1. Organização social, política e religiosa
Avó e neta na aldeia guarani mbya de Bracuí,
em Angra dos Reis (RJ). Foto: Milton Guran, 1988.
Os lugares onde os Guarani formam seus assentamentos familiares são identificados como tekoa. Conforme tradução de Montoya (1640),
Tekoa significa “modo de ser, de estar, sistema, lei, cultura, norma, comportamento, costumes”. Tekoa seria, pois o lugar onde existem as condições
de se exercer o “modo de ser” guarani. Podemos qualificar o tekoa como o lugar que reúne condições físicas (geográficas e ecológicas) e
estratégicas que permitem compor, a partir de uma família extensa com chefia espiritual própria, um espaço político-social fundamentado na religião
e na agricultura de subsistência (Ladeira, 1992, 97). Para que se desenvolvam relações de reciprocidade entre os diversos tekoa Mbya é preciso,
pois, que estes, em seu conjunto, apresentem certas constantes ambientais (matas preservadas, solo para agricultura, nascentes etc.) que
permitam aos Mbya exercerem seu “modo de ser” e aplicar suas regras sociais. As aldeias Guarani podem ser formadas a partir de uma família
extensa desde que tenha uma chefia espiritual e política própria. O contingente populacional das aldeias Guarani Mbya varia, em média, entre 20 a
200 pessoas, compondo unidades familiares integradas pela chefia espiritual e política.A organização espacial interna das aldeias é determinada
pelas relações de afinidade e consanguinidade. Segundo os padrões tradicionais Guarani, a família extensa é composta, em princípio, pelo casal,
filhas, genros e netos, constituindo-se numa unidade de produção e consumo.Atualmente, a família extensa, ainda que tenha algumas variantes na
sua composição, é a unidade de produção. Porém, a “propriedade” das roças e o consumo dos produtos é da família elementar, depois do
nascimento dos filhos do casal. Isto não exclui os serviços nas roças do sogro e a realização de mutirões entre as famílias.
Entre os Mbya, a liderança espiritual é exercida pelo Tamoi (avô, genérico) e seus auxiliares (yvyraija), podendo ser exercida também por
mulheres Kunhã Karai.Atualmente, cada comunidade tem um chefe político, o cacique, ao qual estão subordinadas jovens lideranças para
intermediar nas relações entre a comunidade indígena e os representantes do Estado e vários setores da sociedade civil.Até meados da década de
1990 era comum, entre os Mbya, o líder espiritual e religioso exercer também a chefia política na comunidade. Em períodos de muitas atribulações
decorrentes do contato, como ocorre atualmente, esta prática é impossível pois o líder espiritual precisa ser preservado.
Casa de reza
Os Mbya (e os Ñandeva) constroem e mantém uma casa para a prática de rezas e rituais coletivos, opy guaçu, localizada próxima ou
mesmo agregada à casa do tamõi. As práticas religiosas dos Mbya são freqüentes e se estendem por muitas horas. Orientadas pelo dirigente
espiritual as “rezas” - realizadas através de cantos, danças e discursos - também voltam-se às situações e necessidades corriqueiras
(colheita, ausência ou excesso de chuva, problemas familiares, acontecimentos importantes, imprevistos etc.).
2. A principal cerimônia realizada na Opy é o Nheemongarai, quando os cultivos tradicionais são colhidos e “abençoados” e são atribuídos os
nomes às crianças nascidas no período. O nheemongarai deve coincidir com a época dos ‘tempos novos’ (ara pyau), caracterizado pelos fortes
temporais que ocorrem no verão.Assim, a associação entre a colheita do milho e a cerimônia do seu ‘benzimento’ e da atribuição dos nomes-almas
impõe o calendário agrícola e a permanência das famílias nas aldeias (Ladeira, 1992).
O acervo mitológico Guarani é extremamente rico e complexo. Entre os autores, León Cadogan, é o que realizou a maior compilação de
mitos clássicos e contos Mbya. Por sua vez, os Mbya vêm incorporando, ao seu acervo mitológico, interpretações e acontecimentos vividos e
veiculados entre eles, ao longo de sua história. Para os Mbya o cotidiano está impregnado de relações míticas, advindas da comunicação com as
divindades. Assim, “as tradições são postas em prática secularmente, segundo os princípios dos mitos que fundamentam o pensamento e ações
dos Mbya” (Ladeira, 1992).
