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HOLLAND, Eva Beatriz. Universidade Federal do Paraná – UFPR (Mestranda pelo Programa
de Pós Graduação em Antropologia Social – PPGAS)

        Narrativas em cena: composição do espetáculo a partir de histórias orais


Resumo

          Neste trabalho proponho uma reflexão sobre a montagem teatral “O Mez da Grippe”,
realizada pelo Grupo A Pausa, apresentada em Curitiba durante o mês de agosto de 2008. Nesta
análise proposta, o objetivo é explicitar e analisar a maneira como foi construída a
intertextualidade desta montagem, considerando que para tal encenação foram usados vários
textos, todos subsumidos na performance oral do teatro. Portanto, trata-se de destacar a maneira
como a oralidade deste trabalho teatral “costura” os textos utilizados. Para tanto, faço uso da
teoria e metodologia interpretativista da Antropologia Social, destacando os temas que recortam
e unem esta perspectiva intertextual/intercultural, a saber, a sexualidade, a repressão e o
erotismo. Os textos que compõem a narrativa teatral a serem analisados aqui são: a novela O
Mez da grippe, de Valêncio Xavier1, a peça Relações Naturais, de Qorpo Santo2.

Introdução

         O espetáculo “O mez da grippe” que esteve em cartaz no teatro Novelas Curitibanas, em
Curitiba-PR em agosto de 2008 trouxe o público para dentro de uma narrativa polifônica, na
qual se ouviam pessoas da Curitiba afetada pela gripe espanhola em 1918; Padre Anchieta em
sua devoção pela Virgem Maria; e os personagens criados pelo autor gaúcho José Joaquim de
Campos Leão, de pseudônimo Qorpo-Santo, provenientes de seu drama pessoal a respeito da
“impossibilidade de santificação” diante das “relações naturais”.
     Este trabalho está dividido em três partes, sendo que na primeira delas apresento as
narrativas contidas no livro “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, texto inspirador do
espetáculo, no qual se fazem presente várias vozes sobre um mesmo fato: a epidemia de gripe
em 1918, dizendo respeito tanto a fatos documentais, constituindo o plano de fundo da
narrativa, quanto as falas de indivíduos que viveram neste contexto; na segunda parte trago uma
breve explanação da peça “As Relações Naturais”, de Qorpo-Santo, apontando para como a voz
do autor ecoa na voz dos personagens criados por ele, e a maneira como o conflito entre sua
“necessidade de santificação” pessoal e as “relações naturais”, compreendidas como relações
físicas, biológicas, sociais, sexuais e de parentesco, segundo as noções apresentadas pelo
próprio autor em outros textos trazem à cena tanto um personagem histórico quanto a própria
história em que ele está inserido. Procuro apontar para como o conceito de “relações naturais”
foi trabalhado pelo autor nessa peça, sendo sua biografia representada por personagens criados
para representá-la e seus conflitos e idéias expressas por personagens criados para reprimi-las.
Na terceira parte volto-me para a montagem do espetáculo “O mez da Grippe”, constituído por
narrativas contidas nas obras de ambos autores, Xavier e Qorpo-Santo, no que diz respeito à
idéia de sexualidade e repressão, que constitui o fio narrativo apresentado pelo grupo A Pausa,
justificando a escolha destes textos como elementos de constituição do espetáculo.


1
  Nascido em São Paulo em 1933 e radicado em Curitiba-PR, onde faleceu em dezembro de 2008. Atuou
como consultor de imagem em cinema e roteirista e diretor de TV, publicando vários livros, dos quais
destacam-se 'O Mez da Grippe' (Companhia das Letras, 1998), 'Meu 7º Dia' (Ciência do Acidente, 1998),
'Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido' (Companhia das Letras, 2001) e os contos 'Minha História
Dele' (Ficções, n. 1, 1998) e 'Meu Nome É José', na coletânea A Alegria (Publifolha, 2002). Também
traduziu 'Conversa na Sicília', de Elio Vittorini (com Maria Helena Arrigucci, 2002). e narrativas em
jornais e revistas, como Nicolau, Revista USP e o caderno Mais! da Folha de S.Paulo.
2
  Nascido em Triunfo-RS em 1829, falecendo em Porto Alegre-RS em 1883. Publicou em sua própria
tipografia a “Ensiclopédia ou seis meses de uma enfermidade”, em 1877, contendo textos teatrais,
poéticos, satíricos, auto biográficos e outros, da qual grande parte ainda permanece inédita.
1) O Mez da Grippe – o livro.




                       Capa do Livro de Valêncio Xavier, edição de 1981.

         O livro “O Mez da Grippe” é denominado “novela” por seu autor Valêncio Xavier.
Segundo Francisco Bettega Neto, autor do prefácio da edição de 1981, trata-se de um “livro
colagem”, onde Xavier dispõe várias narrativas, divididas em 3 partes: 3 meses, sendo outubro,
novembro e dezembro de 1918, marcados pelos recortes dos jornais “Commercio do Paraná” e
“Diário da Tarde”. Estes dois jornais apresentam distinções claras nas noticias sobre a gripe: ao
mesmo tempo em que se dá a entender que a população de Curitiba está alvoroçada com a
possível presença da epidemia, o “Commercio do Paraná” esforça-se por afirmar que os óbitos
ocorridos se davam por conta de várias outras enfermidades que não a gripe: tuberculose, febre
tifóide, e até loucura. Já o “Diário da Tarde” apresentava reportagens em que notícias sobre a
gripe chegavam não apenas revelando os óbitos no Rio de Janeiro e outros estados, mas também
em Curitiba. Muitos destes recortes são de textos sátiro-poéticos a respeito da propagação da
epidemia tão negada pelo jornal “Commercio do Paraná”. Enquanto este jornal enchia seus
quadros de notícias sobre a Guerra, assassinatos, propagandas e pequenas notas negando que os
óbitos registrados eram causados pela gripe espanhola, também há publicações de notas que
justificam o não funcionamento do jornal por seus funcionários terem adoecido, porém, sempre
reiterando que este afastamento de funcionários se dá por conta de qualquer outra doença, que
não a gripe.
        Por fim, o Diário da Tarde publicou:

        “Embora a censura policial tivesse varrido do noticiário da imprensa a relatação dos fatos
        veríficos, com relação á epidemia, o nosso dever profissional nos força a sahir do mutismo em
        que nos encontrávamos nesse sentido e vir dizer ao povo que todo esse preparativo que se faz
        não é apenas para evitar que o mal chegue até nós, mas sim para dar combate á enfermidade que
        já nos atingiu.” (Diário da Tarde, 30 de outubro de 1918, apud Xavier :33)
Assim, no final do mês de outubro o “Ministério da Justiça e Negócios Interiores”
divulgou oficialmente uma nota de “combate á grippe”, com “conselhos á população
paranaense”, no tocante à prevenção e cuidados com a doença, afirmando por fim que “A
homeopatia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, como nenhuma outra molestia
infectuosa ou parasitaria.” (Idem :36). E assim, teve início oficialmente “o mez da grippe”,
novembro de 1918.
         A estas notícias, somam-se outras: os relatórios da grippe do diretor do Serviço
Sanitário, Dr. Trajano Reis, propagandas de xaropes contra tosse, creolina e outros remédios
para a gripe, notícias sobre a Guerra e o comportamento dos alemães no Brasil, noticias sobre o
cancelamento de eventos e entradas ao cinema, fotografias, notas sobre cancelamento de cultos
e convites à missas. Intercaladas a estes recortes de jornais, aparece a narrativa de D. Lúcia,
colhida em 1976, como memória dos fatos ocorridos em 1918. Ela relembra as dificuldades em
conseguir sair de casa, tanto por medo da gripe quanto por não haver aonde ir, dado terem
fechado vários estabelecimentos. Relembra também várias mortes, conta “causos”, de pessoas
que conhecia e viu morrer de gripe. Dona Lúcia afirma ter a epidemia atingido a cidade toda:
“Famílias inteiras. Não houve casa que não tivesse alguém doente. Parecia a cidade dos
mortos.” (Xavier, 1998 :21). Conta também sobre o tempo pelo qual se estendeu o grande
número de óbitos causado pela gripe, a freqüência com que se davam os enterros e o número
elevado de pessoas que acompanhavam as comitivas, sendo freqüentes as mortes de muitas
pessoas de uma mesma família: “Ali naquela casa morreram sete, era o pai chegar de um enterro
já tinha de levar outro filho para o cemitério. Ele mesmo fazia os caixões. No fim, faltou
madeira.” (Idem: 42). Conforme a situação agravava-se e o número de mortos aumentava, a
maneira como os enterros eram processados tornavam-se menos “rituais”: “Os primeiros mortos
tinham mortalha, eu mesma costurei algumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão.
Vinham buscar os mortos, antes de enterrar tiravam do caixão para servir pra outro.” (Idem: 33)
 Dona Lúcia conta que não havia remédios para combater a “grippe”, pelo que a população
utilizava remédios alternativos, como limonada, que era distribuída em fábricas, folhas de
eucalipto que eram levadas às casas por um padre para serem queimadas, e, assim como vimos
na nota do jornal citada anteriormente, havia a preocupação das autoridades quanto à procura
por práticas homeopáticas e/ou espirituais, pelo que, diante da ineficácia destes ou qualquer
outros “remédios”, recomendava-se o repouso e a reclusão até que passasse o surto. Para que a
reclusão se efetivasse, ordenou-se o fechamento de estabelecimentos públicos e alguns
comércios, fazendo com que Curitiba se tornasse “uma cidade de mortos” (Idem: 35) Note-se
que esta frase, publicada no jornal “Diário da Tarde” em outubro de 1918 ainda ecoava na fala
de Dona Lúcia em 1976. Dona Lúcia relata que ela mesma ficou “dias na cama ardendo em
febre, prostrada sem vontade como num outro mundo” (Idem: 24), porém afirma que sua febre
foi “fraca”, uma vez que não a levou a óbito.
         Neste ponto, a fala de Dona Lúcia começa a tomar rumos diferentes: passa a falar sobre
– aparentemente – uma mesma personagem, uma moça “muito branca, alta, cabelo loiro bem
comprido”, que em um primeiro momento afirma ser ela a esposa de um alemão e, sendo os
dois de poucos amigos, “caíram com a gripe” e “ninguém notou” (Idem: 43), ficando cada um
em um quarto “sofrendo sem assistência”, até que foram encontrados quase mortos por uma
vizinha. Assim, Dona Lúcia afirma que esta moça passou pela gripe, continuou casada, teve
filhos, mas “nunca mais teve o juízo perfeito” (Idem :66), passando a andar por muitos anos
com um vidrinho de veneno nas mãos, sendo encontrada morta por volta da década de 1930.
Intercalada a esta fala, se referindo também a uma moça loira, Dona Lúcia afirma ter esta moça
“muito branca, alta, cabelo loiro bem comprido”, ter morrido na gripe, sendo ainda solteira.
         Misturando-se às falas de Dona Lúcia e demais notícias e acontecimentos relatados no
decorrer do livro, desde a primeira página também tem inicio a narrativa de homem, sem nome,
sem precedentes, que caminha “sozinho nesta cidade sem gente” (Idem :13). Ao andar, ele conta
entrar em uma casa, pois a porta estava sem chavear, onde se encontram dois doentes, uma
mulher e seu marido, ele, talvez inconsciente em outro quarto e ela, encontra-se febril na cama.
Vagarosa e poeticamente ele narra a maneira como encontrou uma porta entreaberta e por ela
viu uma mulher: “Mãos grandes como de cavalo. A direita assentada sobre o lento respirar do
seio rijo. À esquerda, a da aliança por sobre o lençol branco / branco braço nu, parca seara de
louros pelos.” (Idem :23) Assim, ele passa a descrever seu corpo e a maneira como sutilmente,
durante as alucinações da moça, ele a submete à relação sexual. Passo a citar parte da descrição
deste homem, que perpassa grande parte do livro e mescla-se, costurando – ou separando – as
outras narrativas.

       “Os olhos costurados pela febre / loura linha / a mesma que tece seus cabelos (: 25) Cabelos de
       vassoura / mais macios, meus dedos dizem / Amarelos / Ao levantar o branco lençol / adivinharei
       os outros pelos / ? (:27) buço     parco        louro / encima lábios rubros do calor da febre / ao
       levantar o branco lençol / encontrarei outros pelos louros / cercando rubros lábios (:30) No
       monte de venus / parca loura penugem / - como pelo de pecego - / margeando os lábios rubros do
       amor / - fenda / virgem para mim / adivinhada por mim (:32) Fina loura linha / não de tecer / mas
       louro novelo / ninho para o pássaro / asas da minha mão (:39) Estou de pé ao pé da cama / o
       traço de sua fenda do amor fica na horizontal / em relação a mim, como se os lábios fossem sua
       boca / onde encosto meus lábios. (:47) Mesmo na imobilidade da febre / suas coxas se
       entreabrem lentas / como a pedir que eu penetre sua gruta / com minha língua de sangue em
       chamas (:48) Faço isso / Somente depois é que meus lábios / minhas mãos / percorrerão,
       percorreram / outras partes de seu corpo: / a boca rubra febre, / os cabelos, o bico róseo dos
       seios, (:52) Os olhos agora semicerrados, a parte / interna das coxas, novamente o bico / dos
       seios agora também todo o seio / branco talhado enche minha boca (:54) Ela geme baixinho, não
       mais de febre / agora de gozo? / Gozo e no auge do gozo tento / abraçar todo seu corpo que se /
       me escapa e tenho nas mãos / como um pássaro peixe (:56) Nada mais me importa agora / nem a
       mancha do gozo em minha calça / Nem o paletó cheguei a tirar / O marido? Tosse que ecoa por
       toda a casa / saio pela porta sem chavear / sem a volta da chave na fechadura / saio sem me
       voltar ao menos (:61) Mas sempre terei diante de mim / a visão de eu abrindo a porta / a casa
       vasia, seu corpo de loura plumagem / sem me voltar, sem voltar / diante de mim a cidade vazia,
       silenciosa / nestes dias da grippe / ninguém me viu nem me verá (:66)

         Numa verdadeira polifonia, estas narrativas se cruzam no livro, dando a ele certo ar
“nonsense”, dado a intensidade e confusão das narrativas, e mesmo a linguagem utilizada pelos
jornais e as preocupações da população assustada com a epidemia que em dois meses matou 321
pessoas na cidade de Curitiba. A confusão nas falas finais de Dona Lúcia reiteram sua afirmação
anterior: “Muita gente ficou com o juízo abalado. Por causa da febre forte dias e dias. Mesmo
muito tempo depois da gripe encontrava-se gente que nunca mais recuperou a razão, pro resto
da vida.” (Idem :32) E, em meio à guerra, à peste, às informações desencontradas publicadas em
jornais, os habitantes da Curitiba de 1918 permaneciam sob a ordem de clausura em suas casas,
compartilhando caixões, ouvindo sobre pessoas comuns enlouquecendo, autoridades
enlouquecendo, “loucos” matando outros “loucos” em hospícios e, esperando que o surto de
gripe no Rio de Janeiro acabasse para que a normalidade se instaurasse, ouviam continuamente
o refrão:

       “Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela razão...”
       Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela
       Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude
       Não obstante, continuamos firmes em nossa
       Não obstante, continuamos firmes em
       Não obstante, continuamos firmes
       Não obstante, continuamos
       Não obstante,
       Não.” (Idem :64)


2) As Relações Naturais – a peça
       Os textos deste “dramaturgo” gaúcho José Joaquim de Campos Leão (1829 –
1883) foram “descobertos” no Rio Grande do Sul na década de 1920, e suas peças
foram encenadas pela primeira vez em 1966 em Porto Alegre. Devido ao
reconhecimento póstumo de suas obras, não encontramos sobre Qorpo-Santo muito
mais que informações documentais oriundas de sua autobiografia pertencente hoje à
família Assis Brasil e ao bibliófilo Júlio Petersen, ambos no Rio Grande do Sul (Assis
Brasil, 2003). Nasceu em Triunfo, no Rio Grande do Sul em 1829. Mudou-se para Porto
Alegre aos sete anos com sua família, Nesta cidade trabalhou no comércio e, mais tarde
como professor primário. Foi vereador em Alegrete - RS, também nesta cidade atuou
como professor e subdelegado de polícia. Qorpo-Santo foi incompreendido na sociedade
em que viveu por sua excentricidade, considerado por alguns um exímio pensador, com
idéias à frente de seu tempo. Por outros era tido apenas por louco. E foi essa segunda
atribuição que o levou a vários exames de sanidade mental entre 1864 e 1868, e à
internação num hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. Provada sua sanidade mental e
de volta a Porto Alegre, Qorpo-Santo publicou um “projeto de simplificação gradual da
língua Portuguesa”, cujas normas ortográficas aplicou em seus textos e em seu próprio
nome. Para a publicação de suas obras, foi necessário que comprasse uma tipografia – a
Tipografia Qorpo-Santo, onde publicou a “Ensiclopédia” (1877), compêndio que
continha textos teatrais, poéticos, satíricos, autobiográficos, o projeto de simplificação
da Língua Portuguesa mencionado acima e estudos sobre o Novo Testamento.




