UMA BREVE HISTÓRIA DA CARDIOLOGIA NO BRASIL - DR. SÉRGIO BICHAT - ACADEMIA PARANAENSE DE MEDICINA
1. UMA BREVE HISTORIA DA CARDIOLOGIA NO BRASIL
No início do século XX, havia na Medicina apenas quatro áreas básicas: Clínica Médica,
Obstetrícia, Cirurgia Geral e Pediatria. A Oftalmologia e a Otorrinolaringologia eram especialidades
afins, geralmente exercidas conjuntamente e, da mesma forma a Traumatologia e Ortopedia, quase
sempre compartilhadas com a Cirurgia Geral. A Urologia e a Dermatologia são obviamente áreas
antigas dentre as especialidades médicas.
Na década de 30, a Cardiologia, em virtude do seu desenvolvimento e complexidade crescentes,
separou-se em definitivo da Clínica Médica, passando a constituir especialidade autônoma e bem
definida. Antes disso, porém, obras pioneiras já haviam surgido inclusive no Brasil. A primeira foi
“Moléstias do Coração e dos Grandes Vasos Arteriais”, de Martins Costa e Carlos Alvarenga,
publicados em 1898. Em 1909, Carlos Chagas e seus colaboradores, entre eles Gaspar Viana, Eurico
Villela e Margarino Torres, diagnosticaram a cardiopatia chagásica, primeiro grande estudo
científico de uma doença cardíaca no Brasil, ímpar e magnífica contribuição para a Cardiologia
mundial.
Logo começaram a chegar os primeiros eletrocardiógrafos, entre os quais o que Carlos Chagas
trouxe para o Instituto Manguinhos.
Em 1933 se deu a primeira tentativa da criação de uma “Sociedade Brasileira de Cardiologia e
Hematologia”, na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, sob a direção de Carlos Cruz
Lima. Finalmente , em 14 de agosto de 1943, os alunos do 3º Curso do Serviço de Cardiologia do
Hospital Municipal de São Paulo, liderados por Dante Pazzanese e Jairo Ramos, fundaram a
“Sociedade Brasileira de Cardiologia“, a 5ª Sociedade Nacional do Continente Americano e a 13ª
no mundo e, que desde então, vem congregando os cardiologistas do Brasil. Hoje, na esfera
internacional, representa uma das maiores e com grande destaque na participação cientifica dos seus
diversos Departamentos. A revista “Arquivos Brasileiros de Cardiologia” teve sua publicação
iniciada em 1948. Merece destaque dessa época Reinaldo Chiaverini, que publicou vários livros de
cardiologia e, dentre esses em 1941, um prefaciado por Paul White, um lendário cardiologista
americano. Anos mais tarde, Chiaverini criou o Fundo de Pesquisa e Aperfeiçoamento em
Cardiologia ( FAPEC ), dando origem mais tarde ao FUNCOR.
No ano de 1948, Azarias de Brito, no Rio de Janeiro, realizou com sucesso a primeira cirurgia
cardíaca no Brasil, para correção de persistência do canal arterial (PCA). Em Santos, Domingos
Pinto efetuou com êxito a primeira cirurgia de Blalock-Taussig no Brasil, seguido por Euríclides de
Jesus Zerbini, em São Paulo, e José Hilário no Rio de Janeiro.
Um grande acontecimento científico de repercussão mundial ocorreu em 1948 , quando Mauricio
Rocha e Silva e cols., em Ribeirão Preto, descobriram a bradicinina, potente vasodilatador,
importante no controle da hipertensão arterial. Essa descoberta deu-se a partir do conhecimento de
que a tripsina e alguns venenos de cobra atuam numa globulina plasmática, produzindo uma
substancia que causa queda na pressão arterial e lentidão da contração da fibra lisa do intestino,
donde se originou o nome bradicinina (bradys = lento; kinesis = movimento). Outro cientista
brasileiro, que mereceria também figurar como um dos ganhadores do premio Nobel de química foi
Sergio Ferreira, que na década dos anos 60 isolou do veneno da Bothrops jararaca, um princípio
ativo capaz de intensificar a resposta à bradicinina, atuando nos agentes naturais do organismo que
elevam a pressão arterial, conhecidos como angiotensinas, donde surgiram os inibidores da ECA.
