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Universidade Federal de Goiás
Reitora
Angelita Pereira de Lima
Vice-Reitor
Jesiel Freitas Carvalho
Diretora do Cegraf UFG
Maria Lucia Kons
BRUNO FERREIRA
Cegraf UFG
2024
© Cegraf UFG, 2024
© Bruno Ferreira, 2024
Capa, projeto gráfico e diagramação
Bruno Oubam
Laryssa Tavares
INTRODUÇÃO1
O presente texto decorre da tese de doutorado
defendida na Faculdade de Educação, da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS. Con-
siderando a peculiaridade dos povos indígenas, as
tradições histórico-culturais específicas, é possí-
vel buscar outros caminhos para a construção de
conhecimentos a partir dos povos indígenas num
movimento decolonial.
1 Bruno Ferreira possui Graduação em História - Licenciatura Plena
pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande
do Sul- UNIJUI. Especialista em Educação, Diversidade e Cultura In-
dígena pela Escola Superior de Teologia-EST, São Leopoldo; Mestre
e doutor em educação pela Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS, Brasil; Pesquisador do Grupo
de pesquisa PEABIRU- Educação ameríndia e Interculturalidade da
Faculdade de educação-UFRGS. Coordenador adjunto do Saberes
Indígenas na Escola- Núcleo UFRGS. Pesquisador da educação esco-
lar e educação indígena- Métodos próprios de aprendizagem; Peda-
gogia Kaingang; Políticas públicas para educação escolar indígena.
Professor de História; História da Educação; Direitos Indígenas no
Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel –
Terra Indígena Inhacorá, São Valério do Sul-RS, Brasil.
6
Trago reflexões sobre alguns desses caminhos
utilizados pelos Kaingang na produção de seus co-
nhecimentos ancestrais, considerando os processos
de transmissão, os quais sustentam esse povo. Nes-
se sentido, Tonico Benites (2012) diz que no proces-
so de transmissão de conhecimentos as lideranças
são os suportes agregadores e produtores de co-
nhecimentos, como o avô e a avó, o pai e a mãe das
crianças são pessoas fundamentais.
Esses são aspectos que precisam ser levados em
conta para compreender a escola atual e o seu pa-
pel nas comunidades Kaingang. É importante reco-
nhecer os avanços da educação escolar indígena, no
tocante a legislação, mas, igualmente compreender
que muito ainda precisa ser feito em relação a sua
construção prática: sobre o comportamento desta
instituição diante dos conhecimentos indígenas e
suas relações cotidianas, o lugar e o tempo da crian-
ça, dos pais, da comunidade indígena nesta escola.
Acredito ser necessário buscar conceitos pró-
prios para sustentar a educação escolar indígena
(Kaingang) que possam redirecionar a escola nas
terras Kaingang. Evidenciar o lugar de construção
de conhecimentos indígenas que consideram a tra-
dição cultural, os costumes, os valores, os saberes,
a visão de mundo própria. É necessário compreen-
der porque e como esses conhecimentos são (in)
visíveis, invisibilizados e (in)compreendidos na e
pela escola. E, do mesmo modo, é necessário dizer
e compreender que a escola só é um espaço a mais
na construção de conhecimentos diante da ampli-
tude de tempos e lugares da educação própria que
está vinculada a uma ancestralidade.
O LUGAR DE
CONSTRUÇÃO DE
CONHECIMENTOS
INDÍGENAS
Caminhando com essa compreensão a lín-
gua Kaingang ou a língua indígena é primordial
na construção do conhecimento: Ũn si ag tũ pẽ,
próprio dos Kaingang; aquilo que é dos Kaingang,
isso evoca as memórias dos velhos Kaingang para
mostrar o comportamento neste mundo, que está
baseado nas relações com o outro, esse outro re-
presentado no conjunto de elementos, artefatos do
povo, seus territórios, suas relações de afeto com a
natureza, as memórias do passado-presente. Com
essa compreensão, para os Kaingang, as plantas,
as árvores das florestas têm vida, alma, espírito. Ka
tãn é a força espiritual das árvores; Nãn tãn, a for-
8
ça espiritual da mata, o dono da mata. Ambos são
entrelaçamentos legítimos da existência dos indí-
genas, não são separados, como razão e emoção
na concepção ocidental.
Quando um Kaingang entra na floresta, no mato,
precisa pedir permissão para esses espíritos - Nãn
tãn, e respeitar seus territórios, pois, assim não cor-
rerá nenhum risco, como por exemplo de se per-
der e ficar vagando, sem saída. Outro exemplo de
muito respeito é quando uma pessoa Kaingang vai
tirar remédios para fazer seus rituais de cura: antes
de cortar, tirar a raiz, folhas, casca da árvore pre-
cisa conversar com ela, relatando a sua importân-
cia para fazer a cura, num gesto de respeito com a
ancestralidade presente na natureza. Esse respeito
fica bem evidenciado na festa do Kiki, na derrubada
do Pinheiro para fazer o coxo onde será preparada
a bebida. Nessa relação não existe uma separação
entre homem e natureza, numa resistência ao “dua-
lismo novo e radical que separa a natureza da so-
ciedade, o corpo da razão” (QUIJANO, 2005 p.138),
próprio da concepção ocidental.
Diante disso, destaco os conhecimentos Kaingang,
produzidos a partir de outras formas de ver o mun-
do, seu modo de convivência plena na relação com
o outro, de construção e transmissão de valores
culturais vindos da relação com a natureza, o es-
paço onde busca inspiração para compreensão de
suas realidades. Nesse sentido, quando o Kaingang
vai para floresta, quer escutar o movimento dos
rios, suas vozes, o canto dos pássaros, o vento que
9
balança os galhos das árvores, escutar o silêncio
da madrugada, compreender os movimentos dos
espíritos presentes nesses territórios, compreender
onde e até quando se pode permanecer na flores-
ta. “Todos querem escutar as palavras dos espíritos
que carregam suas imagens para os confins da flo-
resta e do céu”, diz Davi Kopenawa (2015, p.167).
No entanto, a devastação das florestas nas terras
indígenas Kaingang vem aumentando, isso torna a
vida mais desafiadora, pois seus valores tradicionais
correm riscos de serem confundidos com modelos
de desenvolvimento suicidas.
Para compreender a construção de conheci-
mentos é importante fazer um esforço para en-
tender tempo espaço para os Kaingang, na sua
profundidade, de maneira contextualizada. Tenta-
rei contextualizar aqui, partindo da ideia de que o
tempo está no espaço assim como o espaço está
no tempo, que são articulados nas narrativas des-
se povo, compreendendo que elas são significati-
vas nas construções e reconstruções das experiên-
cias vivenciadas- vãsỹ (tempos-espaços passados).
Essas narrativas têm uma ligação afetiva entre o
passado e o presente – Ũri (tempo-espaço presen-
te) em que não é possível separar o passado do
presente, pois tpossui a ligação nas experiências
construídas ao longo de tempo ancestral: desse
modo, tempo-espaço estarão sempre conectados,
formando um único corpo. Maria Conceição de La-
cerda (2018), fala que cada espaço tem seu tempo
e cada tempo seu espaço. O tempo de fazer roça,
10
o tempo de plantar, o tempo de esperar a planta
crescer e produzir, o tempo ritual, o tempo comum
do cotidiano e o tempo da história, todos com seu
espaço-tempo.
Nesse sentido, os Kaingang possuem vários
marcadores de tempo: tempo para preparo das
roças; tempo de semear determinadas sementes;
tempo para esperar a planta crescer e amadurecer;
tempo de colheita e seu armazenamento; tempo
para os rituais; tempo para fazer narrativas comuns
de seu cotidiano e as explicações de seu mundo, as
narrativas místicas.
Figura 1 - Calendário construído na comunidade kaingang da
T.I. Inhacorá, RS.
Fonte: acervo do autor
Os Kaingang têm inúmeras formas de contar seus
tempos-espaços que podem ser o canto de pássaro,
11
de animais, o aparecimento de diversos sinais na na-
tureza. Nessa compreensão de unidade homem-na-
tureza, tempo-espaço como parte única, que pode
ser representada na palavra kanhkã – em que uma
das traduções mais aproximada para a língua por-
tuguesa pode ser Céu, na compreensão Kaingang é
também parente, “Tỹ ẽg tóg jagnẽ kanhkã kar nỹtĩ”-
todos nós somos parentes.
O entendimento de kanhkã é que sustenta as
relações de equilíbrio entre as pessoas e a natu-
reza, tempo-espaço. Kanhkã, importante expressão
para demostrar tempo-espaço e suas relações no
mundo Kaingang. Importante destacar que vãsỹ
e Ũri são a circularidade da construção de conhe-
cimentos, passado-presente-passado, portanto a
construção do conhecimento entre os Kaingang
não está fragmentada e, sim conectada no mundo,
no território.
Ainda, Kanhkã é o conceito que sustenta as rela-
ções coletivas entre as pessoas e a natureza, o sen-
timento afetivo de pertencimento do individuo a
uma coletividade e a coletividade no individuo, uma
relação de equilíbrio com a natureza, na crença em
seus parentes, na produção da reciprocidade e da
complementaridade. Ainda, de forma mais ampla,
o respeito e o acolhimento do outro para a coletivi-
dade, esse outro que independe do pertencimento
a um povo indígena, respeitando suas diferenças e
especificidades, em uma prática intercultural.
Nesse sentido, o pesquisador e ativista Kaingang,
Douglas Rosa dize que:
12
Kanhkã extrapola o entendimento associado ao sen-
tido do termo na língua portuguesa. Trata-se de uma
trama que se atravessa na moral e na ética, uma re-
lação de mutualidade e cooperação recíproca. É um
valor de imanente plenitude, uma vez que constante-
mente se reatualiza na ancestralidade seus princípios
e valores fundados no respeito à cosmologia que
permite o equilíbrio coletivo do povo constituindo a
filosofia de vida, de viver e o estar juntos. (Comunica-
ção oral com Douglas Rosa, 08/2020).