                          José Joaquim de Campos Leão – Qorpo-Santo

        “As Relações Naturais” provavelmente seja a peça mais conhecida de Qorpo-Santo. Foi
a primeira peça do autor a ser encenada e, ainda hoje é sobre a qual existem mais menções.
Talvez a preferência por esta peça se dê pela forte conotação sexual que ela possui, tão almejada
pelo teatro brasileiro desde os primórdios, atingindo sua maioridade com Nelson Rodrigues. No
entanto, esta é a peça em que mais se faz presente a narrativa do autor sobre seu “corpo santo”,
seu conflito entre a necessidade de santificação e a necessidade de manter “as relações
naturais”, aqui compreendidas como sendo relações sexuais. Na primeira cena um personagem
apresenta-se com um extenso monólogo. Este personagem está diretamente ligado ao próprio
Qorpo-Santo, que se anuncia como o escritor da “comédia em quatro atos”. Eis um trecho de
seu monólogo:

        “Estava querendo sair a passeio; fazer uma visita; e já que a minha ingrata e nojenta imaginação
        tirou-me um jantar, pretendia ao menos conversar com quem isso me havia oferecido. Entretanto
        não sei se o farei! Não sei porém o que me inspirou continuar no mais improfícuo trabalho! Vou
        levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos
        que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração pela alma desse a
        cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vontade! E será esta a comédia em 4
        atos, a que denominarei - As Relações Naturais.(Levanta-se; aproxima-se de uma mesa; pega
uma pena; molha em tinta; e começa a escrever:) São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade
       de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, - Império do Brasil... Já
       se vê pois que é isto uma verdadeira comédia! (Atirando com a pena, grita:) Leve o diabo esta
       vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem
       nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aqui me
       incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o Céu da pureza, se eu pegar mais em
       pena antes de ter... Sim! Sim! Antes de ter numerosas moças com quem passe agradavelmente as
       horas que eu quiser. (Mais bravo ainda.) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro de
       carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! - Não quero mais!
       Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim!
       Está dito! (...)“. (Qorpo-Santo, 2001: 163)

       O personagem “Impertinente”, responsável por esta fala, pode ser associado ao próprio
Qorpo-Santo, assim como o personagem “Ele”, o “santo” que procura prostitutas, e também
“Malherbe”, sua versão inocente, ou patética. Nesta peça, apresenta-se o maior número de
impasses de Qorpo-Santo em relação à sua sexualidade, primeiramente representado pelo
personagem Impertinente. Ele dialoga com uma cafetina, em outra cena entra acompanhado de
uma menina de 16 anos, a qual traz para morar com ele e, na cena seguinte dirige-se a um
prostíbulo, onde é rejeitado. Aqui o nome do personagem é “Ele”. Na quarta cena, pela
continuidade e local da ação, dá-se a entender serem as prostitutas suas filhas. Nestas rápidas
divisões de cenas estão circunscritas uma série de emoções que se intensificam à medida que o
tempo cênico passa. O empregado, Inesperto, mostra-se resoluto em pôr ordem na bagunça da
casa jogando várias coisas para fora do lugar, dirige-se à sua ama, Mariposa, mulher de
Malherbe – que é o mesmo personagem Impertinente – com grande intimidade, dando a
entender que há relacionamento sexual entre os dois. A explosão dos sentimentos é extravasada
nas cenas mediante as indicações das rubricas, comuns também às demais peças do autor.
Mariposa fala com Malherbe “metendo os dedos nos olhos do marido” (Idem :172); ao falar
com Inesperto, Malherbe “dá-lhe com a bengala até que sai disparando por uma das portas,
gritando”, até que na primeira cena no quarto ato “tudo corre; tudo grita – mulher, filhos;
marido; criado, que um dia foi amo do amo (...) É um labirinto que ninguém se entende, mas o
fogo, a fumaça que se observa, não passa, ou o incêndio não real, mas aparente” (Idem :175)
        A idéia de “relação”, contida nesta peça apresenta um caráter eminentemente sexual. Isto
é perceptível na fala de Inesperto:

       “(...) O tal meu amo entendia que cada botina que comprava, e que calçava, era uma mulher que
       condenava ao matadouro dos seus desejos! E tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao
       xale que a cobria; dizia: (pegando o xale) isto é masculino, está portanto relacionado com um
       homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro com ele, também há de me cobrir esta noite
       um bom moço! E assim é que não havia pai, nem filho; mãe ou filha que pudesse, nem por cinco
       minutos, ter descanso e tranqüilidade em suas habitações!” (:174)

E também no diálogo entre as filhas:

       “UMA DELAS (para o criado) – Ora, muito bem! Já se vê quanto é bom viver conforme as
       relações naturais. Eu gosto de mingau de araruta ou sagu, por exemplo, como; e porque está
       relacionado com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece, e eu o gozo! Já se vê pois que,
       vivendo conforme elas é em duplicata!
       OUTRA – É verdade, Mana; eu, como a comida que mais gosto é coco e porque este se relaciona
       com certo amigo de meu pai, ele aqui também virá. E o meu prazer não será só de paladar, mas
       também aquele que provém do amar!” (:176)

       Encontramos nesta peça o conflito das relações entre marido e esposa e a posição da
esposa e filhas contra o marido/pai. A esposa “Mariposa”, a “pregoeira gaiata da presente
época”, como indica uma rubrica (p.170), aparece como uma grande “vilã”, uma louca que
pretende viver “segundo as relações”. É ela quem fomenta a transfiguração dos três personagens
de Qorpo-Santo: quando esta entra em cena aparece a figura de Malherbe que, pacato com todos
só altera seu comportamento diante dela, e só com ela explode em ira, por esta ser a
personificação do mal. É impossível a santificação de Malherbe diante de sua esposa. Mariposa
trás outro elemento à cena, e as relações sexuais enquanto naturais, que, como pôde ser notado
nas citações anteriores, seguem de forma distinta para o homem e para a mulher: para esta está
relacionado à alimentação e prazeres do paladar, para aquele, às vestimentas. Nota-se aqui o
papel da esposa como prestadora de serviços, e do marido como mantenedor.
        No terceiro ato, inicia-se a relação ordem/desordem, quando “Inesperto” diz arrumar a
bagunça, espalhando tudo o que está organizado. Esses “lugares que eu arrumo” (p. 172) que
menciona Inesperto é a ordem estabelecida por Malherbe. Ironicamente, e isso fica claro para o
público, há uma inversão de conceitos, uma vez que a ordem visível é considerada desordem.
Isto posto, é admissível que o contrário da ordem estabelecida por Qorpo-Santo, sua
cosmovisão, é a desordem do mundo com o qual ele se relaciona: as “relações naturais”.
Quando essa desordem se revela (o criado tenta virar amo, a mulher tenta “mandar” na casa, e
todos os que são “da espécie humana” (p. 175) querem flagelá-lo), o caos vem à tona: enforcam-
no no centro da sala, onde “há de ficar pendurado para a eterna glória das mulheres e exemplo
final dos homens malcriados” (p. 177). Enforcando-o espera-se que Mariposa finalmente
consiga o que todos querem, afinal, está morto o que se importava com os direitos “não sabendo
que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode viver como quiser, e com quem
quiser”. Comemorando o enforcamento, “Elas” (ao que a rubrica sugere, subentende-se mãe e
filhas) comemoram: “Há de ficar pendurado!(...) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, Maninha, já
enforcamos este, havemos também de enforcar também certo grilo; e andar com as relações à
vontade dos corações!” (p.177). Considerando as intenções de Mariposa e as situações que
antecederam essa fala no texto, ela pode sugerir tanto o homossexualismo, quanto a pedofilia e
o incesto. É notável o que se sucede a esse evento.
         O corpo de Malherbe pendurado ao centro é um boneco de papelão. Não deixa de ser
uma imagem, a imagem de um “santo”, um motivo para reflexão, diante do qual as mulheres
tomam consciência de seus atos libertinos, envergonham-se e decidem abandonar as práticas
que até então julgavam certas. Inesperto identifica-se com o patrão enforcado e, temendo o
mesmo fim, passa a arrancar os membros de seu “qorpo” e a atirá-los nas mulheres. Neste
momento, as mulheres constrangem-se e arrependem-se cantando:

       “- Não nos meteremos
       Mais com relações
       Maridos procuraremos
       Pois temos corações

       A nenhum mais tentaremos
       Destruir seus sentimentos!
       A um só nós serviremos
       Para não termos duros tormentos!

       (...)

       Para comermos;
       Para bebermos;
       Não precisamos
       De certos dramas!

       De andar,
       Sempre a matar,
       Os corações
       Com as relações! (...) (p. 178-179)
2) O mez da grippe – o espetáculo.




                             Cartaz do espetáculo “O Mez da Grippe”

        A sinopse:

        “O Mez da Grippe, espetáculo inspirado na novela homônima de Valêncio Xavier trabalha com
        os lugares, ou momentos excepcionais, em que a normalidade, a regra, cede lugar às pulsões
        social e culturalmente reprimidas. O Mez da Grippe ( ou outra calamidade natural ou social
        qualquer, como uma guerra ou uma inundação) é um desses momentos. A violação da mulher
        loira, quase que de maneira subliminar inserida na novela, foi o elemento elucidador da busca de
        outros materiais literários para a composição da peça, através da compreensão desse
        procedimento artístico de Valêncio Xavier, surgiu a escolha dos textos “Poema da Bem
        Aventurada Virgem Maria”, de Anchieta e “As Relações Naturais”, de Qorpo-Santo, como
        componentes do espetáculo.”

