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ELOGIO
DA
IGNORÂNCIA
ELOGIO
DA
IGNORÂNCIA
Paulo Vieira de Castro
ELOGIO
DA
IGNORÂNCIA
ELOGIO DA IGNORÂNCIA
Autor: Paulo Vieira de Castro
Edição: Marcos Pamplona
Capa e paginação: Rute Valadares
Produção: Kotter Editorial
Copyright© Paulo Vieira de Castro, Kotter Editorial, 2023
1ª Edição: Junho de 2023
ISBN: 978-989-53824-9-1
Depósito Legal: 516001/23
Impressão: masquelibros
Kotter Editorial
kotterportugal@gmail.com
@kotterportugal
email do autor: geral@paulovieiradecastro.pt
ELOGIO
DA
IGNORÂNCIA
Paulo Vieira de Castro
ÍNDICE
1 - Nós sapiens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
2 - Pensar dói . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11
3 - Sumário: No regresso vinham todos . .15
4 - Argel. A utopia do tempo ausente . . . .29
5 - Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33
6 - Sumário: Para se compreender um país é
preciso primeiro conhecer as suas prisões .47
7 - Sumário: Há tanta vida lá fora, aqui
mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53
8 - Sumário : Uma imensa minoria . . . . . .57
9 - Quem tem por que viver pode suportar
qualquer como . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .67
10 - Sumário : O elogio da ignorância . . .71
11 - Sumário: Uma carta a Garcia . . . . . . .79
12 - Os improdutivos imprescindíveis . . .87
13 - Sumário: Indivíduos não sociais versus
auto-organizados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .91
14 - Sumário : Eu, dona da minha fome .99
15 - Sumário: Os melhores decotes do
mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105
16 - Sumário: O desconforto de uma derra-
deira pergunta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109
17 - The long and winding road . . . . . . .115
18 - A alegria de poder voltar para trás .119
7
1
NÓS SAPIENS
Se lhe perguntassem há quantos anos o fazia não teria
como compreender tamanha ambiguidade. Em tempos, im-
portunava-o o dia em que deixaria de acontecer. Todas as noi-
tes eram iguais. Deitava-se com a almofada quebrada debaixo
do pescoço enfraquecido e descansava. Dormia. Voltava, sem
cessar, ao surrado anfiteatro.
A ingenuidade dos dias vividos. Muitos fracassam nessa
dedicação – pensou preguiçosamente. Os pormenores falam-
-nos sobre isso. Por essa razão toda a inocência é encontro.
Fechando o velho caderno de padrão escocês manifestou
nos olhos a pressa que lhe era reservada a cada final de tarde.
– O que acontece aos que falharam, ainda que escassamen-
te, na atenção aos pormenores? – perguntou a miúda do ca-
belo imperial.
Todos já haviam reparado nela. Irrequieta, sempre em bus-
ca de uma espécie de satisfação desinteressada.
– Isso seremos nós na incompreensão dos sobrantes – con-
trapôs o professor enquanto desarrumava a mochila como se
procurasse outro argumento dentro dela.
Isto para depois responder à gaiata, colocando-se em posição
de partida na porta da sala.
8
– Usemos como exemplo o amor e o ódio. Ambos são con-
siderados como os culpados disto tudo no esquecimento do
que somos nós. Mas, serão eles – o amor e o ódio – os anta-
gonistas de serviço de tantas, e tantas, estórias? Das mais des-
pojadas às infamemente labirínticas? Não. O amor é o único
sentimento que não acolhe, nunca, o seu contrário. O amor é!
Porquê? A resposta é simples. O amor não se submete à lógi-
ca humana. Não tem oposição, ou ocaso, em qualquer outro
sentimento.
– Não percebo, professor! – interrompeu o rapaz loiro.
Talvez fosse dele ter um tal jeito replicante. Nunca percebia
nada. Estranhamente acreditava em tudo que lhe contavam
em casa.
– Vou ver se consigo explicar-te de uma outra forma. Com
o amor, se repararmos nos pormenores, ainda que muitos de
entre vós o façais pela primeira vez, não estaremos, nunca,
perante um dilema. No caso do amor não temos como decidir
entre isto ou aquilo1
. Porquê? Porque o amor é a um mesmo
tempo o problema e a solução para tudo. Esta constatação co-
loca-o, seja lá o que essa inquietação venha a ser, numa cir-
cunstância impar. Se estiverem na posição de escolher não
será amor. Neste afã não tem outro viés que se sobreponha à
inocência dos dias.
– E o ódio, professor? Em nenhuma circunstância se po-
derá transformar em amor? – indagou o rapaz do cabelo
comprido.
Sem pestanejar, definitivamente, com metade do corpo
fora da sala, o professor praguejou:
1A inteligência humana baseia-se, quase que exclusivamente, neste tipo de premissa.
9
– Ora! Esse pode ser o que cada um de nós quiser. Reparte
uma mesma devoção humana com a ignorância, ligando-os,
indubitavelmente, a um movimento a que muitos chamam,
ou confundem, com vontade de poder. Na verdade, como dis-
se um filósofo, o mais desastrado entre eles, o homem pode fa-
zer o que quer, mas não pode querer o que quer2
. O que parece
ser o avesso do que vos é ensinado durante toda uma vida3
.
Perceber isto é compreender a importância dos pormenores,
mais uma vez. Ou, por fim, aceitar a razão pela qual o tal fi-
lósofo morreu, de forma certeira, atropelado na contramão
numa rua de Frankfurt, corria o ano de 1860.
Caminhou, de seguida, rapidamente e sem hesitação, como
se alguém lhe tivesse lembrado que tinha de se ir embora.
– Até para a semana – acenou, levantando a mão que lhe
restava dentro da sala.
Ao passar pela portaria, despediu-se do segurança com ar
de pinguim ponderado.
Nas escadas, a caminho da estação do metro, pôde ouvir
um afadigado:
– Espere, espere... Tenho uma pergunta. Por favor...
Uma vez alcançado o objectivo, alterado o passo desen-
freado de ambos, enfrentaram-se como esteios destoantes. A
miúda do cabelo imperial perguntou:
– Será o amor que nos une, então?
– Ora. Lá vamos nós outra vez, menina. Não. O amor não
obedece à mente. A nada. O amor independe de tudo.
– E a vida. Há esperança?
2O filosofo polaco Arthur Schopenhauer.
3Tendo-se tornado um erro, agora, mais evidente com o aparecimento da psicologia po-
sitiva, impondo ao desenvolvimento humano o primado do desenvolvimento pessoal.
10
– A vida? Essa nada nos tira. Aos mais sensíveis aos por-
menores vai-os desatando de tudo, impedindo-os de se trans-
formarem, apenas, nas coisas. O resto? É respirar! Sobram,
ainda, os malcontentes que se refugiam na obediência, estrita,
às palavras, esquecendo a alma que lhes subjaz. Depois, mi-
nha filha, a vida é para sempre. Já o amor pode durar um mi-
nuto, um ano. Um segundo. Toda uma vida. Se há esperança?
Só não existirá perante a indiferença.
– Então, “que seja eterno enquanto dure”, como dizia Vi-
nícius. Quando nada resulta, professor, quando tudo parece
estar errado, só há uma coisa a fazer: tentar novo. Aprendi-o
consigo. Amar é isso mesmo. À semelhança da própria morte.
Amar é a arte de tentar de novo. Ora! – exclamou a miúda do
cabelo imperial, dando-lhe as costas.
– Errado. Estás tremendamente enganada. Somos os que
acendemos o amor para que dure, para que sobreviva a toda
a solidão. Queimamos o medo, olhamos frente a frente a dor
antes de merecer esta esperança. Abrimos as janelas para lhes
dar mil rostos. Assim nos ensinou o maior poeta argentino4
.
Para o fim de semana há que ler o ensaio No Regresso Vinham
Todos. É para a próxima aula. Se puderes, lembra aos teus co-
legas para o fazerem - pediu por fim, encolhendo os ombros.
E já agora diz-lhes que ouçam Rimsky-Korsakov: Scheheraza-
de op.35 - Leif Segerstam.
Rindo a bom rir, o professor seguiu animado na certeza de
que muito poucos atenderiam ao seu conselho.
4 Juan Gelman.
11
2
PENSAR DÓI
Maldisse a reclamação da porta da sala empedernida pelo
tempo. Não sabia se o ruído era das dobradiças ou dos ossos
do seu braço direito. Considerou isso uma questão de mera
retórica. Poderia ficar para depois. Ligou o rádio. O som de-
masiado baixo antecipava um outro desafio. Olhou de través
o livro desmaiado sobre a mesa. Haveria de lhe mudar a capa,
pensou. Mas como?
Sentou-se. Tentou ver a face de Cristo na espuma da chá-
vena de cevada. No desatino diário do exercício de nada con-
seguir, o pensamento fugiu-lhe para o Chopin. O bar junto à
praia que ambos frequentaram numa outra faina. Entediado,
cerrou os olhos sem esforço.
Ela a mesma de todos os dias. Sem pressas. A pergunta? A
menos esperada. Olhou-o no coração como habitualmente.
– Então. Estás contente? Aposto que o lamentas!
Completamente a despreparo a resposta não se fez esperar.
– Morro todos os dias por isso. Estou profundamente arre-
pendido. Mas, hoje faria, exatamente, o mesmo.
Levantando-se no engano de um tom que só a ingenuidade
nos traz, expirou o tédio das palavras mansas.
– Não há outra forma de sobreviver a tamanho choque.
12
Isto, pelo menos, na lógica dos comuns e dos costumes,
pressagiou.
Subitamente foi interrompido pelo estampido do telefone.
Má sorte, pensou.
– Nunca toca. Tinha de ser agora, bolas.
Preferindo continuar refém dos seus próprios pensamen-
tos encolheu os ombros enterrando-se, ainda mais, no sofá.
Depois, escolhendo proficientemente a afinação da voz mais
conveniente, recordou a razão pela qual muitos preferem a
atenção dos simples. Esses? Guardam as perguntas para si
próprios!
Calou-se, finalmente, o telefone preto. A rua voltou ao si-
lêncio das noites lentas.
Sem ter a certeza de, entretanto, ter adormecido, interro-
gou-se pouco confiante.
– Chopin?!? Quem frequenta uma baiuca com um nome
desses não merece melhor sorte.
Contrariado, levantou-se como que voltando ao balcão do
bar. Bebeu um trago do seu Alexander Sister Number Two:
licor de menta, natas e Fernet Branca. Fechou os olhos sua-
vemente, deixando-se regressar à conversa do outro lado do
espelho.
– Pode o homem que confessa o seu erro ser o mesmo que
o cometeu?
Ela arregalou os seus imensos olhos de maré vaza, gritando
em surdina:
– Não. Não, no teu caso. Se te tivesses arrependido com-
preenderia. A pergunta seria em tua defesa. Perdoar é fácil
face ao arrependimento. Esquecer ainda é mais simples. Mas,
não será isso uma doença chamada Alzheimer?
– Não é de arrependimento que se trata! – defendeu-se ele
– Eu não sou a mesma pessoa que tu conheceste. Só isso. Pode
13
alguém ser quem não é?
– Compreendo. Apenas coexistimos, então, numa mesma
mansidão a que tu chamas vida. Essa será sempre, e exclusi-
vamente, a tua. Lá não caberá mais ninguém, nem hoje nem
nunca. Enquanto assim for não te terás arrependido, meu
caro. Como poderias ser tu uma pessoa diferente se não te
arrependesses de verdade?
– Voltando à ingenuidade, amiga. Repito, esta é a única que
nos permite regressar às tripas. Exatamente como na morte.
Aprendi que é deste modo que descanso dos outros. Sejamos
sérios. Já o sabias!
15
3
SUMÁRIO: NO REGRESSO VINHAM TODOS
– Bom dia. Sentem-se por favor. Desde logo, devo-vos um
pedido de desculpas por ter chegado um pouco atrasado. On-
tem adormeci no sofá da sala e não ouvi o despertador. Va-
mos lá, então. Quem se inscreve para o comentário ao ensaio
No Regresso Vinham Todos5
. Quem começa? Lá atrás? Força!
– Aqui talvez fosse de fazer a contextualização histórica,
ainda que introdutoriamente. A guerra colonial portuguesa
iniciou-se no princípio dos anos 60 do século passado, termi-
nando após a revolução de 19746
. Naquele tempo ir à guer-
ra era obrigatório para qualquer jovem. Quatro anos de vida
desgovernados. Existem, ainda, centenas de ex-combatentes
da guerra colonial. Eles representam a última geração a poder
contar a história dos militares que, durante aproximadamente
uma década, sustentaram à custa das suas próprias vidas uma
5Título influenciado em Vasco Lourenço. Estória inspirada em L. Rodrigues. Em am-
bos reconheço a essência de todos os ex-combatentes, sem excepção. Reconhecendo,
ainda, em Gazela o dever de resistir em nome da liberdade de um povo.
6A 4 de fevereiro de 1961 dá-se um ataque à casa de reclusão militar de Luanda. Desde
esse momento a instabilidade estende-se a toda a Angola. E, logo, aos restantes países
africanos com domínio colonial português.
16
guerra que poucos sentiram como, sequer, necessária.
De repente, notou-se um inexplicável burburinho pelo no-
bre anfiteatro. Pressentiu-se alguém a tentar ser ouvido.
– Tenho de falar! Professor, tenho mesmo. Prometi à mi-
nha mãe que não o faria – disse o rapaz do cabelo rapado.
A sua voz estava muito alterada. Todos ficaram enregela-
dos. Abandonados face a tão sofrida súplica. Por que soluça-
ria ele, afinal?
– O meu avô era sargento-enfermeiro. Esteve na frente
do combate direto com as tropas de Amílcar Cabral. Quan-
do chegou a Ferreira, em dezembro de 1974, era um farrapo.
Na maior parte das vezes nem reconhecia a própria filha. A
minha mãe diz que aquele que participa numa guerra per-
de o direito à sua história pessoal. Essa é a razão maior para
que muitos pensem que a guerra não possa ter fim para um
ex-combatente. E os nossos foram abandonados à sua sorte,
também, após terem regressado à metrópole. Haveria uma
razão para ser deste modo? A minha mãe diz que para além
das marcas da guerra há, ainda, a reconciliação, o perdão e o
direito ao esquecimento. Deveria existir um processo que os
libertasse do sofrimento. Mostrei o texto em estudo à minha
mãe que o achou belíssimo. Fartou-se de chorar ao lê-lo. Por
isso lhe prometi não mais tornar ao assunto. Sei que isso lhe
dói, ainda hoje. Assegurei-lhe que não o faria nesta aula. Ago-
ra, ao reler o texto, já na sala, compreendi que não poderia
deixar de falar. Na defesa de todos os lados da barricada. Ne-
les encontramos tropas nunca derrotadas, mas, igualmente,
nunca vencedoras.
Sem que nada o fizesse esperar, ergueu-se. Abandonou a
sala na mais profunda mudez, com o convencimento dos que
nunca baixam a guarda. Com ele saiu a rapariga do cabelo im-
perial. Ambos estariam de volta passados um par de minutos,
17
encontrando o anfiteatro, ainda, em total quietude e silêncio.
O rapaz da guitarra levantou a mão, recordando a todos
porque estavam ali.
– Este não é, no meu entender, um ensaio sobre guerra. É,
sim, sobre reconciliação. Um grito de revolta perante o mando
que no passado foi capaz de sentenciar à indignidade povos
irmãos, servindo-se para isso dos seus próprios filhos, conde-
nando-os à pior das mortes. Aquela que só às armas serviu.
Todos pareceram, enfim, concordar. Ao professor cabia o
desafio de prosseguir. Teriam de avançar.
– Se não se importarem, já que nos desviamos, em grande
parte do guião desta aula, gostaria de pedir quatro voluntários
para lerem um trecho deste ensaio. Páginas 12 a 17, por favor.
Dois narradores. Mais duas vozes. Todos homens. Ou, pelo
menos, com voz disso.