A complementaridade entre humano-natureza
perpassa o individual e está presente na vida cole-
tiva cotidiana dos Kaingang. A existência de cada
um desses elementos da cosmologia é imprescin-
dível para o equilíbrio da vida coletiva. É impor-
tante salientar que esta é, por sua natureza, uma
concepção antirracista. Como uma compreensão
filosófica que foi abafada, silenciada pela filosofia
colonial que impôs o individualismo e a separação
entre humano e natureza, humanos entre huma-
nos fundamentando o racismo e invisibilizando os
conhecimentos dos Kaingang.
Com esse entendimento, a concepção de es-
paço-tempo Kaingang é o acumulo das relações
de todos os tempos e, portanto, são as expe-
riências herdadas e acumuladas nas tradições do
povo Kaingang. Espaço-tempo andam juntos, in-
dissociáveis, reflexos das ancestralidades presentes
nas construções/reconstruções de conhecimentos
reconectados entre as pessoas por metodologias
próprias que permitem a fala e a escuta dos sujeitos
desses saberes. A imagem abaixo mostra o profes-
13
sor Kaingang Natalino Góg Crespo (em memória)
vivenciando outro espaço-tempo na construção do
conhecimento, em uma metodologia própria circu-
lar de fala e escuta equilibrada.
Figura 2 - Setor Missão, T. Indígena Guarita,RS.
Fonte: Arquivo da E.E.I.E.F Davi Rỹgjo Fernandes.
Isso significa que as construções dos conheci-
mentos não estão separadas, pois umas dependem
das outras representadas nas práticas do centro
para fora Vãsỹ; Uri. Vãsỹ, que são práticas ances-
trais, como: as narrativas, os cantos, as brincadei-
ras, a organização cosmológica, os fundamentos
dos conhecimentos Kaingang sobre o jeito próprio
de viver e se relacionar com o outro, seus proces-
sos próprios de ver o mundo, que pode ser o seu
mundo próprio, como também o mundo dos não
indígenas num movimento intercultural; Uri, são as
14
práticas desenvolvidas hoje, numa relação de con-
tinuidade do Vãsỹ, as festas ressignificadas, rituais
da tradição, coletas, pesca, criação de animais, pro-
dução de artesanatos, processos próprios de edu-
cação e práticas escolares - práticas ressignificadas
que ligam o passado e o presente, em que o futu-
ro está presente no passado. Essa compreensão é
muito importante para garantia do lugar dos co-
nhecimentos às gerações futuras Kaingang.
Apesar dos Kaingang serem submetidos a pro-
jetos de catequização e tantos outros que pregam
modelos de desenvolvimento que tentaram impor
outra língua, a portuguesa, e junto a isso outros
valores, que levou muitos Kaingang a não falarem
sua própria língua e até sentir vergonha de serem
indígenas, hoje, os Kaingang se mantêm com re-
sistência e resiliência, Luciano (2013), diz que a no-
ção de resiliência valoriza exatamente a capacidade
ativa e reativa dos sujeitos indígenas que muitas
vezes se negam a serem vítimas passivas ou rea-
tivas em nome do protagonismo e da autonomia
própria, mesmo em situações que aparentam ou
que se apresentam discursivamente como vítimas,
vencidas ou dominadas. Isso não significa o aban-
do da resistência, que foi muito importante para a
manutenção das tradições, costumes, língua, o jeito
de ser indígena, mas sim, ajuda a dar conta dos
novos contextos vividos pelos Kaingang, inclusive a
presença da escola na educação das crianças.
15
Isso permite que os Kaingang acreditem em
seus parentes, pessoas do próprio povo e dos de-
mais povos indígenas, independente de seu per-
tencimento, os remetendo ao fortalecimento da
vida fundamentado na reciprocidade: “o funda-
mento desta proposição são as relações de equilí-
brio e reciprocidade entre todas as formas de vida
existentes na natureza” (MARKUS. 2018, p. 48). Não
se trata de uma atitude moral, mas de um princípio
regulador da vida comunitária, dos aspectos eco-
nômicos, culturais, sociais e políticos presente nos
gestos cotidianos, perpassando as formas de pro-
dução, consumo e socialização dos bens materiais.
Assim, a compreensão do espaço-tempo como
lugar de construção dos conhecimentos Kaingang
num conjunto de elementos da história, das tradi-
ções e da cultura, que não são isoladas do territó-
rio, do mesmo modo que não se separa o espaço
do tempo, pois esses se movimentam juntos e se
complementam na compreensão da existência in-
dígena.
Sendo assim, o espaço-tempo é compreendido
a partir da lógica de sua construção, das necessi-
dades que propiciam espaços naturais de conheci-
mentos e que, por meio de seus métodos/técnicas,
constroem, modificam e também são modificados
em seus contextos. O espaço-tempo é constituído
pelos rios, matas, moradias, pessoas, rituais, lugar
de pesca, caçadas, roças, que também são impor-
tantes para a existência coletiva. Esse espaço-tem-
po coletivo está carregado das marcas históricas de
16
lutas, de resistência, de desafios, das construções
e reconstruções de mundos que vão acontecendo
durante a existência, dos Kófa, os velhos, os jovens
e as crianças Kaingang.
Figura 3 - T. Indigena Nonoai
Foto: acervo do autor.
O espaço-tempo é percebido e compreendido
numa relação de afeto, identidade e pertencimen-
to, em que as crianças, os jovens e os velhos são
sujeitos na construção do conhecimento, do saber.
Os Kófa vão praticando suas histórias de lutas, o
jovem traz e constrói as suas experiências, as crian-
ças vivenciam e praticam o que viram e, assim, vão
construindo e compartilhando com o coletivo, vão
dando sentido ao contexto vivencial. Dessa forma,
17
vai sendo construído e enriquecido o conhecimen-
to na vida de cada sujeito presente, constituindo
um sujeito coletivo, relacionado ao conjunto que
forma o espaço em que se construiu e são construí-
dos os conhecimentos.
Os diálogos entre velhos, jovens e crianças, per-
mitem que todos sejam sujeitos da construção, e
que sejam importantes diante das mudanças que
vem ocorrendo em suas comunidades. Nesse pro-
cesso de construção de conhecimentos é importan-
te destacar que com as mudanças que vão aconte-
cendo nas comunidades indígenas, as crianças vão
se apropriando de outras formas de brincar, entre
esses estão os equipamentos eletrônicos como o
celular, nesse caso, as crianças vão adquirindo ou-
tras habilidades e se apropriando das tecnologias,
assim, podem promover a troca com os velhos,
aprendem as narrativas contadas por esses velhos
e do mesmo modo ensinam eles a vivenciar esses
outros contextos.
Nesse contexto do lugar de construção do co-
nhecimento, as brincadeiras representam uma ati-
vidade de movimento corporal, de fortalecimento
físico e de exteriorização de práticas ancestrais,
também representada na imagem acima. A brinca-
deira é a prática de experiências vivenciais construí-
da nas relações cotidianas com pessoas de idades
diferentes, é a prática das escutas. Pois as muitas
atividades não são separadas entre as crianças, jo-
vens e os adultos.
Podemos pensar que as brincadeiras são rituais
18
de transmissão de conhecimentos, de sabedorias
e isso constitui parte importante no aprendizado
das crianças. Essa relação afetiva entre as pessoas
e a natureza, possibilita as crianças desde seu nas-
cimento a vivenciar rituais de passagem de conhe-
cimentos ancestrais, passados por seus avós, avôs,
os velhos da comunidade e pessoas de suas idades.
Desse jeito, as crianças são preparadas para viver
sua vida de forma autônoma, isso faz com que elas
tenham muita liberdade de criação de suas brinca-
deiras e seus brinquedos que representam o con-
texto de suas vivências e isso não acontece de for-
ma aleatória, é uma construção coletiva e planejada
e, então, para as crianças basta experimentarem e
vivenciarem seus contextos.
Figura 4 - Vivências
Fonte: acervo do autor.
É importante ressaltar que as crianças realizam
tais brincadeiras não como uma atividade desco-
nectada de seu contexto, mas sim como uma ati-
vidade que representa o dia a dia dos adultos e
que são vivenciadas por todos. Portanto, podemos
dizer que as crianças estão dispostas a realizar ati-
vidades prestativas na manutenção das tradições,
19
dos valores, da cultura de seu povo e que dessa
forma vão sendo repassados de geração em ge-
ração. Como podemos ver, as crianças aprendem
nos mais diversos espaços-tempos, além do espaço
e do tempo escolar. Como bem sabemos a escola
é muito recente entre os Kaingang, e essa é uma
conversa mais adiante.
O povo Kaingang, ao longo dos tempos, assim
como outros povos indígenas, vão criando, ressig-
nificada formas de educação baseadas na tradição,
nos valores, rituais e crenças, nas línguas próprias,
articulando e dando significado as suas percepções
junto às crianças, jovens e adultos de suas comuni-
dades. Nesse sentido, o aprender-ensinar dos Kain-
gang para com suas crianças confere autonomia e
as afirma como sujeitos de suas ações e decisões.
A liberdade de ação da criança é muito importan-
te, sendo que a palavra “não” está excluída de seus
aprendizados e ensinamentos. Nunes (2002) corro-
bora em suas falas, referindo-se a outras socieda-
des indígenas do país:
Nas sociedades indígenas brasileiras […] a fase que
corresponde à infância é marcada pelo que consi-
deramos ser uma enorme liberdade na vivência do
tempo e do espaço, e das relações societárias que
por meio destes se estabelecem, antecedendo ao
período de transição para a idade adulta que, então,
inaugura limites e constrangimentos muito perigo-
sos. (NUNES, 2002, p. 65).