Ainda na década de 60, os primeiros sistemas acessíveis de circulação extracorpórea, e os
oxigenadores de bolha passaram a ser industrializados em nosso país, facilitando o trabalho dos
cirurgiões cardíacos.
Com os progressos da hemodinâmica e da cirurgia cardíaca, um frenesi, por assim dizer, permeava
2. todo o ambiente cardiológico brasileiro, de norte ao sul do país. Euriclides Zerbini, por sua
extraordinária habilidade cirúrgica e liderança, criou uma escola de cirurgiões cardíacos que atuava
não apenas no Brasil, mas também em diversos países da América Latina, de onde procediam
muitos dos seus discípulos para aprender com o mestre Zerbini. Dessa forma, São Paulo, tornou-se
o maior centro de cirurgia cardíaca da América Latina.
Uma figura da maior importância na cardiologia brasileira foi Luiz Decourt, que ensinou a gerações
de cardiologistas, desenvolveu estudos sobre moléstia reumática e endocardite. Ao lado de Zerbini
foi um dos principais mentores na construção do INCOR. Alguns de seus discípulos se tornariam
professores, e o sucederam na cátedra de Cardiologia da USP. Outros se tornariam titulares de
Cardiologia em diversas importantes universidades brasileiras. Dessa época, e que muito
contribuiriam para o progresso da nossa cardiologia, destacamos, Jairo Ramos, Silvio Carvalhal,
Dante Pazzanesi, Mendonça de Barros, Cantídio de Moura Campos, Michel Batlouni, Radi Macruz
e Fúlvio Pillegi, todos ligados à cardiologia clínica e experimental.
Em São Paulo, tivemos o Instituto Sabbado D'Angelo, onde Hugo João Felipozzi realizou a
primeira cirurgia extracorpórea no Brasil em 1956, uma correção de estenose pulmonar e, em
seguida, operou uma CIA. Faziam parte da sua equipe clínica Adauto Barbosa Lima e Maria Vitoria
Martins, que haviam trabalhado com a Dra. Helen Taussig, do Hospital John Hopkins, Baltimore.
No Rio de Janeiro, devem ser lembradas as figuras dos cirurgiões Domingos Junqueira
( Dominguinhos), José Hilário e Antonio Jasbik, daquele período pioneiro. Da mesma forma, na
cardiologia clínica podemos destacar Genival Londres, Edgar Magalhães Gomes, Nelson Botelho
Reis, Arthur de Carvalho Azevedo, Arão Benchimol, Paulo Schlesinger e Rafael Leite Luna, entre
outros.
A cardiologia clínica e cirúrgica passou a dominar o cenário nacional e, dessa forma, em diversos
estados surgiram inúmeros, cardiologistas numa grande lista de precursores. No Amazonas,
Oswaldo Said; no Ceará, Glaura Ferrer Martins; Anis Rassi, Omar Carneiro e Clovis Figueiredo, em
Goiás; Aristóteles Brasil, em Minas Gerais; Gastão Pereira da Cunha e Arnaldo Moura, no Paraná.
Influenciados pela escola mexicana de Cardiologia, muitos cardiologistas brasileiros de vários
estados, dirigiram-se ao Instituto de Cardiologia do México, que desenvolvia pesquisas em
eletrocardiografia e estudos avançados da embriologia do coração. Enrico Cabrera e Sodi Pallares
foram as figuras mais destacadas daquela instituição. Em nosso meio, egresso da escola mexicana
de eletrocardiografia, João Tranchesi foi o mais inspirado discípulo a propagar os modernos
conhecimentos da eletro e vectocardiografia em nosso país.
Retornando do México no início dos anos 60, Hélio Germiniani, introduziu e ensinou no Paraná
eletrofisiologia e a vetocardiografia, principalmente naquela fase em que os métodos tiveram
extraordinário avanço.
Ao final dos anos 50 e início dos anos 60, Iseu Affonso da Costa, um dos primeiros discípulos do
Prof. Zerbini com especialização na Califórnia, e depois na Alemanha, iniciou a cirurgia cardíaca no
Paraná.