– Tu, tu, tu e... Ok, tu também. O segundo narrador entra a
meio da página 15, onde se lê “Mais de quarenta anos depois”.
O primeiro narrador volta ao texto um pouco mais abaixo
onde se lê “L.R. conhecia bem o edifício”. E daqui vai até ao
final. Tu fazes a primeira voz. E tu a segunda. Começa o pri-
meiro narrador, três, dois, um...
– Guiné Bissau. Bafatá, 1967. No terreno havia compa-
nhias operacionais integradas por batalhões que gozavam de
uma elevada autonomia funcional. É entre estas que vamos
encontrar o alferes L. R. e a sua Companhia de Cavalaria, na-
quele começo de tarde quente e húmido de outubro. Muitos
dos homens do pelotão sob o seu comando não imaginavam
que esta seria a sua última viagem. Partiram da base há quase
meio dia. O destino era Sincha Jobel. Chovia como habitual-
mente naquela época. Enfrentavam uma zona tremendamen-
te pantanosa.
Chegaram junto a uma linha de água. L.R., sabendo que se
18
estava a aproximar do objectivo, indica aos seus homens que
se retenham na margem, apenas durante alguns minutos. Sem
nada fazer prever, nesse mesmo momento a coluna é atingido
por fogo pesado. O alferes tenta em vão reabilitar a posição
do grupo. O número de mortos e feridos é avassalador. Ele
próprio cai gravemente ferido por uma bazuca RPJ 7.
– Após, setecentos e trinta e sete dias de internamentos
forçados, mais de quarenta anos depois, o alferes L.R., agora
na reforma, regressa a Bissau. Segue o caminho da serenidade
iniciado por muitos ex-combatentes no princípio dos anos 90,
época em que vários foram os que começaram a revisitar a
terra que outrora, também, fora deles. Vai acompanhado de
cinco camaradas. Durante vários dias visitaram os locais de
luto e de esperança. Trilhos, picadas e tabancas. O sol ainda
regressava, bondosamente, todas as manhãs. Pouco parecia
ter mudado.
Num final da tarde foram, imprevisivelmente, surpreendi-
dos pela presença de um emissário do Presidente da Repúbli-
ca daquele país. Este disse-lhes que o chefe da nação sabendo
que o grupo estava de visita, os convidava para uma cerimó-
nia de saudação. Tão inesperado convite foi de imediato acei-
te por todos.
L.R. conhecia bem o edifício do, outrora, governador por-
tuguês em Bissau, que fora, após a independência, transforma-
do no palácio do presidente da, agora, República da Guiné Bis-
sau. Uma vez lá chegados, os portugueses apresentaram-se um
a um ao Presidente. Isto na presença de ministros e outras altas
individualidades. Quando chegou a sua vez apresentou-se.
– Alferes Rodrigues. Saí da Guiné em 67 ferido em comba-
te na batalha de Sincha Jobel.
Sem perceber bem porquê, acrescentou:
– Até sei o nome do guerreiro que me deu a bazucada.
19
A isto o presidente respondeu:
– Na batalha de Sincha Jobel, em 1967? Sabes o nome do
guerreiro? Ora diz lá a primeira e a última letra do nome dele.
– Um G e um A.
O Presidente anuiu, soletrando pausadamente o nome
Ga-ze-la.
Atónito, L.R. concordou.
A resposta veio de imediato do outro lado.
– E tu, sabes quem carregava com munição a bazuca do
Gazela? Era eu... Tinha, então, 16 anos. De certa forma, fui eu
que te dei a bazucada.
Posto isto, ambos ficaram sem palavras. O Presidente deu
um primeiro passo em direção ao ex-combatente português.
Ali mesmo se abraçaram entre sofridas lágrimas.
Foram necessárias demasiadas décadas para que am-
bos pudessem provar olhos nos olhos o quanto lamentavam
tudo aquilo. Assim se conclui da inutilidade de qualquer
guerra. Neste caso faltava apenas o essencial: um abraço de
reconciliação.
Visivelmente mais tranquilo, o garoto do cabelo rapado
pediu para falar, deslocando-se, em passo firme, até ao estra-
do que servia, por vezes, de palco.
– Dizer apenas duas ou três coisas. Primeiro, agradecer,
mais uma vez, o mote. Este tempo está a ser, verdadeiramen-
te, curativo para mim. Só lamento que a minha mãe não esteja
presente. Depois, dizer que o meu avô tinha uma profunda
admiração por Amílcar Cabral. E, não, não era Síndrome de
Estocolmo. Ele viu a forma como as tropas do PAIGC eram
tratadas e educadas no campo da batalha. Eram cuidadas.
Havia sempre, pelo menos, dois professores para os ensinar
quando não estavam a combater. Pois só com gente formada
e educada poderiam construir o país que desejavam. Lutavam
20
por aquilo a que todos temos direito. Liberdade. E a autode-
terminação do seu povo. Claro que, de todas as partes, exis-
tem constrangimentos históricos que pesam quando se pensa
na atual memória comum, pois toda a guerra tem demasia-
dos lados. Desde logo, a visão daqueles que nela participa-
ram diretamente. Ainda, o olhar dos que, por várias razões,
se furtaram a isso. Finalmente, o lado dos historiadores e dos
romancistas.
– Aqui faço uma proposta, – continuou a rapariga do ca-
belo imperial – lutar por um espaço de memória que não seja,
meramente, entendido como um quantum de lembranças de
cada um de nós individualmente, mas sim como o conjunto
de recordações comuns. A língua portuguesa é quem melhor
nos revela isso. Ela que nos fala dos outros e de nós próprios,
tornando-se por esta via parte preeminente desse património
identitário, instituído historicamente pelas demais partidas
do mundo. No caso de Portugal, por demasiadas vezes, per-
demos essa proximidade com estes povos irmãos. A solução
será reunirmo-nos todos em volta do idioma comum, dando
razão a Fernando Pessoa quando afirmou “a minha pátria é a
minha língua”.
O rapaz do cabelo rapado interveio de forma certeira:
– A que se deveu isso? Acredito que às tais memórias mal
vividas, transformadas, por isso, em território de angústia co-
mum. E confrontar-nos com isso, passados 50 anos, é ainda
mais cruel. Lembrem-se, só poderemos ser perdoados do im-
perdoável. E este é, quanto a mim, o caso. Terá de haver lugar
ao perdão.
O professor colocou-se a par com o jovem recruta. Final-
mente compreendeu a razão pela qual o miúdo era conhecido
pelo Máquina Zero. Este, que até hoje fora extremamente ca-
lado, o mais silente entre todos os alunos. O preconceito num
21
mundo de atropelos e insensatez cai sobre aquele que não dá
nas vistas. Estúrdio. E nós, normalmente, a reboque de uma
sociedade onde só a aberração tem mérito.
O que poderia justificar tamanha invisibilidade por parte
do rapaz ? – perguntou-se.
De repente, o professor confrontou-se com a abrasadora
aragem das manhãs de um outro tempo. O vento surdo de
Argel. Ciente que poucos conheceriam os factos, também ele
tinha algo a revelar. Uma história para contar. A sua. Enten-
deu ser hoje tempo de o fazer.
– Naquele tempo deixávamos de ser crianças muito cedo.
Tornávamo-nos soldados meninos. Ainda muito miúdo ini-
ciei a minha fuga de Portugal. Tinha 15 anos. As pessoas acre-
ditavam, dada a minha figura adulta, que era mais velho. Fugi
a salto, no dia do meu aniversário, 30 de abril, no ano de 1963.
Demoramos quase uma semana a chegar a Argel. Grande par-
te do território de Portugal e Espanha foi feita ao coberto da
noite. Fomos numa Renault 4L com o pessoal do Humberto
Delgado.
Os miúdos estavam com olhos de manhã ensolarada,
descrentes.
Animado, o professor continuou:
– Uma vez na Argélia todos confirmamos que era possí-
vel a utopia. Colaborei na resistência ao regime de Salazar, ao
lado de tantos outros de quem nunca ouviram ou ouvirão fa-
lar. Éramos os traidores. Este era, maioritariamente, o tecido
que fazia a Frente Patriótica de Libertação. Lutávamos pela
paz. Em Argel recebíamos exilados que, literalmente, despa-
chávamos para países amigos com passaportes falsos. E al-
gum dinheiro, claro. Também dávamos três vezes por semana
22
corpo à emissão da rádio Voz da Liberdade7
. Ocupávamos as
instalações da rádio nacional local. Desde ali estava garantida
a informação a todos os nossos compatriotas.
A quietude continuava como se estivessem num cemitério
turco.
– Cerca de um ano antes da revolução de abril recebemos
ordens para mudar o nome da emissão. Passamos a ser Rádio
Voz da Revolução. Já o PRP8
estava no comando. Eles defen-
diam a luta armada. Aliás estiveram, diz-se, por trás do úni-
co movimento terrorista em ação depois do 25 de abril9
. Em
Portugal e nas colónias não se falava da guerra colonial na
comunicação social. Era um tema proibido e inacessível aos
portugueses. Também as cartas para as famílias que chega-
vam da frente de combate nos território africanos eram pas-
sadas a “pente fino” pelo lápis azul dos, irredutíveis, censores
da policia política: a PIDE/DGS10
. Os militares portugueses e
os nacionalistas que apoiavam a autodeterminação dos povos
de língua portuguesa eram, também, os nossos ouvintes pre-
ferenciais11
.
7Havia outras emissoras a dar voz à libertação do país e das colónias. Todas colabo-
ravam entre si. A Rádio Portugal Livre, do Partido Comunista Português, transmitia
desde Bucareste, Roménia. O seu slogan era A emissora portuguesa ao serviço do povo,
da democracia e da independência nacional.
8Partido Revolucionário do Proletariado. Esteve operacional desde 1973 até 1978. Ter-
minando com a prisão de Isabel do Carmo e Carlos Antunes. Esta organização terá es-
tado, alegadamente, na génese do Projeto Global que incluía as Forças Populares 25 de
abril. Este e a Frente de Unidade Popular, acredita-se, terem sido movimentos liderados
por Otelo Saraiva de Carvalho. A sua ação terminou em junho de 1980.
9Eram muito organizados. Cada célula de ação tinha autonomia total do partido.
10A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi responsável pela repressão po-
lítica entre 1945 e 1969, sendo depois renomada como Direção Geral de Segurança (DGS.)
11Em Portugal continental também havia quem escutasse esses postos emissores. So-
bre estes ouvintes caía a acusação de traição à pátria. Era crime.
23
– Professor, nesse tempo pertencia a que partido? – per-
guntou o miúdo do vestido azul.
– Nunca tive partido político, até hoje. Porém, havia refe-
rências partidárias incontornáveis em Argel. Por exemplo, os
companheiros do Partido Comunista. Os mais bem organiza-
dos. Igualmente, havia os socialistas. E, imagine-se, os católi-
cos progressistas também tinham lá representação. Ninguém
pode ser católico sem se opor à guerra – diziam cobertos de
razão. Esperem, já me esquecia dos elementos do Movimen-
to de Ação Revolucionária que acabara de nascer. No M.A.R.
militavam muitos dos que se tornaram conhecidos após a re-
volução de abril12
. Nós sabíamos que só a queda do regime em
Lisboa nos poderia trazer a liberdade. Por isso, a partir de um
dado momento, foram inúmeros os que regressaram ao país,
ingressando na clandestinidade. Em Argel estavam muitos
movimentos da resistência internacional. Desde os Panteras
Negras, dos Estados Unidos da América, até aos movimentos
de libertação das colónias portuguesas, claro. E, ainda, grupos
de toda a África, desde a Etiópia à África do Sul. Um certo
mundo deve a liberdade aos argelinos. Já alguém lhes agrade-
ceu? Não! Ninguém o fez, até hoje. E os portugueses, ainda,
menos.
– Mas deveriam tê-lo feito – interrompeu o miúdo dos
óculos de lentes desproporcionadas. Era justo que fossemos
gratos ao povo argelino. Contudo, quando fala em agradeci-
mento, não seria mais, no caso dos países africanos de lín-
12Um deles foi Jorge Sampaio, mais tarde presidente da República. Lopes Cardoso,
Piteira Santos, Nuno Brederode dos Santos, João Cravinho, José Medeiros Ferreira. De
entre tantos outros. Havia lá socialistas radicais e católicos.
24
gua portuguesa, de um pedido de perdão13
? O próprio Papa
Francisco foi ao Canadá pedir perdão pelos abusos cometidos
naquele país pela sua própria igreja14
. Este é um tema seminal
para uma paz efetiva e duradoura.
– Se me perguntas a mim... Obviamente que sim! É uma
boa possibilidade de caminho para a reconciliação. Há pala-
vras, desde há muito, esquecidas no nosso léxico que terão de
voltar, urgentemente, a ser proferidas. Por exemplo, memória
e perdão. Ora, sendo nós, humanos, o resultado de infinitos
ancestrais, carregamos o dano realizado por todas as memó-
rias mal vividas. Esta guerra, para os portugueses como eu,
é uma delas. E temos demasiados exemplos disso na nossa
história contemporânea. Deste modo, neste caso, perdão e
memória representarão os mais importantes marcos psicoló-
gicos, quando pensamos na geometria das paixões humanas,
especialmente se refletimos para além de uma mera aprecia-
ção cronológica da história de todos os países de língua por-
tuguesa. Como não o fizemos, ainda, surgiu entre nós a socie-
dade da vergonha. Em alternativa teremos o quê? A sociedade
13O perdão, como vinculo social primário, em nada se opõe à razão. Perdonare expres-
sa a ideia de totalidade (per) entrega (donare). Por seu lado, a razão é uma evocação
aparentemente fria, eminentemente funcional.
14Muitos foram os países que pediram já perdão aos povos originários. Em abril de
2019, Charles Michel, primeiro ministro belga pediu perdão pelos milhares de crianças
sequestradas no século passado no Burundi, Congo e Ruanda. Dois anos antes a igreja
católica belga já tinha feito igual pedido de perdão, pois muitos destes sequestros fo-
ram da sua responsabilidade. Porém, só em julho de 2020 o monarca deste país pediu
desculpa pelo genocídio durante o período colonial (cerca de 3 milhões de pessoas).
Em 2010 o Canadá pediu perdão por ter internado 150 mil crianças indígenas em es-
colas onde muitas foram vitimas de abusos sexuais. Em fevereiro de 2008 o primeiro
ministro da Austrália pediu perdão aos aborígenes pelas injustiças perpetradas durante
mais de 200 anos de colonização branca. Estes são apenas alguns, entre tantos, exem-
plos. Por que não o faria Portugal? Isto, pelo direito à memória de todos os povos de
língua portuguesa.
25
da vingança? Por via desta hipótese instala-se, muitas vezes,
o medo e o ressentimento entre os povos. Nesta dimensão o
papel dos historiadores tem falhado redondamente.
– Porquê, professor? – perguntou a miúda do cabelo
imperial.
– Porque faltará escrever a história das oportunidades
perdidas.
O rapaz do vestido azul voltou para baralhar. Como era,
aliás, seu hábito, diga-se.
– Discordo. O perdão é a mais hipócrita das estratégias dos
fracos e o esquecimento um instrumento de design da super-
ficialidade e da frivolidade contemporânea. Mesmo que ape-
lando ao direito à memória dos povos, nada resolverá. Lem-
bro que o perdão começa sempre pela palavra dita. E esse será
o maior dos entraves.
– Errado! – afirmou o rapaz do cabelo rapado, levantan-
do-se indignado, para, sem sair do seu lugar, defender que só
haverá justiça e reconciliação em fraternidade.
– O ódio e a vingança não serão solução para nada. Nunca
foram. Ainda assim, perdoar não é esquecer! Pois todo o país
sem memória não merece ter história. Branquear a história,
revê-la, nada resolverá.
– O professor foi terrorista ? – perguntou alguém do fundo
da sala.
– Não me admirava nada. – disse, baixinho, uma outra voz
feminina provocando risos por todo o anfiteatro.