Nesse sentido, é muito comum as crianças in-
dígenas estarem envolvidas com as atividades do
cotidiano. Não é percebida uma separação de ser-
20
viços entre adultos e crianças: todos são capazes
de realizar o mesmo trabalho de acordo com suas
capacidades físicas. Assim, as crianças, ao viven-
ciarem o cotidiano, construindo e transmitindo
conhecimentos e saberes, vão tomando consciên-
cia de sua importância, não apenas voltadas para
uma atuação no futuro, mas parte efetiva e afetiva
de uma construção no presente, dentro de suas
tradições, valores e cultura. Nessa construção, o
aprender sempre está buscando no passado de
seus ancestrais pontos de convergências entre o
contexto e a vivência no presente e os aconteci-
mentos do passado.
Os Kaingang consideram a criança com capa-
cidade de construir e transmitir conhecimentos e,
assim, a respeitam como ela é, as aceitam como
partícipes ativas e efetivas em todos os processos
de construção de conhecimentos.
Um olhar mais simplista pode dizer que é uma
imitação. Porém, a imitação tem fundamentos im-
portantes na construção do conhecimento, no
aprendizado das crianças indígenas, pois as crian-
ças observam e fazem. A palavra imitação precisa
ser compreendida com mais profundidade em rela-
ção às crianças. Segundo Bergamaschi (2005):
A pessoa é, desde pequena, uma observadora da na-
tureza da qual se sente parte e a tem como fonte
inspiradora de vida e de educação, mas é também
uma observadora dos comportamentos de outras
pessoas. Especialmente os pequenos têm nos irmãos
maiores e nos adultos seus parâmetros e, através da
imitação, constroem seus comportamentos particula-
21
res. Nesse sentido, desde pequena, a pessoa obser-
va, inspirando-se naquilo que a rodeia, tendo como
exemplo as imagens que estão a sua disposição, bus-
cando assemelhar-se ao outro e a partir dai constituir
um comportamento, próprio, que também o distin-
ga. Imitam nas brincadeiras e nas demais situações
da vida, pois acompanham os adultos nas mais dife-
rentes atividades (BERGAMASCHI, 2005, p. 155).
Com esse entendimento, imitação é uma das
formas de aprendizagem que leva o desenvolvi-
mento das tradições, costumes, rituais, crenças, da
cultura e, assim, transfere informações e conheci-
mentos importantes entre indivíduos e coletivos,
por gerações. Imitar envolve e desenvolve a escu-
ta, o observar, o experimentar, o fazer junto e, do
seu modo, a criar um jeito próprio de construir a
partir do que observa. Com esse entendimento,
imitação é uma das formas de aprendizagem que
leva ao desenvolvimento das tradições, costumes,
crenças, da cultura e, assim, transfere informações
e conhecimentos importantes entre indivíduos e
coletivos, por gerações.
A construção do conhecimento da criança
Kaingang faz parte de sua cosmologia, do seu jei-
to de estar no mundo. A criança é parte legitima
e importante do cotidiano de sua comunidade, da
família e das demais pessoas do contexto vivencial.
O aprendizado é o resultado da elaboração con-
junta de vivências e práticas entre pessoas de vá-
rias idades e do ambiente em que está inserido.
O aprendizado da criança vem do exemplo a ela
apresentado, que é próprio do grupo familiar, da
22
comunidade, do seu povo e das demais sociedades
não indígenas. Esse modelo próprio de educação
do povo Kaingang precisa dialogar com a educa-
ção escolar presente nas terras indígenas.
Outro lugar, espaço-tempo de construção de
conhecimento Kaingang é a roda de chimarrão, o
chimarrão faz parte das culturas dos indígenas. A
roda de chimarrão transborda conhecimentos. Di-
zem os Kófa Kaingang (velhos Kaingang) que to-
mar o chimarrão ajuda a criar e passar boas ideias
para o outro, ajuda a resolver problemas, planejar
ações junto à comunidade e a família. A roda de
chimarrão normalmente acontece de dia, ao re-
dor do fogo, e como diz o professor pesquisador
Kaingang Dorvalino Refej Cardoso, “o fogo é para
esquentar as ideias, fortalecer as palavras, clarear
seus caminhos”.
Figura 5 - O Fogo
Foto: Arquivo próprio
O fogo aquece e aponta caminhos nas conversas
dos kófa (velhos), no acerto de problemas que en-
volvem as pessoas dentro da própria comunidade.
Constrói-se uma situação para que todos se mante-
23
nham calmos, sendo a “roda de chimarrão em torno
do fogo” uma ferramenta importante para facilitar o
diálogo. Por esses e outros motivos, o chimarrão é
um hábito que passa de geração a geração.
A cultura Kaingang é rica em narrativas, memó-
rias ancestrais, contos, seus mitos que são repassa-
dos nas rodas de conversas nos seu tempo-espaço
e ao redor do fogo. Nesse sentido é importante
destacar a língua materna Kaingang, pois nesses
espaços a oralidade é fundamental para construção
e reconstrução dos conhecimentos do povo, forta-
lecendo o pertencimento cultural. A língua é uma
ferramenta importante de poder político-social
como afirmação étnica, demarcação de território
epistemológico, a oralidade é assim fundamental
como lugar de construção de conhecimentos.
De maneira geral, os povos indígenas possuem
muitos espaços-tempos de construção de conheci-
mentos, seus territórios transbordam conhecimen-
tos que por muitos tempos ficaram na invisibilidade
e aos poucos vêm ocupando espaços nos ambien-
tes acadêmicos a partir de autorias que legitimam
e visibilizam esses conhecimentos milenares. Esses
conhecimentos precisam cada vez mais ocupar es-
paços e dialogar nas academias e escolas dentro e
fora das terras indígenas.
CONHECIMENTOS
KAINGANG E A
RELAÇÃO COM A
ESCOLA
Para que os conhecimentos indígenas dialo-
guem com a escola, precisamos recuperar alguns
caminhos, lugares já reconhecidos e desenvolvi-
dos pelos nossos velhos, conhecimentos que estão
presentes nas comunidades e que poderão definir
ou, ao menos, movimentar novos caminhos para a
escola, redefinindo seu papel. Colocar os conheci-
mentos Kaingang numa relação de equilíbrio com
os que foram introduzidos violentamente pela es-
cola aos Kaingang, abrir à força modelos arcaicos
de organização escolar.
25
Figura 6 - Construção dos estudantes do magistério aproveitamento
de estudo- História da educação/2023. Instituto Estadual de
Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, T.I Inhacorá, RS.
Fonte: acervo do autor.
Nesse sentido, provocar mudanças na cons-
trução das políticas públicas da educação escolar,
preocupando-se com os conhecimentos, os sabe-
res tradicionais, valores, rituais, cultura dos povos
indígenas e, de maneira especial do povo Kaingang.
Os conhecimentos, sua organização e processos
próprios de aprendizagem precisam estar presen-
tes na escola, de forma destacada, rompendo com
modelos escolares que vem se perpetuando há sé-
culos, de uma organização para tornar as pessoas
disciplinadas. Como nos diz Michel Foucault:
No século XVIII, começa a definir a grande forma de
repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de
alunos na sala, nos corredores, nos pátios; sucessão
dos assuntos ensinados, das questões tratadas se-
gundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse
conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno
segundo sua idade, seus desempenhos, seu compor-
tamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca
o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que
26
marcam uma hierarquia do saber ou das capacida-
des, outras devendo traduzir materialmente no espa-
ço da classe ou do colégio essa repartição de valores
ou dos méritos (Foucault, 1987, p.173)
Reconhecendo que, historicamente, a escola é
um espaço de imposição e assimilação de valores
não indígenas e de mercado, negadora das cultu-
ras e identidades originárias, a compreensão desses
processos arcaicos de organização escolar permite
que os conhecimentos indígenas ganhem espaços
e destaques nos processos metodológicos e espa-
ços de aprender e ensinar. Assim podemos pensar
a escola como um dos espaços de construção de
relações baseadas na interculturalidade, como uma
ferramenta de diálogo a partir do patrimônio de
conhecimentos dos povos indígenas e das socieda-
des ocidentais. A escola, neste sentido, poderá ser
o espaço para refletir a vida dos povos indígenas,
com as contradições que, em geral, permeiam as
relações de diferentes sociedades. Nesse entendi-
mento, Luciano (2013) diz que a interculturalidade
pressupõe considerar sujeitos coletivos, de direitos
e civilizações milenares, que não são nem melho-
res nem piores que as demais civilizações humanas.
Isso implica que numa relação de diálogo intercul-
tural, os diferentes povos e culturas precisam estar
em pé de igualdade e equilíbrio.
Nesse sentido, conferir uma função para a esco-
la como um espaço importante de fortalecimento
dos conhecimentos indígenas se faz necessário, su-
perando práticas de imposição de conhecimento,
27
ditas universais, mas que na sua maioria estão a
serviço de uma sociedade fundada na exploração
do outro pelo trabalho escravo como meio de ter
uma suposta vida boa, saudável e equilibrada.
É diante disso que consideramos necessário
abordar as problemáticas vividas nas escolas em
terras Kaingang, se faz necessário compreender
que os conhecimentos Kaingang são adquiridos ao
longo de suas vidas, construídos na coletividade,
nos mais diversos tempos-espaços existentes nas
terras indígenas, em que todos aprendem com o
outro, independente de sua idade.
Figura 7 - Roda de Conversa entre professores e estudantes/2023.
Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, T.I
Inhacorá, RS.
Fonte: acervo do autor.