Sistema produtivo
O ciclo das atividades (subsistência e rituais) é definido por dois tempos que equivalem a duas estações: ara pyau e ara yma.A esses
tempos correspondem o “calor” (primavera-verão) e o “frio” (outono-inverno).
Para os Guarani, a agricultura é a atividade estrutural da vida comunitária. Pode-se dizer que, para os Mbya o significado da agricultura se
encontra na sua própria possibilidade de realização e no que isto implica: organização interna, reciprocidade, intercâmbios de sementes e espécies,
experimentos, rituais, renovação dos ciclos. Desse modo, a agricultura faz parte de um sistema mais amplo que envolve aspectos da organização
social e princípios éticos e simbólicos fundamentados antes na dinâmica temporal de renovação dos ciclos, do que na quantidade e disponibilidade
de alimento para consumo (Ladeira, 2001). Pode-se dizer que os Mbya não vivem da agricultura, porém não vivem sem ela.
Os Guarani possuem cultivos tradicionais (variedades de milho e outros grãos, tubérculos etc.) que impõem cuidados maiores na
observação das regras e dos períodos de plantio e colheita porque, ao contrário dos outros cultivos, interagem com as demais esferas da vida e
sua reprodução é condicionante para a realização dos rituais, sobretudo do nheemongarai. Esta cerimônia é exclusiva às plantas tradicionais, isto
é às variedades cultivadas secularmente pelos Guarani, que não misturaram-se às espécies alheias.Aos cultivares dos brancos os Mbya chamam
genericamente de tupi (avati tupi, Kumanda tupi – “feijão”). As áreas cultivadas possuem, em média, 1/2 a 3 ha, dependendo da disponibilidade e
qualidade da terra e da força de trabalho. Plantam frutíferas e espécies utilizadas como remédios ao redor das casas. Coletam frutos silvestres e
material (paus, cipós, taquaras, palhas etc.) para confecção de artesanato, pequenas armadilhas e casas. Embora sendo fonte de alimento, a
caça não é prática corriqueira entre os Guarani. Essa atividade envolve outros significados práticos e simbólicos que só terão continuidade com a
sobrevivência das espécies. Possuem regras rigorosas de consumo que implicam em seletividade e sazonalidade.A atividade de caça, apesar de
sua importância social e cultural, vem diminuindo em razão da fragmentação das áreas de mata e de outros agentes de pressão na fauna da Mata
Atlântica. O artesanato é uma atividade que foi incorporada pelos Guarani e implica em várias etapas de trabalho. O produto é um bem que
pertence à família (família nuclear) em todos os seus aspectos (criação, valor, etc.), sendo de sua responsabilidade todo o processo de realização
– coleta e corte de matéria prima na época certa (observando o calendário lunar), qualidade do material (natural e artificial) e da confecção,
guarda, preço e venda.As tarefas, da produção à venda, são distribuídas entre os membros da família, segundo critérios de idade, sexo e aptidão.
Esta atividade também se insere na dinâmica de intercâmbios (matéria prima e peças) entre famílias.Até o momento, os Guarani mantém a
autonomia e controle da mesma, o que garantiu a sua inserção e incorporação no conjunto de suas práticas tradicionais. Todavia, os artefatos de
uso (doméstico, ritual, corporal) não se confundem com os produzidos para a venda.
De um modo geral, os Guarani Mbya poucas vezes trabalham fora da comunidade e quando o fazem é sempre de forma temporária. Sendo
assim, o comércio do artesanato é ainda a principal fonte de renda.
Nos últimos anos alguns jovens vêm sendo contratados como agentes sanitários e de saúde e professores indígenas, pelo
Estado. Para saber mais consulte - Ladeira: “Espaço Geográfco Guaran-mbya: significado, constituição e uso”. FFLCH / USP, 2001.