Oprofessorapressou-searesponderemtomdesconfortável:
– Claro que não! Para a PIDE éramos todos terroristas. Vo-
cês também o seriam.
Calou-se uns bons segundos. Já mais calmo prosseguiu:
– Bom. De facto. Se calhar com a entrada das Brigadas Re-
volucionárias na cena política tudo mudou sem que naquele
26
momento tivéssemos consciência disso. Eles defendiam a luta
armada. Por mero acaso, nesse tempo, desloquei-me para a
Holanda. Isto em Janeiro de 1973. Vivi numa comunidade de
hippies. Quase todos os portugueses que lá estavam tinham
fugido do serviço militar obrigatório15
.
– Hippies?!? Os meus avós também viveram numa co-
munidade na Holanda nessa época. Também estiveram em
Christiania, na Dinamarca16
. Aliás, hoje a sua casa é na comu-
nidade de Tamera, no Alentejo17
. Conhece, professor? – per-
guntou a rapariga do cabelo imperial.
– Sim. Conheço. E já visitei. É um movimento muito in-
teressante. Agora, voltando ao assunto. Passei, então, a ter li-
gação com uma estrutura clandestina com fortes laços aos
sectores católicos progressistas. Aí conheci a mãe dos meus
filhos mais novos. Nesse mesmo ano, numa visita clandestina
à terra, fui preso pela PIDE. Aliás, foi aí mesmo que passados
uns vinte e tal anos aconteceu uma situação curiosa. E até vem
a propósito da questão da reconciliação.
Fez uma pausa, tentando encontrar as melhores palavras
no lajeado da sala. Mais pacificado, continuou:
– Em meados dos anos oitenta, caminhava eu por uma das
ruas da baixa do Porto. Há muito que lá não ia. Já pouca lem-
brança tinha dos lugares e das pessoas daquelas bandas. De
repente, passei por uma cara conhecida. Senti-me em casa.
Embora não tivesse a certeza de quem se tratava, deduzindo
15Diz-se que, naquele tempo, mais de cem mil jovens abandonaram Portugal em fuga
à guerra de áfrica.
16Conhecida como a Cidade Livre é uma comunidade independente e autogestionada.
Localiza-se no bairro de Christianshavn na capital dinamarquesa.
17Existe desde 1978, trabalhando na criação de modelos autónomos e descentraliza-
dos. Partilham a visão Terra Nova.
27
que do outro lado aconteceria o mesmo, saudei-o efusivamen-
te e continuei. Ele seguia, agora mais lentamente, comprome-
tido com um certo olhar de desconforto. Não demorei cinco
minutos para me lembrar de onde o conhecia. Era o sacana
do meu carcereiro quando estivera preso nas masmorras da
PIDE. Por lá fiquei quase meio ano. Após este encontro, fi-
nalmente, consegui livra-me de todo o ressentimento que me
fazia doer as unhas sempre que me deitava. Noite após noite.
Só passando por este encontro conheci o poder do perdão.
O rapaz loiro de olhos azuis acabara de acordar. Estremu-
nhado, disse nada ter entendido.
Um uníssono de protesto fez-se ouvir por parte da outra
miudagem. Toda a turma se revelou, assim, cansada do tema.
– Continuamos depois, asseverou o professor. Falem com
os vossos pais e amigos mais velhos sobre a aula de hoje. Fa-
cilmente perceberão que há uma enorme diversidade de opi-
niões a este respeito.
29
4
ARGEL. A UTOPIA DO TEMPO AUSENTE
No caminho para casa voltou às memórias do final dos
anos 60. O Café do Italiano. O mais conhecido entre os in-
ternacionalistas de Argel. Nunca lhe conhecera o seu verda-
deiro nome. Tal alcunha era devida a um divertido funcioná-
rio originário de Nápoles, cidade do sul daquele país. A sua
alegria era mais importante que tudo o que lá se servia. Por
ali se reuniam, habitualmente, os elementos da resistência
internacional.
O tanto que ali aprendera, relembrou sorrindo, meio en-
vergonhado. Ficara seduzido por todas aquelas ideias revo-
lucionárias desde então, pensou enquanto concordava com a
cabeça. Só muito mais tarde percebera que, afinal, alguns des-
ses pensamentos eram do século XVIII. Um modelo de pensa-
mento com base a garantir e assegurar a liberdade. Instituições
que permitissem a coexistência de cidadãos livres e iguais, isto
numa comunidade onde estes são soberanos. Um projeto de
desenvolvimento que promovesse a autonomia humana. Seria
possível? Há centenas de anos que se tentava tal proeza. Hoje
isso ainda é uma utopia. De certa forma, temos falhado no ga-
rante da liberdade, lamentou o professor, como que falando
para o livro que o acompanhava na mão. De repente viu-se
30
incomodado por algo, absolutamente, inesperado.
– Tudo bem, Boualem? – acercara-se sem avisar um velho
companheiro de lutas de dezenas de anos atrás.
O professor ficou profundamente surpreendido por o ver
por ali. A um mesmo tempo sentiu-se imensamente grato por
aquele reencontro. No dia de hoje isso tinha um significado
especial.
– Fernando! Ó pá, duplo contentamento em ver-te. Ho-
mem, que coincidência. Como está a Stella? Não imaginas.
Aconteceu-me há uma hora atrás contar aos meus alunos al-
gumas das nossas aventuras. Nunca o tinha feito durante to-
dos esses anos. É uma turma de miúdos em fim de linha. Para
mim eles são incríveis. Por que será que já ninguém acredita
neles? Onde será que erramos, camarada?
– Falhamos?!? Nós não. Continuamos na contenda do lado
dos mais fracos. Esses miúdos, também. É a luta deles. Não se
deixaram aculturar. Mas, sim tens razão, erramos. Erramos
no espaço que reservamos ao outro. Muitos são aqueles que,
e em especial entre os professores, normalizam este tipo de
circunstância. Deixamos que esses miúdos se tornassem invi-
síveis. Porém, deveremos exaltar a quantidade de professores
e instituições que diariamente se dedicam, exemplarmente, a
ir para além da mera formalidade em que o ensino se tornou.
Isto face a fenómenos que a todos deveria tocar. Lembras-te
de Dom Hélder Pessoa Câmara? Dizia ele: quando alimentei
os pobres chamaram-me santo, quando perguntei por que razão
havia pobres, chamaram-me comunista. Como se o humanis-
mo estivesse, exclusivamente, refém de certas ideias. Ideolo-
gias, religiões ou pessoas. Talvez por isso muitas das ações
de rua, por exemplo, vão mais no sentido de acabar como os
pobres e menos orientadas a acabar com a pobreza. A erra-
dicação da pobreza é o caminho mais sólido, rápido e barato
31
para a paz, ouvia-se dizer, lembras-te Boualem? Com a desi-
gualdade nas escolas passa-se o mesmo. Consequentemente,
quem deve sentir vergonha não é o pobre, e menos ainda o
ignorante, mas quem cria a pobreza. E, por consequência,
quem permite que a ignorância grasse nas nossas escolas.
– Já tinha saudades, Fernando. Continua. Continua.
– Disseram-me que não há quem queira ensinar, é verda-
de? A questão é, face a um mundo em que ninguém quer,
mais, ensinar, por que raios haveriam os miúdos de querer
aprender?
– É verdade. Continuo a acreditar que só se conhece, só
se ama, convivendo, Fernando. Isso exige ação. Por isso re-
gressei de Tan-Tan18
. E com isso ao ensino. Creio que a mu-
dança só se consegue com a atenção e o cuidado. Em especial
para com os mais novos. Amar é estar atento19
. Para saberes a
quem amas bastará perguntar a ti próprio ao que estás aten-
to20
. A atenção é, igualmente, a mãe de todas as virtudes. Não
há arma mais eficaz que a atenção. Se tu dás, recebes. Por isso
a muitos de nós apenas nos faltará isso mesmo. Cuidar21
. Fer-
nando, a presente crise é, mais que qualquer outra, resultado
do nosso desamor. E, quando isso acontece nada mais resta à
ambição de ser gente.
– Não te sabia tão religioso, Boualem. Estou a brincar, cla-
ro. Abraço-te, amigo. Tenho de sair aqui. Pena que estou atra-
palhado com uns compromissos já assumidos. Umas tretas.
18Cidade no sul de Marrocos, junto à fronteira com o território do Sahara Ocidental.
19Assim ensinou Simone Weil.
20Seguindo o ideário de Santo Agostinho.
21Presença amorosa e atenta são qualidades cada vez mais necessárias à expressão hu-
mana no mundo contemporâneo.
32
Havemos de tomar um café. Até depois. Pedirei à Stella para
te contactar. Ela é, sempre, mais organizada.
Fernando, cambaleante, saiu a custo entre os solavancos do
autocarro e a vontade de continuar a prosa.
33
5
ESPERANÇA
– Daqui a poucos minutos receberemos um pequeno gru-
po de alunos que nos vem visitar. Nunca lhes disse que não
vivia sozinho. Talvez nunca tenham pensado nisso, Tang. De
qualquer dos modos temos de nos preparar para as perguntas.
Sabes como são os miúdos. Em particular estes. São como tu.
Curiosos e selvagens. Pesa sobre eles o estigma de serem assil-
vestrados. Se fores empático eles também o serão. Leva o seu
tempo até ganhar a sua confiança. Já tu dás corda a qualquer
um, Tang.
Enquanto secava o prato de sobremesa com o pano de co-
zinha ia pensando por que raio quereriam eles falar-lhe fora
da escola.
– Ah, Tang! Se pretenderes sair está à vontade. Não tens
que os enfrentar. Vais dar um giro. Quando voltares já cá não
estarão, seguramente. Escolhe. Tu é que sabes. Estás à vontade.
Na verdade o seu nome era Tang-ping. Mais tarde tornou-
-se por direito, simplesmente, Tang. Seguira-o o felídeo, a
uma distancia protocolar, observando-o até casa numa tarde
quente de inverno. Só mais tarde percebeu que se tratava de
um raro gato leopardo. Prionailurus bengalensis, ou como é
conhecido entre nós, um gato-de-bengala. Por vezes sentia-
34
-lhe a falta. Ele ausentava-se durante longos períodos de tem-
po. Depois lá acabava por voltar. Por estes dias acontecia-lhe
estar por casa. Talvez viesse para celebrar uma qualquer data
que lhe fosse querida.
Tang-ping significa, grosso modo, deitar-se no chão22
. Es-
tar quieto. Desde há alguns anos que se ouve referir este ter-
mo. Trata-se de uma tendência social com origem na China.
E dos gatos por todo o lado. Estes últimos se fossem mais or-
ganizados poderiam controlar meio mundo. E, já se vê, domi-
nar o outro meio. Será isso possível para um humano? A um
gato sim. Tang era o exemplo acabado disso mesmo. Houvera
visto uma imagem que retratava isso muito bem. Uma pági-
na dividida a meio horizontalmente. Do lado esquerdo, em
cima, o mundo desenhado antes do seu fim. Belo. Radioso.
Em baixo, sempre do lado esquerdo, o mundo completamen-
te destruído e a humanidade deserta. Do lado direito em cima
e em baixo, um mesmo desenho. Um gato. Sentado. Lambe
de forma serena a pata dianteira. Tang era isso mesmo. Um
gato-de-bengala, soberanamente, na sua. De nada dependia
do andamento do mundo.
– Ei-los que chegam. Já?!? Cuidei que se atrasassem. Que
eu também me atrasaria. Assim, correria tudo bem. A propó-
sito, para onde terá ido o raio do gato – disse dirigindo-se à
porta da rua.
Escancarada a porta saudaram-se mutuamente como se
22Implica uma declaração política. Um apelo à contracultura. Desafiando, acima de
tudo, a ordem socioeconómica em vigor na China. É um movimento cujo principal
objectivo é resistir a uma cultura de trabalho com horários demasiado pesados. Cerca
de 10 horas por dia, 6 dias por semana. Trabalhar, trabalhar... Eles não querem, apenas,
assegurar o consumo ou o pagamento de dívidas.
35
não se vissem há alguns anos. De facto nunca se tinham en-
contrado fora do perímetro da escola. Fazia toda a diferença,
concluíram. O próximo desafio seria arrumar 5 ou 6 miúdos
naquela sala. Não que esta não fosse espaçosa que bastasse.
Apenas estava, ponderadamente, desarrumada. Para o profes-
sor isso representava o equilíbrio. Cada um tinha o seu. Por
vezes arrumava-a. Sentia que perdia, sempre, algo quando o
fazia. Finalmente iria saber o motivo que estaria na origem
daquele encontro. Animou-se ao pensar nisso.
– Desculpem a desarrumação. Na verdade não recebo
muitas visitas. Tenho um imenso gosto em vos receber na
casa de onde parto e retorno a cada dia. Chamo-lhe minha.
Mas, será assim? Interrogo-me demasiadas vezes. Espero que
não me estejam a visitar para me pedirem instruções para se
tornarem terroristas? Na realidade nós, os da Argélia, não pe-
gávamos em armas ou explosivos. Outros sim. Não havia al-
ternativa. Era um outro tempo. Bem diferente do atual.
No bando visitante todos lhe pareciam de semblante diver-
so daquele que conhecia nos dias vividos na escola. Os olha-
res eram acriançados. De uma felicidade lavada. Despidos da
dureza dos dias. Sabe-se lá como.
Abriu o jogo a miúda do cabelo imperial:
– Pois. Nem sei bem como começar – disse de forma
insegura.
O professor alegrou-se, dizendo que isso nem parecia dela.
Surpreendidos todos os visitantes se riram com vontade.
Decidida, a miúda, acabou por confessar:
– O professor tem-nos ajudado a perceber e a aceitar o
facto de sermos jovens adultos, de algum modo, irregulares.
Mas, disse-nos quase tudo ao contrário dos outros professo-
res. Pais. Amigos. Nesse sentido deixou-nos sem chão. Se isso
é bom? Não. Não é! Desinquieta-nos como a canção. Não me
36
recordo do nome. Aquela que propôs que fosse o hino da nos-
sa escola. Lembra-se?
– Sim, recordo-me muito bem. Ensinas-me fazer tantas
perguntas. Na volta das respostas que eu trazia. Quantas pro-
messas eu faria se as cumprisse todas juntas23
.
– O poema é muito bonito e tem tanto a ver. Bem, não era
sobre isso que lhe queríamos falar. Estou demasiado confusa.
Como se me faltassem as palavras.
Novamente, todos gargalharam, muito divertidos, perante
aquilo que consideravam uma impossibilidade.
– Continuo eu – disse o rapaz dos óculos de lentes despro-
porcionadas, enquanto sacava do bolso uma folha de papel
amarrotada.
– Então. O professor ensinou-nos que os primeiros 50 anos
da vida de uma criança são os mais complicados. Pois que
todos queremos ir para o céu, embora nem todos queiram ir
pelo caminho por onde se vai para o céu. Não me lembro bem
se foi isso que nos disse. Terá sido por aí. Estes são os apon-
tamentos de uma colega. Não são meus. A questão é, como
encontrar o raio do caminho? Nenhum de nós tem 50 anos.
Imaginamos que poucos lá chegarão, por este andar... Que ca-
minho será o nosso, irmão? O que é feito de nós?!? Seremos
assim tão fora da caixa?
– Ora. Vejamos. Vocês não são fora da caixa. Porquê? Por-
que tal caixa não existe. Nunca existiu. Depois, não sou eu
que vos falo do caminho. Há demasiada gente que vos vai ten-
tar vender essa treta. Ainda assim aceito-o como um trilho
de oportunidades e infortúnios que a todos deverá suscitar
23Inquietação. Música e letra de José Mário Branco.
37
atenção. Contudo, a nossa responsabilidade será, sempre, a de
decidir24
. Depois, ensinam-vos a partir das respostas. Sempre
as mesmas, entenda-se. Temos de mudar as perguntas para
transformar o mundo das respostas. Por não o fazermos sur-
ge a tristeza de cedo ser tarde de mais25
. E, para que servirá
tudo isto? Façamos um acordo. Tudo o que vos disser, ago-
ra, neste momento, só tem serventia durante os próximos 10
minutos. Ok? Logo a seguir esqueçam tudo o que eu afirmei.
