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Domingo, 13 de novembro de 2011                                                                                               O GLOBO                                                                                          RIO    ●
                                                                                                                                                                                                                                          21




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                                         A PÁGINA MÓVEL




                                                                                                                       Favela
                                                                                                                       partida
 Marcelo Régua/09-06-1989




                                        Julio Ludemir

                            ●  A UPP da Rocinha vai ser a mais di-
                            fícil de ser implantada. E aqui não es-
                            tamos falando da questão policial ou
                            das dificuldades inerentes à ocupa-
                            ção de uma área dominada há mais
                            de 30 anos por bandidos fortemente         ciona na favela. A chegada da UPA em
                            armados, que montaram ali a maior
                            boca de fumo da cidade, talvez do
                                                                       que o traficante Nem foi atendido de-
                                                                       pois de passar mal na sua festa de
                                                                                                                 Autor de livro sobre a Rocinha, que o levou a
                            país. Desde a primeira UPP, ficou cla-
                            ro que toda lenga-lenga em torno de
                                                                       despedida da comunidade só veio no
                                                                       bojo das obras do PAC.                    morar lá, escritor diz que vencer poderes locais
                            um poder paralelo não passava de              Geralmente a Rocinha é apresenta-
                            uma lenda alimentada por quem ti-
                            nha o interesse em manter o tráfico
                                                                       da como uma favela monolítica, onde
                                                                       tudo que é ruim é atribuído ao tráfi-
                                                                                                                 será mais difícil do que foi a luta contra o tráfico
                            encastelado nos morros. A Rocinha é        co, enfim, vencido. Mas não foi à toa
                            a décima nona favela do Rio de Janei-      que terminei sendo expulso não por        em merreca que se faz um milhão.           Por que o Afroreggae nasceu em       do paralelamente a uma dramática
                            ro ocupada pela polícia, e até agora       problemas com a boca de fumo, mas           Talvez seja interessante lembrar      Vigário Geral, e não na Rocinha? Cadê   especulação imobiliária, à qual só
                            só houve esporádicas trocas de tiros.      com a teia de comandos que partici-       o processo de modernização da es-       o Observatório das Favelas da Roci-     vão sobreviver os moradores que
                            A guerra que se anunciou sangrenta e       pam de uma disputa fratricida pelo        cola de samba Acadêmicos da Ro-         nha? Qual a diferença entre a Rocinha   estão aproveitando as oportunida-
                            demorada resultou em poucas pri-           controle da intermediação entre a in-     cinha, que até o início da década       e a Cidade de Deus, para que a CUFA     des de desenvolvimento econômico
                            sões e nenhuma morte.                      dústria da boa vontade e a comuni-        passada estava nas mãos do jogo         tenha surgido nesta última?             e social em curso na favela.
                                                                       dade. Acho que o maior símbolo da         do bicho. Só depois da intervenção         Seria injusto ignorar as conquis-

                            Os vícios das                              complexidade da vida política da fa-
                                                                       vela foi o DJ Williams, preso porque
                                                                                                                 do tráfico foi que o longevo presi-
                                                                                                                 dente teve seu mandato abortado,
                                                                                                                                                         tas da Escola de Música da Roci-
                                                                                                                                                         nha ou mesmo o fato de que a Via        Gringos e classe
                            lideranças                                 de manhã servia aos interesses das
                                                                       ONGs e, à noite, aos do tráfico. O en-
                                                                                                                 abrindo espaço para que um grupo
                                                                                                                 de empresários fizesse os investi-
                                                                                                                                                         Crucis da Rocinha hoje faz parte
                                                                                                                                                         do calendário oficial da cidade,        média sobem,
                            comunitárias                               tão presidente da principal associa-
                                                                       ção de moradores era igualmente sin-
                                                                                                                 mentos que garantiram a volta ao
                                                                                                                 grupo de elite. Mas aquele óvni
                                                                                                                                                         mas mesmo assim esses dois tra-
                                                                                                                                                         balhos só falaram para fora da co-      pobres descem
                                                                       cero em ambos os papéis. Também           pousado na Autoestrada Lagoa-           munidade em momentos esporádi-
                            ●  No entanto, a dificuldade de im-        na Rocinha ninguém quer saber co-         Barra jamais empolgou os morado-        cos. Talvez o caso do artista plás-     ● É possível que as UPPs concreti-

