1) A UPP da Rocinha será a mais difícil de ser implantada devido aos problemas com as lideranças comunitárias, que às vezes prejudicam mais os moradores do que o tráfico.
2) As ONGs que atuam na Rocinha não conseguiram transformar os milhões investidos em projetos culturais em algo tão expressivo quanto o que resultou no Nós do Morro.
3) A Rocinha está passando por um processo de elitização, com os gringos e a classe média subindo a favela, enquanto os pobres descem.
1. Domingo, 13 de novembro de 2011 O GLOBO RIO ●
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A HORA DA 19 - UPP
A PÁGINA MÓVEL
Favela
partida
Marcelo Régua/09-06-1989
Julio Ludemir
● A UPP da Rocinha vai ser a mais di-
fícil de ser implantada. E aqui não es-
tamos falando da questão policial ou
das dificuldades inerentes à ocupa-
ção de uma área dominada há mais
de 30 anos por bandidos fortemente ciona na favela. A chegada da UPA em
armados, que montaram ali a maior
boca de fumo da cidade, talvez do
que o traficante Nem foi atendido de-
pois de passar mal na sua festa de
Autor de livro sobre a Rocinha, que o levou a
país. Desde a primeira UPP, ficou cla-
ro que toda lenga-lenga em torno de
despedida da comunidade só veio no
bojo das obras do PAC. morar lá, escritor diz que vencer poderes locais
um poder paralelo não passava de Geralmente a Rocinha é apresenta-
uma lenda alimentada por quem ti-
nha o interesse em manter o tráfico
da como uma favela monolítica, onde
tudo que é ruim é atribuído ao tráfi-
será mais difícil do que foi a luta contra o tráfico
encastelado nos morros. A Rocinha é co, enfim, vencido. Mas não foi à toa
a décima nona favela do Rio de Janei- que terminei sendo expulso não por em merreca que se faz um milhão. Por que o Afroreggae nasceu em do paralelamente a uma dramática
ro ocupada pela polícia, e até agora problemas com a boca de fumo, mas Talvez seja interessante lembrar Vigário Geral, e não na Rocinha? Cadê especulação imobiliária, à qual só
só houve esporádicas trocas de tiros. com a teia de comandos que partici- o processo de modernização da es- o Observatório das Favelas da Roci- vão sobreviver os moradores que
A guerra que se anunciou sangrenta e pam de uma disputa fratricida pelo cola de samba Acadêmicos da Ro- nha? Qual a diferença entre a Rocinha estão aproveitando as oportunida-
demorada resultou em poucas pri- controle da intermediação entre a in- cinha, que até o início da década e a Cidade de Deus, para que a CUFA des de desenvolvimento econômico
sões e nenhuma morte. dústria da boa vontade e a comuni- passada estava nas mãos do jogo tenha surgido nesta última? e social em curso na favela.
dade. Acho que o maior símbolo da do bicho. Só depois da intervenção Seria injusto ignorar as conquis-
Os vícios das complexidade da vida política da fa-
vela foi o DJ Williams, preso porque
do tráfico foi que o longevo presi-
dente teve seu mandato abortado,
tas da Escola de Música da Roci-
nha ou mesmo o fato de que a Via Gringos e classe
lideranças de manhã servia aos interesses das
ONGs e, à noite, aos do tráfico. O en-
abrindo espaço para que um grupo
de empresários fizesse os investi-
Crucis da Rocinha hoje faz parte
do calendário oficial da cidade, média sobem,
comunitárias tão presidente da principal associa-
ção de moradores era igualmente sin-
mentos que garantiram a volta ao
grupo de elite. Mas aquele óvni
mas mesmo assim esses dois tra-
balhos só falaram para fora da co- pobres descem
cero em ambos os papéis. Também pousado na Autoestrada Lagoa- munidade em momentos esporádi-
● No entanto, a dificuldade de im- na Rocinha ninguém quer saber co- Barra jamais empolgou os morado- cos. Talvez o caso do artista plás- ● É possível que as UPPs concreti-
plantação da UPP na Rocinha tem a mo são feitas salsichas e leis. res. No carnaval que passei ali, um tico Geleia, que ganhou grande zem a utopia lacerdista de levar os
ver com os problemas de suas lide- Comecei a frequentar a favela de- enorme baile funk na noite em que projeção no início da década pas- pobres para bem longe das áreas no-
ranças, de seu viciado movimento co- pois de conhecer os músicos do Ga- a escola desfilou bateu o número sada, seja emblemático do indivi- bres, com a vantagem de contar com
munitário, que em alguns aspectos é za, uma banda de rock para a qual es- dos que foram à Sapucaí. dualismo e mesmo da competição o entusiasmo dos moradores e da
mais nocivo para o morador que o crevi letras: a Rocinha não estava res- existente entre os atores sociais classe média esclarecida. Não creio
tráfico. Não é à toa que uma comu-
nidade tão numerosa e tão tradicio-
trita a funkeiros, pagodeiros e forro-
zeiros. A convivência com aqueles jo- O povo do beco e em cena da Rocinha. Não é à toa
que o artista plástico hoje mora
que seja coincidência que a Rocinha
tenha sido descoberta como um lo-
nal só tenha conseguido eleger um
vereador em toda a sua história, e
vens me mostrou que o gato da TV a
cabo podia trazer prejuízos para a o da beira de rua: em uma colônia de pescadores em
São Gonçalo.