        O espectador que leu a sinopse antes de assistir a peça encontrou no palco um
desmembramento do que foi anunciado no texto. Enquanto no livro as falas dos dois
personagens – Dona Lúcia e o homem – aparecem desde as primeiras páginas, e são
apresentadas ao leitor ao mesmo tempo em que são apresentadas as noticias dos jornais, sobre
as mortes ocasionadas pela gripe em Curitiba no mês de outubro de 1918, na peça, os trechos da
já citada novela de Xavier, foram inseridos de maneira linear, sem a exposição dos recortes de
jornais, mas com a descrição em primeira pessoa do estupro da moribunda mesclados à
narrativa de Dona Lúcia, que no palco recebeu várias vozes, retratando as mulheres curitibanas
do início do século XX.
        O espaço do “Novelas Curitibanas” é um casarão do início do século XX, não possui
palco italiano e tem espaço para até setenta cadeiras, o que permitiu que o cenário da peça fosse
disposto de forma que o público também estivesse no palco: os assentos foram dispostos pela
sala do teatro formando corredores, pelos quais os atores passavam, alheios à presença do
público. O homem que caminha sozinho “na cidade sem gente” pára a distancia de alguns
metros, encostado à parede de uma extremidade da sala, frente a uma porta aberta, pela qual
entra a iluminação, e ali, passa a narrar o estupro da moça loira que agoniza em sua cama. O
texto foi dado de maneira estática: o ator que descrevia a cena da mulher na cama e olhava pela
porta aberta a vários metros de distância – mediada inclusive pelo público – permanecia inerte à
sua própria fala. Apenas seus olhos expressavam o prazer contido em suas palavras. A
disposição do público no palco proporcionou mais do que a visão do espetáculo de perto: fez
com que o público se tornasse parte do cenário. Por mais que estivesse no palco, o público não
tinha qualquer interação com os atores, e, as súbitas mudanças de ambientes, promovidas pela
mudança que as falas produziam no local da ação faziam com que o público se sentisse ora
paredes da casa, através da qual não se via o que acontece em outro cômodo, ora muretas das
ruas, às quais não são dadas saber para onde a rua vai e o que ela abriga, escondendo os
transeuntes e permitindo que as falas dos atores circulem como o próprio vírus da gripe.
         A voz de Dona Lúcia é distribuída entre várias atrizes. Elas entrecortam a fala do
“homem”, ao mesmo tempo quebrando sua condição estática e o mantendo nela: enquanto a fala
aberta sobre acontecimento passados, mesmo os que em outros tempos os jornais queriam calar,
agora – seja 2008 ou 1976 – ganha espaço, dinâmica e velocidade, enquanto o ato incomum e
repreensível da invasão de domicílio seguida de estupro permanece no espaço devido: estático e
escondido. Porém, a calamidade que se instaura, fazendo com que as pessoas permaneçam nas
casas, sem prestar socorro ou assistência, ou nem mesmo sabendo o que se passa do lado de fora
de suas paredes, constituem os “lugares, ou momentos excepcionais, em que a normalidade, a
regra, cede lugar às pulsões sociais e culturalmente reprimidas”, tornando possível o estupro
semi-consentido.
         O uso da fala destes dois personagens, levou o grupo à “busca de outros materiais
literários”, que, a meu ver, se deu antes por aproximação temática que pela compreensão do
“procedimento artístico”3 de Valêncio Xavier, na maneira como foi abordado – em relação à
repressão do impulso sexual que foi possível ser extravasado sem “culpa” ante a doença. Estes
outros “materiais literários”, que foram o “Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria”, sobre o
qual não me detive, e “As relações naturais” de Qorpo-Santo, compuseram de forma integral a
peça “O mez da grippe”. Cabe destacar que o “Poema da Bem Aventurada Virgem Maria” foi
interpretado com movimentos intensos, acelerados e descontínuos, enquanto o texto de Qorpo-
Santo, mesmo que com muita movimentação e ocupação do espaço cênico pelos atores, teve as
rubricas inseridas como parte das falas, dadas porém, na maioria das vezes, de forma estática,
proporcionando um aumento de recursos para a proposta da “narrativa polifônica” de Valêncio
Xavier. Neste sentido, as rubricas não participaram da peça como uma indicação da ação no
palco, e sim como um novo personagem, uma nova voz que indicava a ação que os atores
deveriam ter no palco, e nem por isso a tinham. Aqui, mais uma vez, o público que ocupava o
palco formava parte do cenário, invadindo a intimidade da casa com sua proximidade e ao
mesmo tempo sendo as paredes e corredores desta casa, formando também partes de seus
cômodos. As portas e janelas laterais do “Novelas Curitibanas” foram utilizadas de forma a
delimitar o espaço de “fora” da casa, fazendo com que o público se sentisse ainda mais
participante da cena, e ainda mais preso a ela.
         As “pulsões social e culturalmente reprimidas” que aproximaram o texto de Valêncio
Xavier ao texto de Qorpo-Santo, certamente foram aqui entendidas como as pulsões sexuais
contidas nas falas do estranho personagem da “novela” de Xavier e, de certa forma, em todos os
personagens de Qorpo-Santo. O personagem sem nome do livro de Xavier, que quase poderia
passar despercebido em meio ao turbilhão de notícias bizarras, chocantes ou patéticas
anunciadas pelos jornais, salvo a intensidade com que narra o episódio de um estupro semi-
consentido (uma vez que o gemido de febre se confunde com o gemido de gozo) caracterizado

3
  Ao que parece, uma leitura superficial de “O Mez da Grippe” já induziria o leitor a pensar na
“violação da mulher loira” não de forma subliminar, mas explícita, uma vez que Francisco
Bettega Netto traz seu parecer sobre a “chave detonadora da obra” no prefácio do livro da
edição de 1981, onde destaca o trecho do recorte de jornal constante na página 27: “A influenza
espanhola e o amor seria uma tese psychologica magnífica para ser devolvida por um Paul
Bourget de fancaria que se atormentasse num eterno sonho de duquezas e condessas, pallidas e
loiras, muito loiras e frias...”
por uma quase necrofilia, se for verdadeira a versão de Dona Lucia de que a mulher “muito
branca” morreu na gripe. Este personagem que é associado à imagem do homem de bigodes que
sempre tem sua ilustração próxima às suas falas também ecoa a voz de Marquês de Sade,
citação de epígrafe do livro:

       “Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres, sobre os quais se podem observar todos os diferentes
       estados da dissolução, desde o instante da morte até a destruição total do indivíduo. Esta macabra
       execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais
       expressiva, nem mais verdadeira.” (Marquês de Sade, apud Xavier, 1998.)

        Já as personagens qorpo-santenses são todas “reprimidas” de alguma forma em algum
momento da peça: o personagem Impertinente que, apesar de viver em um ambiente onde
prevalece o desejo e as “relações naturais”, é reprimido por se pretender “santo”; Inesperto e
Mariposa são constantemente repreendidos por Malherbe por suas atitudes de “desordem”, o
primeiro em relação à ordem material da casa, a segunda pela libertinagem a que se expunha e
doutrinava as filhas; por fim, Malherbe que tenta a todo custo “frear” os impulsos sexuais de
sua esposa e filhas, temendo as conseqüências afirma: “Se continuo, estas mulheres são capazes
de pendurar-me naquela travessa e aqui me deixarem exposto, por não querer acompanhá-las em
seus modos de pensar e julgar.” (Qorpo-Santo, 2001 :175). E de fato, é este o rumo que a peça
toma: ao ser enforcado e ficar exposto no centro da cena, Malherbe torna-se um símbolo do
sagrado, objeto de reflexão para as atitudes libertinas da esposa e filhas, levando-as ao
arrependimento e contrição: “- Não nos meteremos / Mais com relações / Maridos procuremos, /
Pois temos corações!” (Idem : 178).
        Cabe destacar que com “As relações naturais”, Qorpo-Santo mais que levar à cena
personagens fictícios que discutem sobre sexualidade e repressão, tem sua própria imagem
exposta, no tocante à sua visão sobre a sexualidade contraposta aos valores da sociedade gaúcha
do século XIX. Isto foi de certa forma destacado pelo grupo A Pausa ao transformar as rubricas
em um personagem, que apontava para o posicionamento de Qorpo-Santo diante desta visão de
mundo, e a maneira como os personagens criados e a problemática levantada em 1866 ainda
encontra lugar de escândalo em 2008 e qualquer outro tempo, uma vez que é necessário que a
normalidade dê espaço à calamidade, para que se torne possível a concretização dos desejos e
“pulsões cultural e socialmente reprimidas”.