No Rio Grande do Sul encontramos Rubens Maciel e Rubem Rodrigues como líderes no ensino da
Cardiologia, este último, como o fundador do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul. Na
área cirúrgica, José Carlos Fonseca e Cid Nogueira realizaram em 1962 a primeira cirurgia com
circulação extracorpórea na região sul. Ivo Nesrala e Fernando Luchesi os sucederam.
Em Pernambuco, os cardiologistas Fernando Simões Barbosa, Arnaldo Marques, Ovídio
Montenegro, Newton de Souza e Paulo Borba, muito contribuíram nos primórdios da cardiologia
nacional. Os cirurgiões Luiz Tavares da Silva e Mauro Arruda foram protagonistas da primeira
cirurgia cardíaca em 1960 naquele estado, utilizando a máquina extracorpórea. Da mesma forma a
historia da Cardiologia na Bahia teve importantes nomes no registro dos pioneiros daquele estado:
Adriano Pondé, Augusto Mascarenhas e Rubem Tabacof, entre muitos outros não menos
3. importantes.
No ensino da fonocardiografia, ninguém mais que Nelson Botelho Reis e Carvalho de Azevedo, no
Rio de Janeiro, destacaram-se tanto influenciando toda uma geração de especialistas, difundindo o
raciocínio fisiopatológico no diagnóstico das doenças cardíacas.
A hemodinâmica começou no Brasil em 1946. Naquele ano, Horácio Kneese de Melo publicou na
Revista Paulista de Medicina, artigo intitulado “Angiocardiografia”, inaugurando a literatura
nacional sobre cateterismo cardíaco. No começo, os aparelhos de hemodinâmica eram muito
limitados, os estudos baseavam-se mais em medidas do débito cardíaco, curvas da pressão de
cavidades e vasos, além da angiografia, que possibilitaram uma melhor abordagem cirúrgica das
cardiopatias congênitas complexas e das valvopatias, sobretudo aquelas por acometimento
reumático.
Siguemituzo Arié, Egas Armelin, Eduardo de Souza e Valmir Fontes, entre outros, começaram a
produzir importantes trabalhos nos laboratórios de hemodinâmica do Hospital da Beneficência
Portuguesa, Hospital das Clínicas da FMUSP e Dante Pazzanese, em São Paulo, a partir do início da
década dos anos 60.
Um novo método diagnostico, em 1962, a cineangiocoronariografia, foi introduzido mundialmente
através da Cleveland Clinic Foundation, por F.Mason Sones Jr e cols, causando enorme impacto no
diagnóstico cardiológico.
Em novembro de 1966, no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, José Eduardo de Souza
realizava a primeira cinecoronariografia no Brasil, método que rapidamente se difundiu por todos os
serviços de hemodinâmica nacionais.
Em maio de 1968, aconteceu um fato de grande importância na historia da cardiologia brasileira: o
primeiro transplante de coração no Brasil e também da América Latina, realizado por Euríclides de
Jesus Zerbini, no Hospital das Clínicas de São Paulo.
A partir da década de setenta houve uma grande expansão dos centros diagnósticos hemodinâmicos
no nosso país, voltados para investigação das coronariopatias, que na sua maioria eram
encaminhadas para revascularização cirúrgica, inicialmente com as pontes de safena, método
desenvolvido por Renê Favaloro, na “Cleveland Clinic”.
Norberto Galiano e cols., em 1971, no Brasil, e pela primeira vez no mundo, realizaram uma
recanalização mecânica de coronária, passando um cateter diagnóstico de Sones por um trombo
oclusivo localizado na coronária direita, resgatando o paciente que se encontrava em choque
cardiogênico.
Em 1979, foi realizada a primeira angioplastia coronariana no Brasil, em Curitiba, por Costantino
Costantini e equipe, utilizando a técnica original de Gruentzig num paciente de 55 anos. Logo a
seguir, Eduardo de Souza e cols., no Dante Pazzanese; Shiguemituzo Arié e cols., no INCOR,
ambos em São Paulo; Carlos Gottschall e cols., no Instituto de Cardiologia de Porto Alegre, e
muitos outros passaram a empregar a técnica de maneira crescente em nosso país.