Na nossa sociedade indígena acreditamos que
todos são capazes de interferir no processo do ou-
tro, fazendo um efeito de vai e vem entre passado-
-presente-passado. O futuro se constrói na com-
binação dessas relações de interdependência, do
28
mesmo modo que na relação interdependente na
vivência como povo. É dentro desse contexto que a
escola deve ser pensada, trançada como artesana-
to- Vãfy, em que cada detalhe é importante. Com-
preender a escola com esse sentido é um grande
desafio, como um espaço para experimentar os di-
ferentes comportamentos metodológicos na cons-
trução dos conhecimentos indígenas.
Nesse sentido, a oralidade, como já dito antes, e
o uso da língua materna são ferramentas potentes
para a aprendizagem, para a transmissão e a reela-
boração dos conhecimentos do povo. Acredito que
a escola deve ser um dos locais que possibilita a
criança Kaingang a fortalecer sua autonomia cons-
truída junto a sua comunidade e, mais do que isso,
seja aperfeiçoada na sua escolarização. Devemos
compreender a importância da oralidade como
processo estratégico, na valorização da língua ma-
terna Kaingang.
Andando na direção de construção de conheci-
mentos Kaingang na relação com a escola, o canto
é um método potente na construção e na transmis-
são de conhecimento e no processo de aprender.
Pode oferecer formas inovadoras para as práticas
pedagógicas em nossas escolas indígenas. O canto
tem vários significados, podendo ser de lamenta-
ção, na perda de um membro de seu povo, da fa-
mília, da comunidade e até a morte de um rio, de
plantas, floresta, animais, pois todos fazem parte do
mundo, da nossa cosmologia. Pode, também, ser
canto de alegrias, de conquistas, de nascimento, a
29
chegada de um novo ano, quando as esperanças
são renovadas para uma vida de abundância co-
letiva, festas, resultados de suas lutas, resistências,
cantos de lutas. Os cantos, as danças, as narrativas,
representam o reencantamento do mundo indíge-
na, uma conexão para o equilíbrio do mundo físico
e espiritual em um único corpo e espaço. Essa com-
preensão oferece outro olhar sobre a construção
epistemológica indígena.
Figura 8 - Líder espiritual kaingang, T.I. Inhacorá, RS
Fonte: acervo do autor.
30
Com essa compreensão, os indígenas, os pro-
fessores Kaingang e as pessoas em geral fazem
parte do todo e, por isso, trazem em suas manifes-
tações as experiências produzidas desde a ances-
tralidade. Pensando assim, a prática da oralidade
na língua Kaingang é fundamental para a constru-
ção de novas práticas de reconhecimento dos co-
nhecimentos,que devem ser os protagonistas em
nossas escolas, pois só desta maneira poderemos
nos aprofundar na tradição cultural do povo e ter
uma educação escolar Kaingang.
O conhecimento da cultura e da tradição é repassado
de geração a geração através da oralidade, assim os
mais velhos transmitem os mitos, os modos de vida,
a técnica de confeccionar os artesanatos e falar a lín-
gua kaingang [...] falo aqui da transmissão da sabe-
doria como práticas dos antigos: Kanhgág si ag tȳ
kinhrá ẽn ti. (CLAUDINO, 2013, p. 29)
Nesse sentido, a Roda de Conversa e a Oralidade
podem ser usadas como procedimentos metodo-
lógicos, não só para a construção e transmissão de
conhecimentos, mas para estruturar a compreen-
são e aprofundar as relações práticas em nossas
comunidades indígenas, mais diretamente na cons-
trução da educação escolar indígena específica, di-
ferenciada, multilíngue, intercultural e comunitária,
em que a educação não deve estar separada de
outras situações da vida.
Nesse tipo de conversa é de fundamental im-
portância trazer as experiências pessoais e coletivas
para o âmbito coletivo na construção do reconhe-
cimento dos conhecimentos indígenas que estão
31
invisíveis. Além de descrever as experiências e prá-
ticas da vida, valorizam as tradições, crenças, cos-
tumes, a cultura do povo Kaingang. É uma forma
de reconhecer e valorizar as relações produzidas
ao longo da história sejam coletivas ou individuais.
Igualmente, possibilita uma profunda reflexão, que
significa maior equilíbrio e rigor na busca da pro-
dução qualitativa, emergindo da descoberta indi-
vidual, acendendo ao conhecimento coletivo, ou
coletivo-individual, em que um depende do outro
no processo de construção.
São situações reflexivas que possibilitam com-
preender as invisibilidades dos conhecimentos indí-
genas na escola das terras indígenas e não indíge-
nas, com todas as dificuldades que se apresentam
desde sua implantação. É a busca de um instru-
mento de resiliência para os Kaingang, no senti-
do do fortalecimento de suas práticas educativas
tradicionais e culturais, se complementando com
outros conhecimentos, necessários para sua exis-
tência. Dessa forma, temos como pensar as escolas
nas terras indígenas, conferindo uma maior clareza
de sua função, identificando práticas que pouco se
diferenciam da escola colonizadora e integracionis-
ta para substituí-las por outras que tenham um sig-
nificado próprio, de afirmação e não de destruição.
Como já refletia há décadas atrás, pensado no
papel da escola, ainda hoje, essa preocupação é
necessária, pois a “a escola entra na comunidade
e se apossa da comunidade. Ela se torna dona da
comunidade e não a comunidade dona da escola”
32
(FERREIRA, 1997, p. 217).
Retomando uma perspectiva histórica das pri-
meiras escolas para indígenas, em que os indígenas
foram obrigados a aceitar esse pacote institucional,
a escola, de forma compulsória, inviabilizou por um
longo tempo a educação indígena. É diante disso
que precisamos nos debruçar, na compreensão
desse novo espaço de produção e transmissão de
conhecimentos chamado de escola, instituição que
desde sua implantação nas terras indígenas Kain-
gang serviu de ferramenta para introduzir e passar
valores da sociedade não indígena, forçando e des-
valorizando valores importantes de complementa-
ridade e reciprocidade entre parentes.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Diante disso, vale apontar alguns caminhos para
uma escola que valorize os mais variados conheci-
mentos construídos pelas sociedades humanas, em
especial a dos povos indígenas que buscam, com
muita sabedoria, estratégias para a manutenção de
seus conhecimentos ancestrais. Os processos pró-
prios das sociedades indígenas vão somar a expe-
riências escolares, com outras modalidades e for-
mas de aprender, construídos ao longo da história.
A escola, progressivamente, vai sendo apropria-
da pelos indígenas, em um movimento de autode-
terminação, como um lugar em que a relação entre
conhecimentos próprios e os conhecimentos das
demais sociedades deve se articular, constituindo
uma possibilidade política de divulgação de sabe-
res e valores importantes: a escola como um espaço
privilegiado da interculturalidade das sociedades.
34
Para tanto, se faz necessário compreender a cons-
trução das aprendizagens das crianças Kaingang na
sua relação com os demais membros de seu povo
e, além disso, acompanhar de forma mais siste-
mática os acontecimentos nas escolas, focando no
reconhecimento e afirmação dos conhecimentos
tradicionais Kaingang e sua relação com os conhe-
cimentos da sociedade não indígena, que ainda
são predominantes e, algumas vezes, únicos nas
escolas.
Construir, de forma mais firme e organizada, o
uso da escola como um espaço a mais de aprendi-
zagem e, igualmente, compreender a importância
dessa instituição para aquisição de conhecimentos
e técnicas imprescindíveis para a organização dos
indígenas diante dos contextos que se apresentam
cada vez mais complexos. Traduzir essas compreen-
sões é de extrema importância, pois não é só com-
preender o jeito que os indígenas se manifestam,
mas sim distinguir e valorizar esses conhecimen-
tos construídos ao longo dos tempos e que mui-
tas vezes foram apropriados pelos não indígenas,
deixando seus verdadeiros autores no anonimato.
Para não dizer sobre uma apropriação indevida dos
conhecimentos indígenas que, ao mesmo tempo
os coloca na condição de povo sem cultura, sem
conhecimento, sem saber, lhes negando conceitos
de vida construídos bem antes do aparecimento
dos brancos nessas terras, que hoje conhecemos
por Brasil.
É preciso reconhecer e assumir que os Kaingang
35
são produtores de conceitos e metodologias que ga-
rantem e qualificam a vida. Há a necessidade de tra-
balhar para que desses conhecimentos surjam novos
caminhos para a educação, que possam dar conta
dos processos de aprendizagem das crianças indíge-
nas, das pessoas e de suas atividades humanas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFICAS
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pretações indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012.
BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo´e. ¡Enquanto o encan-
to permanece! Processo e práticas de escolarização nas aldeias
Guarani. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Gra-
duação em Educação. UFRGS, 2005.
CARDOSO, Dorvalino Refej. Kanhgág Jykre Kar. Filosofia e Educação
Kanhgág e a oralidade: uma abertura de caminhos. Dissertação de
mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade
de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017.
CLAUDINO, Zaqueu Key. A formação da pessoa nos pressupostos
da tradição: Educação Indígena Kanhgág. Dissertação de Mestrado.
Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, 2013.
FERREIRA, Bruno. ŨN SI AG TŨ PẼ KI VẼNH KAJRÃNRÃN FÃ: O pa-
pel da escola nas comunidades Kaingang. Porto Alegre, RS: CirKula,
2023.
FERREIRA, Bruno. Obstáculo à autonomia das escolas indígenas. In:
Leitura e escrita em escolas indígenas: Encontro de educação indí-
gena no 10º COLE/1995. Wilmar D`Angelis e Juracilda Veiga (Org.).
Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1997.
37
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução
de Raquel Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
KOPENAWA, Davi e Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. São Paulo; Companhia das letras, 2015.
LACERDA, Maria Conceição de. O tempo e o espaço na concepção
indígena zoró. Revista Saberes da UNIJIPA, v. 02, 2018, p. 130-142.
LUCIANO, Gersem José dos Santos. Educação para o manejo do
mundo: entre a escola ideal e a escola real. Os dilemas da educação
escolar indígena no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra Capa;
Laced, 2013.