Considerações Finais

        A gripe espanhola de 1918 foi o fato histórico que moveu as narrativas contidas no
espetáculo “O mez da grippe”, sendo apresentadas ao público de forma descolada de seu
contexto, dando ênfase às “pulsões social e culturalmente reprimidas”. A descrição dos fatos se
deu não pelos recortes de jornais, ou com base em qualquer outro documento escrito, e sim
através da voz de pessoas que os presenciaram: Dona Lúcia, que relembrou os fatos em
entrevista dada em 1976 e “Um homem”, que, não se sabe ao certo ser um personagem real ou
ficcional, relatando a explosão de seus desejos sexuais viabilizados graças a ausência de
“gentes” na cidade. Desta maneira, o grupo A Pausa trouxe à cena a voz de Qorpo-Santo, um
personagem histórico, que teve seus desejos reprimidos tanto pela sociedade em que viveu
quanto por sua auto-repressão, proveniente de sua religiosidade, que transforma o desejo pela
liberdade sexual no anseio por um corpo santo.
        A ênfase dada na oralidade proporcionou a criação destes novos personagens: as
mulheres que ganharam a voz da multivocal Dona Lúcia e as rubricas do texto de Qorpo-Santo,
transformadas em personagem. Esta polifonia trouxe à cena momentos da história de Curitiba
de 1918 e Porto Alegre de 1866 de modo que o espectador voltasse sua atenção para a história
oral, posta em evidência. O espetáculo “O Mez da Grippe” trouxe ao palco uma série de
narrativas, abrangendo desde uma esfera ampla – uma calamidade que atingiu toda a população,
a devoção universal a uma santa e a opinião geral de uma população em relação à repressão à
sexualidade – a um contexto restrito, dando atenção às vozes de pessoas comuns – a narrativa de
Dona Lúcia contraposta à opinião dos jornais, a descrição de um homem sem nome a respeito
de sua atitude diante da cidade “sem gente”, a devoção individual de Padre José de Anchieta à
Virgem Maria e o desejo que distanciava um corpo que se quis santo da possibilidade de sua
santificação.

Referências

O Mez da Grippe. Espetáculo em cartaz de 24 de julho a 31 de agosto de 2008 no Teatro
Novelas Curitibanas, Curitiba-PR. Direção de Moacir Chaves.
QORPO-SANTO. Teatro Completo. São Paulo: Iluminuras, 2001.
XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhias das Letras, 1998.

