver entre estrangeiros. Depois de alguma reflexão, Angélica sugeriu que fossem instalados no acampamentoChamplain,onde havia toda uma colónia inglesa, refugiados da Nova Inglaterra-, entre outros. Habituados a ouvir falar inglês à sua volta, talvez se sentissem menos deslocados e mais distantes dos sinos “papistas”.Colin sorriu. Era exatamente isso o que esperava dela.Encontrar para os recém-chegados um modus vivendi que os ajudasse a pacientar, nodesconforto de suas andanças.Escreveu um bilhete para ser levado a Gabriel Berne. Desde sua entrada na sala, Angélica percebeu um detalhe novo, inabitual, e procurava-o com os olhos. Essa sala, que era a de reuniãodo Conde de Peyrac e às vezes a dos banquetes nos primeiros tempos de sua instalação na costa, a mesma sala onde os dois homens se enfrentaram,tornara-se a casa comum e o cartório dolugar. E também sala de justiça e gabinete do governador. Foi ao ver Colin Paturel mergulhar sua pena notinteiro e lançar um olhar para a lista de nomes que copiava, que Angélica soube o que a intrigava, como uma inovação que nunca lhe teria ocorrido ao espírito. — Oh!Colin... — exclamou. — Você sabe ler?... Sabe escrever?... — Aprendia fazê-lo! — disse ele, erguendoos olhos de seu trabalho, e havia como que um ingénuo orgulhoem seu olhar por fazer-lhe essa surpresa.Ficaria mal a um governador nãopoder decifrar e julgar por si mesmo todos os papéis, listas dos navios, petições e
  • 9. contratos que lhe punham sob os olhos e que lhe pediam que assinasse e julgasse! — O pastor Beaucaire teve a paciência de me ensinar, e verificou-se que eu nãotinha uma cachola tão dura para aprender.Até então, eu não tivera muita necessidade de ler e escrever. Nos navios, onde eu era o meu próprio mestre, sempre tinha a bordo um imediato, ou o capelão ou o cirurgião, para cuidar da escrita. Devo isso a Gouldsboro. Antes disso, tendo deixadoainda grumete o Havre-de-Grâce, desde os quatorze anos, onde encontraria oportunidade, tempo, gosto e possibilidade de aprender a ler: nas galés de Mulay Ismael? Vagandopelo mar da China e por todos os azimutes? No início, o jovem Marcial Berne me ajudou, mas com o aumentode minha tarefa, agora ele serve de secretário para classificar os dossiês. Ele vai para o colégio, e preciso encontrar alguém capazde substituí-lo. Angélica pensou em Natanaelde Rambourg. O cargo lhe conviria. Explicou a Colin que havia “alguma coisa” entre o jovem nobre exilado e a pequena Severina Berne.Ele seria estimulado a ficar, e isso lhes permitiria conheceram-se melhor. Uma longa e delgada silhueta aparecia na soleira e se esgueirava para o interior. Não era Natanael, mas o velhonegro Siriki, o serviçal dos Manigault.Apertava contra o peito, como uma coisa preciosa, um pacote. Era, parecia, uma peça de casemira fina, de um belo vermelho-amaranto, que Angélica e o Sr. de Peyraclhe trouxeram de sua viagem, a fim de que pudesse mandar fazer uma nova libré. Pois aquela que estava vestindo quandodeixara La Rochelle, e que ele sentiria nãopoder vestir para servir seus amos à mesa, começava a esgarçar-se. Ao presente juntaram-se dois galões de fio de ouro, para os bordados dos punhos nas extremidades de uma renda da largura de uma mão. Ele já a amarrara em volta do pescoço, formandoum peitinho. Angélica aconselhou-o a pedir ajuda às filhas da parteira irlandesa,peritas em trabalhos de costura. Entretanto, era evidente que não tinha vindo ao seu encontro na casa do Sr. Paturelapenas para expressar seu reconhecimento. Sentou-se na ponta de uma cadeira, com o pacote sobre os joelhos. Seu olhar ia de um para outro com ansiedade,mas mantinha o pescoço muito ereto, com muita dignidade.Era, em toda Gouldsboro, a personagem que apresentava maior distinção e o Porte mais nobre. — Fale, meu caro Siriki — encorajou-o Angélica. — Você sabe que é com a maior alegria que escutaremos e acederemos a seu pedido, se tiver algum a nos fazer. Siriki meneou a cabeça. Não duvidava de sua bondade.Mas teve ainda de engolir a saliva várias vezes e verificar a apresentaçãode seu jabôde renda, antes de se decidir a falar. Angélica sabia que ele nãoiria direto ao assunto, que, provavelmente, começaria pelo incidente menos relacionado ao que tinha- na mente. Falou, portanto, primeiro de seu jovem mestre, Jeremias Manigault,que atingia a idade de onze anos e que os pais pensavam em mandar estudar com os novos ingleses, no colégio de Harvard. Depois, fez alusãoà triste situação, que lhe era infinitamente penosa, que afastava do lar dos Manigault uma criança de três anos, Carlos Henrique, doqualpodia se considerar, ele, Siriki, avô adotivo, pois criara, por assim dizer, sua mãe, a pequena Jenny,assim como os outros filhos dos Manigault. Essa série de acontecimentos lhe havia inspirada o desejo — baixou as pálpebras a fim de reunir coragem antes de se entregar a uma talconfissão — de garantir para si, um pobre escravo, uma descendência,e esse sonho, que o atormentava havia já algum tempo, subitamente tomara corpo quando avistara, entre os passageiros que desembarcavam doArc-en-Ciel, a grande mulher negra que oSr. de Peyraccomprara em Rhode Island. Alguma coisa nele, surda e terrível, gritara: “Ela é de sua raça. Ela é de sua terra natal”.Abriu novamente os olhos e fixou Colin Paturel: — Notei que o senhor conversava com ela e conhecia o idioma de sua tribo. — Com efeito. Era a língua da grande sultana Leila, a primeira mulher de Mulay Ismael, sultão do reino do Marrocos, e desse país vinha também o Grande EunucoOsman Ferradji. Os dois eram oriundos dessas regiões de Sahel, Sudão, Somália, no