MARKUS, Cledes. As contribuições da concepção indígena do bem
viver para a educação intercultural e descolonial. Tese de doutorado.
Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018.
NUNES, Ângela. No tempo e no espaço: brincadeiras das crian-
ças A´uwe- Xavante. In: SILVA, A. L.; MACEDO, A. V. L. S.; NUNES,
A. (orgs). Crianças Indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo:
FAPESP; Global; MARI, 2002.
SOBRE O EBOOK
Tipografia:
Publicação:
Segoe UI, Tzimmes
Câmpus Samambaia,
Goiânia-Goiás. Brasil.
CEP 74690-900
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  • 1.
  • 2. Universidade Federal de Goiás Reitora Angelita Pereira de Lima Vice-Reitor Jesiel Freitas Carvalho Diretora do Cegraf UFG Maria Lucia Kons
  • 4. © Cegraf UFG, 2024 © Bruno Ferreira, 2024 Capa, projeto gráfico e diagramação Bruno Oubam Laryssa Tavares
  • 5. INTRODUÇÃO1 O presente texto decorre da tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação, da Universi- dade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS. Con- siderando a peculiaridade dos povos indígenas, as tradições histórico-culturais específicas, é possí- vel buscar outros caminhos para a construção de conhecimentos a partir dos povos indígenas num movimento decolonial. 1 Bruno Ferreira possui Graduação em História - Licenciatura Plena pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul- UNIJUI. Especialista em Educação, Diversidade e Cultura In- dígena pela Escola Superior de Teologia-EST, São Leopoldo; Mestre e doutor em educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS, Brasil; Pesquisador do Grupo de pesquisa PEABIRU- Educação ameríndia e Interculturalidade da Faculdade de educação-UFRGS. Coordenador adjunto do Saberes Indígenas na Escola- Núcleo UFRGS. Pesquisador da educação esco- lar e educação indígena- Métodos próprios de aprendizagem; Peda- gogia Kaingang; Políticas públicas para educação escolar indígena. Professor de História; História da Educação; Direitos Indígenas no Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel – Terra Indígena Inhacorá, São Valério do Sul-RS, Brasil.
  • 6. 6 Trago reflexões sobre alguns desses caminhos utilizados pelos Kaingang na produção de seus co- nhecimentos ancestrais, considerando os processos de transmissão, os quais sustentam esse povo. Nes- se sentido, Tonico Benites (2012) diz que no proces- so de transmissão de conhecimentos as lideranças são os suportes agregadores e produtores de co- nhecimentos, como o avô e a avó, o pai e a mãe das crianças são pessoas fundamentais. Esses são aspectos que precisam ser levados em conta para compreender a escola atual e o seu pa- pel nas comunidades Kaingang. É importante reco- nhecer os avanços da educação escolar indígena, no tocante a legislação, mas, igualmente compreender que muito ainda precisa ser feito em relação a sua construção prática: sobre o comportamento desta instituição diante dos conhecimentos indígenas e suas relações cotidianas, o lugar e o tempo da crian- ça, dos pais, da comunidade indígena nesta escola. Acredito ser necessário buscar conceitos pró- prios para sustentar a educação escolar indígena (Kaingang) que possam redirecionar a escola nas terras Kaingang. Evidenciar o lugar de construção de conhecimentos indígenas que consideram a tra- dição cultural, os costumes, os valores, os saberes, a visão de mundo própria. É necessário compreen- der porque e como esses conhecimentos são (in) visíveis, invisibilizados e (in)compreendidos na e pela escola. E, do mesmo modo, é necessário dizer e compreender que a escola só é um espaço a mais na construção de conhecimentos diante da ampli- tude de tempos e lugares da educação própria que está vinculada a uma ancestralidade.
  • 7. O LUGAR DE CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTOS INDÍGENAS Caminhando com essa compreensão a lín- gua Kaingang ou a língua indígena é primordial na construção do conhecimento: Ũn si ag tũ pẽ, próprio dos Kaingang; aquilo que é dos Kaingang, isso evoca as memórias dos velhos Kaingang para mostrar o comportamento neste mundo, que está baseado nas relações com o outro, esse outro re- presentado no conjunto de elementos, artefatos do povo, seus territórios, suas relações de afeto com a natureza, as memórias do passado-presente. Com essa compreensão, para os Kaingang, as plantas, as árvores das florestas têm vida, alma, espírito. Ka tãn é a força espiritual das árvores; Nãn tãn, a for-
  • 8. 8 ça espiritual da mata, o dono da mata. Ambos são entrelaçamentos legítimos da existência dos indí- genas, não são separados, como razão e emoção na concepção ocidental. Quando um Kaingang entra na floresta, no mato, precisa pedir permissão para esses espíritos - Nãn tãn, e respeitar seus territórios, pois, assim não cor- rerá nenhum risco, como por exemplo de se per- der e ficar vagando, sem saída. Outro exemplo de muito respeito é quando uma pessoa Kaingang vai tirar remédios para fazer seus rituais de cura: antes de cortar, tirar a raiz, folhas, casca da árvore pre- cisa conversar com ela, relatando a sua importân- cia para fazer a cura, num gesto de respeito com a ancestralidade presente na natureza. Esse respeito fica bem evidenciado na festa do Kiki, na derrubada do Pinheiro para fazer o coxo onde será preparada a bebida. Nessa relação não existe uma separação entre homem e natureza, numa resistência ao “dua- lismo novo e radical que separa a natureza da so- ciedade, o corpo da razão” (QUIJANO, 2005 p.138), próprio da concepção ocidental. Diante disso, destaco os conhecimentos Kaingang, produzidos a partir de outras formas de ver o mun- do, seu modo de convivência plena na relação com o outro, de construção e transmissão de valores culturais vindos da relação com a natureza, o es- paço onde busca inspiração para compreensão de suas realidades. Nesse sentido, quando o Kaingang vai para floresta, quer escutar o movimento dos rios, suas vozes, o canto dos pássaros, o vento que
  • 9. 9 balança os galhos das árvores, escutar o silêncio da madrugada, compreender os movimentos dos espíritos presentes nesses territórios, compreender onde e até quando se pode permanecer na flores- ta. “Todos querem escutar as palavras dos espíritos que carregam suas imagens para os confins da flo- resta e do céu”, diz Davi Kopenawa (2015, p.167). No entanto, a devastação das florestas nas terras indígenas Kaingang vem aumentando, isso torna a vida mais desafiadora, pois seus valores tradicionais correm riscos de serem confundidos com modelos de desenvolvimento suicidas. Para compreender a construção de conheci- mentos é importante fazer um esforço para en- tender tempo espaço para os Kaingang, na sua profundidade, de maneira contextualizada. Tenta- rei contextualizar aqui, partindo da ideia de que o tempo está no espaço assim como o espaço está no tempo, que são articulados nas narrativas des- se povo, compreendendo que elas são significati- vas nas construções e reconstruções das experiên- cias vivenciadas- vãsỹ (tempos-espaços passados). Essas narrativas têm uma ligação afetiva entre o passado e o presente – Ũri (tempo-espaço presen- te) em que não é possível separar o passado do presente, pois tpossui a ligação nas experiências construídas ao longo de tempo ancestral: desse modo, tempo-espaço estarão sempre conectados, formando um único corpo. Maria Conceição de La- cerda (2018), fala que cada espaço tem seu tempo e cada tempo seu espaço. O tempo de fazer roça,
  • 10. 10 o tempo de plantar, o tempo de esperar a planta crescer e produzir, o tempo ritual, o tempo comum do cotidiano e o tempo da história, todos com seu espaço-tempo. Nesse sentido, os Kaingang possuem vários marcadores de tempo: tempo para preparo das roças; tempo de semear determinadas sementes; tempo para esperar a planta crescer e amadurecer; tempo de colheita e seu armazenamento; tempo para os rituais; tempo para fazer narrativas comuns de seu cotidiano e as explicações de seu mundo, as narrativas místicas. Figura 1 - Calendário construído na comunidade kaingang da T.I. Inhacorá, RS. Fonte: acervo do autor Os Kaingang têm inúmeras formas de contar seus tempos-espaços que podem ser o canto de pássaro,
  • 11. 11 de animais, o aparecimento de diversos sinais na na- tureza. Nessa compreensão de unidade homem-na- tureza, tempo-espaço como parte única, que pode ser representada na palavra kanhkã – em que uma das traduções mais aproximada para a língua por- tuguesa pode ser Céu, na compreensão Kaingang é também parente, “Tỹ ẽg tóg jagnẽ kanhkã kar nỹtĩ”- todos nós somos parentes. O entendimento de kanhkã é que sustenta as relações de equilíbrio entre as pessoas e a natu- reza, tempo-espaço. Kanhkã, importante expressão para demostrar tempo-espaço e suas relações no mundo Kaingang. Importante destacar que vãsỹ e Ũri são a circularidade da construção de conhe- cimentos, passado-presente-passado, portanto a construção do conhecimento entre os Kaingang não está fragmentada e, sim conectada no mundo, no território. Ainda, Kanhkã é o conceito que sustenta as rela- ções coletivas entre as pessoas e a natureza, o sen- timento afetivo de pertencimento do individuo a uma coletividade e a coletividade no individuo, uma relação de equilíbrio com a natureza, na crença em seus parentes, na produção da reciprocidade e da complementaridade. Ainda, de forma mais ampla, o respeito e o acolhimento do outro para a coletivi- dade, esse outro que independe do pertencimento a um povo indígena, respeitando suas diferenças e especificidades, em uma prática intercultural. Nesse sentido, o pesquisador e ativista Kaingang, Douglas Rosa dize que:
  • 12. 12 Kanhkã extrapola o entendimento associado ao sen- tido do termo na língua portuguesa. Trata-se de uma trama que se atravessa na moral e na ética, uma re- lação de mutualidade e cooperação recíproca. É um valor de imanente plenitude, uma vez que constante- mente se reatualiza na ancestralidade seus princípios e valores fundados no respeito à cosmologia que permite o equilíbrio coletivo do povo constituindo a filosofia de vida, de viver e o estar juntos. (Comunica- ção oral com Douglas Rosa, 08/2020). A complementaridade entre humano-natureza perpassa o individual e está presente na vida cole- tiva cotidiana dos Kaingang. A existência de cada um desses elementos da cosmologia é imprescin- dível para o equilíbrio da vida coletiva. É impor- tante salientar que esta é, por sua natureza, uma concepção antirracista. Como uma compreensão filosófica que foi abafada, silenciada pela filosofia colonial que impôs o individualismo e a separação entre humano e natureza, humanos entre huma- nos fundamentando o racismo e invisibilizando os conhecimentos dos Kaingang. Com esse entendimento, a concepção de es- paço-tempo Kaingang é o acumulo das relações de todos os tempos e, portanto, são as expe- riências herdadas e acumuladas nas tradições do povo Kaingang. Espaço-tempo andam juntos, in- dissociáveis, reflexos das ancestralidades presentes nas construções/reconstruções de conhecimentos reconectados entre as pessoas por metodologias próprias que permitem a fala e a escuta dos sujeitos desses saberes. A imagem abaixo mostra o profes-