As indicações do método se ampliaram em todas as capitais e grandes cidades regionais brasileiras,
sendo documentadas as recomendações em três trabalhos nacionais sucessivos, constituindo marcos
históricos, de autoria de Eduardo de Souza, Decourt e Carvalho de Azevedo.
A reperfusão coronariana no infarto agudo do miocárdio com injeção intracoronária de
estreptoquinase, ocorreu em 1981, no INCOR, realizada por Giovani Bellini e cols., e depois por via
sistêmica, efetuada por Lélio Alves Silva e cols.
Carlos Gottchall e equipe apresentaram o primeiro caso brasileiro, com sucesso, de recanalização
por angioplastia de coronária cronicamente ocluída, em 1981.
Valmir Fontes e cols., em 1983,realizaram com sucesso uma valvoplastia pulmonar para tratamento
de estenose pulmonar congênita, abrindo no Brasil novos caminhos para expandir o tratamento por
4. cateter balão de outras formas de cardiopatias congênitas.
Na metade dos anos 80, ampliou-se o uso da angioplastia coronariana no tratamento de múltiplos
vasos e também na fase aguda do infarto do miocárdio. O progresso na área intervencionista com
novos “stents” farmacológicos e próteses valvares caminhava a passos largos no mundo. A cirurgia
cardíaca no Brasil evoluiu também para abordagens minimamente invasivas, enxertos de artérias,
melhores técnicas de proteção miocárdica, além do tratamento das complicações do infarto agudo
do miocárdio.
Em maio de 1985, outro grande destaque da cardiologia brasileira foi com Adib Jatene e equipe,
quando publicaram e apresentaram num congresso internacional de cirurgia cardíaca, uma nova
técnica para correção anatômica da transposição dos grandes vasos da base, ocasionando tremendo
impacto na comunidade cardiológica mundial, recebendo o epônimo de “Cirurgia de Jatene”.
Ainda com relação aos métodos diagnósticos, devemos lembrar que o primeiro ciclo ergômetro no
Brasil foi instalado no Instituto Estadual de Cardiologia do Rio de Janeiro, mas o método foi
introduzido como exame de rotina por José Feher e Hélio Magalhães, no Instituto Dante Pazzanese
de São Paulo, na década de 1970.
Egas Armelin, no Hospital da Beneficência Portuguesa, em São Paulo, deu início a utilização da
Ecocardiografia. Em 1975, um segundo polo ecocardiográfico passou a existir no Hospital IASERJ,
com Fernando Morcef e Rubens Thevenard, no Rio de Janeiro.
Décio Kormann e Adib Jatene foram pioneiros no Brasil em implantes e fabricação de marca-passos
nos anos 60, no Instituto de Cardiologia do Estado de São Paulo, depois conhecido como Dante
Pazzanese.
Os estudos eletrofisiológicos no Brasil tiveram seu início no INCOR em 1977, por Eduardo
Argentino Sosa, que permaneceu na chefia do departamento de arritmias daquela instituição até sua
recente aposentadoria.
A prevenção é uma preocupação permanente da SBC, que há várias décadas vem realizando
campanhas de combate e esclarecimento sobre os fatores de risco.
O Departamento de Ergometria, Exercício, Cardiologia e Reabilitação Cardiovascular (DERC),
desde os anos 80, após o sucesso do I Simpósio de Ergometria, vários cardiologistas ligados a essa
área, dentre eles Álvaro José Bellini, Milton Godoy, Romeu Meneghelo, Mastrocola, Pedro
Albuquerque, Nabyl Gorayev, Ricardo Vivacua e tantos outros, vêm desenvolvendo excelentes
trabalhos e congregando um número cada vez maior de participantes.
A tomografia e a ressonância magnética têm sua historia mais recente e são técnicas de alta
resolução diagnóstica, e já disponíveis em muitos serviços nacionais.
Vimos que a historia da cardiologia brasileira nas diferentes áreas de atuação, tem uma trajetória
brilhante, sobretudo a partir dos anos 40 do século passado. A Sociedade Brasileira de Cardiologia,
que congrega nos dias atuais mais de dez mil associados, é a terceira maior do mundo.
Sérgio Bichat, cardiologista e membro titular da Academia Paranaense de Medicina.