centro da África, da orla da floresta ao sul e do desertoao norte. Os povos de lá são nômades, criadores de búfalos selvagens, e muito altos. — É isso! Não estou certo — murmurou Siriki. — Presteiatenção em suas palavras, mas nenhuma reminiscência me veio à cabeça. Eu era muito moço quandoos mercadores árabes, vindos peloNilo, me capturaram.De mercadoem mercado, chegueia La Rochelle, e ali o Sr. Manigault me comprou, de um lote que devia embarcar para as índias Ocidentais. Em todos os lugares me consideraram negro demais e muito alto para a minha idade e sem nenhuma serventia.Estava doente.Amo Manigault teve piedade de mim. Deus o abençoe!' Angélica não se surpreendia por ouvir o “velho” Siriki falar de si mesmo como de um jovem escravo comprado por um mercador que, com cinquenta anos, parecia mais jovem doque ele. Mas já observara que os negros, desde a puberdade,parecem logo adultos de trinta anos e, também subitamente,ficam de cabelos brancos, antes de atingirem os quarenta anos. Siriki, e Kuassi-Ba, que havia muito tempo se consideravam “antigos”,não tinham provavelmente passado dessa idade. — Eu me informei — continuava Siriki. — A jovem negra “marrona” que a senhora comprou também vai logo pôr no mundouma criança, cujo pai é esse bantoafricano da floresta que a acompanha. Ela nasceu na Martinica. Não conheço toda a sua história, pois ela se cala, e o outro, o bantoda floresta, não conhece senãoa linguagem dos grandes macacos. Colin Paturelo interrompeu. — Está enganado,Siriki. Ela fala o swahili, que é uma das línguas veiculares da África, das costas do Atlântico às dooceano Índico. — Perdão,não quis insultar um irmão de infortúnio. E que me importam essas línguas africanas que nãocompreendo? O que entendié que seu filho logo vai nascer em Gouldsboro. Então, meu sonho se tornou cada vez mais próximo. Eu lhes dizia de minha tristeza de ver ir-se meu pequenoamoJeremias. Um lar sem crianças engendra a tristeza. A pobre Sara não resistirá, eu a conheço. Falava sempre,com uma indulgência protetora, de Sara Manigault, a mãe, considerada uma mulher autoritária e que maltratava as pessoas que a cercavam. Ele, porém, era o único que sabia acalmá-la quandose abandonava a crises de melancolia, pensandoem sua bela casa de La Rochelle, que tivera de deixar precipitadamente certa manhã, e no aparelhode faiança de Bernard Palissy, que tivera de abandonar em sua fuga pela charneca, pisoteado e quebradopelos cavalos dos dragões do rei, lançados em sua perseguição. Todas essas preocupações com a família, que ele assumia, persuadiam-nocada vez mais da bem-vinda chegada de seu sonho.
  • 10. — O que compreendi — explicava — é que nada impedia que,em Gouldsboro, às nossas crianças pequenas que correm pela praia, às nossas crianças da cor branca da lua, às nossas crianças índias cor de ouro, viessem se misturar criancinhas cor da noite, que poderiam ser as minhas. Tendoafinal dito tudosobre seu grande sonho, ficou em silêncio. Depois, retomando seu arrazoado, pedia humildemente a Colin Paturelque falasse por ele com a “nobre dama doSahel”,caso ela estivesse livre para escolher seu destino. Pois ignorava com que intenção o Sr. de Peyrac fizera sua aquisição. Olhou para Angélica com esperança.Mas ela ignorava-o também.O que dissera Severina a propósito de Kuassi-Ba eram apenas suposições, e,se Colin sabia de alguma coisa, não deixou transparecer nada. Siriki, sentindo que seu caso estava em mãos amigáveis, retirou-se, radiante.Depois que ele saiu, Colin reconheceu nãoestar bem a par dessa aquisição de escravos. Angélica, por diversas razões, não tivera tempode interrogar seu marido. Angélica quis se incumbir de levar a missiva para Gabriel Berne,em sua casa. Isso lhe daria o ensejo de passar calmamente alguns momentos com seus amigos. Peixes dignos das praias evangélicas eram despejados e separados nos tablados do porto, e vendidos em leilão, e as donas de casa tinham muito trabalhopara preparar as reservas de inverno, que mudariam um pouco quandoa tempestade ou o gelo tornassem perigosa a saída dos barcos aomar. Abigail, ajudada por Severina, colocava filés de cavala e de arenque em jarras cheias de água e vinagre, fortemente condimentada,pois, felizmente, em Gouldsboro as especiarias nãofaltavam, como nos outros estabelecimentos franceses. Depois de cozidos em fogobaixo durante alguns minutos e preparados com bem pouco sal, eram escorridos e conservados em covas feitas na própria terra e não caiadas, no mesmo lugar onde também se guardavam tubérculos e raízes, como cenouras, nabos, batatas. Depois de ter falado da situação dos valões, dos valdenses e dá passagem de Natanael de Rambourg, o que deixou Severina sonhadora, Angélica despediu-se,pois o tempo passava e ainda tinha de fazer outras visitas. — Vou avisar Marcial que já se arranjou alguém para sucedê-lo nas escritas do Sr. Paturel — disse Abigail, acompanhando-a até a porta. Ela terminou um pouco depressa sua frase,como se o olhar que lançara pela abertura ensolarada da porta lhe houvesse reveladoalguma coisa ou alguém cuja visão a surpreendesse. Olhandopor sua vez naquela direção,Angélica viu duas silhuetas escuras de penitentes, Ruth e Noémia, acompanhadas de Agar, que subiam rumoà casa dos Berne. Perguntou a si mesma por que tinham tornadoa vestir suas capas alemãs. Ficou a porta, esperando-as.Sentiu-se penalizada, se nãosurpresa, com o movimento de reticência que percebera em Abigail, ao vê-las. Existia, noentanto, a seus olhos, uma semelhança fraterna entre Abigail e as magas quacres de Salem: a dignidade e o pudor contidos, as mesmas