Peço-vos. Só quando se deslembrarem do que vos disse dei-
xarão de ser pensados por mim. Ou seja, mais valem todos os
vossos erros que os acertos que o meu pensamento vos possa
trazer. Prometam-me que assim farão. Tudo o que vos ensino
terá de servir para que se me oponham. Mesmo que depois
da conversa pensem como eu. Aí já o pensamento não será
meu. Será vosso26
. Se deus quisesse que fossemos todos uma
só pessoa tudo teria sido bem mais facilitado.
– Gostei da sua linha de pensamento – disse Maria da Fé.
– Somos o que aprendemos errando?
– Não estamos de acordo. Ainda assim, honra te seja feita,
compreendeste a mensagem. Pensaste com a tua cabeça e não
com a minha. Parabéns! Certo que todos somos semelhan-
tes em natureza. Apenas os hábitos diários nos afastam disso
mesmo. E uma vida sem coerência apenas assentará no aca-
so. Pensar com propósito é algo desafiante. Porém, demasiado
aborrecido para a maioria dos humanos.
– E qual será o nosso propósito, professor? É isso que que-
remos saber.
24Poder escolher é, por si só, ser feliz.
25Inspirando-se em Marguerite Duras.
26Inspirando-se em Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva.
38
– Que sejas verdade. Não confundir com de verdade ou a
verdade. Nada na vida tem de ser excecional. Tem de – sim-
plesmente – ser verdade. Lembrem-se, a verdade nunca estará
na vitória em si mesma. Apenas o progresso de todos vos de-
verá interessar.
– A verdade? Deixe-me rir, professor. Isso não existe.
O professor olhou por cima dos óculos, sempre embacia-
dos. Refletiu. Isto para finalmente aceitar o comentário.
– Sim. Talvez tenhas razão. E a mentira existe? Que dizem?
– Claro que existe – responderam todos em coro.
– Então, se a mentira existe, por que não existiria o seu
contrário? – perguntou o professor. – Vejamos. Na realidade,
a pergunta que deverá ser feita é: qual é o oposto de uma
verdade?
Sem grande interesse ou entusiasmo alguns apressaram-se
a responder o óbvio.
– Certo. O contrário de uma verdade é uma mentira, evi-
dentemente. Mas, qual será o oposto de uma grande verdade?
Face ao silêncio instalado o professor rematou:
– O oposto de uma grande verdade poderá ser outra gran-
de verdade.
– Então, poderemos ter esperança numa outra vida? – per-
guntou Maria da Fé, enquanto sorria desabridamente.
– Pois, esse será o sentido ultimo da tua existência. Dizem
que a esperança tem duas belas filhas. Uma chama-se cora-
gem. A outra indignação27
. Sem isso não te valerá a pena al-
mejar viver. Mas, não seria mais simples voltares a uma velha
história? A tua. Afinal, por que merecerias tu uma nova vida
27Inspirando-se em Santo Agostinho.
39
se não sabes o que fazer com a que já tens? Talvez por isso
aqui vieram hoje. Estão preocupados com o futuro. Agora,
compreendo.
– É. No final deste ano teremos de conseguir trabalho. Se-
remos capazes? Certo que ninguém espera grande coisa de
nós. Temos medo de ninguém nos empregar.
– Tens medo, miúda. Eu também. Tu tens medo mas não
és o medo. Do mesmo modo que eu tenho emprego, mas não
sou o meu trabalho. Temos a obrigação de ser mais para além
de tudo isso. Queres ver? Comecemos pela carga negativa da
palavra trabalho. Essa tem origem no latim: tripalium. Desig-
nava o instrumento de tortura usado para controlar os escra-
vos, isto no tempo dos romanos. Assim, se permitiu que a
concepção do trabalho se tenha tornado em algo doloroso
para qualquer um de nós28
. De que tens medo? Diz lá. De não
seres inteligente, é isso? Há tantas inteligências...
– Assim é. Ninguém da minha família é inteligente. Por
isso acaba tudo preso. Nos consumos. Sei lá... A minha pró-
pria avó mo disse quando foi chamada à outra escola pelo
professor Monteiro. Ele queria que eu fosse para um curso
profissional de cabeleireira e chamou lá a minha avó. Ali mes-
mo - à frente de todos - ela obrigou-me a aceitar que esse não
deveria ser o meu futuro. Ó filha, tu não queres ser cabeleirei-
ra, pois não? Tu queres ser puta como a tua mãe. Diz isso aqui
ao senhor professor. Só depois deste episódio é que a CPCJ29
me obrigou a vir estudar para a nossa escola. Coisa que eu
também não queria. Isto é tudo uma cena marada, prof..
28Em oposição a tudo isto teremos o bem-estar. Esta é uma palavra composta por bem,
cuja origem é bónus, implicando alta intensidade. E, estar é existir, viver.
29Comissões de Proteção de Crianças e Jovens.
40
– Não és inteligente? Quem disse tal coisa? – perguntou o
professor indignado. Na verdade, meninos, só somos o ani-
mal mais inteligente do planeta baseados numa única razão:
termos sido nós a escolher os critérios dessa mesma classifi-
cação. O que é ser inteligente, afinal? – perguntou o professor
olhando no vazio. Mais. Não percebemos, ainda, a mensagem
que todos os outros animais nos dão através do seu exemplo,
estando, igualmente, por se estabelecer a quem cabe a culpa
de não nos entendermos. Os outros animais podem achar-
-nos tão estúpidos como nós a eles. Aliás. No final dos anos
60, Buckminster Fuller, num livro que não vos aconselho,
chamado Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra,
chama a nossa atenção para algo fundamental. O autor parte
de um facto que a todos continua a passar despercebido. Refi-
ro-me à não existência de um manual de instruções através do
qual nos seja permitido alcançar o como e o porquê conduzir
a nave espacial Terra.
E o que é que este pensamento poderá ter de tão extraordi-
nário, professor? – perguntou Maria da Fé.
– O facto das instruções para o planeta não serem conheci-
das dos humanos é, no seu entender, deliberado e intencional.
Só essa possibilidade tudo muda, estão a ver? Com cada um
de vocês acontece, exatamente, o mesmo. Chegamos à vida
em igual despreparo. Nenhum de nós trouxe manual de ins-
truções. A vida apenas nos acontece. Como poderão alguns
ter tantas certezas?
– Professor, para mim, a inteligência humana baseia-se
num método em tudo opressivo. Contemporaneamente, o in-
dividuo pensa ser livre quando na realidade ele é feito refém
de um sistema que o explora e se alimenta dessa mesma ilu-
são de liberdade. – disse o miúdo da guitarra.
O professor olhou-os um a um, concluindo:
41
– A grande novidade estará no facto da inteligência, que
tudo sanciona, dar a todos a falsa sensação de ter a liberdade
de poder fazer o que bem entendem, porém isso traz novas e
tremendas ameaças. A depressão, a exaustão, a ansiedade,...,
serão, quanto a alguns autores, a expressão maior de uma
profunda crise de sentido a que todos sucumbiremos. Assim
sendo ficamos à deriva30
. Prova disso é um ser humano cada
vez menos capaz de ter uma atitude intensa face ao conheci-
mento de si próprio. Isso preocupa-me. Não há maior prisão
que essa.
A rapariga de cabelo imperial, hesitou. Suspirando, por
fim, afirmou:
– O professor não realizou, ainda, que em sala de aula são
sempre os mesmos que falam sobre os assuntos. São uns cin-
co ou seis. Os outros pouco podem acrescentar. A maioria
não percebe nada do que o senhor diz. Na aula também o
professor exerce o jogo da inteligência. Uma brutal opressão
silenciosa.
– A ditadura da inteligência! A palavra serendipidade31
,
por exemplo, desapareceu do nosso léxico. Assim se enterrou
o império do por acaso. Desvalorizou-se, totalmente, o ines-
perado. Tudo é agora normalizado a um mesmo modelo de
pensamento. – conspirou o rapaz do vestido azul.
– Ora! – disse o professor, ainda mais, surpreendido. –
Tens toda a razão. Contudo, isso em pouco ajuda a tua colega.
Certo, miúda? Vamos lá ver. O desafio dela é perceber se terá
um emprego daqui a uns meses.
30Será esta a expressão maior a que Saramago chamou uma sociedade de cegos que veem.
Cegos que, vendo, não veem?
31Descobrir coisas boas por mero acaso, sem previsão.
42
Parou. Assuou-se ao lenço de tecido grená, assumindo-se,
ainda mais desconfiado face ao tema. Repondo a respiração,
recomeçou:
– É enorme a diferença entre aquilo que necessitamos e
aquilo que desejamos. Temos dificuldade em discernir o que
é uma e outra coisa. Por exemplo. A ansiedade resiste no que
é ilusório, porque é proveniente do desejo. Vivemos numa
sociedade desejante. Os ricos também sofrem de depressão
e angústia, não é? E quem tem bons empregos, idem. Temos
que perceber que necessitamos de muito pouco para sermos
felizes32
. Tens de saber separar bem entre estas duas circuns-
tância, distinguindo entre o que necessitas e o que desejas. Se
não o fizeres, mais tarde ou mais cedo, serás mais uma pri-
sioneira por dívidas. Para pertenceres à sociedade da credi-
tocracia terás de ter trabalho para pagar a quem deves. E isso
acontecerá, também, por via desta pressão. Ou seja, a garantia
do teu emprego é, igualmente, o que permite a certeza de que
se eternizará um sistema económico-social injusto. Prometo
que vou levar esse assunto a uma das próximas aulas. É um
bom tema para todos.
– Professor, deixe ver se eu percebi. Então, uma vida inteira
a trabalhar para pagar dívidas de uma existência que não é a
minha faz, algum, sentido?!? – perguntou a miúda do cabelo
imperial.
– Não te sei responder, miúda. Só tu poderás saber, ou tal-
vez não. Entretanto, deixo-vos ficar herdeiros do meu maior
desafio. Aquele que coloco a mim todos os dias. Há muitos
32O consumo das coisas que desejamos tornou-se, por oposição às coisas de que ne-
cessitamos, uma forma de opressão. Será que necessitamos, verdadeiramente, do que
desejamos?
43
anos recebi ensinamentos de um velho mestre. Certo dia, sem
que nada o fizesse supor, disse-me: a tua evolução exige pro-
vocação. O que fazes nesse sentido? Esta é a maior das lições
que se reclama a quem quer progredir. O que é muito claro
para mim, neste momento, é que sem provocação não há mu-
dança! Esse é o meu legado. Mas, decididamente, eu pouco
poderei fazer por vós.
– Como assim? – perguntou o miúdo da guitarra. – Afinal,
é ou não é nosso professor?
– Nenhum professor poderá ensinar o que realmente im-
porta às pessoas. Só podemos ajuda-las a encontra-lo dentro
de si mesmas33
. Por isso todo o conhecimento, todo o senti-
mento é encontro. Cada um de nós consigo próprio. E cada
um dos nossos múltiplos com todos os outros.
– Professor, que escola é essa de que nos fala tantas vezes?
- indagou, novamente, o miúdo da guitarra.
– Todas as escolas. Todos os cursos. Todas as conversas são
sobre isso. Começa por ler livros provocadores. Logo com-
preenderás que eles, os livros, todos eles, assim como todas as
conversas, são sempre sobre evolução. De certa forma, todas
as palavras são vazias se não te tirarem do lugar onde te en-
contras. Aprendi que por isso é impossível servir aos deuses,
à consciência oculta em todas as coisas, a quem não for capaz
de ser desafiador.
– Desafiador? O que será isso, professor?
– Nunca esmorecer perante a certeza de que a estrada será
longa e o fardo pesado. Acredito que todos teremos a respon-
sabilidade de ser discípulos deste ideário. Atenção. Discípulo
33Inspirando-se em Galileo Galilei.
44
significa na sua génese aquele que aprende. Nunca a pessoa
que segue alguém. Um professor, um escritor, um guru, etc.
Quando assim é nenhum deles, o que segue e o que deixa que
o sigam, está a aprender. Esta é uma das principais razões pela
qual a humanidade deixou de ser fraterna. Concluindo? Não
me sigam. Eu também estou perdido. Nunca se esqueçam
disso. Ainda assim, e antes de saírem, peço-vos 5 minutos de
atenção. Imaginem que aqui o vosso colega acaba de acordar
de uma noite de pesadelos. Olhando o espelho de relance des-
cobre que se transformou numa barata. Qual seria o primeiro
pensamento que vos viria à mente?
O silêncio instalou-se. O professor continuou preocupado,
receoso de não estar a conseguir a atenção do grupo.
– Eu digo-vos. A questão que primeiro se lhe afigurou foi,
como é que irei conseguir conservar o meu emprego? Surpre-
endidos?
– Não professor! Não foi nada disso que eu imaginei. Pen-
saria, exatamente, o contrário. Já não terei mais de ir à escola.
Não terei mais que trabalhar. Nunca mais. Depois, barata ou
não, agora, seria famoso.
– Isso é o que acontece com aqueles personagens que se
tornam famosos por serem famosos. Os participantes dos rea-
lity shows da televisão, abonou o rapaz do vestido azul, imagi-
nando alguns destes concorrentes com cabeça de barata.
Indeciso, o professor respondeu:
– Sim, claro. Não tinha visto essa possibilidade. Continu-
ando. Voltando um pouco ao início. Esta é a estória de Gregor
Samsa. Um jovem vendedor que descobre ter sido transfor-
mado em barata após uma noite de pesadelos. Uma vez assu-
mido o facto, ele revela-se totalmente incapaz de agir, analisar
ou refletir sobre o significado de tudo isso. A sua única preo-
cupação passou a ser, como vos disse, o emprego. Parece lógi-
45
co. Ele teria de continuar a trabalhar para sobreviver. Parece
inteligente. Parece fazer sentido. Parece ser de gente. Mas, se
calhar não é. Quando este medo, o de perder o emprego, é a
maior de todas as angústias já não há nada a perder. Nesse
momento não existimos. Somos apenas baratas.
– O que nos contou não é verdade, pois não, senhor profes-
sor? – perguntou o miúdo do cabelo zebrado.
– Acho que não! É o relato da fase inicial de A Metamor-
fose de Franz Kafka. Estávamos em 1915. Hoje, mais de 100
anos depois, todos sabemos que não fomos, ainda, capazes
de escolher, coerentemente, as questões que nos hão-de tirar
do marasmo de ser barata. Para o bem e para o mal foi nisso
que a humanidade se transformou. Uma Civilização de Ba-
ratas (ansiosas e amedrontadas). Somos, ainda, incapazes de
reagir, colectivamente, perante os mais rasteiros desafios. E
o que quererá isso dizer – perguntarão. Esquecemo-nos que
não se nasce gente. Fazemo-nos gente. Em contrapartida, a
barata nasce e morre como tal. Porém, este insecto tem, mes-
mo, uma grande vantagem sobre os humanos. Ela pode viver
sem cabeça. Bem... pensando melhor, muitos entre nós tam-
bém o fazem. Então, peço-vos que nunca assumam a vossa
imagem reflectida ao espelho como sendo a vossa face origi-
nal. Nós somos mais que isso. Mais que um reflexo. Mais do
que imaginamos.
Parou. Olhou para a sua aluna preferida, prosseguindo:
– De tudo isto devemos reter o facto de poucos partirem,
incondicionalmente, de si próprios. Da sua realidade interior.
Dos seus sentimentos, emoções, da sua natureza interna. Etc.
E, não o fazer, é tudo menos reconhecer que existimos a partir
do (ser) imaterial. Este ao não ser reflectido por um espelho
é esquecido, tornando-se ausente toda uma vida. Daí que a
maioria entre nós apenas exista face ao espelho. A ideia de
46
vida ao espelho. E esta é, quanto a mim, já uma forma de pri-
são. A maior de todas elas.