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  • 1. HOLLAND, Eva Beatriz. Universidade Federal do Paraná – UFPR (Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social – PPGAS) Narrativas em cena: composição do espetáculo a partir de histórias orais Resumo Neste trabalho proponho uma reflexão sobre a montagem teatral “O Mez da Grippe”, realizada pelo Grupo A Pausa, apresentada em Curitiba durante o mês de agosto de 2008. Nesta análise proposta, o objetivo é explicitar e analisar a maneira como foi construída a intertextualidade desta montagem, considerando que para tal encenação foram usados vários textos, todos subsumidos na performance oral do teatro. Portanto, trata-se de destacar a maneira como a oralidade deste trabalho teatral “costura” os textos utilizados. Para tanto, faço uso da teoria e metodologia interpretativista da Antropologia Social, destacando os temas que recortam e unem esta perspectiva intertextual/intercultural, a saber, a sexualidade, a repressão e o erotismo. Os textos que compõem a narrativa teatral a serem analisados aqui são: a novela O Mez da grippe, de Valêncio Xavier1, a peça Relações Naturais, de Qorpo Santo2. Introdução O espetáculo “O mez da grippe” que esteve em cartaz no teatro Novelas Curitibanas, em Curitiba-PR em agosto de 2008 trouxe o público para dentro de uma narrativa polifônica, na qual se ouviam pessoas da Curitiba afetada pela gripe espanhola em 1918; Padre Anchieta em sua devoção pela Virgem Maria; e os personagens criados pelo autor gaúcho José Joaquim de Campos Leão, de pseudônimo Qorpo-Santo, provenientes de seu drama pessoal a respeito da “impossibilidade de santificação” diante das “relações naturais”. Este trabalho está dividido em três partes, sendo que na primeira delas apresento as narrativas contidas no livro “O mez da grippe”, de Valêncio Xavier, texto inspirador do espetáculo, no qual se fazem presente várias vozes sobre um mesmo fato: a epidemia de gripe em 1918, dizendo respeito tanto a fatos documentais, constituindo o plano de fundo da narrativa, quanto as falas de indivíduos que viveram neste contexto; na segunda parte trago uma breve explanação da peça “As Relações Naturais”, de Qorpo-Santo, apontando para como a voz do autor ecoa na voz dos personagens criados por ele, e a maneira como o conflito entre sua “necessidade de santificação” pessoal e as “relações naturais”, compreendidas como relações físicas, biológicas, sociais, sexuais e de parentesco, segundo as noções apresentadas pelo próprio autor em outros textos trazem à cena tanto um personagem histórico quanto a própria história em que ele está inserido. Procuro apontar para como o conceito de “relações naturais” foi trabalhado pelo autor nessa peça, sendo sua biografia representada por personagens criados para representá-la e seus conflitos e idéias expressas por personagens criados para reprimi-las. Na terceira parte volto-me para a montagem do espetáculo “O mez da Grippe”, constituído por narrativas contidas nas obras de ambos autores, Xavier e Qorpo-Santo, no que diz respeito à idéia de sexualidade e repressão, que constitui o fio narrativo apresentado pelo grupo A Pausa, justificando a escolha destes textos como elementos de constituição do espetáculo. 1 Nascido em São Paulo em 1933 e radicado em Curitiba-PR, onde faleceu em dezembro de 2008. Atuou como consultor de imagem em cinema e roteirista e diretor de TV, publicando vários livros, dos quais destacam-se 'O Mez da Grippe' (Companhia das Letras, 1998), 'Meu 7º Dia' (Ciência do Acidente, 1998), 'Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido' (Companhia das Letras, 2001) e os contos 'Minha História Dele' (Ficções, n. 1, 1998) e 'Meu Nome É José', na coletânea A Alegria (Publifolha, 2002). Também traduziu 'Conversa na Sicília', de Elio Vittorini (com Maria Helena Arrigucci, 2002). e narrativas em jornais e revistas, como Nicolau, Revista USP e o caderno Mais! da Folha de S.Paulo. 2 Nascido em Triunfo-RS em 1829, falecendo em Porto Alegre-RS em 1883. Publicou em sua própria tipografia a “Ensiclopédia ou seis meses de uma enfermidade”, em 1877, contendo textos teatrais, poéticos, satíricos, auto biográficos e outros, da qual grande parte ainda permanece inédita.
  • 2. 1) O Mez da Grippe – o livro. Capa do Livro de Valêncio Xavier, edição de 1981. O livro “O Mez da Grippe” é denominado “novela” por seu autor Valêncio Xavier. Segundo Francisco Bettega Neto, autor do prefácio da edição de 1981, trata-se de um “livro colagem”, onde Xavier dispõe várias narrativas, divididas em 3 partes: 3 meses, sendo outubro, novembro e dezembro de 1918, marcados pelos recortes dos jornais “Commercio do Paraná” e “Diário da Tarde”. Estes dois jornais apresentam distinções claras nas noticias sobre a gripe: ao mesmo tempo em que se dá a entender que a população de Curitiba está alvoroçada com a possível presença da epidemia, o “Commercio do Paraná” esforça-se por afirmar que os óbitos ocorridos se davam por conta de várias outras enfermidades que não a gripe: tuberculose, febre tifóide, e até loucura. Já o “Diário da Tarde” apresentava reportagens em que notícias sobre a gripe chegavam não apenas revelando os óbitos no Rio de Janeiro e outros estados, mas também em Curitiba. Muitos destes recortes são de textos sátiro-poéticos a respeito da propagação da epidemia tão negada pelo jornal “Commercio do Paraná”. Enquanto este jornal enchia seus quadros de notícias sobre a Guerra, assassinatos, propagandas e pequenas notas negando que os óbitos registrados eram causados pela gripe espanhola, também há publicações de notas que justificam o não funcionamento do jornal por seus funcionários terem adoecido, porém, sempre reiterando que este afastamento de funcionários se dá por conta de qualquer outra doença, que não a gripe. Por fim, o Diário da Tarde publicou: “Embora a censura policial tivesse varrido do noticiário da imprensa a relatação dos fatos veríficos, com relação á epidemia, o nosso dever profissional nos força a sahir do mutismo em que nos encontrávamos nesse sentido e vir dizer ao povo que todo esse preparativo que se faz não é apenas para evitar que o mal chegue até nós, mas sim para dar combate á enfermidade que já nos atingiu.” (Diário da Tarde, 30 de outubro de 1918, apud Xavier :33)
  • 3. Assim, no final do mês de outubro o “Ministério da Justiça e Negócios Interiores” divulgou oficialmente uma nota de “combate á grippe”, com “conselhos á população paranaense”, no tocante à prevenção e cuidados com a doença, afirmando por fim que “A homeopatia, o espiritismo e as hervas, não curam a grippe, como nenhuma outra molestia infectuosa ou parasitaria.” (Idem :36). E assim, teve início oficialmente “o mez da grippe”, novembro de 1918. A estas notícias, somam-se outras: os relatórios da grippe do diretor do Serviço Sanitário, Dr. Trajano Reis, propagandas de xaropes contra tosse, creolina e outros remédios para a gripe, notícias sobre a Guerra e o comportamento dos alemães no Brasil, noticias sobre o cancelamento de eventos e entradas ao cinema, fotografias, notas sobre cancelamento de cultos e convites à missas. Intercaladas a estes recortes de jornais, aparece a narrativa de D. Lúcia, colhida em 1976, como memória dos fatos ocorridos em 1918. Ela relembra as dificuldades em conseguir sair de casa, tanto por medo da gripe quanto por não haver aonde ir, dado terem fechado vários estabelecimentos. Relembra também várias mortes, conta “causos”, de pessoas que conhecia e viu morrer de gripe. Dona Lúcia afirma ter a epidemia atingido a cidade toda: “Famílias inteiras. Não houve casa que não tivesse alguém doente. Parecia a cidade dos mortos.” (Xavier, 1998 :21). Conta também sobre o tempo pelo qual se estendeu o grande número de óbitos causado pela gripe, a freqüência com que se davam os enterros e o número elevado de pessoas que acompanhavam as comitivas, sendo freqüentes as mortes de muitas pessoas de uma mesma família: “Ali naquela casa morreram sete, era o pai chegar de um enterro já tinha de levar outro filho para o cemitério. Ele mesmo fazia os caixões. No fim, faltou madeira.” (Idem: 42). Conforme a situação agravava-se e o número de mortos aumentava, a maneira como os enterros eram processados tornavam-se menos “rituais”: “Os primeiros mortos tinham mortalha, eu mesma costurei algumas. Depois era de qualquer jeito, faltou até caixão. Vinham buscar os mortos, antes de enterrar tiravam do caixão para servir pra outro.” (Idem: 33) Dona Lúcia conta que não havia remédios para combater a “grippe”, pelo que a população utilizava remédios alternativos, como limonada, que era distribuída em fábricas, folhas de eucalipto que eram levadas às casas por um padre para serem queimadas, e, assim como vimos na nota do jornal citada anteriormente, havia a preocupação das autoridades quanto à procura por práticas homeopáticas e/ou espirituais, pelo que, diante da ineficácia destes ou qualquer outros “remédios”, recomendava-se o repouso e a reclusão até que passasse o surto. Para que a reclusão se efetivasse, ordenou-se o fechamento de estabelecimentos públicos e alguns comércios, fazendo com que Curitiba se tornasse “uma cidade de mortos” (Idem: 35) Note-se que esta frase, publicada no jornal “Diário da Tarde” em outubro de 1918 ainda ecoava na fala de Dona Lúcia em 1976. Dona Lúcia relata que ela mesma ficou “dias na cama ardendo em febre, prostrada sem vontade como num outro mundo” (Idem: 24), porém afirma que sua febre foi “fraca”, uma vez que não a levou a óbito. Neste ponto, a fala de Dona Lúcia começa a tomar rumos diferentes: passa a falar sobre – aparentemente – uma mesma personagem, uma moça “muito branca, alta, cabelo loiro bem comprido”, que em um primeiro momento afirma ser ela a esposa de um alemão e, sendo os dois de poucos amigos, “caíram com a gripe” e “ninguém notou” (Idem: 43), ficando cada um em um quarto “sofrendo sem assistência”, até que foram encontrados quase mortos por uma vizinha. Assim, Dona Lúcia afirma que esta moça passou pela gripe, continuou casada, teve filhos, mas “nunca mais teve o juízo perfeito” (Idem :66), passando a andar por muitos anos com um vidrinho de veneno nas mãos, sendo encontrada morta por volta da década de 1930. Intercalada a esta fala, se referindo também a uma moça loira, Dona Lúcia afirma ter esta moça “muito branca, alta, cabelo loiro bem comprido”, ter morrido na gripe, sendo ainda solteira. Misturando-se às falas de Dona Lúcia e demais notícias e acontecimentos relatados no decorrer do livro, desde a primeira página também tem inicio a narrativa de homem, sem nome, sem precedentes, que caminha “sozinho nesta cidade sem gente” (Idem :13). Ao andar, ele conta entrar em uma casa, pois a porta estava sem chavear, onde se encontram dois doentes, uma mulher e seu marido, ele, talvez inconsciente em outro quarto e ela, encontra-se febril na cama. Vagarosa e poeticamente ele narra a maneira como encontrou uma porta entreaberta e por ela viu uma mulher: “Mãos grandes como de cavalo. A direita assentada sobre o lento respirar do seio rijo. À esquerda, a da aliança por sobre o lençol branco / branco braço nu, parca seara de