                            plantação da UPP na Rocinha tem a          mo são feitas salsichas e leis.           res. No carnaval que passei ali, um     tico Geleia, que ganhou grande          zem a utopia lacerdista de levar os
                            ver com os problemas de suas lide-            Comecei a frequentar a favela de-      enorme baile funk na noite em que       projeção no início da década pas-       pobres para bem longe das áreas no-
                            ranças, de seu viciado movimento co-       pois de conhecer os músicos do Ga-        a escola desfilou bateu o número        sada, seja emblemático do indivi-       bres, com a vantagem de contar com
                            munitário, que em alguns aspectos é        za, uma banda de rock para a qual es-     dos que foram à Sapucaí.                dualismo e mesmo da competição          o entusiasmo dos moradores e da
                            mais nocivo para o morador que o           crevi letras: a Rocinha não estava res-                                           existente entre os atores sociais       classe média esclarecida. Não creio
                            tráfico. Não é à toa que uma comu-
                            nidade tão numerosa e tão tradicio-
                                                                       trita a funkeiros, pagodeiros e forro-
                                                                       zeiros. A convivência com aqueles jo-     O povo do beco e                        em cena da Rocinha. Não é à toa
                                                                                                                                                         que o artista plástico hoje mora
                                                                                                                                                                                                 que seja coincidência que a Rocinha
                                                                                                                                                                                                 tenha sido descoberta como um lo-
                            nal só tenha conseguido eleger um
                            vereador em toda a sua história, e
                                                                       vens me mostrou que o gato da TV a
                                                                       cabo podia trazer prejuízos para a        o da beira de rua:                      em uma colônia de pescadores em
                                                                                                                                                         São Gonçalo.
                                                                                                                                                                                                 cal agradável de se viver pelos grin-
                                                                                                                                                                                                 gos, que, depois de fazerem da co-
                            mesmo assim o polêmico Claudinho
                            da Academia. Quem acompanha a vi-
                                                                       economia formal, mas estava deixan-
                                                                       do a favela quase tão bem informada       duas realidades                            O processo de elitização da Roci-
                                                                                                                                                         nha pode ser ilustrado numa ima-
                                                                                                                                                                                                 munidade um dos pontos turísticos
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                            da política do morro entre os bairros      quanto o asfalto. O último lugar do                                               gem que aponta no mínimo para a         pelo menos uma década, estão se
                            da Gávea e de São Conrado sabe que         mundo em que me imaginei discutin-        ● As ONGs que atuam na Rocinha          existência de duas favelas: a do po-    mudando para lá em números cada
                            os votos dos seus moradores são ra-        do Nirvana seria a Rocinha.               não conseguiram transformar os mi-      vo dos becos e a do povo do que         vez mais expressivos. Não é de hoje
                            teados por líderes comunitários que           Um músico da banda me mos-             lhões investidos em projetos realiza-   eles chamam de beira de rua, nas        que eles estão ressignificando as fa-
                            preferem negociar seu prestígio com        trou, com um raciocínio simplório,        dos há pelo menos duas décadas em       imediações da Estrada da Gávea. Na      velas para os cariocas, como bem o
                            políticos tradicionais.                    a ascensão da classe C muito antes        um trabalho no campo da cultura tão     época em que morei na favela, o pes-    demonstram os estudos da antropó-
                                Mas não é apenas no campo da po-       dos governos e do mercado. “Está          expressivo quanto o que resultou no     soal da beira de rua costumava se       loga americana Janice Perlman, res-
                            lítica partidária que os interesses par-   vendo aquela padaria ali?”, pergun-       surgimento do Nós do Morro, em          reunir na Lit, onde a elite se encon-   ponsável pela primeira tese sobre
                            ticulares da plêiade de ONGs que           tou-me ele, morador da microárea          uma comunidade bem menor e me-          tra — segundo o slogan dessa pizza-     nossas comunidades populares, e o
                            atuam na primeira favela carioca a         conhecida como Fundação, bem no           nos tradicional como o Vidigal. Por     ria que se consolidou com a chega-      diretor francês Marcel Camus, que fil-
                            ganhar o status de bairro terminam         meio do morro. “Aqui devem ter            que será que Cacá Diegues, produtor     da dos celulares, das motos vendi-      mou o Chapéu Mangueira cerca de
                            prejudicando os moradores. Um dos          uns dez mil moradores, que com-           do vitorioso projeto “Cinco vezes fa-   das em suaves prestações mensais e      50 anos antes de Fernando Meirelles
                            casos mais gritantes está no campo         pram pão duas vezes por dia”. Ele         vela, agora por nós mesmos”, não        o cartão de crédito — graças à qual     reinventar o cinema brasileiro com
                            da saúde pública. Durante anos, a          jamais estranhou o carrão estacio-        chamou ninguém da Rocinha para di-      seus proprietários puderam ofere-       “Cidade de Deus”.
                            construção de um hospital esbarrou         nado na porta do estabelecimento.         rigir um dos episódios do filme que     cer um eficiente serviço de delivery.
                            na resistência de gente cujo prestígio     Não foi à toa que morreu tanta gen-       levou as imagens da comunidade ca-      Talvez não seja coincidência que to-    JULIO LUDEMIR é escritor, autor de
                            dependia do posto de saúde que fun-        te na guerra do Rio. É de merreca         rioca para Cannes?                      do esse processo esteja acontecen-      “Sorria, você está na Rocinha”