– Nas redes sociais, por exemplo, é isso que acontece. Cer-
to, professor? – questionou a miúda do cabelo imperial.
– Sim. É verdade! E com isso estaremos cada vez mais per-
to de nos tornarmos numa sociedade em que muitos serão
transformados em baratas. Essa escravidão, a existência vivi-
da através do reflexo de nós próprios, será fortuna ou casti-
go? Vamos pensar nisso? Estou tão feliz com a vossa vinda.
- confidenciou-lhes na despedida, depois de abraçar carinho-
samente cada um deles.
Ainda, tiveram tempo para conhecer Tang que por ali pas-
sava. Seguia como sempre desconfiado.
– É seu? – perguntou Maria da Fé. – Como se chama?
– Tang-ping. É um gato-de-bengala. Depois, um outro dia,
conto-vos como chegou até mim. É uma estória muito intri-
gante. Até terça, pessoal. Não se esqueçam que na próxima
aula traremos um texto sobre o Planeta Prisão. Obrigado pela
visita. Venham sempre. – culminou o professor alegremente.
ELOGIO
DA
IGNORÂNCIA

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  • 3. ELOGIO DA IGNORÂNCIA Autor: Paulo Vieira de Castro Edição: Marcos Pamplona Capa e paginação: Rute Valadares Produção: Kotter Editorial Copyright© Paulo Vieira de Castro, Kotter Editorial, 2023 1ª Edição: Junho de 2023 ISBN: 978-989-53824-9-1 Depósito Legal: 516001/23 Impressão: masquelibros Kotter Editorial kotterportugal@gmail.com @kotterportugal email do autor: geral@paulovieiradecastro.pt
  • 5.
  • 6. ÍNDICE 1 - Nós sapiens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7 2 - Pensar dói . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .11 3 - Sumário: No regresso vinham todos . .15 4 - Argel. A utopia do tempo ausente . . . .29 5 - Esperança. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .33 6 - Sumário: Para se compreender um país é preciso primeiro conhecer as suas prisões .47 7 - Sumário: Há tanta vida lá fora, aqui mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 8 - Sumário : Uma imensa minoria . . . . . .57 9 - Quem tem por que viver pode suportar qualquer como . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .67 10 - Sumário : O elogio da ignorância . . .71 11 - Sumário: Uma carta a Garcia . . . . . . .79 12 - Os improdutivos imprescindíveis . . .87 13 - Sumário: Indivíduos não sociais versus auto-organizados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .91 14 - Sumário : Eu, dona da minha fome .99 15 - Sumário: Os melhores decotes do mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .105 16 - Sumário: O desconforto de uma derra- deira pergunta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .109 17 - The long and winding road . . . . . . .115 18 - A alegria de poder voltar para trás .119
  • 7.
  • 8. 7 1 NÓS SAPIENS Se lhe perguntassem há quantos anos o fazia não teria como compreender tamanha ambiguidade. Em tempos, im- portunava-o o dia em que deixaria de acontecer. Todas as noi- tes eram iguais. Deitava-se com a almofada quebrada debaixo do pescoço enfraquecido e descansava. Dormia. Voltava, sem cessar, ao surrado anfiteatro. A ingenuidade dos dias vividos. Muitos fracassam nessa dedicação – pensou preguiçosamente. Os pormenores falam- -nos sobre isso. Por essa razão toda a inocência é encontro. Fechando o velho caderno de padrão escocês manifestou nos olhos a pressa que lhe era reservada a cada final de tarde. – O que acontece aos que falharam, ainda que escassamen- te, na atenção aos pormenores? – perguntou a miúda do ca- belo imperial. Todos já haviam reparado nela. Irrequieta, sempre em bus- ca de uma espécie de satisfação desinteressada. – Isso seremos nós na incompreensão dos sobrantes – con- trapôs o professor enquanto desarrumava a mochila como se procurasse outro argumento dentro dela. Isto para depois responder à gaiata, colocando-se em posição de partida na porta da sala.
  • 9. 8 – Usemos como exemplo o amor e o ódio. Ambos são con- siderados como os culpados disto tudo no esquecimento do que somos nós. Mas, serão eles – o amor e o ódio – os anta- gonistas de serviço de tantas, e tantas, estórias? Das mais des- pojadas às infamemente labirínticas? Não. O amor é o único sentimento que não acolhe, nunca, o seu contrário. O amor é! Porquê? A resposta é simples. O amor não se submete à lógi- ca humana. Não tem oposição, ou ocaso, em qualquer outro sentimento. – Não percebo, professor! – interrompeu o rapaz loiro. Talvez fosse dele ter um tal jeito replicante. Nunca percebia nada. Estranhamente acreditava em tudo que lhe contavam em casa. – Vou ver se consigo explicar-te de uma outra forma. Com o amor, se repararmos nos pormenores, ainda que muitos de entre vós o façais pela primeira vez, não estaremos, nunca, perante um dilema. No caso do amor não temos como decidir entre isto ou aquilo1 . Porquê? Porque o amor é a um mesmo tempo o problema e a solução para tudo. Esta constatação co- loca-o, seja lá o que essa inquietação venha a ser, numa cir- cunstância impar. Se estiverem na posição de escolher não será amor. Neste afã não tem outro viés que se sobreponha à inocência dos dias. – E o ódio, professor? Em nenhuma circunstância se po- derá transformar em amor? – indagou o rapaz do cabelo comprido. Sem pestanejar, definitivamente, com metade do corpo fora da sala, o professor praguejou: 1A inteligência humana baseia-se, quase que exclusivamente, neste tipo de premissa.
  • 10. 9 – Ora! Esse pode ser o que cada um de nós quiser. Reparte uma mesma devoção humana com a ignorância, ligando-os, indubitavelmente, a um movimento a que muitos chamam, ou confundem, com vontade de poder. Na verdade, como dis- se um filósofo, o mais desastrado entre eles, o homem pode fa- zer o que quer, mas não pode querer o que quer2 . O que parece ser o avesso do que vos é ensinado durante toda uma vida3 . Perceber isto é compreender a importância dos pormenores, mais uma vez. Ou, por fim, aceitar a razão pela qual o tal fi- lósofo morreu, de forma certeira, atropelado na contramão numa rua de Frankfurt, corria o ano de 1860. Caminhou, de seguida, rapidamente e sem hesitação, como se alguém lhe tivesse lembrado que tinha de se ir embora. – Até para a semana – acenou, levantando a mão que lhe restava dentro da sala. Ao passar pela portaria, despediu-se do segurança com ar de pinguim ponderado. Nas escadas, a caminho da estação do metro, pôde ouvir um afadigado: – Espere, espere... Tenho uma pergunta. Por favor... Uma vez alcançado o objectivo, alterado o passo desen- freado de ambos, enfrentaram-se como esteios destoantes. A miúda do cabelo imperial perguntou: – Será o amor que nos une, então? – Ora. Lá vamos nós outra vez, menina. Não. O amor não obedece à mente. A nada. O amor independe de tudo. – E a vida. Há esperança? 2O filosofo polaco Arthur Schopenhauer. 3Tendo-se tornado um erro, agora, mais evidente com o aparecimento da psicologia po- sitiva, impondo ao desenvolvimento humano o primado do desenvolvimento pessoal.
  • 11. 10 – A vida? Essa nada nos tira. Aos mais sensíveis aos por- menores vai-os desatando de tudo, impedindo-os de se trans- formarem, apenas, nas coisas. O resto? É respirar! Sobram, ainda, os malcontentes que se refugiam na obediência, estrita, às palavras, esquecendo a alma que lhes subjaz. Depois, mi- nha filha, a vida é para sempre. Já o amor pode durar um mi- nuto, um ano. Um segundo. Toda uma vida. Se há esperança? Só não existirá perante a indiferença. – Então, “que seja eterno enquanto dure”, como dizia Vi- nícius. Quando nada resulta, professor, quando tudo parece estar errado, só há uma coisa a fazer: tentar novo. Aprendi-o consigo. Amar é isso mesmo. À semelhança da própria morte. Amar é a arte de tentar de novo. Ora! – exclamou a miúda do cabelo imperial, dando-lhe as costas. – Errado. Estás tremendamente enganada. Somos os que acendemos o amor para que dure, para que sobreviva a toda a solidão. Queimamos o medo, olhamos frente a frente a dor antes de merecer esta esperança. Abrimos as janelas para lhes dar mil rostos. Assim nos ensinou o maior poeta argentino4 . Para o fim de semana há que ler o ensaio No Regresso Vinham Todos. É para a próxima aula. Se puderes, lembra aos teus co- legas para o fazerem - pediu por fim, encolhendo os ombros. E já agora diz-lhes que ouçam Rimsky-Korsakov: Scheheraza- de op.35 - Leif Segerstam. Rindo a bom rir, o professor seguiu animado na certeza de que muito poucos atenderiam ao seu conselho. 4 Juan Gelman.
  • 12. 11 2 PENSAR DÓI Maldisse a reclamação da porta da sala empedernida pelo tempo. Não sabia se o ruído era das dobradiças ou dos ossos do seu braço direito. Considerou isso uma questão de mera retórica. Poderia ficar para depois. Ligou o rádio. O som de- masiado baixo antecipava um outro desafio. Olhou de través o livro desmaiado sobre a mesa. Haveria de lhe mudar a capa, pensou. Mas como? Sentou-se. Tentou ver a face de Cristo na espuma da chá- vena de cevada. No desatino diário do exercício de nada con- seguir, o pensamento fugiu-lhe para o Chopin. O bar junto à praia que ambos frequentaram numa outra faina. Entediado, cerrou os olhos sem esforço. Ela a mesma de todos os dias. Sem pressas. A pergunta? A menos esperada. Olhou-o no coração como habitualmente. – Então. Estás contente? Aposto que o lamentas! Completamente a despreparo a resposta não se fez esperar. – Morro todos os dias por isso. Estou profundamente arre- pendido. Mas, hoje faria, exatamente, o mesmo. Levantando-se no engano de um tom que só a ingenuidade nos traz, expirou o tédio das palavras mansas. – Não há outra forma de sobreviver a tamanho choque.
  • 13. 12 Isto, pelo menos, na lógica dos comuns e dos costumes, pressagiou. Subitamente foi interrompido pelo estampido do telefone. Má sorte, pensou. – Nunca toca. Tinha de ser agora, bolas. Preferindo continuar refém dos seus próprios pensamen- tos encolheu os ombros enterrando-se, ainda mais, no sofá. Depois, escolhendo proficientemente a afinação da voz mais conveniente, recordou a razão pela qual muitos preferem a atenção dos simples. Esses? Guardam as perguntas para si próprios! Calou-se, finalmente, o telefone preto. A rua voltou ao si- lêncio das noites lentas. Sem ter a certeza de, entretanto, ter adormecido, interro- gou-se pouco confiante. – Chopin?!? Quem frequenta uma baiuca com um nome desses não merece melhor sorte. Contrariado, levantou-se como que voltando ao balcão do bar. Bebeu um trago do seu Alexander Sister Number Two: licor de menta, natas e Fernet Branca. Fechou os olhos sua- vemente, deixando-se regressar à conversa do outro lado do espelho. – Pode o homem que confessa o seu erro ser o mesmo que o cometeu? Ela arregalou os seus imensos olhos de maré vaza, gritando em surdina: – Não. Não, no teu caso. Se te tivesses arrependido com- preenderia. A pergunta seria em tua defesa. Perdoar é fácil face ao arrependimento. Esquecer ainda é mais simples. Mas, não será isso uma doença chamada Alzheimer? – Não é de arrependimento que se trata! – defendeu-se ele – Eu não sou a mesma pessoa que tu conheceste. Só isso. Pode
  • 14. 13 alguém ser quem não é? – Compreendo. Apenas coexistimos, então, numa mesma mansidão a que tu chamas vida. Essa será sempre, e exclusi- vamente, a tua. Lá não caberá mais ninguém, nem hoje nem nunca. Enquanto assim for não te terás arrependido, meu caro. Como poderias ser tu uma pessoa diferente se não te arrependesses de verdade? – Voltando à ingenuidade, amiga. Repito, esta é a única que nos permite regressar às tripas. Exatamente como na morte. Aprendi que é deste modo que descanso dos outros. Sejamos sérios. Já o sabias!
  • 15.
  • 16. 15 3 SUMÁRIO: NO REGRESSO VINHAM TODOS – Bom dia. Sentem-se por favor. Desde logo, devo-vos um pedido de desculpas por ter chegado um pouco atrasado. On- tem adormeci no sofá da sala e não ouvi o despertador. Va- mos lá, então. Quem se inscreve para o comentário ao ensaio No Regresso Vinham Todos5 . Quem começa? Lá atrás? Força! – Aqui talvez fosse de fazer a contextualização histórica, ainda que introdutoriamente. A guerra colonial portuguesa iniciou-se no princípio dos anos 60 do século passado, termi- nando após a revolução de 19746 . Naquele tempo ir à guer- ra era obrigatório para qualquer jovem. Quatro anos de vida desgovernados. Existem, ainda, centenas de ex-combatentes da guerra colonial. Eles representam a última geração a poder contar a história dos militares que, durante aproximadamente uma década, sustentaram à custa das suas próprias vidas uma 5Título influenciado em Vasco Lourenço. Estória inspirada em L. Rodrigues. Em am- bos reconheço a essência de todos os ex-combatentes, sem excepção. Reconhecendo, ainda, em Gazela o dever de resistir em nome da liberdade de um povo. 6A 4 de fevereiro de 1961 dá-se um ataque à casa de reclusão militar de Luanda. Desde esse momento a instabilidade estende-se a toda a Angola. E, logo, aos restantes países africanos com domínio colonial português.