maneiras suaves e comedidas de se deslocar sem agitação, de manter a cabeça bem levantada,modestas mas nãosem graça, segundoo aspecto recomendadopela religião calvinista a seus adeptos dosexo feminino, que aumentavam o encantode sua beleza loura, um pouco virginal. Como Abigail, francesa de La Rochelle, Ruth e Noémia, inglesas doMassachusetts, tinham esse meio sorriso cheio de modéstia e de bondade acolhedora. Todavia, Angélica não se iludia sobre a desconfiança que elas inspiravam. Olhando-as vir em sua direção, perguntava-se a que ela se devia e nãoencontrava explicação para essa rejeição que mesmo as melhores pessoas lhes opunham,não a elas, pobres inocentes, mas aomelancólico instinto do ser abatido, que vê na beleza, na iluminação do coração, na imagem demasiado perfeita da serenidade e da felicidade um reflexodo Paraíso perdidoe que renega tantomais quanto o inveja. Aquele também que,em sua preguiça de pensamentoe em seu modo de ser expulsodo rebanho,dirige suas forças de ódio contra os que, por suas palavras ou por seu comportamento, se diferenciam da lei comum, ao abrigo da qualele se refugiou. Que mais se podia censurar-lhes, a elas, cujas mãos abertas e o olhar luminoso só distribuíam caridade? Ouviu,na parte de trás, os passos de Severina, que procurava deixar a casa pelos fundos. Ela tampouco gostava delas. Mas Abigail, sempre virtuosa, permaneceu ao lado delas e respondeu em inglês, com sua graça habitual, à sua saudação. Pediu-lhes que entrassem e se sentassem, colocou uma bilha de água e bebidas sobre a mesa, mas as duas moças nada aceitaram. E a própria Angélica permaneceu de pé,assim como Abigail. Só Agar se ajoelhara na soleira, apoiada ao batente,olhando ora para o horizonte, ora para o interior da casa, onde não parecia preocupada em encontrar senão o olhar dogato, sentadocompungidamente nocanto de um guarda-louça e piscando intermitentemente em sua direção. Sem uma palavra,Ruth Summers estendeu a Angélica um envelope de pergaminhocujo lacre de cera estava partido. As palavras em inglês dessa missiva pareceram-lhe muito herméticas, e teve de pedir-lhes,por diversas vezes, explicações, pois se tratava de uma carta do tribunalde Salem, e, em qualquer língua, nãoexiste nada mais absconso que os termos jurídicos empregados num documento oficial de intimação ou de convocação, que emanam de um supremo tribunalreunidopara decidir a sorte de simples indivíduos que,com muita frequência,malsabem ler ou falar... Não era o caso de Ruth e Noémia. Elas eram eruditas. Puderam explicar que essas palavras incongruentes significavam que,se em oito dias não se apresentassem diante do tribunalda cidade, capital doEstado do Massachusetts,suas “casas e bens” seriam queimados, e uma dezena de concidadãos, escolhidos entre seus conhecidos amigos quacres ou outros, seriam convocados, julgados e condenados,em seu lugar, ao degredoou... ao enforcamento. — Mas que bicho os mordeu? — exclamou Angélica. — Do que mais lhes podem acusar e por que crime as condenam? Ruth sacudiu a cabeça, sem emoção. — Eu sei o que se esconde por trás disso. Um dos marinheiros do barco de pesca que me trouxe esta carta contou- me que o velho Sr. SamuelWexter está muito mal. Lady Cranmer teve muito trabalhopara obter dos juízes este documento, a fim de que voltássemos o mais rápidopossível para salvá-lo. Assim vão e vêm os sentimentos dos homens.No infortúnio, Salem, atormentada pelo medo da morte, e as secretas ternuras que os mais rigoristas nãopodiam deixar de dedicar a seus pais ou filhos, Salem reclamava suas magas quacres. Salem não podia dispensá-las.Mas isso não passava de remissão. Angélica foi tomada pela angústia. Não apenas ao pensar que essas duas maravilhosas criaturas iam desaparecer de seu horizonte, mas ao pensar na sorte que,cedo ou tarde, sofreriam.
  • 11. Lá em Salem, naquela Nova Inglaterra de alma tão gelada quantosuas margens, de coração tão árido quantosua terra, paralisada por um medo constante do infernoe pelotemor a um Deus onipotente e sem perdão, dirigida por essa ramo docristianismo atormentado, podadoe rasgadoaté a sensibilidade da madeira descascada, o congregacionalismo, esse credo nascido de Cristo, cuja mensagem de amor ela esquecia cada dia um pouco mais entre aqueles homens de cérebro obsedadopor vosões de chamas e que se atormentavam incessantemente com os Mistérios da Palavra, aqueles eruditos e pastores que trabalhavam pela purificaçãoda Igreja,da qualforam encarregados pelo céu e pelo povo, aqueles ministros investidos de poderes desmedidos e que zelavam pelos interesses divinos, com uma consciência ainda mais feroz e minuciosa doque a que utilizavam em seus interesses monetários, o que os tornava incorruptíveis e deixava entrever muita coisa sobre suas competências e seu furor, entre essas “terríveis pessoas de bem”,elas estavam perdidas.Se as manifestações da intolerância puritana tinham-se apagadoum pouco de sua memória, voltavam-lhes naquele momento. Não podia esquecer que a sentia fortemente,quandoas escutava falar de suas vidas. Em Salem, não podiam sair de sua cabana dofundodos bosques sem se expor todas as vezes às piores humilhações, às piores sevícias, dentre as quais eram comuns os insultos, escarros; lapidações, prisão, exposição ao pelourinho. A acumulação das acusações contra elas as levaria um dia ao pé do cadafalso ou a serem amarradas a uma cadeira na água do lago, onde seriam mergulhadas seguidamente até que a água,com sua morte, decidisse que não eram culpadas, nem possuídas. Acusavam-nas ali de, aopassar na frente da cerca de uma casa, fazer