cal agradável de se viver pelos grin-
gos, que, depois de fazerem da co-
mesmo assim o polêmico Claudinho
da Academia. Quem acompanha a vi-
economia formal, mas estava deixan-
do a favela quase tão bem informada duas realidades O processo de elitização da Roci-
nha pode ser ilustrado numa ima-
munidade um dos pontos turísticos
mais visitados do Rio de Janeiro há
da política do morro entre os bairros quanto o asfalto. O último lugar do gem que aponta no mínimo para a pelo menos uma década, estão se
da Gávea e de São Conrado sabe que mundo em que me imaginei discutin- ● As ONGs que atuam na Rocinha existência de duas favelas: a do po- mudando para lá em números cada
os votos dos seus moradores são ra- do Nirvana seria a Rocinha. não conseguiram transformar os mi- vo dos becos e a do povo do que vez mais expressivos. Não é de hoje
teados por líderes comunitários que Um músico da banda me mos- lhões investidos em projetos realiza- eles chamam de beira de rua, nas que eles estão ressignificando as fa-
preferem negociar seu prestígio com trou, com um raciocínio simplório, dos há pelo menos duas décadas em imediações da Estrada da Gávea. Na velas para os cariocas, como bem o
políticos tradicionais. a ascensão da classe C muito antes um trabalho no campo da cultura tão época em que morei na favela, o pes- demonstram os estudos da antropó-
Mas não é apenas no campo da po- dos governos e do mercado. “Está expressivo quanto o que resultou no soal da beira de rua costumava se loga americana Janice Perlman, res-
lítica partidária que os interesses par- vendo aquela padaria ali?”, pergun- surgimento do Nós do Morro, em reunir na Lit, onde a elite se encon- ponsável pela primeira tese sobre
ticulares da plêiade de ONGs que tou-me ele, morador da microárea uma comunidade bem menor e me- tra — segundo o slogan dessa pizza- nossas comunidades populares, e o
atuam na primeira favela carioca a conhecida como Fundação, bem no nos tradicional como o Vidigal. Por ria que se consolidou com a chega- diretor francês Marcel Camus, que fil-
ganhar o status de bairro terminam meio do morro. “Aqui devem ter que será que Cacá Diegues, produtor da dos celulares, das motos vendi- mou o Chapéu Mangueira cerca de
prejudicando os moradores. Um dos uns dez mil moradores, que com- do vitorioso projeto “Cinco vezes fa- das em suaves prestações mensais e 50 anos antes de Fernando Meirelles
casos mais gritantes está no campo pram pão duas vezes por dia”. Ele vela, agora por nós mesmos”, não o cartão de crédito — graças à qual reinventar o cinema brasileiro com
da saúde pública. Durante anos, a jamais estranhou o carrão estacio- chamou ninguém da Rocinha para di- seus proprietários puderam ofere- “Cidade de Deus”.
construção de um hospital esbarrou nado na porta do estabelecimento. rigir um dos episódios do filme que cer um eficiente serviço de delivery.
na resistência de gente cujo prestígio Não foi à toa que morreu tanta gen- levou as imagens da comunidade ca- Talvez não seja coincidência que to- JULIO LUDEMIR é escritor, autor de
dependia do posto de saúde que fun- te na guerra do Rio. É de merreca rioca para Cannes? do esse processo esteja acontecen- “Sorria, você está na Rocinha”