  • 17. 16 guerra que poucos sentiram como, sequer, necessária. De repente, notou-se um inexplicável burburinho pelo no- bre anfiteatro. Pressentiu-se alguém a tentar ser ouvido. – Tenho de falar! Professor, tenho mesmo. Prometi à mi- nha mãe que não o faria – disse o rapaz do cabelo rapado. A sua voz estava muito alterada. Todos ficaram enregela- dos. Abandonados face a tão sofrida súplica. Por que soluça- ria ele, afinal? – O meu avô era sargento-enfermeiro. Esteve na frente do combate direto com as tropas de Amílcar Cabral. Quan- do chegou a Ferreira, em dezembro de 1974, era um farrapo. Na maior parte das vezes nem reconhecia a própria filha. A minha mãe diz que aquele que participa numa guerra per- de o direito à sua história pessoal. Essa é a razão maior para que muitos pensem que a guerra não possa ter fim para um ex-combatente. E os nossos foram abandonados à sua sorte, também, após terem regressado à metrópole. Haveria uma razão para ser deste modo? A minha mãe diz que para além das marcas da guerra há, ainda, a reconciliação, o perdão e o direito ao esquecimento. Deveria existir um processo que os libertasse do sofrimento. Mostrei o texto em estudo à minha mãe que o achou belíssimo. Fartou-se de chorar ao lê-lo. Por isso lhe prometi não mais tornar ao assunto. Sei que isso lhe dói, ainda hoje. Assegurei-lhe que não o faria nesta aula. Ago- ra, ao reler o texto, já na sala, compreendi que não poderia deixar de falar. Na defesa de todos os lados da barricada. Ne- les encontramos tropas nunca derrotadas, mas, igualmente, nunca vencedoras. Sem que nada o fizesse esperar, ergueu-se. Abandonou a sala na mais profunda mudez, com o convencimento dos que nunca baixam a guarda. Com ele saiu a rapariga do cabelo im- perial. Ambos estariam de volta passados um par de minutos,
  • 18. 17 encontrando o anfiteatro, ainda, em total quietude e silêncio. O rapaz da guitarra levantou a mão, recordando a todos porque estavam ali. – Este não é, no meu entender, um ensaio sobre guerra. É, sim, sobre reconciliação. Um grito de revolta perante o mando que no passado foi capaz de sentenciar à indignidade povos irmãos, servindo-se para isso dos seus próprios filhos, conde- nando-os à pior das mortes. Aquela que só às armas serviu. Todos pareceram, enfim, concordar. Ao professor cabia o desafio de prosseguir. Teriam de avançar. – Se não se importarem, já que nos desviamos, em grande parte do guião desta aula, gostaria de pedir quatro voluntários para lerem um trecho deste ensaio. Páginas 12 a 17, por favor. Dois narradores. Mais duas vozes. Todos homens. Ou, pelo menos, com voz disso. – Tu, tu, tu e... Ok, tu também. O segundo narrador entra a meio da página 15, onde se lê “Mais de quarenta anos depois”. O primeiro narrador volta ao texto um pouco mais abaixo onde se lê “L.R. conhecia bem o edifício”. E daqui vai até ao final. Tu fazes a primeira voz. E tu a segunda. Começa o pri- meiro narrador, três, dois, um... – Guiné Bissau. Bafatá, 1967. No terreno havia compa- nhias operacionais integradas por batalhões que gozavam de uma elevada autonomia funcional. É entre estas que vamos encontrar o alferes L. R. e a sua Companhia de Cavalaria, na- quele começo de tarde quente e húmido de outubro. Muitos dos homens do pelotão sob o seu comando não imaginavam que esta seria a sua última viagem. Partiram da base há quase meio dia. O destino era Sincha Jobel. Chovia como habitual- mente naquela época. Enfrentavam uma zona tremendamen- te pantanosa. Chegaram junto a uma linha de água. L.R., sabendo que se
  • 19. 18 estava a aproximar do objectivo, indica aos seus homens que se retenham na margem, apenas durante alguns minutos. Sem nada fazer prever, nesse mesmo momento a coluna é atingido por fogo pesado. O alferes tenta em vão reabilitar a posição do grupo. O número de mortos e feridos é avassalador. Ele próprio cai gravemente ferido por uma bazuca RPJ 7. – Após, setecentos e trinta e sete dias de internamentos forçados, mais de quarenta anos depois, o alferes L.R., agora na reforma, regressa a Bissau. Segue o caminho da serenidade iniciado por muitos ex-combatentes no princípio dos anos 90, época em que vários foram os que começaram a revisitar a terra que outrora, também, fora deles. Vai acompanhado de cinco camaradas. Durante vários dias visitaram os locais de luto e de esperança. Trilhos, picadas e tabancas. O sol ainda regressava, bondosamente, todas as manhãs. Pouco parecia ter mudado. Num final da tarde foram, imprevisivelmente, surpreendi- dos pela presença de um emissário do Presidente da Repúbli- ca daquele país. Este disse-lhes que o chefe da nação sabendo que o grupo estava de visita, os convidava para uma cerimó- nia de saudação. Tão inesperado convite foi de imediato acei- te por todos. L.R. conhecia bem o edifício do, outrora, governador por- tuguês em Bissau, que fora, após a independência, transforma- do no palácio do presidente da, agora, República da Guiné Bis- sau. Uma vez lá chegados, os portugueses apresentaram-se um a um ao Presidente. Isto na presença de ministros e outras altas individualidades. Quando chegou a sua vez apresentou-se. – Alferes Rodrigues. Saí da Guiné em 67 ferido em comba- te na batalha de Sincha Jobel. Sem perceber bem porquê, acrescentou: – Até sei o nome do guerreiro que me deu a bazucada.
  • 20. 19 A isto o presidente respondeu: – Na batalha de Sincha Jobel, em 1967? Sabes o nome do guerreiro? Ora diz lá a primeira e a última letra do nome dele. – Um G e um A. O Presidente anuiu, soletrando pausadamente o nome Ga-ze-la. Atónito, L.R. concordou. A resposta veio de imediato do outro lado. – E tu, sabes quem carregava com munição a bazuca do Gazela? Era eu... Tinha, então, 16 anos. De certa forma, fui eu que te dei a bazucada. Posto isto, ambos ficaram sem palavras. O Presidente deu um primeiro passo em direção ao ex-combatente português. Ali mesmo se abraçaram entre sofridas lágrimas. Foram necessárias demasiadas décadas para que am- bos pudessem provar olhos nos olhos o quanto lamentavam tudo aquilo. Assim se conclui da inutilidade de qualquer guerra. Neste caso faltava apenas o essencial: um abraço de reconciliação. Visivelmente mais tranquilo, o garoto do cabelo rapado pediu para falar, deslocando-se, em passo firme, até ao estra- do que servia, por vezes, de palco. – Dizer apenas duas ou três coisas. Primeiro, agradecer, mais uma vez, o mote. Este tempo está a ser, verdadeiramen- te, curativo para mim. Só lamento que a minha mãe não esteja presente. Depois, dizer que o meu avô tinha uma profunda admiração por Amílcar Cabral. E, não, não era Síndrome de Estocolmo. Ele viu a forma como as tropas do PAIGC eram tratadas e educadas no campo da batalha. Eram cuidadas. Havia sempre, pelo menos, dois professores para os ensinar quando não estavam a combater. Pois só com gente formada e educada poderiam construir o país que desejavam. Lutavam
  • 21. 20 por aquilo a que todos temos direito. Liberdade. E a autode- terminação do seu povo. Claro que, de todas as partes, exis- tem constrangimentos históricos que pesam quando se pensa na atual memória comum, pois toda a guerra tem demasia- dos lados. Desde logo, a visão daqueles que nela participa- ram diretamente. Ainda, o olhar dos que, por várias razões, se furtaram a isso. Finalmente, o lado dos historiadores e dos romancistas. – Aqui faço uma proposta, – continuou a rapariga do ca- belo imperial – lutar por um espaço de memória que não seja, meramente, entendido como um quantum de lembranças de cada um de nós individualmente, mas sim como o conjunto de recordações comuns. A língua portuguesa é quem melhor nos revela isso. Ela que nos fala dos outros e de nós próprios, tornando-se por esta via parte preeminente desse património identitário, instituído historicamente pelas demais partidas do mundo. No caso de Portugal, por demasiadas vezes, per- demos essa proximidade com estes povos irmãos. A solução será reunirmo-nos todos em volta do idioma comum, dando razão a Fernando Pessoa quando afirmou “a minha pátria é a minha língua”. O rapaz do cabelo rapado interveio de forma certeira: – A que se deveu isso? Acredito que às tais memórias mal vividas, transformadas, por isso, em território de angústia co- mum. E confrontar-nos com isso, passados 50 anos, é ainda mais cruel. Lembrem-se, só poderemos ser perdoados do im- perdoável. E este é, quanto a mim, o caso. Terá de haver lugar ao perdão. O professor colocou-se a par com o jovem recruta. Final- mente compreendeu a razão pela qual o miúdo era conhecido pelo Máquina Zero. Este, que até hoje fora extremamente ca- lado, o mais silente entre todos os alunos. O preconceito num
  • 22. 21 mundo de atropelos e insensatez cai sobre aquele que não dá nas vistas. Estúrdio. E nós, normalmente, a reboque de uma sociedade onde só a aberração tem mérito. O que poderia justificar tamanha invisibilidade por parte do rapaz ? – perguntou-se. De repente, o professor confrontou-se com a abrasadora aragem das manhãs de um outro tempo. O vento surdo de Argel. Ciente que poucos conheceriam os factos, também ele tinha algo a revelar. Uma história para contar. A sua. Enten- deu ser hoje tempo de o fazer. – Naquele tempo deixávamos de ser crianças muito cedo. Tornávamo-nos soldados meninos. Ainda muito miúdo ini- ciei a minha fuga de Portugal. Tinha 15 anos. As pessoas acre- ditavam, dada a minha figura adulta, que era mais velho. Fugi a salto, no dia do meu aniversário, 30 de abril, no ano de 1963. Demoramos quase uma semana a chegar a Argel. Grande par- te do território de Portugal e Espanha foi feita ao coberto da noite. Fomos numa Renault 4L com o pessoal do Humberto Delgado. Os miúdos estavam com olhos de manhã ensolarada, descrentes. Animado, o professor continuou: – Uma vez na Argélia todos confirmamos que era possí- vel a utopia. Colaborei na resistência ao regime de Salazar, ao lado de tantos outros de quem nunca ouviram ou ouvirão fa- lar. Éramos os traidores. Este era, maioritariamente, o tecido que fazia a Frente Patriótica de Libertação. Lutávamos pela paz. Em Argel recebíamos exilados que, literalmente, despa- chávamos para países amigos com passaportes falsos. E al- gum dinheiro, claro. Também dávamos três vezes por semana
  • 23. 22 corpo à emissão da rádio Voz da Liberdade7 . Ocupávamos as instalações da rádio nacional local. Desde ali estava garantida a informação a todos os nossos compatriotas. A quietude continuava como se estivessem num cemitério turco. – Cerca de um ano antes da revolução de abril recebemos ordens para mudar o nome da emissão. Passamos a ser Rádio Voz da Revolução. Já o PRP8 estava no comando. Eles defen- diam a luta armada. Aliás estiveram, diz-se, por trás do úni- co movimento terrorista em ação depois do 25 de abril9 . Em Portugal e nas colónias não se falava da guerra colonial na comunicação social. Era um tema proibido e inacessível aos portugueses. Também as cartas para as famílias que chega- vam da frente de combate nos território africanos eram pas- sadas a “pente fino” pelo lápis azul dos, irredutíveis, censores da policia política: a PIDE/DGS10 . Os militares portugueses e os nacionalistas que apoiavam a autodeterminação dos povos de língua portuguesa eram, também, os nossos ouvintes pre- ferenciais11 . 7Havia outras emissoras a dar voz à libertação do país e das colónias. Todas colabo- ravam entre si. A Rádio Portugal Livre, do Partido Comunista Português, transmitia desde Bucareste, Roménia. O seu slogan era A emissora portuguesa ao serviço do povo, da democracia e da independência nacional. 8Partido Revolucionário do Proletariado. Esteve operacional desde 1973 até 1978. Ter- minando com a prisão de Isabel do Carmo e Carlos Antunes. Esta organização terá es- tado, alegadamente, na génese do Projeto Global que incluía as Forças Populares 25 de abril. Este e a Frente de Unidade Popular, acredita-se, terem sido movimentos liderados por Otelo Saraiva de Carvalho. A sua ação terminou em junho de 1980. 9Eram muito organizados. Cada célula de ação tinha autonomia total do partido. 10A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) foi responsável pela repressão po- lítica entre 1945 e 1969, sendo depois renomada como Direção Geral de Segurança (DGS.) 11Em Portugal continental também havia quem escutasse esses postos emissores. So- bre estes ouvintes caía a acusação de traição à pátria. Era crime.
  • 24. 23 – Professor, nesse tempo pertencia a que partido? – per- guntou o miúdo do vestido azul. – Nunca tive partido político, até hoje. Porém, havia refe- rências partidárias incontornáveis em Argel. Por exemplo, os companheiros do Partido Comunista. Os mais bem organiza- dos. Igualmente, havia os socialistas. E, imagine-se, os católi- cos progressistas também tinham lá representação. Ninguém pode ser católico sem se opor à guerra – diziam cobertos de razão. Esperem, já me esquecia dos elementos do Movimen- to de Ação Revolucionária que acabara de nascer. No M.A.R. militavam muitos dos que se tornaram conhecidos após a re- volução de abril12 . Nós sabíamos que só a queda do regime em Lisboa nos poderia trazer a liberdade. Por isso, a partir de um dado momento, foram inúmeros os que regressaram ao país, ingressando na clandestinidade. Em Argel estavam muitos movimentos da resistência internacional. Desde os Panteras Negras, dos Estados Unidos da América, até aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, claro. E, ainda, grupos de toda a África, desde a Etiópia à África do Sul. Um certo mundo deve a liberdade aos argelinos. Já alguém lhes agrade- ceu? Não! Ninguém o fez, até hoje. E os portugueses, ainda, menos. – Mas deveriam tê-lo feito – interrompeu o miúdo dos óculos de lentes desproporcionadas. Era justo que fossemos gratos ao povo argelino. Contudo, quando fala em agradeci- mento, não seria mais, no caso dos países africanos de lín- 12Um deles foi Jorge Sampaio, mais tarde presidente da República. Lopes Cardoso, Piteira Santos, Nuno Brederode dos Santos, João Cravinho, José Medeiros Ferreira. De entre tantos outros. Havia lá socialistas radicais e católicos.
  • 25. 24 gua portuguesa, de um pedido de perdão13 ? O próprio Papa Francisco foi ao Canadá pedir perdão pelos abusos cometidos naquele país pela sua própria igreja14 . Este é um tema seminal para uma paz efetiva e duradoura. – Se me perguntas a mim... Obviamente que sim! É uma boa possibilidade de caminho para a reconciliação. Há pala- vras, desde há muito, esquecidas no nosso léxico que terão de voltar, urgentemente, a ser proferidas. Por exemplo, memória e perdão. Ora, sendo nós, humanos, o resultado de infinitos ancestrais, carregamos o dano realizado por todas as memó- rias mal vividas. Esta guerra, para os portugueses como eu, é uma delas. E temos demasiados exemplos disso na nossa história contemporânea. Deste modo, neste caso, perdão e memória representarão os mais importantes marcos psicoló- gicos, quando pensamos na geometria das paixões humanas, especialmente se refletimos para além de uma mera aprecia- ção cronológica da história de todos os países de língua por- tuguesa. Como não o fizemos, ainda, surgiu entre nós a socie- dade da vergonha. Em alternativa teremos o quê? A sociedade 13O perdão, como vinculo social primário, em nada se opõe à razão. Perdonare expres- sa a ideia de totalidade (per) entrega (donare). Por seu lado, a razão é uma evocação aparentemente fria, eminentemente funcional. 14Muitos foram os países que pediram já perdão aos povos originários. Em abril de 2019, Charles Michel, primeiro ministro belga pediu perdão pelos milhares de crianças sequestradas no século passado no Burundi, Congo e Ruanda. Dois anos antes a igreja católica belga já tinha feito igual pedido de perdão, pois muitos destes sequestros fo- ram da sua responsabilidade. Porém, só em julho de 2020 o monarca deste país pediu desculpa pelo genocídio durante o período colonial (cerca de 3 milhões de pessoas). Em 2010 o Canadá pediu perdão por ter internado 150 mil crianças indígenas em es- colas onde muitas foram vitimas de abusos sexuais. Em fevereiro de 2008 o primeiro ministro da Austrália pediu perdão aos aborígenes pelas injustiças perpetradas durante mais de 200 anos de colonização branca. Estes são apenas alguns, entre tantos, exem- plos. Por que não o faria Portugal? Isto, pelo direito à memória de todos os povos de língua portuguesa.