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  • 1. Domingo, 13 de novembro de 2011 O GLOBO RIO ● 21 Logo a A HORA DA 19 - UPP A PÁGINA MÓVEL Favela partida Marcelo Régua/09-06-1989 Julio Ludemir ● A UPP da Rocinha vai ser a mais di- fícil de ser implantada. E aqui não es- tamos falando da questão policial ou das dificuldades inerentes à ocupa- ção de uma área dominada há mais de 30 anos por bandidos fortemente ciona na favela. A chegada da UPA em armados, que montaram ali a maior boca de fumo da cidade, talvez do que o traficante Nem foi atendido de- pois de passar mal na sua festa de Autor de livro sobre a Rocinha, que o levou a país. Desde a primeira UPP, ficou cla- ro que toda lenga-lenga em torno de despedida da comunidade só veio no bojo das obras do PAC. morar lá, escritor diz que vencer poderes locais um poder paralelo não passava de Geralmente a Rocinha é apresenta- uma lenda alimentada por quem ti- nha o interesse em manter o tráfico da como uma favela monolítica, onde tudo que é ruim é atribuído ao tráfi- será mais difícil do que foi a luta contra o tráfico encastelado nos morros. A Rocinha é co, enfim, vencido. Mas não foi à toa a décima nona favela do Rio de Janei- que terminei sendo expulso não por em merreca que se faz um milhão. Por que o Afroreggae nasceu em do paralelamente a uma dramática ro ocupada pela polícia, e até agora problemas com a boca de fumo, mas Talvez seja interessante lembrar Vigário Geral, e não na Rocinha? Cadê especulação imobiliária, à qual só só houve esporádicas trocas de tiros. com a teia de comandos que partici- o processo de modernização da es- o Observatório das Favelas da Roci- vão sobreviver os moradores que A guerra que se anunciou sangrenta e pam de uma disputa fratricida pelo cola de samba Acadêmicos da Ro- nha? Qual a diferença entre a Rocinha estão aproveitando as oportunida- demorada resultou em poucas pri- controle da intermediação entre a in- cinha, que até o início da década e a Cidade de Deus, para que a CUFA des de desenvolvimento econômico sões e nenhuma morte. dústria da boa vontade e a comuni- passada estava nas mãos do jogo tenha surgido nesta última? e social em curso na favela. dade. Acho que o maior símbolo da do bicho. Só depois da intervenção Seria injusto ignorar as conquis- Os vícios das complexidade da vida política da fa- vela foi o DJ Williams, preso porque do tráfico foi que o longevo presi- dente teve seu mandato abortado, tas da Escola de Música da Roci- nha ou mesmo o fato de que a Via Gringos e classe lideranças de manhã servia aos interesses das ONGs e, à noite, aos do tráfico. O en- abrindo espaço para que um grupo de empresários fizesse os investi- Crucis da Rocinha hoje faz parte do calendário oficial da cidade, média sobem, comunitárias tão presidente da principal associa- ção de moradores era igualmente sin- mentos que garantiram a volta ao grupo de elite. Mas aquele óvni mas mesmo assim esses dois tra- balhos só falaram para fora da co- pobres descem cero em ambos os papéis. Também pousado na Autoestrada Lagoa- munidade em momentos esporádi- ● No entanto, a dificuldade de im- na Rocinha ninguém quer saber co- Barra jamais empolgou os morado- cos. Talvez o caso do artista plás- ● É possível que as UPPs concreti- plantação da UPP na Rocinha tem a mo são feitas salsichas e leis. res. No carnaval que passei ali, um tico Geleia, que ganhou grande zem a utopia lacerdista de levar os ver com os problemas de suas lide- Comecei a frequentar a favela de- enorme baile funk na noite em que projeção no início da década pas- pobres para bem longe das áreas no- ranças, de seu viciado movimento co- pois de conhecer os músicos do Ga- a escola desfilou bateu o número sada, seja emblemático do indivi- bres, com a vantagem de contar com munitário, que em alguns aspectos é za, uma banda de rock para a qual es- dos que foram à Sapucaí. dualismo e mesmo