  • 4. louros pelos.” (Idem :23) Assim, ele passa a descrever seu corpo e a maneira como sutilmente, durante as alucinações da moça, ele a submete à relação sexual. Passo a citar parte da descrição deste homem, que perpassa grande parte do livro e mescla-se, costurando – ou separando – as outras narrativas. “Os olhos costurados pela febre / loura linha / a mesma que tece seus cabelos (: 25) Cabelos de vassoura / mais macios, meus dedos dizem / Amarelos / Ao levantar o branco lençol / adivinharei os outros pelos / ? (:27) buço parco louro / encima lábios rubros do calor da febre / ao levantar o branco lençol / encontrarei outros pelos louros / cercando rubros lábios (:30) No monte de venus / parca loura penugem / - como pelo de pecego - / margeando os lábios rubros do amor / - fenda / virgem para mim / adivinhada por mim (:32) Fina loura linha / não de tecer / mas louro novelo / ninho para o pássaro / asas da minha mão (:39) Estou de pé ao pé da cama / o traço de sua fenda do amor fica na horizontal / em relação a mim, como se os lábios fossem sua boca / onde encosto meus lábios. (:47) Mesmo na imobilidade da febre / suas coxas se entreabrem lentas / como a pedir que eu penetre sua gruta / com minha língua de sangue em chamas (:48) Faço isso / Somente depois é que meus lábios / minhas mãos / percorrerão, percorreram / outras partes de seu corpo: / a boca rubra febre, / os cabelos, o bico róseo dos seios, (:52) Os olhos agora semicerrados, a parte / interna das coxas, novamente o bico / dos seios agora também todo o seio / branco talhado enche minha boca (:54) Ela geme baixinho, não mais de febre / agora de gozo? / Gozo e no auge do gozo tento / abraçar todo seu corpo que se / me escapa e tenho nas mãos / como um pássaro peixe (:56) Nada mais me importa agora / nem a mancha do gozo em minha calça / Nem o paletó cheguei a tirar / O marido? Tosse que ecoa por toda a casa / saio pela porta sem chavear / sem a volta da chave na fechadura / saio sem me voltar ao menos (:61) Mas sempre terei diante de mim / a visão de eu abrindo a porta / a casa vasia, seu corpo de loura plumagem / sem me voltar, sem voltar / diante de mim a cidade vazia, silenciosa / nestes dias da grippe / ninguém me viu nem me verá (:66) Numa verdadeira polifonia, estas narrativas se cruzam no livro, dando a ele certo ar “nonsense”, dado a intensidade e confusão das narrativas, e mesmo a linguagem utilizada pelos jornais e as preocupações da população assustada com a epidemia que em dois meses matou 321 pessoas na cidade de Curitiba. A confusão nas falas finais de Dona Lúcia reiteram sua afirmação anterior: “Muita gente ficou com o juízo abalado. Por causa da febre forte dias e dias. Mesmo muito tempo depois da gripe encontrava-se gente que nunca mais recuperou a razão, pro resto da vida.” (Idem :32) E, em meio à guerra, à peste, às informações desencontradas publicadas em jornais, os habitantes da Curitiba de 1918 permaneciam sob a ordem de clausura em suas casas, compartilhando caixões, ouvindo sobre pessoas comuns enlouquecendo, autoridades enlouquecendo, “loucos” matando outros “loucos” em hospícios e, esperando que o surto de gripe no Rio de Janeiro acabasse para que a normalidade se instaurasse, ouviam continuamente o refrão: “Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela razão...” Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude pela Não obstante, continuamos firmes em nossa attitude Não obstante, continuamos firmes em nossa Não obstante, continuamos firmes em Não obstante, continuamos firmes Não obstante, continuamos Não obstante, Não.” (Idem :64) 2) As Relações Naturais – a peça Os textos deste “dramaturgo” gaúcho José Joaquim de Campos Leão (1829 – 1883) foram “descobertos” no Rio Grande do Sul na década de 1920, e suas peças foram encenadas pela primeira vez em 1966 em Porto Alegre. Devido ao reconhecimento póstumo de suas obras, não encontramos sobre Qorpo-Santo muito mais que informações documentais oriundas de sua autobiografia pertencente hoje à
  • 5. família Assis Brasil e ao bibliófilo Júlio Petersen, ambos no Rio Grande do Sul (Assis Brasil, 2003). Nasceu em Triunfo, no Rio Grande do Sul em 1829. Mudou-se para Porto Alegre aos sete anos com sua família, Nesta cidade trabalhou no comércio e, mais tarde como professor primário. Foi vereador em Alegrete - RS, também nesta cidade atuou como professor e subdelegado de polícia. Qorpo-Santo foi incompreendido na sociedade em que viveu por sua excentricidade, considerado por alguns um exímio pensador, com idéias à frente de seu tempo. Por outros era tido apenas por louco. E foi essa segunda atribuição que o levou a vários exames de sanidade mental entre 1864 e 1868, e à internação num hospital psiquiátrico no Rio de Janeiro. Provada sua sanidade mental e de volta a Porto Alegre, Qorpo-Santo publicou um “projeto de simplificação gradual da língua Portuguesa”, cujas normas ortográficas aplicou em seus textos e em seu próprio nome. Para a publicação de suas obras, foi necessário que comprasse uma tipografia – a Tipografia Qorpo-Santo, onde publicou a “Ensiclopédia” (1877), compêndio que continha textos teatrais, poéticos, satíricos, autobiográficos, o projeto de simplificação da Língua Portuguesa mencionado acima e estudos sobre o Novo Testamento. José Joaquim de Campos Leão – Qorpo-Santo “As Relações Naturais” provavelmente seja a peça mais conhecida de Qorpo-Santo. Foi a primeira peça do autor a ser encenada e, ainda hoje é sobre a qual existem mais menções. Talvez a preferência por esta peça se dê pela forte conotação sexual que ela possui, tão almejada pelo teatro brasileiro desde os primórdios, atingindo sua maioridade com Nelson Rodrigues. No entanto, esta é a peça em que mais se faz presente a narrativa do autor sobre seu “corpo santo”, seu conflito entre a necessidade de santificação e a necessidade de manter “as relações naturais”, aqui compreendidas como sendo relações sexuais. Na primeira cena um personagem apresenta-se com um extenso monólogo. Este personagem está diretamente ligado ao próprio Qorpo-Santo, que se anuncia como o escritor da “comédia em quatro atos”. Eis um trecho de seu monólogo: “Estava querendo sair a passeio; fazer uma visita; e já que a minha ingrata e nojenta imaginação tirou-me um jantar, pretendia ao menos conversar com quem isso me havia oferecido. Entretanto não sei se o farei! Não sei porém o que me inspirou continuar no mais improfícuo trabalho! Vou levantar-me; continuá-lo; e talvez escrever em um morto: talvez nesse por quem agora os ecos que inspiram pranto e dor despertam nos corações dos que os ouvem, a oração pela alma desse a cujos dias Deus pôs termo com a sua Onipotente voz ou vontade! E será esta a comédia em 4 atos, a que denominarei - As Relações Naturais.(Levanta-se; aproxima-se de uma mesa; pega
  • 6. uma pena; molha em tinta; e começa a escrever:) São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, - Império do Brasil... Já se vê pois que é isto uma verdadeira comédia! (Atirando com a pena, grita:) Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser comediante! Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aqui me incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o Céu da pureza, se eu pegar mais em pena antes de ter... Sim! Sim! Antes de ter numerosas moças com quem passe agradavelmente as horas que eu quiser. (Mais bravo ainda.) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! - Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está dito! (...)“. (Qorpo-Santo, 2001: 163) O personagem “Impertinente”, responsável por esta fala, pode ser associado ao próprio Qorpo-Santo, assim como o personagem “Ele”, o “santo” que procura prostitutas, e também “Malherbe”, sua versão inocente, ou patética. Nesta peça, apresenta-se o maior número de impasses de Qorpo-Santo em relação à sua sexualidade, primeiramente representado pelo personagem Impertinente. Ele dialoga com uma cafetina, em outra cena entra acompanhado de uma menina de 16 anos, a qual traz para morar com ele e, na cena seguinte dirige-se a um prostíbulo, onde é rejeitado. Aqui o nome do personagem é “Ele”. Na quarta cena, pela continuidade e local da ação, dá-se a entender serem as prostitutas suas filhas. Nestas rápidas divisões de cenas estão circunscritas uma série de emoções que se intensificam à medida que o tempo cênico passa. O empregado, Inesperto, mostra-se resoluto em pôr ordem na bagunça da casa jogando várias coisas para fora do lugar, dirige-se à sua ama, Mariposa, mulher de Malherbe – que é o mesmo personagem Impertinente – com grande intimidade, dando a entender que há relacionamento sexual entre os dois. A explosão dos sentimentos é extravasada nas cenas mediante as indicações das rubricas, comuns também às demais peças do autor. Mariposa fala com Malherbe “metendo os dedos nos olhos do marido” (Idem :172); ao falar com Inesperto, Malherbe “dá-lhe com a bengala até que sai disparando por uma das portas, gritando”, até que na primeira cena no quarto ato “tudo corre; tudo grita – mulher, filhos; marido; criado, que um dia foi amo do amo (...) É um labirinto que ninguém se entende, mas o fogo, a fumaça que se observa, não passa, ou o incêndio não real, mas aparente” (Idem :175) A idéia de “relação”, contida nesta peça apresenta um caráter eminentemente sexual. Isto é perceptível na fala de Inesperto: “(...) O tal meu amo entendia que cada botina que comprava, e que calçava, era uma mulher que condenava ao matadouro dos seus desejos! E tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao xale que a cobria; dizia: (pegando o xale) isto é masculino, está portanto relacionado com um homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro com ele, também há de me cobrir esta noite um bom moço! E assim é que não havia pai, nem filho; mãe ou filha que pudesse, nem por cinco minutos, ter descanso e tranqüilidade em suas habitações!” (:174) E também no diálogo entre as filhas: “UMA DELAS (para o criado) – Ora, muito bem! Já se vê quanto é bom viver conforme as relações naturais. Eu gosto de mingau de araruta ou sagu, por exemplo, como; e porque está relacionado com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece, e eu o gozo! Já se vê pois que, vivendo conforme elas é em duplicata! OUTRA – É verdade, Mana; eu, como a comida que mais gosto é coco e porque este se relaciona com certo amigo de meu pai, ele aqui também virá. E o meu prazer não será só de paladar, mas também aquele que provém do amar!” (:176) Encontramos nesta peça o conflito das relações entre marido e esposa e a posição da esposa e filhas contra o marido/pai. A esposa “Mariposa”, a “pregoeira gaiata da presente época”, como indica uma rubrica (p.170), aparece como uma grande “vilã”, uma louca que pretende viver “segundo as relações”. É ela quem fomenta a transfiguração dos três personagens de Qorpo-Santo: quando esta entra em cena aparece a figura de Malherbe que, pacato com todos só altera seu comportamento diante dela, e só com ela explode em ira, por esta ser a