  • 26. 25 da vingança? Por via desta hipótese instala-se, muitas vezes, o medo e o ressentimento entre os povos. Nesta dimensão o papel dos historiadores tem falhado redondamente. – Porquê, professor? – perguntou a miúda do cabelo imperial. – Porque faltará escrever a história das oportunidades perdidas. O rapaz do vestido azul voltou para baralhar. Como era, aliás, seu hábito, diga-se. – Discordo. O perdão é a mais hipócrita das estratégias dos fracos e o esquecimento um instrumento de design da super- ficialidade e da frivolidade contemporânea. Mesmo que ape- lando ao direito à memória dos povos, nada resolverá. Lem- bro que o perdão começa sempre pela palavra dita. E esse será o maior dos entraves. – Errado! – afirmou o rapaz do cabelo rapado, levantan- do-se indignado, para, sem sair do seu lugar, defender que só haverá justiça e reconciliação em fraternidade. – O ódio e a vingança não serão solução para nada. Nunca foram. Ainda assim, perdoar não é esquecer! Pois todo o país sem memória não merece ter história. Branquear a história, revê-la, nada resolverá. – O professor foi terrorista ? – perguntou alguém do fundo da sala. – Não me admirava nada. – disse, baixinho, uma outra voz feminina provocando risos por todo o anfiteatro. Oprofessorapressou-searesponderemtomdesconfortável: – Claro que não! Para a PIDE éramos todos terroristas. Vo- cês também o seriam. Calou-se uns bons segundos. Já mais calmo prosseguiu: – Bom. De facto. Se calhar com a entrada das Brigadas Re- volucionárias na cena política tudo mudou sem que naquele
  • 27. 26 momento tivéssemos consciência disso. Eles defendiam a luta armada. Por mero acaso, nesse tempo, desloquei-me para a Holanda. Isto em Janeiro de 1973. Vivi numa comunidade de hippies. Quase todos os portugueses que lá estavam tinham fugido do serviço militar obrigatório15 . – Hippies?!? Os meus avós também viveram numa co- munidade na Holanda nessa época. Também estiveram em Christiania, na Dinamarca16 . Aliás, hoje a sua casa é na comu- nidade de Tamera, no Alentejo17 . Conhece, professor? – per- guntou a rapariga do cabelo imperial. – Sim. Conheço. E já visitei. É um movimento muito in- teressante. Agora, voltando ao assunto. Passei, então, a ter li- gação com uma estrutura clandestina com fortes laços aos sectores católicos progressistas. Aí conheci a mãe dos meus filhos mais novos. Nesse mesmo ano, numa visita clandestina à terra, fui preso pela PIDE. Aliás, foi aí mesmo que passados uns vinte e tal anos aconteceu uma situação curiosa. E até vem a propósito da questão da reconciliação. Fez uma pausa, tentando encontrar as melhores palavras no lajeado da sala. Mais pacificado, continuou: – Em meados dos anos oitenta, caminhava eu por uma das ruas da baixa do Porto. Há muito que lá não ia. Já pouca lem- brança tinha dos lugares e das pessoas daquelas bandas. De repente, passei por uma cara conhecida. Senti-me em casa. Embora não tivesse a certeza de quem se tratava, deduzindo 15Diz-se que, naquele tempo, mais de cem mil jovens abandonaram Portugal em fuga à guerra de áfrica. 16Conhecida como a Cidade Livre é uma comunidade independente e autogestionada. Localiza-se no bairro de Christianshavn na capital dinamarquesa. 17Existe desde 1978, trabalhando na criação de modelos autónomos e descentraliza- dos. Partilham a visão Terra Nova.
  • 28. 27 que do outro lado aconteceria o mesmo, saudei-o efusivamen- te e continuei. Ele seguia, agora mais lentamente, comprome- tido com um certo olhar de desconforto. Não demorei cinco minutos para me lembrar de onde o conhecia. Era o sacana do meu carcereiro quando estivera preso nas masmorras da PIDE. Por lá fiquei quase meio ano. Após este encontro, fi- nalmente, consegui livra-me de todo o ressentimento que me fazia doer as unhas sempre que me deitava. Noite após noite. Só passando por este encontro conheci o poder do perdão. O rapaz loiro de olhos azuis acabara de acordar. Estremu- nhado, disse nada ter entendido. Um uníssono de protesto fez-se ouvir por parte da outra miudagem. Toda a turma se revelou, assim, cansada do tema. – Continuamos depois, asseverou o professor. Falem com os vossos pais e amigos mais velhos sobre a aula de hoje. Fa- cilmente perceberão que há uma enorme diversidade de opi- niões a este respeito.
  • 29.
  • 30. 29 4 ARGEL. A UTOPIA DO TEMPO AUSENTE No caminho para casa voltou às memórias do final dos anos 60. O Café do Italiano. O mais conhecido entre os in- ternacionalistas de Argel. Nunca lhe conhecera o seu verda- deiro nome. Tal alcunha era devida a um divertido funcioná- rio originário de Nápoles, cidade do sul daquele país. A sua alegria era mais importante que tudo o que lá se servia. Por ali se reuniam, habitualmente, os elementos da resistência internacional. O tanto que ali aprendera, relembrou sorrindo, meio en- vergonhado. Ficara seduzido por todas aquelas ideias revo- lucionárias desde então, pensou enquanto concordava com a cabeça. Só muito mais tarde percebera que, afinal, alguns des- ses pensamentos eram do século XVIII. Um modelo de pensa- mento com base a garantir e assegurar a liberdade. Instituições que permitissem a coexistência de cidadãos livres e iguais, isto numa comunidade onde estes são soberanos. Um projeto de desenvolvimento que promovesse a autonomia humana. Seria possível? Há centenas de anos que se tentava tal proeza. Hoje isso ainda é uma utopia. De certa forma, temos falhado no ga- rante da liberdade, lamentou o professor, como que falando para o livro que o acompanhava na mão. De repente viu-se
  • 31. 30 incomodado por algo, absolutamente, inesperado. – Tudo bem, Boualem? – acercara-se sem avisar um velho companheiro de lutas de dezenas de anos atrás. O professor ficou profundamente surpreendido por o ver por ali. A um mesmo tempo sentiu-se imensamente grato por aquele reencontro. No dia de hoje isso tinha um significado especial. – Fernando! Ó pá, duplo contentamento em ver-te. Ho- mem, que coincidência. Como está a Stella? Não imaginas. Aconteceu-me há uma hora atrás contar aos meus alunos al- gumas das nossas aventuras. Nunca o tinha feito durante to- dos esses anos. É uma turma de miúdos em fim de linha. Para mim eles são incríveis. Por que será que já ninguém acredita neles? Onde será que erramos, camarada? – Falhamos?!? Nós não. Continuamos na contenda do lado dos mais fracos. Esses miúdos, também. É a luta deles. Não se deixaram aculturar. Mas, sim tens razão, erramos. Erramos no espaço que reservamos ao outro. Muitos são aqueles que, e em especial entre os professores, normalizam este tipo de circunstância. Deixamos que esses miúdos se tornassem invi- síveis. Porém, deveremos exaltar a quantidade de professores e instituições que diariamente se dedicam, exemplarmente, a ir para além da mera formalidade em que o ensino se tornou. Isto face a fenómenos que a todos deveria tocar. Lembras-te de Dom Hélder Pessoa Câmara? Dizia ele: quando alimentei os pobres chamaram-me santo, quando perguntei por que razão havia pobres, chamaram-me comunista. Como se o humanis- mo estivesse, exclusivamente, refém de certas ideias. Ideolo- gias, religiões ou pessoas. Talvez por isso muitas das ações de rua, por exemplo, vão mais no sentido de acabar como os pobres e menos orientadas a acabar com a pobreza. A erra- dicação da pobreza é o caminho mais sólido, rápido e barato
  • 32. 31 para a paz, ouvia-se dizer, lembras-te Boualem? Com a desi- gualdade nas escolas passa-se o mesmo. Consequentemente, quem deve sentir vergonha não é o pobre, e menos ainda o ignorante, mas quem cria a pobreza. E, por consequência, quem permite que a ignorância grasse nas nossas escolas. – Já tinha saudades, Fernando. Continua. Continua. – Disseram-me que não há quem queira ensinar, é verda- de? A questão é, face a um mundo em que ninguém quer, mais, ensinar, por que raios haveriam os miúdos de querer aprender? – É verdade. Continuo a acreditar que só se conhece, só se ama, convivendo, Fernando. Isso exige ação. Por isso re- gressei de Tan-Tan18 . E com isso ao ensino. Creio que a mu- dança só se consegue com a atenção e o cuidado. Em especial para com os mais novos. Amar é estar atento19 . Para saberes a quem amas bastará perguntar a ti próprio ao que estás aten- to20 . A atenção é, igualmente, a mãe de todas as virtudes. Não há arma mais eficaz que a atenção. Se tu dás, recebes. Por isso a muitos de nós apenas nos faltará isso mesmo. Cuidar21 . Fer- nando, a presente crise é, mais que qualquer outra, resultado do nosso desamor. E, quando isso acontece nada mais resta à ambição de ser gente. – Não te sabia tão religioso, Boualem. Estou a brincar, cla- ro. Abraço-te, amigo. Tenho de sair aqui. Pena que estou atra- palhado com uns compromissos já assumidos. Umas tretas. 18Cidade no sul de Marrocos, junto à fronteira com o território do Sahara Ocidental. 19Assim ensinou Simone Weil. 20Seguindo o ideário de Santo Agostinho. 21Presença amorosa e atenta são qualidades cada vez mais necessárias à expressão hu- mana no mundo contemporâneo.
  • 33. 32 Havemos de tomar um café. Até depois. Pedirei à Stella para te contactar. Ela é, sempre, mais organizada. Fernando, cambaleante, saiu a custo entre os solavancos do autocarro e a vontade de continuar a prosa.
  • 34. 33 5 ESPERANÇA – Daqui a poucos minutos receberemos um pequeno gru- po de alunos que nos vem visitar. Nunca lhes disse que não vivia sozinho. Talvez nunca tenham pensado nisso, Tang. De qualquer dos modos temos de nos preparar para as perguntas. Sabes como são os miúdos. Em particular estes. São como tu. Curiosos e selvagens. Pesa sobre eles o estigma de serem assil- vestrados. Se fores empático eles também o serão. Leva o seu tempo até ganhar a sua confiança. Já tu dás corda a qualquer um, Tang. Enquanto secava o prato de sobremesa com o pano de co- zinha ia pensando por que raio quereriam eles falar-lhe fora da escola. – Ah, Tang! Se pretenderes sair está à vontade. Não tens que os enfrentar. Vais dar um giro. Quando voltares já cá não estarão, seguramente. Escolhe. Tu é que sabes. Estás à vontade. Na verdade o seu nome era Tang-ping. Mais tarde tornou- -se por direito, simplesmente, Tang. Seguira-o o felídeo, a uma distancia protocolar, observando-o até casa numa tarde quente de inverno. Só mais tarde percebeu que se tratava de um raro gato leopardo. Prionailurus bengalensis, ou como é conhecido entre nós, um gato-de-bengala. Por vezes sentia-
  • 35. 34 -lhe a falta. Ele ausentava-se durante longos períodos de tem- po. Depois lá acabava por voltar. Por estes dias acontecia-lhe estar por casa. Talvez viesse para celebrar uma qualquer data que lhe fosse querida. Tang-ping significa, grosso modo, deitar-se no chão22 . Es- tar quieto. Desde há alguns anos que se ouve referir este ter- mo. Trata-se de uma tendência social com origem na China. E dos gatos por todo o lado. Estes últimos se fossem mais or- ganizados poderiam controlar meio mundo. E, já se vê, domi- nar o outro meio. Será isso possível para um humano? A um gato sim. Tang era o exemplo acabado disso mesmo. Houvera visto uma imagem que retratava isso muito bem. Uma pági- na dividida a meio horizontalmente. Do lado esquerdo, em cima, o mundo desenhado antes do seu fim. Belo. Radioso. Em baixo, sempre do lado esquerdo, o mundo completamen- te destruído e a humanidade deserta. Do lado direito em cima e em baixo, um mesmo desenho. Um gato. Sentado. Lambe de forma serena a pata dianteira. Tang era isso mesmo. Um gato-de-bengala, soberanamente, na sua. De nada dependia do andamento do mundo. – Ei-los que chegam. Já?!? Cuidei que se atrasassem. Que eu também me atrasaria. Assim, correria tudo bem. A propó- sito, para onde terá ido o raio do gato – disse dirigindo-se à porta da rua. Escancarada a porta saudaram-se mutuamente como se 22Implica uma declaração política. Um apelo à contracultura. Desafiando, acima de tudo, a ordem socioeconómica em vigor na China. É um movimento cujo principal objectivo é resistir a uma cultura de trabalho com horários demasiado pesados. Cerca de 10 horas por dia, 6 dias por semana. Trabalhar, trabalhar... Eles não querem, apenas, assegurar o consumo ou o pagamento de dívidas.
  • 36. 35 não se vissem há alguns anos. De facto nunca se tinham en- contrado fora do perímetro da escola. Fazia toda a diferença, concluíram. O próximo desafio seria arrumar 5 ou 6 miúdos naquela sala. Não que esta não fosse espaçosa que bastasse. Apenas estava, ponderadamente, desarrumada. Para o profes- sor isso representava o equilíbrio. Cada um tinha o seu. Por vezes arrumava-a. Sentia que perdia, sempre, algo quando o fazia. Finalmente iria saber o motivo que estaria na origem daquele encontro. Animou-se ao pensar nisso. – Desculpem a desarrumação. Na verdade não recebo muitas visitas. Tenho um imenso gosto em vos receber na casa de onde parto e retorno a cada dia. Chamo-lhe minha. Mas, será assim? Interrogo-me demasiadas vezes. Espero que não me estejam a visitar para me pedirem instruções para se tornarem terroristas? Na realidade nós, os da Argélia, não pe- gávamos em armas ou explosivos. Outros sim. Não havia al- ternativa. Era um outro tempo. Bem diferente do atual. No bando visitante todos lhe pareciam de semblante diver- so daquele que conhecia nos dias vividos na escola. Os olha- res eram acriançados. De uma felicidade lavada. Despidos da dureza dos dias. Sabe-se lá como. Abriu o jogo a miúda do cabelo imperial: – Pois. Nem sei bem como começar – disse de forma insegura. O professor alegrou-se, dizendo que isso nem parecia dela. Surpreendidos todos os visitantes se riram com vontade. Decidida, a miúda, acabou por confessar: – O professor tem-nos ajudado a perceber e a aceitar o facto de sermos jovens adultos, de algum modo, irregulares. Mas, disse-nos quase tudo ao contrário dos outros professo- res. Pais. Amigos. Nesse sentido deixou-nos sem chão. Se isso é bom? Não. Não é! Desinquieta-nos como a canção. Não me
  • 37. 36 recordo do nome. Aquela que propôs que fosse o hino da nos- sa escola. Lembra-se? – Sim, recordo-me muito bem. Ensinas-me fazer tantas perguntas. Na volta das respostas que eu trazia. Quantas pro- messas eu faria se as cumprisse todas juntas23 . – O poema é muito bonito e tem tanto a ver. Bem, não era sobre isso que lhe queríamos falar. Estou demasiado confusa. Como se me faltassem as palavras. Novamente, todos gargalharam, muito divertidos, perante aquilo que consideravam uma impossibilidade. – Continuo eu – disse o rapaz dos óculos de lentes despro- porcionadas, enquanto sacava do bolso uma folha de papel amarrotada. – Então. O professor ensinou-nos que os primeiros 50 anos da vida de uma criança são os mais complicados. Pois que todos queremos ir para o céu, embora nem todos queiram ir pelo caminho por onde se vai para o céu. Não me lembro bem se foi isso que nos disse. Terá sido por aí. Estes são os apon- tamentos de uma colega. Não são meus. A questão é, como encontrar o raio do caminho? Nenhum de nós tem 50 anos. Imaginamos que poucos lá chegarão, por este andar... Que ca- minho será o nosso, irmão? O que é feito de nós?!? Seremos assim tão fora da caixa? – Ora. Vejamos. Vocês não são fora da caixa. Porquê? Por- que tal caixa não existe. Nunca existiu. Depois, não sou eu que vos falo do caminho. Há demasiada gente que vos vai ten- tar vender essa treta. Ainda assim aceito-o como um trilho de oportunidades e infortúnios que a todos deverá suscitar 23Inquietação. Música e letra de José Mário Branco.
  • 38. 37 atenção. Contudo, a nossa responsabilidade será, sempre, a de decidir24 . Depois, ensinam-vos a partir das respostas. Sempre as mesmas, entenda-se. Temos de mudar as perguntas para transformar o mundo das respostas. Por não o fazermos sur- ge a tristeza de cedo ser tarde de mais25 . E, para que servirá tudo isto? Façamos um acordo. Tudo o que vos disser, ago- ra, neste momento, só tem serventia durante os próximos 10 minutos. Ok? Logo a seguir esqueçam tudo o que eu afirmei. Peço-vos. Só quando se deslembrarem do que vos disse dei- xarão de ser pensados por mim. Ou seja, mais valem todos os vossos erros que os acertos que o meu pensamento vos possa trazer. Prometam-me que assim farão. Tudo o que vos ensino terá de servir para que se me oponham. Mesmo que depois da conversa pensem como eu. Aí já o pensamento não será meu. Será vosso26 . Se deus quisesse que fossemos todos uma só pessoa tudo teria sido bem mais facilitado. – Gostei da sua linha de pensamento – disse Maria da Fé. – Somos o que aprendemos errando? – Não estamos de acordo. Ainda assim, honra te seja feita, compreendeste a mensagem. Pensaste com a tua cabeça e não com a minha. Parabéns! Certo que todos somos semelhan- tes em natureza. Apenas os hábitos diários nos afastam disso mesmo. E uma vida sem coerência apenas assentará no aca- so. Pensar com propósito é algo desafiante. Porém, demasiado aborrecido para a maioria dos humanos. – E qual será o nosso propósito, professor? É isso que que- remos saber. 24Poder escolher é, por si só, ser feliz. 25Inspirando-se em Marguerite Duras. 26Inspirando-se em Cartas a um Jovem Filósofo, de Agostinho da Silva.