estragar a carne na salgadeira, o queijo noescorredor, de fazer secar no pé as abóboras do jardim, enegrecer o linho que estava fervendo na lixívia, embaciar os espelhos... Se não as viam nodia em que essas calamidades aconteciam, era porque tinham passado a noite montadas em sua vassoura, quandoiam para o sabá. A realidade das ameaças que as espreitavam não deixava dúvida.Não era uma brincadeira.Sua segurança de cada dia naquele lugar se mantinha por milagre. Loucos, empurrados “peloDiabo”, podiam se lançar sobre elas e violentá-las, mulheres ciumentas podiam, em nome da moral, assaltá-las em plena praça do mercado e desfigurá-las com unhadas ou com vinagre fervente. Havia períodos de clemência, como o “que acabavam de atravessar, em que outros acontecimentos tinham desviadoos espíritos inquietos de sua maníaca vigilância, mas viria o inverno, que retarda os trabalhos dos campos e os tráficos nomar, levando o homem a se voltar para si mesmo e para seus santos livros, meditações alimentadas pelos sermões cotidianos e o uivar das tempestades do Atlântico, o assobiar das rajadas de neve em volta da casa ou da Meeting House, povoada de seres transidos de frio e de terror sagrado. — Ruth — disse, em voz alta. — Eu lhes suplico, não voltem para Salem. Esta carta é uma armadilha. Quandovocês subiam a bordo do Arc-en-Ciel, surpreendia expressãode muitos rostos entre a multidão que nos cercava e fiqueiapavorada. A mímica das altas personagens que foram ao porto e que davam ordens aos milicianos de sua escolta para prendê-las nãome passou despercebida. Felizmente, os soldados não ousaram intervir, o que não poderiam fazer sem provocar uma confusãocom os mercenários, que,por diversas razões, procuraram honrar e não insultar gravemente,impediu-os de retê-las à força em terra, graças sobretudoà presença de nossos homens da tripulação, numerosos e bem-armados. Nossos alabardeiros espanhóis as cercavam, e fiquem sabendoque nãofoi por acaso que meu esposo os dispôs dessa forma. — Angélica continuou: — Se voltarem para lá, nunca mais poderão escapar desses lugares onde a perseguição contra vocês não cessará daí em diante. As curas que vocês operam não serão suficientes para que um dia as consciências se abram e para que lhes façam justiça e as deixem em paz. Seus poderes benéficos as preservaram até aqui,mas podem também voltar-se contra vocês, se deliberarem que eles procedem de Lúcifer. E é menos o bem vocês fazem que os encoraja a serem pacientes com vocês do que a certeza de que,enquantoem Salem, não poderãoescapar ao castigo. Este é o motivo pelo qualquerem que voltem. Não toleram a ideia de que a mãode sua justiça não possa mais abater-se sobre vocês, que pese em sua consciência a censura divina por ter deixadofugir “criaturas do Diabo”, como as designam, sem terem-nas feito pagar por seus crimes. Não é uma loucura que se possa racionalizar, pois ela” é considerada de direito e de razão e está profundamente arraigada neles.— Ela continuou: — O velho SamuelWexter pode hoje permitir-se uma serena filosofia, mas, durante os anos em que era responsávelpelo governo da cidade, vocês sabem, como eu,que mandou enforcar muitos “pecadores” por crimes que nãotinham nenhuma relação com os de direito comum: furtos, crimes ou outra violência contra a sociedade, mas por erros como a inobservância dos ofícios, atitudes, reflexões incrédulas ou que contrariavam seu poder, e que bastavam para que uma sentença de morte fosse pronunciada.Roger William, que fundou oEstadode Rhode Island, por que ele o abrigou a fugir em pleno inverno para a floresta, senão porque sua vida estava ameaçada? Ele, que era um dos pastores mais ciosos de Salem, cujos sermões atraíam multidões! Mas ele reclamava mais liberdade para as consciências, leis religiosas menos severas, em suma, mais caridade cristã, para o pobre povo que perde a cabeça. Digam-me, estou enganada? Julgueimalo espírito da Nova Inglaterra, sobretudoo de Boston ou de Salem, tendoJohn Wintrop rompido com Salem e fundadoBoston apenas para proclamar leis ainda mais intolerantes e rígidas? Digam-me: estou enganada? Elas sacudiram a cabeça negativamente. — Creiam-me,sempre haverá alguém em seu governo que,no temor de que os mandamentos não sejam respeitados com suficiente rigor, na obsessão de que um relaxamentoou uma indulgência aparentes induziam ao mal as almas fracas, que,percebendosubitamente um momento de graça, como o que conhecemos nessa estada em Salem, se inquietará,lembrará que se deve ficar sempre atentopara servir a Deus,que as desgraças que se abatem sobre os justos, como essas guerras indígenas e esses massacres de inocentes nas fronteiras, se devem à negligência culposa, ao esquecimentodos preceitos, e que,para apaziguar a cólera do Senhor, é preciso imolar aqueles pelos quais o escândalo acontece, fazer uma retratação pública, provandopor condenações que o torpor perigoso cessou; haverá sempre alguém que quererá ser mais exigente que ooutro e que fará um sobre lanço, até que a loucura se apodere deles, pois é uma fatalidade que se abate sobre todo governo coercitivo nãover outra saída para obter obediência a nãoser a perseguição ao bode expiatório. O braço nãopode mais parar de golpear, e os juízes, de condenar. — Depois de uma pausa, ela continuou: — Oh!conheço-os muito bem! Parece que os estou ouvindo! Eles têm preciosas qualidades,é verdade,de inteligência, de fé e de coragem, e pela estima que eu tinha por eles, pude adormecer sua desconfiança, apesar de ser mulher.Mas eles despertam, e sua cólera é ainda maior contra vocês. Suplico-lhes, nãopartam.