  • 13. 13 sor Kaingang Natalino Góg Crespo (em memória) vivenciando outro espaço-tempo na construção do conhecimento, em uma metodologia própria circu- lar de fala e escuta equilibrada. Figura 2 - Setor Missão, T. Indígena Guarita,RS. Fonte: Arquivo da E.E.I.E.F Davi Rỹgjo Fernandes. Isso significa que as construções dos conheci- mentos não estão separadas, pois umas dependem das outras representadas nas práticas do centro para fora Vãsỹ; Uri. Vãsỹ, que são práticas ances- trais, como: as narrativas, os cantos, as brincadei- ras, a organização cosmológica, os fundamentos dos conhecimentos Kaingang sobre o jeito próprio de viver e se relacionar com o outro, seus proces- sos próprios de ver o mundo, que pode ser o seu mundo próprio, como também o mundo dos não indígenas num movimento intercultural; Uri, são as
  • 14. 14 práticas desenvolvidas hoje, numa relação de con- tinuidade do Vãsỹ, as festas ressignificadas, rituais da tradição, coletas, pesca, criação de animais, pro- dução de artesanatos, processos próprios de edu- cação e práticas escolares - práticas ressignificadas que ligam o passado e o presente, em que o futu- ro está presente no passado. Essa compreensão é muito importante para garantia do lugar dos co- nhecimentos às gerações futuras Kaingang. Apesar dos Kaingang serem submetidos a pro- jetos de catequização e tantos outros que pregam modelos de desenvolvimento que tentaram impor outra língua, a portuguesa, e junto a isso outros valores, que levou muitos Kaingang a não falarem sua própria língua e até sentir vergonha de serem indígenas, hoje, os Kaingang se mantêm com re- sistência e resiliência, Luciano (2013), diz que a no- ção de resiliência valoriza exatamente a capacidade ativa e reativa dos sujeitos indígenas que muitas vezes se negam a serem vítimas passivas ou rea- tivas em nome do protagonismo e da autonomia própria, mesmo em situações que aparentam ou que se apresentam discursivamente como vítimas, vencidas ou dominadas. Isso não significa o aban- do da resistência, que foi muito importante para a manutenção das tradições, costumes, língua, o jeito de ser indígena, mas sim, ajuda a dar conta dos novos contextos vividos pelos Kaingang, inclusive a presença da escola na educação das crianças.
  • 15. 15 Isso permite que os Kaingang acreditem em seus parentes, pessoas do próprio povo e dos de- mais povos indígenas, independente de seu per- tencimento, os remetendo ao fortalecimento da vida fundamentado na reciprocidade: “o funda- mento desta proposição são as relações de equilí- brio e reciprocidade entre todas as formas de vida existentes na natureza” (MARKUS. 2018, p. 48). Não se trata de uma atitude moral, mas de um princípio regulador da vida comunitária, dos aspectos eco- nômicos, culturais, sociais e políticos presente nos gestos cotidianos, perpassando as formas de pro- dução, consumo e socialização dos bens materiais. Assim, a compreensão do espaço-tempo como lugar de construção dos conhecimentos Kaingang num conjunto de elementos da história, das tradi- ções e da cultura, que não são isoladas do territó- rio, do mesmo modo que não se separa o espaço do tempo, pois esses se movimentam juntos e se complementam na compreensão da existência in- dígena. Sendo assim, o espaço-tempo é compreendido a partir da lógica de sua construção, das necessi- dades que propiciam espaços naturais de conheci- mentos e que, por meio de seus métodos/técnicas, constroem, modificam e também são modificados em seus contextos. O espaço-tempo é constituído pelos rios, matas, moradias, pessoas, rituais, lugar de pesca, caçadas, roças, que também são impor- tantes para a existência coletiva. Esse espaço-tem- po coletivo está carregado das marcas históricas de
  • 16. 16 lutas, de resistência, de desafios, das construções e reconstruções de mundos que vão acontecendo durante a existência, dos Kófa, os velhos, os jovens e as crianças Kaingang. Figura 3 - T. Indigena Nonoai Foto: acervo do autor. O espaço-tempo é percebido e compreendido numa relação de afeto, identidade e pertencimen- to, em que as crianças, os jovens e os velhos são sujeitos na construção do conhecimento, do saber. Os Kófa vão praticando suas histórias de lutas, o jovem traz e constrói as suas experiências, as crian- ças vivenciam e praticam o que viram e, assim, vão construindo e compartilhando com o coletivo, vão dando sentido ao contexto vivencial. Dessa forma,
  • 17. 17 vai sendo construído e enriquecido o conhecimen- to na vida de cada sujeito presente, constituindo um sujeito coletivo, relacionado ao conjunto que forma o espaço em que se construiu e são construí- dos os conhecimentos. Os diálogos entre velhos, jovens e crianças, per- mitem que todos sejam sujeitos da construção, e que sejam importantes diante das mudanças que vem ocorrendo em suas comunidades. Nesse pro- cesso de construção de conhecimentos é importan- te destacar que com as mudanças que vão aconte- cendo nas comunidades indígenas, as crianças vão se apropriando de outras formas de brincar, entre esses estão os equipamentos eletrônicos como o celular, nesse caso, as crianças vão adquirindo ou- tras habilidades e se apropriando das tecnologias, assim, podem promover a troca com os velhos, aprendem as narrativas contadas por esses velhos e do mesmo modo ensinam eles a vivenciar esses outros contextos. Nesse contexto do lugar de construção do co- nhecimento, as brincadeiras representam uma ati- vidade de movimento corporal, de fortalecimento físico e de exteriorização de práticas ancestrais, também representada na imagem acima. A brinca- deira é a prática de experiências vivenciais construí- da nas relações cotidianas com pessoas de idades diferentes, é a prática das escutas. Pois as muitas atividades não são separadas entre as crianças, jo- vens e os adultos. Podemos pensar que as brincadeiras são rituais
  • 18. 18 de transmissão de conhecimentos, de sabedorias e isso constitui parte importante no aprendizado das crianças. Essa relação afetiva entre as pessoas e a natureza, possibilita as crianças desde seu nas- cimento a vivenciar rituais de passagem de conhe- cimentos ancestrais, passados por seus avós, avôs, os velhos da comunidade e pessoas de suas idades. Desse jeito, as crianças são preparadas para viver sua vida de forma autônoma, isso faz com que elas tenham muita liberdade de criação de suas brinca- deiras e seus brinquedos que representam o con- texto de suas vivências e isso não acontece de for- ma aleatória, é uma construção coletiva e planejada e, então, para as crianças basta experimentarem e vivenciarem seus contextos. Figura 4 - Vivências Fonte: acervo do autor. É importante ressaltar que as crianças realizam tais brincadeiras não como uma atividade desco- nectada de seu contexto, mas sim como uma ati- vidade que representa o dia a dia dos adultos e que são vivenciadas por todos. Portanto, podemos dizer que as crianças estão dispostas a realizar ati- vidades prestativas na manutenção das tradições,
  • 19. 19 dos valores, da cultura de seu povo e que dessa forma vão sendo repassados de geração em ge- ração. Como podemos ver, as crianças aprendem nos mais diversos espaços-tempos, além do espaço e do tempo escolar. Como bem sabemos a escola é muito recente entre os Kaingang, e essa é uma conversa mais adiante. O povo Kaingang, ao longo dos tempos, assim como outros povos indígenas, vão criando, ressig- nificada formas de educação baseadas na tradição, nos valores, rituais e crenças, nas línguas próprias, articulando e dando significado as suas percepções junto às crianças, jovens e adultos de suas comuni- dades. Nesse sentido, o aprender-ensinar dos Kain- gang para com suas crianças confere autonomia e as afirma como sujeitos de suas ações e decisões. A liberdade de ação da criança é muito importan- te, sendo que a palavra “não” está excluída de seus aprendizados e ensinamentos. Nunes (2002) corro- bora em suas falas, referindo-se a outras socieda- des indígenas do país: Nas sociedades indígenas brasileiras […] a fase que corresponde à infância é marcada pelo que consi- deramos ser uma enorme liberdade na vivência do tempo e do espaço, e das relações societárias que por meio destes se estabelecem, antecedendo ao período de transição para a idade adulta que, então, inaugura limites e constrangimentos muito perigo- sos. (NUNES, 2002, p. 65). Nesse sentido, é muito comum as crianças in- dígenas estarem envolvidas com as atividades do cotidiano. Não é percebida uma separação de ser-
  • 20. 20 viços entre adultos e crianças: todos são capazes de realizar o mesmo trabalho de acordo com suas capacidades físicas. Assim, as crianças, ao viven- ciarem o cotidiano, construindo e transmitindo conhecimentos e saberes, vão tomando consciên- cia de sua importância, não apenas voltadas para uma atuação no futuro, mas parte efetiva e afetiva de uma construção no presente, dentro de suas tradições, valores e cultura. Nessa construção, o aprender sempre está buscando no passado de seus ancestrais pontos de convergências entre o contexto e a vivência no presente e os aconteci- mentos do passado. Os Kaingang consideram a criança com capa- cidade de construir e transmitir conhecimentos e, assim, a respeitam como ela é, as aceitam como partícipes ativas e efetivas em todos os processos de construção de conhecimentos. Um olhar mais simplista pode dizer que é uma imitação. Porém, a imitação tem fundamentos im- portantes na construção do conhecimento, no aprendizado das crianças indígenas, pois as crian- ças observam e fazem. A palavra imitação precisa ser compreendida com mais profundidade em rela- ção às crianças. Segundo Bergamaschi (2005): A pessoa é, desde pequena, uma observadora da na- tureza da qual se sente parte e a tem como fonte inspiradora de vida e de educação, mas é também uma observadora dos comportamentos de outras pessoas. Especialmente os pequenos têm nos irmãos maiores e nos adultos seus parâmetros e, através da imitação, constroem seus comportamentos particula-