  • 39. 38 – Que sejas verdade. Não confundir com de verdade ou a verdade. Nada na vida tem de ser excecional. Tem de – sim- plesmente – ser verdade. Lembrem-se, a verdade nunca estará na vitória em si mesma. Apenas o progresso de todos vos de- verá interessar. – A verdade? Deixe-me rir, professor. Isso não existe. O professor olhou por cima dos óculos, sempre embacia- dos. Refletiu. Isto para finalmente aceitar o comentário. – Sim. Talvez tenhas razão. E a mentira existe? Que dizem? – Claro que existe – responderam todos em coro. – Então, se a mentira existe, por que não existiria o seu contrário? – perguntou o professor. – Vejamos. Na realidade, a pergunta que deverá ser feita é: qual é o oposto de uma verdade? Sem grande interesse ou entusiasmo alguns apressaram-se a responder o óbvio. – Certo. O contrário de uma verdade é uma mentira, evi- dentemente. Mas, qual será o oposto de uma grande verdade? Face ao silêncio instalado o professor rematou: – O oposto de uma grande verdade poderá ser outra gran- de verdade. – Então, poderemos ter esperança numa outra vida? – per- guntou Maria da Fé, enquanto sorria desabridamente. – Pois, esse será o sentido ultimo da tua existência. Dizem que a esperança tem duas belas filhas. Uma chama-se cora- gem. A outra indignação27 . Sem isso não te valerá a pena al- mejar viver. Mas, não seria mais simples voltares a uma velha história? A tua. Afinal, por que merecerias tu uma nova vida 27Inspirando-se em Santo Agostinho.
  • 40. 39 se não sabes o que fazer com a que já tens? Talvez por isso aqui vieram hoje. Estão preocupados com o futuro. Agora, compreendo. – É. No final deste ano teremos de conseguir trabalho. Se- remos capazes? Certo que ninguém espera grande coisa de nós. Temos medo de ninguém nos empregar. – Tens medo, miúda. Eu também. Tu tens medo mas não és o medo. Do mesmo modo que eu tenho emprego, mas não sou o meu trabalho. Temos a obrigação de ser mais para além de tudo isso. Queres ver? Comecemos pela carga negativa da palavra trabalho. Essa tem origem no latim: tripalium. Desig- nava o instrumento de tortura usado para controlar os escra- vos, isto no tempo dos romanos. Assim, se permitiu que a concepção do trabalho se tenha tornado em algo doloroso para qualquer um de nós28 . De que tens medo? Diz lá. De não seres inteligente, é isso? Há tantas inteligências... – Assim é. Ninguém da minha família é inteligente. Por isso acaba tudo preso. Nos consumos. Sei lá... A minha pró- pria avó mo disse quando foi chamada à outra escola pelo professor Monteiro. Ele queria que eu fosse para um curso profissional de cabeleireira e chamou lá a minha avó. Ali mes- mo - à frente de todos - ela obrigou-me a aceitar que esse não deveria ser o meu futuro. Ó filha, tu não queres ser cabeleirei- ra, pois não? Tu queres ser puta como a tua mãe. Diz isso aqui ao senhor professor. Só depois deste episódio é que a CPCJ29 me obrigou a vir estudar para a nossa escola. Coisa que eu também não queria. Isto é tudo uma cena marada, prof.. 28Em oposição a tudo isto teremos o bem-estar. Esta é uma palavra composta por bem, cuja origem é bónus, implicando alta intensidade. E, estar é existir, viver. 29Comissões de Proteção de Crianças e Jovens.
  • 41. 40 – Não és inteligente? Quem disse tal coisa? – perguntou o professor indignado. Na verdade, meninos, só somos o ani- mal mais inteligente do planeta baseados numa única razão: termos sido nós a escolher os critérios dessa mesma classifi- cação. O que é ser inteligente, afinal? – perguntou o professor olhando no vazio. Mais. Não percebemos, ainda, a mensagem que todos os outros animais nos dão através do seu exemplo, estando, igualmente, por se estabelecer a quem cabe a culpa de não nos entendermos. Os outros animais podem achar- -nos tão estúpidos como nós a eles. Aliás. No final dos anos 60, Buckminster Fuller, num livro que não vos aconselho, chamado Manual de Instruções para a Nave Espacial Terra, chama a nossa atenção para algo fundamental. O autor parte de um facto que a todos continua a passar despercebido. Refi- ro-me à não existência de um manual de instruções através do qual nos seja permitido alcançar o como e o porquê conduzir a nave espacial Terra. E o que é que este pensamento poderá ter de tão extraordi- nário, professor? – perguntou Maria da Fé. – O facto das instruções para o planeta não serem conheci- das dos humanos é, no seu entender, deliberado e intencional. Só essa possibilidade tudo muda, estão a ver? Com cada um de vocês acontece, exatamente, o mesmo. Chegamos à vida em igual despreparo. Nenhum de nós trouxe manual de ins- truções. A vida apenas nos acontece. Como poderão alguns ter tantas certezas? – Professor, para mim, a inteligência humana baseia-se num método em tudo opressivo. Contemporaneamente, o in- dividuo pensa ser livre quando na realidade ele é feito refém de um sistema que o explora e se alimenta dessa mesma ilu- são de liberdade. – disse o miúdo da guitarra. O professor olhou-os um a um, concluindo:
  • 42. 41 – A grande novidade estará no facto da inteligência, que tudo sanciona, dar a todos a falsa sensação de ter a liberdade de poder fazer o que bem entendem, porém isso traz novas e tremendas ameaças. A depressão, a exaustão, a ansiedade,..., serão, quanto a alguns autores, a expressão maior de uma profunda crise de sentido a que todos sucumbiremos. Assim sendo ficamos à deriva30 . Prova disso é um ser humano cada vez menos capaz de ter uma atitude intensa face ao conheci- mento de si próprio. Isso preocupa-me. Não há maior prisão que essa. A rapariga de cabelo imperial, hesitou. Suspirando, por fim, afirmou: – O professor não realizou, ainda, que em sala de aula são sempre os mesmos que falam sobre os assuntos. São uns cin- co ou seis. Os outros pouco podem acrescentar. A maioria não percebe nada do que o senhor diz. Na aula também o professor exerce o jogo da inteligência. Uma brutal opressão silenciosa. – A ditadura da inteligência! A palavra serendipidade31 , por exemplo, desapareceu do nosso léxico. Assim se enterrou o império do por acaso. Desvalorizou-se, totalmente, o ines- perado. Tudo é agora normalizado a um mesmo modelo de pensamento. – conspirou o rapaz do vestido azul. – Ora! – disse o professor, ainda mais, surpreendido. – Tens toda a razão. Contudo, isso em pouco ajuda a tua colega. Certo, miúda? Vamos lá ver. O desafio dela é perceber se terá um emprego daqui a uns meses. 30Será esta a expressão maior a que Saramago chamou uma sociedade de cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem? 31Descobrir coisas boas por mero acaso, sem previsão.
  • 43. 42 Parou. Assuou-se ao lenço de tecido grená, assumindo-se, ainda mais desconfiado face ao tema. Repondo a respiração, recomeçou: – É enorme a diferença entre aquilo que necessitamos e aquilo que desejamos. Temos dificuldade em discernir o que é uma e outra coisa. Por exemplo. A ansiedade resiste no que é ilusório, porque é proveniente do desejo. Vivemos numa sociedade desejante. Os ricos também sofrem de depressão e angústia, não é? E quem tem bons empregos, idem. Temos que perceber que necessitamos de muito pouco para sermos felizes32 . Tens de saber separar bem entre estas duas circuns- tância, distinguindo entre o que necessitas e o que desejas. Se não o fizeres, mais tarde ou mais cedo, serás mais uma pri- sioneira por dívidas. Para pertenceres à sociedade da credi- tocracia terás de ter trabalho para pagar a quem deves. E isso acontecerá, também, por via desta pressão. Ou seja, a garantia do teu emprego é, igualmente, o que permite a certeza de que se eternizará um sistema económico-social injusto. Prometo que vou levar esse assunto a uma das próximas aulas. É um bom tema para todos. – Professor, deixe ver se eu percebi. Então, uma vida inteira a trabalhar para pagar dívidas de uma existência que não é a minha faz, algum, sentido?!? – perguntou a miúda do cabelo imperial. – Não te sei responder, miúda. Só tu poderás saber, ou tal- vez não. Entretanto, deixo-vos ficar herdeiros do meu maior desafio. Aquele que coloco a mim todos os dias. Há muitos 32O consumo das coisas que desejamos tornou-se, por oposição às coisas de que ne- cessitamos, uma forma de opressão. Será que necessitamos, verdadeiramente, do que desejamos?
  • 44. 43 anos recebi ensinamentos de um velho mestre. Certo dia, sem que nada o fizesse supor, disse-me: a tua evolução exige pro- vocação. O que fazes nesse sentido? Esta é a maior das lições que se reclama a quem quer progredir. O que é muito claro para mim, neste momento, é que sem provocação não há mu- dança! Esse é o meu legado. Mas, decididamente, eu pouco poderei fazer por vós. – Como assim? – perguntou o miúdo da guitarra. – Afinal, é ou não é nosso professor? – Nenhum professor poderá ensinar o que realmente im- porta às pessoas. Só podemos ajuda-las a encontra-lo dentro de si mesmas33 . Por isso todo o conhecimento, todo o senti- mento é encontro. Cada um de nós consigo próprio. E cada um dos nossos múltiplos com todos os outros. – Professor, que escola é essa de que nos fala tantas vezes? - indagou, novamente, o miúdo da guitarra. – Todas as escolas. Todos os cursos. Todas as conversas são sobre isso. Começa por ler livros provocadores. Logo com- preenderás que eles, os livros, todos eles, assim como todas as conversas, são sempre sobre evolução. De certa forma, todas as palavras são vazias se não te tirarem do lugar onde te en- contras. Aprendi que por isso é impossível servir aos deuses, à consciência oculta em todas as coisas, a quem não for capaz de ser desafiador. – Desafiador? O que será isso, professor? – Nunca esmorecer perante a certeza de que a estrada será longa e o fardo pesado. Acredito que todos teremos a respon- sabilidade de ser discípulos deste ideário. Atenção. Discípulo 33Inspirando-se em Galileo Galilei.
  • 45. 44 significa na sua génese aquele que aprende. Nunca a pessoa que segue alguém. Um professor, um escritor, um guru, etc. Quando assim é nenhum deles, o que segue e o que deixa que o sigam, está a aprender. Esta é uma das principais razões pela qual a humanidade deixou de ser fraterna. Concluindo? Não me sigam. Eu também estou perdido. Nunca se esqueçam disso. Ainda assim, e antes de saírem, peço-vos 5 minutos de atenção. Imaginem que aqui o vosso colega acaba de acordar de uma noite de pesadelos. Olhando o espelho de relance des- cobre que se transformou numa barata. Qual seria o primeiro pensamento que vos viria à mente? O silêncio instalou-se. O professor continuou preocupado, receoso de não estar a conseguir a atenção do grupo. – Eu digo-vos. A questão que primeiro se lhe afigurou foi, como é que irei conseguir conservar o meu emprego? Surpre- endidos? – Não professor! Não foi nada disso que eu imaginei. Pen- saria, exatamente, o contrário. Já não terei mais de ir à escola. Não terei mais que trabalhar. Nunca mais. Depois, barata ou não, agora, seria famoso. – Isso é o que acontece com aqueles personagens que se tornam famosos por serem famosos. Os participantes dos rea- lity shows da televisão, abonou o rapaz do vestido azul, imagi- nando alguns destes concorrentes com cabeça de barata. Indeciso, o professor respondeu: – Sim, claro. Não tinha visto essa possibilidade. Continu- ando. Voltando um pouco ao início. Esta é a estória de Gregor Samsa. Um jovem vendedor que descobre ter sido transfor- mado em barata após uma noite de pesadelos. Uma vez assu- mido o facto, ele revela-se totalmente incapaz de agir, analisar ou refletir sobre o significado de tudo isso. A sua única preo- cupação passou a ser, como vos disse, o emprego. Parece lógi-
  • 46. 45 co. Ele teria de continuar a trabalhar para sobreviver. Parece inteligente. Parece fazer sentido. Parece ser de gente. Mas, se calhar não é. Quando este medo, o de perder o emprego, é a maior de todas as angústias já não há nada a perder. Nesse momento não existimos. Somos apenas baratas. – O que nos contou não é verdade, pois não, senhor profes- sor? – perguntou o miúdo do cabelo zebrado. – Acho que não! É o relato da fase inicial de A Metamor- fose de Franz Kafka. Estávamos em 1915. Hoje, mais de 100 anos depois, todos sabemos que não fomos, ainda, capazes de escolher, coerentemente, as questões que nos hão-de tirar do marasmo de ser barata. Para o bem e para o mal foi nisso que a humanidade se transformou. Uma Civilização de Ba- ratas (ansiosas e amedrontadas). Somos, ainda, incapazes de reagir, colectivamente, perante os mais rasteiros desafios. E o que quererá isso dizer – perguntarão. Esquecemo-nos que não se nasce gente. Fazemo-nos gente. Em contrapartida, a barata nasce e morre como tal. Porém, este insecto tem, mes- mo, uma grande vantagem sobre os humanos. Ela pode viver sem cabeça. Bem... pensando melhor, muitos entre nós tam- bém o fazem. Então, peço-vos que nunca assumam a vossa imagem reflectida ao espelho como sendo a vossa face origi- nal. Nós somos mais que isso. Mais que um reflexo. Mais do que imaginamos. Parou. Olhou para a sua aluna preferida, prosseguindo: – De tudo isto devemos reter o facto de poucos partirem, incondicionalmente, de si próprios. Da sua realidade interior. Dos seus sentimentos, emoções, da sua natureza interna. Etc. E, não o fazer, é tudo menos reconhecer que existimos a partir do (ser) imaterial. Este ao não ser reflectido por um espelho é esquecido, tornando-se ausente toda uma vida. Daí que a maioria entre nós apenas exista face ao espelho. A ideia de
  • 47. 46 vida ao espelho. E esta é, quanto a mim, já uma forma de pri- são. A maior de todas elas. – Nas redes sociais, por exemplo, é isso que acontece. Cer- to, professor? – questionou a miúda do cabelo imperial. – Sim. É verdade! E com isso estaremos cada vez mais per- to de nos tornarmos numa sociedade em que muitos serão transformados em baratas. Essa escravidão, a existência vivi- da através do reflexo de nós próprios, será fortuna ou casti- go? Vamos pensar nisso? Estou tão feliz com a vossa vinda. - confidenciou-lhes na despedida, depois de abraçar carinho- samente cada um deles. Ainda, tiveram tempo para conhecer Tang que por ali pas- sava. Seguia como sempre desconfiado. – É seu? – perguntou Maria da Fé. – Como se chama? – Tang-ping. É um gato-de-bengala. Depois, um outro dia, conto-vos como chegou até mim. É uma estória muito intri- gante. Até terça, pessoal. Não se esqueçam que na próxima aula traremos um texto sobre o Planeta Prisão. Obrigado pela visita. Venham sempre. – culminou o professor alegremente.