  • 12. Parou, meio sem fôlego, dizendo-se que essa forma de discurso, cara aos ingleses puritanos e aos reformados em geral, parecia influir sobre elas. Ruth e Noémia escutavam-na numa bela imobilidade de fiéis durante um sermão, e todos, até a menina em seu berço, lhe prestavam a atençãoque inspira uma voz patética e convincente. Mas via nos lábios das duas interlocutoras um sorriso resignado, um pouco desiludido, que tinham diante de seu ardor em reclamar justiça e liberdade para elas, e essa expressãode dúvida lançou-a novamente em seu desejo de encorajá-las a ficar e, assim, salvar suas vidas. — Suplico-lhes, não voltem. Receio por vocês. Permaneçam aquiem Gouldsboro, onde pensavam que a pequena Agar,se quisesse, estaria em mais segurança. E puderam constatar que tinham razão. As mais diversas pessoas, de nações e de religiões diferentes,se organizaram para viver aquiem bom entendimento.Ninguém é perfeito, mas, sob a jurisdição doSr. Paturel, todo habitante dolugar pode receber sua proteção. Ninguém pode ameaçá-las de morte, nem de maus-tratos, e menos ainda de prisão arbitrária, e se as pessoas más, os causadores de distúrbios, os ladrões, os libertinos ou os que usam os punhos ou armas brancas, se veem repreendidos,punidos ou expulsos, é sempre com justiça, e pela paz e a defesa dos cidadãos do lugar.Vocês têm compatriotas e correligionários, a maior parte refugiados, os que saíram ilesos de ataques indígenas e que não puderam voltar para suas aldeias. Estão agrupados num local tranquilo chamadoacampamentoChamplain. Ali existe uma escola, uma casa de orações. Ali encontrarão, ou lhes construirão, uma casa, e assim poderãozelar por Agar, colocando-a ao abrigo dos perigos que a espreitam através de vocês. Falava com a esperança de obter sua adesão, mas via o mesmo doce sorriso paciente em seus lábios e compreendia que elas recusariam. Ruth olhou-a com ternura. — Como lhe agradecer, minha irmã? Graças a você, graças a sua generosidade sem limites, pudemos, durante algumas semanas, viver no esquecimentode nossa maldição, crendo que éramos, também nós, livres e felizes e amadas entre os nossos, criaturas humanas entre seus irmãos, à sua imagem, criadas como eles por Deus conforme Sua imagem... Mas, por mais constante que seja seu coração, por mais inabalávele generosa que seja a proteção das armas de seu esposo, por maior que seja o poder que você tenha recebido como apanágioe reter as feras prontas para saltar, e de acalmar por sua simples presença, seu simples olhar, seus humores belicosos, vingativos ou sectários, você o disse: um dia, eles despertam, e não poderá nos preservar para sempre,aqui... ou em outra parte — disse ela vendo que Angélica estava prestes a gritar: “Entãovenham conosco até Wapassau” — Não, isso não mudaria nada,você sabe disso. Depois de um momento de silêncio, acrescentou: — Você é uma mulher única... e esta é sua fraqueza.Pois ainda nãochegou o tempoem que haverá outras mulheres como você sobre a terra. Você é única. Como uma estrela. E por isso todo mundoolha para você. Mas pode-se também ficar assustadocom a direção que a estrela indica. Mas o Amor a protege... ficar aqui,diz, nesse estabelecimento que ele e você fundaram? Integrar-se numa dessas comunidades que se esforçam por viver em bom entendimentoe o conseguem? Agar, ela, sim, poderia fazê-lo. O Sr. Paturelsaberia a quem confiá-la. Não duvidoque haja em Gouldsboro famílias ou pessoas de bom coração, com espírito cristão, que,ainda que ela seja uma pobre “cigana”,estejam dispostas a acolhê-la. Agar, sim, mas nãonós. Tinham,portanto, sentido crescer a hostilidade à sua volta. — Pelo menos, Ruth, aproveitem a oportunidade que lhes foi dada de sair ao mar para pedir asilo em outras colónias, aos governos mais liberais. Se voltarem a Salem, essa oportunidade talvez não se renove, e, sozinhas, não poderãofugir pela floresta para alcançar a Providence's Plantation em Rhode Island ou New Haven, no Connecticut, que foram fundadas comoprotesto contra o rigorismo do Massachusetts... — Que governo poderia nos acolher, fora de sua proteção mágica? — disse Ruth com um ternosorriso de ironia. — Ruth e Noémia, escutem-me, talvez exista uma esperança,se tiverem paciência. Durante nossa viagem, encontramos, creio que em Providence ou em Nova York, um jovem quacre de alta posição, o filhodo Almirante Penn.Parece que,para o almirante, que conquistou a Jamaica para a coroa da Inglaterra, era desastroso ter um filho que tivera a loucura de se tornar quacre.Mas este não era destituído de audácia, queria fundar uma colónia, um refúgio para os quacres.Seu pai apoiou-o em seus projetos, e o rei, em lembrança aos serviços prestados pelo pai, vai conceder a William Penn uma carta, a fim de criar um território onde todos os quacres possam ficar em casa e não se arriscar a nada.A realização desse projeto nãotardará. Tentem reunir-se ao grupodeles. — E depois, eles também nos expulsarão. Porque nós amamos e curamos por um poder que se pode supor vindo de Satã! Que governo, diga-me, pode, em nossos dias, absolver esses pecados? E, no entanto, trata-se apenas de Amor e de Caridade. Ruth Summers colocou os braços em volta dos ombros de Noémia Shiperhall. — Às vezes, quandopensonesta cara criatura que me foiconfiada, quandoconsidero a sorte de Agar, desta pobre menina selvagem abandonada,que sótem para defendê-la duas mulheres réprobas,elas mesmas em perigoconstante, o temor das infelicidades que as espreitam me acabrunha.Não creia, minha irmã, que eu seja insensível a seus apelos à prudência e que eu negue que suas advertências tenham fundamento.A cada dia, a cada noite, os mesmos terrores me torturam, e sinto uma terrível vontade, para protegê- las, de tornar-me “como as outras”,de me cobrir novamente com as vestes comuns, de recolocar meu pescoço sob a canga da lei que “eles” exigem, ainda que seja apenas para apaziguar sua terrível cólera de homens justos ou para acalmar o terror imbecil de suas ovelhas, que eles doutrinam e que se mantêm prontas, a um único sinal desses temíveis pastores, a se atirar sobre nós e nos despedaçar, às três. Lembro-me então de que esta sempre foi minha pior tentaçãoe meu único pecadoverdadeiro, e que devoexpiá-lo. Dias e dias, durante anos, eu recusava,recusava o caminho indicado. Tinha-lhe horror. Seu olhar pousou com doçura na jovem mulher a seu lado. — Ela, Noémia, sempre suportou sem um murmúrio a sorte que lhe era destinada pelocéu. Os dons curativos saíam-lhe das mãos e do olhar, e ela os distribuía. Desde os sete anos de idade, era fustigada em praça pública.Era desonrada,batida,sequestrada,escarnecida, submetida a todo tipo de tormento para que oDiabo saísse dela. Mas não via o mal, nem no que fazia, nem no que eles lhe faziam. Eu, de minha parte, me revoltei. O medode ser expulsa dorebanhoé um medoanimal, primitivo, nofundode cada um de nós, desde os primeiros tempos. Ruth Summers baixou as pálpebras e disse, num tom sofrido: — Poderia ter curado minha mãe, eu sei. Sentia forças em mim. Poderia salvar minha mãe quandoa levaram, ensanguentada,depois doflagelo. Poderia tê-la ajudadoa lutar contra sua febre,