da competição o entusiasmo dos moradores e da mais nocivo para o morador que o crevi letras: a Rocinha não estava res- existente entre os atores sociais classe média esclarecida. Não creio tráfico. Não é à toa que uma comu- nidade tão numerosa e tão tradicio- trita a funkeiros, pagodeiros e forro- zeiros. A convivência com aqueles jo- O povo do beco e em cena da Rocinha. Não é à toa que o artista plástico hoje mora que seja coincidência que a Rocinha tenha sido descoberta como um lo- nal só tenha conseguido eleger um vereador em toda a sua história, e vens me mostrou que o gato da TV a cabo podia trazer prejuízos para a o da beira de rua: em uma colônia de pescadores em São Gonçalo. cal agradável de se viver pelos grin- gos, que, depois de fazerem da co- mesmo assim o polêmico Claudinho da Academia. Quem acompanha a vi- economia formal, mas estava deixan- do a favela quase tão bem informada duas realidades O processo de elitização da Roci- nha pode ser ilustrado numa ima- munidade um dos pontos turísticos mais visitados do Rio de Janeiro há da política do morro entre os bairros quanto o asfalto. O último lugar do gem que aponta no mínimo para a pelo menos uma década, estão se da Gávea e de São Conrado sabe que mundo em que me imaginei discutin- ● As ONGs que atuam na Rocinha existência de duas favelas: a do po- mudando para lá em números cada os votos dos seus moradores são ra- do Nirvana seria a Rocinha. não conseguiram transformar os mi- vo dos becos e a do povo do que vez mais expressivos. Não é de hoje teados por líderes comunitários que Um músico da banda me mos- lhões investidos em projetos realiza- eles chamam de beira de rua, nas que eles estão ressignificando as fa- preferem negociar seu prestígio com trou, com um raciocínio simplório, dos há pelo menos duas décadas em imediações da Estrada da Gávea. Na velas para os cariocas, como bem o políticos tradicionais. a ascensão da classe C muito antes um trabalho no campo da cultura tão época em que morei na favela, o pes- demonstram os estudos da antropó- Mas não é apenas no campo da po- dos governos e do mercado. “Está expressivo quanto o que resultou no soal da beira de rua costumava se loga americana Janice Perlman, res- lítica partidária que os interesses par- vendo aquela padaria ali?”, pergun- surgimento do Nós do Morro, em reunir na Lit, onde a elite se encon- ponsável pela primeira tese sobre ticulares da plêiade de ONGs que tou-me ele, morador da microárea uma comunidade bem menor e me- tra — segundo o slogan dessa pizza- nossas comunidades populares, e o atuam na primeira favela carioca a conhecida como Fundação, bem no nos tradicional como o Vidigal. Por ria que se consolidou com a chega- diretor francês Marcel Camus, que fil- ganhar o status de bairro terminam meio do morro. “Aqui devem ter que será que Cacá Diegues, produtor da dos celulares, das motos vendi- mou o Chapéu Mangueira cerca de prejudicando os moradores. Um dos uns dez mil moradores, que com- do vitorioso projeto “Cinco vezes fa- das em suaves prestações mensais e 50 anos antes de Fernando Meirelles casos mais gritantes está no campo pram pão duas vezes por dia”. Ele vela, agora por nós mesmos”, não o cartão de crédito — graças à qual reinventar o cinema brasileiro com da saúde pública. Durante anos, a jamais estranhou o carrão estacio- chamou ninguém da Rocinha para di- seus proprietários puderam ofere- “Cidade de Deus”. construção de um hospital esbarrou nado na porta do estabelecimento. rigir um dos episódios do filme que cer um eficiente serviço de delivery. na resistência de gente cujo prestígio Não foi à toa que morreu tanta gen- levou as imagens da comunidade ca- Talvez não seja coincidência que to- JULIO LUDEMIR é escritor, autor de dependia do posto de saúde que fun- te na guerra do Rio. É de merreca rioca para Cannes? do esse processo esteja acontecen- “Sorria, você está na Rocinha”