  • 21. 21 res. Nesse sentido, desde pequena, a pessoa obser- va, inspirando-se naquilo que a rodeia, tendo como exemplo as imagens que estão a sua disposição, bus- cando assemelhar-se ao outro e a partir dai constituir um comportamento, próprio, que também o distin- ga. Imitam nas brincadeiras e nas demais situações da vida, pois acompanham os adultos nas mais dife- rentes atividades (BERGAMASCHI, 2005, p. 155). Com esse entendimento, imitação é uma das formas de aprendizagem que leva o desenvolvi- mento das tradições, costumes, rituais, crenças, da cultura e, assim, transfere informações e conheci- mentos importantes entre indivíduos e coletivos, por gerações. Imitar envolve e desenvolve a escu- ta, o observar, o experimentar, o fazer junto e, do seu modo, a criar um jeito próprio de construir a partir do que observa. Com esse entendimento, imitação é uma das formas de aprendizagem que leva ao desenvolvimento das tradições, costumes, crenças, da cultura e, assim, transfere informações e conhecimentos importantes entre indivíduos e coletivos, por gerações. A construção do conhecimento da criança Kaingang faz parte de sua cosmologia, do seu jei- to de estar no mundo. A criança é parte legitima e importante do cotidiano de sua comunidade, da família e das demais pessoas do contexto vivencial. O aprendizado é o resultado da elaboração con- junta de vivências e práticas entre pessoas de vá- rias idades e do ambiente em que está inserido. O aprendizado da criança vem do exemplo a ela apresentado, que é próprio do grupo familiar, da
  • 22. 22 comunidade, do seu povo e das demais sociedades não indígenas. Esse modelo próprio de educação do povo Kaingang precisa dialogar com a educa- ção escolar presente nas terras indígenas. Outro lugar, espaço-tempo de construção de conhecimento Kaingang é a roda de chimarrão, o chimarrão faz parte das culturas dos indígenas. A roda de chimarrão transborda conhecimentos. Di- zem os Kófa Kaingang (velhos Kaingang) que to- mar o chimarrão ajuda a criar e passar boas ideias para o outro, ajuda a resolver problemas, planejar ações junto à comunidade e a família. A roda de chimarrão normalmente acontece de dia, ao re- dor do fogo, e como diz o professor pesquisador Kaingang Dorvalino Refej Cardoso, “o fogo é para esquentar as ideias, fortalecer as palavras, clarear seus caminhos”. Figura 5 - O Fogo Foto: Arquivo próprio O fogo aquece e aponta caminhos nas conversas dos kófa (velhos), no acerto de problemas que en- volvem as pessoas dentro da própria comunidade. Constrói-se uma situação para que todos se mante-
  • 23. 23 nham calmos, sendo a “roda de chimarrão em torno do fogo” uma ferramenta importante para facilitar o diálogo. Por esses e outros motivos, o chimarrão é um hábito que passa de geração a geração. A cultura Kaingang é rica em narrativas, memó- rias ancestrais, contos, seus mitos que são repassa- dos nas rodas de conversas nos seu tempo-espaço e ao redor do fogo. Nesse sentido é importante destacar a língua materna Kaingang, pois nesses espaços a oralidade é fundamental para construção e reconstrução dos conhecimentos do povo, forta- lecendo o pertencimento cultural. A língua é uma ferramenta importante de poder político-social como afirmação étnica, demarcação de território epistemológico, a oralidade é assim fundamental como lugar de construção de conhecimentos. De maneira geral, os povos indígenas possuem muitos espaços-tempos de construção de conheci- mentos, seus territórios transbordam conhecimen- tos que por muitos tempos ficaram na invisibilidade e aos poucos vêm ocupando espaços nos ambien- tes acadêmicos a partir de autorias que legitimam e visibilizam esses conhecimentos milenares. Esses conhecimentos precisam cada vez mais ocupar es- paços e dialogar nas academias e escolas dentro e fora das terras indígenas.
  • 24. CONHECIMENTOS KAINGANG E A RELAÇÃO COM A ESCOLA Para que os conhecimentos indígenas dialo- guem com a escola, precisamos recuperar alguns caminhos, lugares já reconhecidos e desenvolvi- dos pelos nossos velhos, conhecimentos que estão presentes nas comunidades e que poderão definir ou, ao menos, movimentar novos caminhos para a escola, redefinindo seu papel. Colocar os conheci- mentos Kaingang numa relação de equilíbrio com os que foram introduzidos violentamente pela es- cola aos Kaingang, abrir à força modelos arcaicos de organização escolar.
  • 25. 25 Figura 6 - Construção dos estudantes do magistério aproveitamento de estudo- História da educação/2023. Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, T.I Inhacorá, RS. Fonte: acervo do autor. Nesse sentido, provocar mudanças na cons- trução das políticas públicas da educação escolar, preocupando-se com os conhecimentos, os sabe- res tradicionais, valores, rituais, cultura dos povos indígenas e, de maneira especial do povo Kaingang. Os conhecimentos, sua organização e processos próprios de aprendizagem precisam estar presen- tes na escola, de forma destacada, rompendo com modelos escolares que vem se perpetuando há sé- culos, de uma organização para tornar as pessoas disciplinadas. Como nos diz Michel Foucault: No século XVIII, começa a definir a grande forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: filas de alunos na sala, nos corredores, nos pátios; sucessão dos assuntos ensinados, das questões tratadas se- gundo uma ordem de dificuldade crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu compor- tamento, ocupa ora uma fila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa série de casas; umas ideais, que
  • 26. 26 marcam uma hierarquia do saber ou das capacida- des, outras devendo traduzir materialmente no espa- ço da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos (Foucault, 1987, p.173) Reconhecendo que, historicamente, a escola é um espaço de imposição e assimilação de valores não indígenas e de mercado, negadora das cultu- ras e identidades originárias, a compreensão desses processos arcaicos de organização escolar permite que os conhecimentos indígenas ganhem espaços e destaques nos processos metodológicos e espa- ços de aprender e ensinar. Assim podemos pensar a escola como um dos espaços de construção de relações baseadas na interculturalidade, como uma ferramenta de diálogo a partir do patrimônio de conhecimentos dos povos indígenas e das socieda- des ocidentais. A escola, neste sentido, poderá ser o espaço para refletir a vida dos povos indígenas, com as contradições que, em geral, permeiam as relações de diferentes sociedades. Nesse entendi- mento, Luciano (2013) diz que a interculturalidade pressupõe considerar sujeitos coletivos, de direitos e civilizações milenares, que não são nem melho- res nem piores que as demais civilizações humanas. Isso implica que numa relação de diálogo intercul- tural, os diferentes povos e culturas precisam estar em pé de igualdade e equilíbrio. Nesse sentido, conferir uma função para a esco- la como um espaço importante de fortalecimento dos conhecimentos indígenas se faz necessário, su- perando práticas de imposição de conhecimento,
  • 27. 27 ditas universais, mas que na sua maioria estão a serviço de uma sociedade fundada na exploração do outro pelo trabalho escravo como meio de ter uma suposta vida boa, saudável e equilibrada. É diante disso que consideramos necessário abordar as problemáticas vividas nas escolas em terras Kaingang, se faz necessário compreender que os conhecimentos Kaingang são adquiridos ao longo de suas vidas, construídos na coletividade, nos mais diversos tempos-espaços existentes nas terras indígenas, em que todos aprendem com o outro, independente de sua idade. Figura 7 - Roda de Conversa entre professores e estudantes/2023. Instituto Estadual de Educação Indígena Ângelo Manhká Miguel, T.I Inhacorá, RS. Fonte: acervo do autor. Na nossa sociedade indígena acreditamos que todos são capazes de interferir no processo do ou- tro, fazendo um efeito de vai e vem entre passado- -presente-passado. O futuro se constrói na com- binação dessas relações de interdependência, do
  • 28. 28 mesmo modo que na relação interdependente na vivência como povo. É dentro desse contexto que a escola deve ser pensada, trançada como artesana- to- Vãfy, em que cada detalhe é importante. Com- preender a escola com esse sentido é um grande desafio, como um espaço para experimentar os di- ferentes comportamentos metodológicos na cons- trução dos conhecimentos indígenas. Nesse sentido, a oralidade, como já dito antes, e o uso da língua materna são ferramentas potentes para a aprendizagem, para a transmissão e a reela- boração dos conhecimentos do povo. Acredito que a escola deve ser um dos locais que possibilita a criança Kaingang a fortalecer sua autonomia cons- truída junto a sua comunidade e, mais do que isso, seja aperfeiçoada na sua escolarização. Devemos compreender a importância da oralidade como processo estratégico, na valorização da língua ma- terna Kaingang. Andando na direção de construção de conheci- mentos Kaingang na relação com a escola, o canto é um método potente na construção e na transmis- são de conhecimento e no processo de aprender. Pode oferecer formas inovadoras para as práticas pedagógicas em nossas escolas indígenas. O canto tem vários significados, podendo ser de lamenta- ção, na perda de um membro de seu povo, da fa- mília, da comunidade e até a morte de um rio, de plantas, floresta, animais, pois todos fazem parte do mundo, da nossa cosmologia. Pode, também, ser canto de alegrias, de conquistas, de nascimento, a
  • 29. 29 chegada de um novo ano, quando as esperanças são renovadas para uma vida de abundância co- letiva, festas, resultados de suas lutas, resistências, cantos de lutas. Os cantos, as danças, as narrativas, representam o reencantamento do mundo indíge- na, uma conexão para o equilíbrio do mundo físico e espiritual em um único corpo e espaço. Essa com- preensão oferece outro olhar sobre a construção epistemológica indígena. Figura 8 - Líder espiritual kaingang, T.I. Inhacorá, RS Fonte: acervo do autor.