  • 13. ajudar sua própria natureza a triunfar sobre a putrefaçãoque lhe corroía as feridas. Mas receava acrescentar à minha infelicidade de ser quacre a de ser apontada como feiticeira. Estava paralisada pelo medo. Deixei-a morrer. Com essa falta cometida, eu renegava toda a minha educação. Revestia-me deleitosamente da libré comum e me tranquilizava por ter-me tornado uma pessoa igualàs outras, ainda que o fogo interior de minha vida se transformasse, pouco a pouco, em cinzas, ao contato com eles. Até o dia em que fuiatingida uma segunda vez, e de maneira ainda mais terrível. Fui atingida pelo Amor. O véu rasgou-se, o dique rompeu-se.Então, corri para arrancar Noémia do lago gelado e aceitei o Caminho. Como é doce renunciar a tudoe ser expulsa da barreira dos justos por uma tal luz! Você acredita que SãoPaulo, tocado, na estrada de Damasco, pela revelação do Amor divino, procurava o ancião Ananias para pedir-lhe apenas que lhe devolvesse a visão? Não. Ele, o fariseu,o guardiãoda lei, procurava-o para ouvi-lo e sobretudopara falar-lhe desse sentimento desconhecido de amor que lhe fascinara o coração em sua visão. — Depois de uma pausa,ela continuou; — Recolhi Noémia e amei-a, e nãolamento de forma alguma esse amor que nenhuma palavra pode descrever. Ele também existia entre aqueles que têm nosso nome na Bíblia. Por mais amargo que sejam às vezes seus frutos, a gente se lembra de que océu se abriu. Ignoro aonde nos leva o Caminho, mas afirmo apenas uma coisa: é proibido esquecer o êxtase. Se se tiver sido privilegiado por ele uma única vez na vida inteira, ele continua a guiar e iluminar nossas certezas nas trevas. Cara senhora, devemos retornar a Salem. O velho senhor está doente,e não é tanto seu corpo que está doente,mas seu coração humilhado,e Lady Cranmer, sua filha, torce as mãos à sua cabeceira, e eles nos esperam.São filhos, nossos pobres filhos, e todos eles precisam de nós. — Mas eles as matarão. Eles as apedrejarão.Eles as enforcarão. — Um dia, talvez — replicou Ruth, rindo. — Mas,como você mesma notou, quandosabem que estamos perto deles e estão seguros de que a todo momento poderemos sofrer nosso castigo, podem permitir-se ter mais paciência. E assim, dia após dia, deixando-nos a vida, fazem-nos um presente inestimável. Pois cada hora de felicidade vivida pelo homem constrói a Jerusalém celeste. Tinham ainda de reunir alguns trastes. O sr. de Peyrac e o Sr. Paturel recorreram ao capitão de um navio que voltava na hora da maré e as levaria a bordo. Depois de avisá-la, elas voltaram para cuidar das bagagens.Rever-se-iam no momento das despedidas.Deixou-as distanciarem-se. Estivera prestes a pedir-lhes que tirassem suas altas toucas fechadas,a fim de revê-las uma vez mais com seus cabelos dourados nos ombros, a fim de se persuadir de que eram realmente os anjos que tinham vindo, pois as coisas iam-se apagar e perguntariam um dia se não haviam sonhadocom elas. Não ousara, por causa da presença de Abigail, cujo pensamentoela ignorava. Olhou-as descer o caminho, silhuetas frágeis encapuçadas de preto. Iam, hereges entre hereges,loucas talvez, desarmadas... Angélica deixou-se cair, esgotada, nobanco junto à mesa. — Oh!Abigail, eu lhe suplico, diga-me, o que você pensa delas? Um soluço respondeu- lhe. Levantandoos olhos, viu que sua amiga tinha o rosto mergulhadoentre as mãos. A jovem rochelesa calvinista levou um certo tempo para dominar suas lágrimas. Enfim, ergueu novamente a cabeça. — Que Deus me perdoe. Que Deus me perdoe por tê-las julgado. Eu penso... creio que foi por causa delas que ele escreveu: Eu os enviareicomo cordeiros entre os lobos...”. CAPÍTULO V As partidas para Salem — A descoberta de Severina Berne O navio que as conduzia era uma embarcação da Inglaterra que voltava a Londres, e Angélica quis confirmar se fariam escalas em Massachusetts. Certamente,milady — garantiu o capitão — nesta estação, todo navio que faza travessia doAtlântico começa por deter-se em Boston para se abastecer de maçãs. Elas são as mais belas, as maiores e as mais resistentes. Por isso, carregam-se tonéis cheios na coberta, para a saúde da tripulação. Mas as de Salem são tão boas quantoas de lá e nos contentaremos com elas, depois de ter deixadoessas damas sãs e salvas em bom porto. O esquife que as levava ao navio na enseada se afastou, dançandosobre a crista branca das vagas, encapeladas aquele dia. As três mulheres,modestamente sentadas entre as sobrecasacas vermelhas dos oficiais e os tricórnios engalonados, desapareciam de vista. Eram de espécies tão opostas, que era entre esses rudes homens do mar que as pobres puritanas se encontravam mais seguras. Nunca se ouvira dizer que piratas e flibusteiros tivessem alguma vez molestado as virtuosas mulheres dos primeiros estabelecimentos religiosos da costa norte da América, quando desembarcavam para prover-se de água doce ou comprar víveres frescos. “Éramos mais pobres que os mais pobres”,contara-lhe Mrs. Wiliam, a avó de Rose Ann, “e” esses ferozes bandidos do mar, sempre enfeitados, nos olhavam de longe com nossas golas brancas, nossas roupas escuras. Mas jamais teriam pensadoem nos fazer mal, e alguns nos ofereciam pequenas joias, tal era a piedade que sentiam por nosso despojamento...” Os tempos tinham mudado,mas ainda existia um contrato de honra de proteção por parte dos flibusteiros em relação aos piedosos deserdados das orlas, assim como em relação às passageiras que um capitão aceitava levar a bordoe que devia defender com um rigor impiedoso. A chalupa diminuía, apagava-se por trás de um promontório. Levaram-se os bebês à praia para as despedidas,mas carregaram-nos rapidamente de volta para dentro, pois ventava muito. E os adultos voltaram em grupo, a passo lentos, em direção às primeiras casas em torno da praça. Angélica pensava em SamuelWexter. Ruth tinha razão, julgando-omais atingido em sua alma que em seu corpo. A cena com o jesuíta o arrasara, e ele fora para a cama no dia seguinte.