  • 30. 30 Com essa compreensão, os indígenas, os pro- fessores Kaingang e as pessoas em geral fazem parte do todo e, por isso, trazem em suas manifes- tações as experiências produzidas desde a ances- tralidade. Pensando assim, a prática da oralidade na língua Kaingang é fundamental para a constru- ção de novas práticas de reconhecimento dos co- nhecimentos,que devem ser os protagonistas em nossas escolas, pois só desta maneira poderemos nos aprofundar na tradição cultural do povo e ter uma educação escolar Kaingang. O conhecimento da cultura e da tradição é repassado de geração a geração através da oralidade, assim os mais velhos transmitem os mitos, os modos de vida, a técnica de confeccionar os artesanatos e falar a lín- gua kaingang [...] falo aqui da transmissão da sabe- doria como práticas dos antigos: Kanhgág si ag tȳ kinhrá ẽn ti. (CLAUDINO, 2013, p. 29) Nesse sentido, a Roda de Conversa e a Oralidade podem ser usadas como procedimentos metodo- lógicos, não só para a construção e transmissão de conhecimentos, mas para estruturar a compreen- são e aprofundar as relações práticas em nossas comunidades indígenas, mais diretamente na cons- trução da educação escolar indígena específica, di- ferenciada, multilíngue, intercultural e comunitária, em que a educação não deve estar separada de outras situações da vida. Nesse tipo de conversa é de fundamental im- portância trazer as experiências pessoais e coletivas para o âmbito coletivo na construção do reconhe- cimento dos conhecimentos indígenas que estão
  • 31. 31 invisíveis. Além de descrever as experiências e prá- ticas da vida, valorizam as tradições, crenças, cos- tumes, a cultura do povo Kaingang. É uma forma de reconhecer e valorizar as relações produzidas ao longo da história sejam coletivas ou individuais. Igualmente, possibilita uma profunda reflexão, que significa maior equilíbrio e rigor na busca da pro- dução qualitativa, emergindo da descoberta indi- vidual, acendendo ao conhecimento coletivo, ou coletivo-individual, em que um depende do outro no processo de construção. São situações reflexivas que possibilitam com- preender as invisibilidades dos conhecimentos indí- genas na escola das terras indígenas e não indíge- nas, com todas as dificuldades que se apresentam desde sua implantação. É a busca de um instru- mento de resiliência para os Kaingang, no senti- do do fortalecimento de suas práticas educativas tradicionais e culturais, se complementando com outros conhecimentos, necessários para sua exis- tência. Dessa forma, temos como pensar as escolas nas terras indígenas, conferindo uma maior clareza de sua função, identificando práticas que pouco se diferenciam da escola colonizadora e integracionis- ta para substituí-las por outras que tenham um sig- nificado próprio, de afirmação e não de destruição. Como já refletia há décadas atrás, pensado no papel da escola, ainda hoje, essa preocupação é necessária, pois a “a escola entra na comunidade e se apossa da comunidade. Ela se torna dona da comunidade e não a comunidade dona da escola”
  • 32. 32 (FERREIRA, 1997, p. 217). Retomando uma perspectiva histórica das pri- meiras escolas para indígenas, em que os indígenas foram obrigados a aceitar esse pacote institucional, a escola, de forma compulsória, inviabilizou por um longo tempo a educação indígena. É diante disso que precisamos nos debruçar, na compreensão desse novo espaço de produção e transmissão de conhecimentos chamado de escola, instituição que desde sua implantação nas terras indígenas Kain- gang serviu de ferramenta para introduzir e passar valores da sociedade não indígena, forçando e des- valorizando valores importantes de complementa- ridade e reciprocidade entre parentes.
  • 33. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante disso, vale apontar alguns caminhos para uma escola que valorize os mais variados conheci- mentos construídos pelas sociedades humanas, em especial a dos povos indígenas que buscam, com muita sabedoria, estratégias para a manutenção de seus conhecimentos ancestrais. Os processos pró- prios das sociedades indígenas vão somar a expe- riências escolares, com outras modalidades e for- mas de aprender, construídos ao longo da história. A escola, progressivamente, vai sendo apropria- da pelos indígenas, em um movimento de autode- terminação, como um lugar em que a relação entre conhecimentos próprios e os conhecimentos das demais sociedades deve se articular, constituindo uma possibilidade política de divulgação de sabe- res e valores importantes: a escola como um espaço privilegiado da interculturalidade das sociedades.
  • 34. 34 Para tanto, se faz necessário compreender a cons- trução das aprendizagens das crianças Kaingang na sua relação com os demais membros de seu povo e, além disso, acompanhar de forma mais siste- mática os acontecimentos nas escolas, focando no reconhecimento e afirmação dos conhecimentos tradicionais Kaingang e sua relação com os conhe- cimentos da sociedade não indígena, que ainda são predominantes e, algumas vezes, únicos nas escolas. Construir, de forma mais firme e organizada, o uso da escola como um espaço a mais de aprendi- zagem e, igualmente, compreender a importância dessa instituição para aquisição de conhecimentos e técnicas imprescindíveis para a organização dos indígenas diante dos contextos que se apresentam cada vez mais complexos. Traduzir essas compreen- sões é de extrema importância, pois não é só com- preender o jeito que os indígenas se manifestam, mas sim distinguir e valorizar esses conhecimen- tos construídos ao longo dos tempos e que mui- tas vezes foram apropriados pelos não indígenas, deixando seus verdadeiros autores no anonimato. Para não dizer sobre uma apropriação indevida dos conhecimentos indígenas que, ao mesmo tempo os coloca na condição de povo sem cultura, sem conhecimento, sem saber, lhes negando conceitos de vida construídos bem antes do aparecimento dos brancos nessas terras, que hoje conhecemos por Brasil. É preciso reconhecer e assumir que os Kaingang
  • 35. 35 são produtores de conceitos e metodologias que ga- rantem e qualificam a vida. Há a necessidade de tra- balhar para que desses conhecimentos surjam novos caminhos para a educação, que possam dar conta dos processos de aprendizagem das crianças indíge- nas, das pessoas e de suas atividades humanas.
  • 36. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BENITES, Tonico. A escola na ótica dos Ava Kaiowá: impactos e inter- pretações indígenas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2012. BERGAMASCHI, Maria Aparecida. Nhembo´e. ¡Enquanto o encan- to permanece! Processo e práticas de escolarização nas aldeias Guarani. Tese de Doutorado. Porto Alegre: Programa de Pós-Gra- duação em Educação. UFRGS, 2005. CARDOSO, Dorvalino Refej. Kanhgág Jykre Kar. Filosofia e Educação Kanhgág e a oralidade: uma abertura de caminhos. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2017. CLAUDINO, Zaqueu Key. A formação da pessoa nos pressupostos da tradição: Educação Indígena Kanhgág. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2013. FERREIRA, Bruno. ŨN SI AG TŨ PẼ KI VẼNH KAJRÃNRÃN FÃ: O pa- pel da escola nas comunidades Kaingang. Porto Alegre, RS: CirKula, 2023. FERREIRA, Bruno. Obstáculo à autonomia das escolas indígenas. In: Leitura e escrita em escolas indígenas: Encontro de educação indí- gena no 10º COLE/1995. Wilmar D`Angelis e Juracilda Veiga (Org.). Campinas, SP: ALB: Mercado de Letras, 1997.
  • 37. 37 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. KOPENAWA, Davi e Bruce Albert. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo; Companhia das letras, 2015. LACERDA, Maria Conceição de. O tempo e o espaço na concepção indígena zoró. Revista Saberes da UNIJIPA, v. 02, 2018, p. 130-142. LUCIANO, Gersem José dos Santos. Educação para o manejo do mundo: entre a escola ideal e a escola real. Os dilemas da educação escolar indígena no Alto Rio Negro. Rio de Janeiro: Contra Capa; Laced, 2013. MARKUS, Cledes. As contribuições da concepção indígena do bem viver para a educação intercultural e descolonial. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2018. NUNES, Ângela. No tempo e no espaço: brincadeiras das crian- ças A´uwe- Xavante. In: SILVA, A. L.; MACEDO, A. V. L. S.; NUNES, A. (orgs). Crianças Indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: FAPESP; Global; MARI, 2002.
  • 38. SOBRE O EBOOK Tipografia: Publicação: Segoe UI, Tzimmes Câmpus Samambaia, Goiânia-Goiás. Brasil. CEP 74690-900 Fone: (62) 3521-1358 https://cegraf.ufg.br