  • 14. Angélica, pouco antes de partir, fora visitá-lo e encontrara-o queimandoem febre,repisandoas acusações que o irascível interlocutor lhe lançara ao rosto e as que nãotivera sangue-friopara devolver-lhe. — E, noentanto, tínhamos uma língua comum — gemia — e que,certamente,empregaríamos, tanto um como o outro, com mais facilidade do que nossos idiomas mútuos: o latim. Não penseinisso... — Não se desole, Sir Samuel,latim ou não, sempre vi as discussões entre teólogos da Reforma e do catolicismo terminarem mal, muito mal. Não existem concessões possíveis. O que mais afligia o ancião era ter-se deixadolevar em sua cólera a lançar uma blasfémia. Cortava-se a língua a um pobre-diabopor menos que isso. — Esses jesuítas são hábeis em nos tirar doeixo. O governador de Orange vingou-se muito bem de nós, enviando-o para nossos muros. Avisarei Andros. Os holandeses nunca perdem uma oportunidade de nos meter em apuros. — Os ingleses tomaram-lhes a Nova Amsterdam e os territórios da Nova Holanda. — Não teriam dado a esses escritórios o progresso que lhe demos. Mas a discussão reconfortara-a um pouco. Esperaram o navio singrar em direção ao horizonte, com todas as velas abertas, para deixar a praia. Angélica pensava nas palavras muito importantes que Ruth lhe dissera e sobre as quais precisaria refletir. Mas não naquele momento, mais tarde: quandoestivesse em Wapassu. Ruth dissera-lhe “Você é uma mulher única”. Falara dos poderes, dessas forças ocultas que Angélica possuía e que a feiticeira Melusina reconhecera nela, em sua infância. Mas a infância tem as mãos cheias de tesouros. A vida obriga-nos a selecioná-los, negligenciá-los, abandoná-los.“Minha vida era outra...” Todavia, a dor com que Ruth se expressara ao dizer: “poderia ter curadominha pobre mãe...” despertara o eco que atormentava sua consciência quandopensava nojovem Emanuel: “Eu poderia tê-lo salvo... deveria ter oposto minha força àquela que se erguia diante de mim... muitas coisas acontecem quandonãose está ainda pronto, quandonãose deseja ver bem claro, quandoa cortina ainda não se rasgou. Prefere-se naquiloque está estabelecido”.Voltou a subir a praia, enquantoa multidão se dispersava e grupos de pessoas se dirigiam para o Albergue Sob o Forte, dirigido pelas Sra. Carrere e seus filhos. Um bandode pássaros passou piando,girando, buscandoa maré alta dos pontos para pousar,parou, continuou viagem. Apareciam com frequência e chegavam como a tempestade,obscurecendo o sol, e em seguida fugiam para longe. Angélica observava que sublinhavam, como uma manifestaçãopessoal, aos acontecimentos ocorridos em Gouldsboro, chegadas,partidas, nascimentos, batalhas.Mas essa era uma ideia dela. As outras pessoas não viam nenhuma coincidência. Estavam habituadas a essas nuvens de pássaros, como estavam habituadas às pescas milagrosas, às peles, trazidas pelos índios, às tempestades... Angélica olhava os pássaros pensandona confissão de Ambrosina; “Aprendia odiar o mar e os pássaros que passam, porque você os amava. Poder-se-ia exprimir mais intensamente a inveja, o ciúme, o ódio por um ser?Seu pensamentovoltou a deter-se nas duas mulheres caridosas que tinham voltado, levandoseu segredode amor e de ternura.Nesta mesma areia, tinham colocado o pé. O mar impávido se retiraria, até deixar apenas um deserto de algas pardas até o horizonte, depois voltaria, bainha fremente que avançava às escondidas em galope, depois lançaria para o céu, batendo nos rochedos, seus ramalhetes de espuma. E as pessoas continuariam a ir e vir, sob sua guarda e sua dança,e a colocar o pé na areia e a correr, a estender os braços e os punhos,uns trazendoo ódio, outros, o amor. Como ovelhas entre os lobos!... O que iria acontecer-lhes em Salem? — Ah! eu nãopoderia viver na Nova Inglaterra — suspirou. — Oh, sim, poderia perfeitamente — disse alegremente a voz de Joffrey juntodela. — Em que lugar, ao cabode algumas horas, nãoencontraria alguns encantos? Não é verdade,Sr. Paturel? — Certamente — respondeu,nomesmo tom de brincadeira afetuosa,o sólido normando, que igualmente se encontrava perto, à sombra. — Certamente,no fim de algumas horas, esqueceria os inconvenientes das intransigências puritanas,para ver apenas a beleza das flores dos jardins... — ...ou apreciar as delícias dochá da China. — Esqueceria o mau humor de Mrs. Cranmer,para se interessar por seus amores atormentados, com o original Lorde Cranmer. — No próprio inferno, depois de passadoo primeiro choque, a Sra. de Peyrac nãose poria imediatamente a decidir alguns acertos para tornar a situação menos... abrasiva? — continuou Peyrac. — E o faria, tentandoentender-se com algum diabrete um pouco menos mau que os outros, o que teria discernido ao primeiro olhar. Ela o faria entrever o perdãode sua pena,pois ele só estaria naquele lugar por uma distração de São Pedro... — Mas todo mundoestá contra mim! — disse ela, rindo. — Conte!Conte o que mais você fará quandoestiver no inferno — implorou a pequena Honorina, que andava por ali entre eles. Joffrey enlaçara-lhe a cintura.Ela sentia seu caloroso sentimento expressar-se através das brincadeiras. Eles a provocavam, mas, na verdade, gostavam de seu amor pela vida, os seres e as coisas, a natureza, tão bela e constante em toda parte! Ficaram um bom tempo no albergue,enquantoos irmãos Carrere acendiam os candelabros no teto e as lanternas. Os dias começavam a ficar mais curtos. O canto dos grilos e das cigarras nas dunas e junto aos bosques tornava-se menos veemente.Mas podia-se prever a chegada doGouldsboro para dali a dois dias, e os preparativos para a caravana, exceto algumas encomendas que seriam acrescentadas quandoo navio chegasse, já tinham sido feitos. — Vou ter de arranjar um escriba — observou o Governador Paturel. — Que quer dizer? — perguntou Angélica. Foi assim que soube que Natanaelde Rambourg tinha voltado com o navio inglês. Ele resolvera voltar para Nova York, a fim de poder discutir com o intendente
  • 15. Molines as possibilidades de entrar na posse de sua herança,composta de terras e fazendas, na província do Poitou, na França. Avisara ao governador e ao Sr. de Peyracsobre suas intenções, pedindo-lhes o obséquiode adiantar-lhe uma soma em dinheiroe assinar-lhe algumas letras de câmbio, que lhe permitiriam viver decentemente até chegar a Nova York e pagar sua passagem a bordo dos navios ou das diligências pastais que já circulavam com bastante regularidade entre Boston e as margens de Hudson. Angélica, com efeito, pareceu ter visto um ou dois chapéus puritanos numa chalupa,mas pensava que se tratasse de valões ou de valdenses decepcionados, que estivessem voltando para lugares menos contaminados, e estava longe de pensar que sua região, o Poitou, lhe pregaria uma peça. — Poderia aomenos apresentar-me seus cumprimentos! Que sujeito engraçado esse Natanael! Do lado de fora,os Berne vagavam, procurandoSeverina. Ao saber da partida dojovem Rambourg, inquietaram-se, pois nãoa encontravam em parte alguma. Talvez tivesse ido esconder-se, para dissimular um sofrimento atroz. — E se tivesse embarcadocom ele? Foram de casa em casa interrogar os vizinhos e os transeuntes,primeiro com um tom despreocupado, que se tornava, porém, mais nervoso à medida que continuavam as respostas negativas. Gabriel Berne subitamente quase quebrou sua lanterna,num gesto de fúria.Conteve-se para nãojogá-la ao chão, tal era sua cólera contida. Deu meia-volta e declarou que ia ao porto procurar uma barca, um iate, um navio, qualquer coisa que fizesse vela para o sudoeste. Passaria ali o inverno, se fosse preciso, mas perseguiria aquela ordinariazinha até a Virgínia, o Brasil, a Terra do Fogo. Sempre fora uma cabeça-dura,indisciplinada. Sempre quisera ser menino. Ele lhe ensinaria como uma mulher deve se comportar e ficar em seu lugar. Mas, também,ela tivera maus exemplos... Angélica acompanhou Abigail, toda trémula, até sua casa. — Estou transtornada.Receio por Severina. Gabriel é muito bom, mas nofundoé violento e desconhece a força que tem. Pode se tornar muito perigoso, se deixar explodir sua cólera. — Eu sei como é!Não fique com medo. Vou falar com ele, e não o deixaremos partir sem chamá-lo à razão. Alguém irá com ele, se for necessário. Pela porta aberta da casa iluminada, a voz de Severina escapava, cantandoos versos do salmo, Saepe expugnaverunt me musicado por Cláudio Goudimel: — “Desde minha juventude, fizeram-me mil assaltos,mas não puderam vencer-me e me destruir”. A sala comum estava acesa. Severina instalara a pequena Elisabete diante de sua sopa com leite e acalmara a garota com um pedaçode pão. Laurier colocava as tigelas na mesa para o jantar. Enquantovocalizava, Severina continuava a fazer as conservas, manejandoa concha como teria feito com uma batuta de maestro, escumandoo cozido, depois arranjandoos filés de cavalas e de arenques nos potes com vinagre. — Onde você estava? — Não muito longe... — Nós a procuramos por todo lado. — Por quê? Enviaram Laurier para avisar Mestre Berne. Angélica saiu mais tranquila. Ia dar um jeito de interceptar Gabriel Berne no caminho de volta e pedir-lhe que nãobancasse o pater familias romano com a filha. Pois, sob o pesodo medoe da cólera que havia sentido, era capaz de dar-lhe uma surra, quandonãotinha nada a censurar-Ihe.Certamente conseguiria acalmá-lo perguntando-lhe oque quisera dizer ao falar de “maus exemplos recebidos por sua filha”... Ela, Angélica, que levara a jovem a uma viagem de recreio, tinha algo a ver com a alusão? Um passo leve alcançou-a nocaminho. Severina deslizou um braço sobre o seu e ergueu orosto para ela. Uma lua fina e uma sementeira de estrelas começavam a difundir uma luz suave ao redor e se refletiam nos olhos negros da adolescente. Disse, com fervor: — Obrigada.— Por quê,minha cara? — Por essa carta sobre o amor que me leu. Penseinovamente em seus termos e sobretudonaqueles do parágrafosobre o amor dos amantes.O VerdadeiroAmor. Isso me ajudou a compreender o valor do que eu sentia... A não confundir o interesse, o divertimento e o sentimento. A não me perder,nem me deixar assustar por fantasmas... tomou-lhe a mãopara pousar-lhe os lábios. — Obrigada... E tãobom que você exista! CAPÍTULO VI Presépio negro — As razões de Joffrey de Peyrac Ainda nãoera Natal, e, se o nevoeiro espesso que envolvia a natureza não consentia em fundir-se abruptamente senãopara deixar entrever o fantasma de uma silhueta humana tateandocom o pé seu caminhoou a girândola de uma pequena bétula subitamente transformada em ouro ou o intenso braseiro de uma cerejeira silvestre que resolveu revestir, antes das outras, sua folhagem vermelha, se o grande mantocinza e vaporoso, que a baía dos Franceses gosta tanto de exibir, bancandoa misteriosa e a tímida, quandonãoexiste outra mais ousada e desenvolta, se essas cortinas, velas e echarpes de sonho descorado faziam reinar, naquele dia, uma claridade invernalenganadora,ninguém esquecia que estavam apenas nas primícias do outono. E, no entanto,com o númerode pessoas que se puseram a caminho, cheias de alegria e curiosidade, cada qualquerendose munir de um pequenopresente,com o frágilapelo de um sino abafadopelas brumas,mas que convidava curiosos e trabalhadores a parar suas brincadeiras ou suas tarefas e se dirigir, intrigados e enternecidos, a uma pobre cabana, havia como que uma evocação de Natividade e de Epifania em volta do presépio. Só que o MeninoJesus era negro. Por mais discreta que tenha sido a passagem desse nascimento durante a noite, na casa de toras de pinheiro onde se alojaram os escravos comprados em Rhode Island, seu anúncio correra desde a alvorada de uma ponta a outra da