  • 7. personificação do mal. É impossível a santificação de Malherbe diante de sua esposa. Mariposa trás outro elemento à cena, e as relações sexuais enquanto naturais, que, como pôde ser notado nas citações anteriores, seguem de forma distinta para o homem e para a mulher: para esta está relacionado à alimentação e prazeres do paladar, para aquele, às vestimentas. Nota-se aqui o papel da esposa como prestadora de serviços, e do marido como mantenedor. No terceiro ato, inicia-se a relação ordem/desordem, quando “Inesperto” diz arrumar a bagunça, espalhando tudo o que está organizado. Esses “lugares que eu arrumo” (p. 172) que menciona Inesperto é a ordem estabelecida por Malherbe. Ironicamente, e isso fica claro para o público, há uma inversão de conceitos, uma vez que a ordem visível é considerada desordem. Isto posto, é admissível que o contrário da ordem estabelecida por Qorpo-Santo, sua cosmovisão, é a desordem do mundo com o qual ele se relaciona: as “relações naturais”. Quando essa desordem se revela (o criado tenta virar amo, a mulher tenta “mandar” na casa, e todos os que são “da espécie humana” (p. 175) querem flagelá-lo), o caos vem à tona: enforcam- no no centro da sala, onde “há de ficar pendurado para a eterna glória das mulheres e exemplo final dos homens malcriados” (p. 177). Enforcando-o espera-se que Mariposa finalmente consiga o que todos querem, afinal, está morto o que se importava com os direitos “não sabendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode viver como quiser, e com quem quiser”. Comemorando o enforcamento, “Elas” (ao que a rubrica sugere, subentende-se mãe e filhas) comemoram: “Há de ficar pendurado!(...) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, Maninha, já enforcamos este, havemos também de enforcar também certo grilo; e andar com as relações à vontade dos corações!” (p.177). Considerando as intenções de Mariposa e as situações que antecederam essa fala no texto, ela pode sugerir tanto o homossexualismo, quanto a pedofilia e o incesto. É notável o que se sucede a esse evento. O corpo de Malherbe pendurado ao centro é um boneco de papelão. Não deixa de ser uma imagem, a imagem de um “santo”, um motivo para reflexão, diante do qual as mulheres tomam consciência de seus atos libertinos, envergonham-se e decidem abandonar as práticas que até então julgavam certas. Inesperto identifica-se com o patrão enforcado e, temendo o mesmo fim, passa a arrancar os membros de seu “qorpo” e a atirá-los nas mulheres. Neste momento, as mulheres constrangem-se e arrependem-se cantando: “- Não nos meteremos Mais com relações Maridos procuraremos Pois temos corações A nenhum mais tentaremos Destruir seus sentimentos! A um só nós serviremos Para não termos duros tormentos! (...) Para comermos; Para bebermos; Não precisamos De certos dramas! De andar, Sempre a matar, Os corações Com as relações! (...) (p. 178-179)
  • 8. 2) O mez da grippe – o espetáculo. Cartaz do espetáculo “O Mez da Grippe” A sinopse: “O Mez da Grippe, espetáculo inspirado na novela homônima de Valêncio Xavier trabalha com os lugares, ou momentos excepcionais, em que a normalidade, a regra, cede lugar às pulsões social e culturalmente reprimidas. O Mez da Grippe ( ou outra calamidade natural ou social qualquer, como uma guerra ou uma inundação) é um desses momentos. A violação da mulher loira, quase que de maneira subliminar inserida na novela, foi o elemento elucidador da busca de outros materiais literários para a composição da peça, através da compreensão desse procedimento artístico de Valêncio Xavier, surgiu a escolha dos textos “Poema da Bem Aventurada Virgem Maria”, de Anchieta e “As Relações Naturais”, de Qorpo-Santo, como componentes do espetáculo.” O espectador que leu a sinopse antes de assistir a peça encontrou no palco um desmembramento do que foi anunciado no texto. Enquanto no livro as falas dos dois personagens – Dona Lúcia e o homem – aparecem desde as primeiras páginas, e são apresentadas ao leitor ao mesmo tempo em que são apresentadas as noticias dos jornais, sobre as mortes ocasionadas pela gripe em Curitiba no mês de outubro de 1918, na peça, os trechos da já citada novela de Xavier, foram inseridos de maneira linear, sem a exposição dos recortes de jornais, mas com a descrição em primeira pessoa do estupro da moribunda mesclados à narrativa de Dona Lúcia, que no palco recebeu várias vozes, retratando as mulheres curitibanas do início do século XX. O espaço do “Novelas Curitibanas” é um casarão do início do século XX, não possui palco italiano e tem espaço para até setenta cadeiras, o que permitiu que o cenário da peça fosse disposto de forma que o público também estivesse no palco: os assentos foram dispostos pela sala do teatro formando corredores, pelos quais os atores passavam, alheios à presença do público. O homem que caminha sozinho “na cidade sem gente” pára a distancia de alguns metros, encostado à parede de uma extremidade da sala, frente a uma porta aberta, pela qual entra a iluminação, e ali, passa a narrar o estupro da moça loira que agoniza em sua cama. O
  • 9. texto foi dado de maneira estática: o ator que descrevia a cena da mulher na cama e olhava pela porta aberta a vários metros de distância – mediada inclusive pelo público – permanecia inerte à sua própria fala. Apenas seus olhos expressavam o prazer contido em suas palavras. A disposição do público no palco proporcionou mais do que a visão do espetáculo de perto: fez com que o público se tornasse parte do cenário. Por mais que estivesse no palco, o público não tinha qualquer interação com os atores, e, as súbitas mudanças de ambientes, promovidas pela mudança que as falas produziam no local da ação faziam com que o público se sentisse ora paredes da casa, através da qual não se via o que acontece em outro cômodo, ora muretas das ruas, às quais não são dadas saber para onde a rua vai e o que ela abriga, escondendo os transeuntes e permitindo que as falas dos atores circulem como o próprio vírus da gripe. A voz de Dona Lúcia é distribuída entre várias atrizes. Elas entrecortam a fala do “homem”, ao mesmo tempo quebrando sua condição estática e o mantendo nela: enquanto a fala aberta sobre acontecimento passados, mesmo os que em outros tempos os jornais queriam calar, agora – seja 2008 ou 1976 – ganha espaço, dinâmica e velocidade, enquanto o ato incomum e repreensível da invasão de domicílio seguida de estupro permanece no espaço devido: estático e escondido. Porém, a calamidade que se instaura, fazendo com que as pessoas permaneçam nas casas, sem prestar socorro ou assistência, ou nem mesmo sabendo o que se passa do lado de fora de suas paredes, constituem os “lugares, ou momentos excepcionais, em que a normalidade, a regra, cede lugar às pulsões sociais e culturalmente reprimidas”, tornando possível o estupro semi-consentido. O uso da fala destes dois personagens, levou o grupo à “busca de outros materiais literários”, que, a meu ver, se deu antes por aproximação temática que pela compreensão do “procedimento artístico”3 de Valêncio Xavier, na maneira como foi abordado – em relação à repressão do impulso sexual que foi possível ser extravasado sem “culpa” ante a doença. Estes outros “materiais literários”, que foram o “Poema da Bem-Aventurada Virgem Maria”, sobre o qual não me detive, e “As relações naturais” de Qorpo-Santo, compuseram de forma integral a peça “O mez da grippe”. Cabe destacar que o “Poema da Bem Aventurada Virgem Maria” foi interpretado com movimentos intensos, acelerados e descontínuos, enquanto o texto de Qorpo- Santo, mesmo que com muita movimentação e ocupação do espaço cênico pelos atores, teve as rubricas inseridas como parte das falas, dadas porém, na maioria das vezes, de forma estática, proporcionando um aumento de recursos para a proposta da “narrativa polifônica” de Valêncio Xavier. Neste sentido, as rubricas não participaram da peça como uma indicação da ação no palco, e sim como um novo personagem, uma nova voz que indicava a ação que os atores deveriam ter no palco, e nem por isso a tinham. Aqui, mais uma vez, o público que ocupava o palco formava parte do cenário, invadindo a intimidade da casa com sua proximidade e ao mesmo tempo sendo as paredes e corredores desta casa, formando também partes de seus cômodos. As portas e janelas laterais do “Novelas Curitibanas” foram utilizadas de forma a delimitar o espaço de “fora” da casa, fazendo com que o público se sentisse ainda mais participante da cena, e ainda mais preso a ela. As “pulsões social e culturalmente reprimidas” que aproximaram o texto de Valêncio Xavier ao texto de Qorpo-Santo, certamente foram aqui entendidas como as pulsões sexuais contidas nas falas do estranho personagem da “novela” de Xavier e, de certa forma, em todos os personagens de Qorpo-Santo. O personagem sem nome do livro de Xavier, que quase poderia passar despercebido em meio ao turbilhão de notícias bizarras, chocantes ou patéticas anunciadas pelos jornais, salvo a intensidade com que narra o episódio de um estupro semi- consentido (uma vez que o gemido de febre se confunde com o gemido de gozo) caracterizado 3 Ao que parece, uma leitura superficial de “O Mez da Grippe” já induziria o leitor a pensar na “violação da mulher loira” não de forma subliminar, mas explícita, uma vez que Francisco Bettega Netto traz seu parecer sobre a “chave detonadora da obra” no prefácio do livro da edição de 1981, onde destaca o trecho do recorte de jornal constante na página 27: “A influenza espanhola e o amor seria uma tese psychologica magnífica para ser devolvida por um Paul Bourget de fancaria que se atormentasse num eterno sonho de duquezas e condessas, pallidas e loiras, muito loiras e frias...”
  • 10. por uma quase necrofilia, se for verdadeira a versão de Dona Lucia de que a mulher “muito branca” morreu na gripe. Este personagem que é associado à imagem do homem de bigodes que sempre tem sua ilustração próxima às suas falas também ecoa a voz de Marquês de Sade, citação de epígrafe do livro: “Vê-se um sepulcro cheio de cadáveres, sobre os quais se podem observar todos os diferentes estados da dissolução, desde o instante da morte até a destruição total do indivíduo. Esta macabra execução é de cera, colorida com tanta naturalidade que a natureza não poderia ser, nem mais expressiva, nem mais verdadeira.” (Marquês de Sade, apud Xavier, 1998.) Já as personagens qorpo-santenses são todas “reprimidas” de alguma forma em algum momento da peça: o personagem Impertinente que, apesar de viver em um ambiente onde prevalece o desejo e as “relações naturais”, é reprimido por se pretender “santo”; Inesperto e Mariposa são constantemente repreendidos por Malherbe por suas atitudes de “desordem”, o primeiro em relação à ordem material da casa, a segunda pela libertinagem a que se expunha e doutrinava as filhas; por fim, Malherbe que tenta a todo custo “frear” os impulsos sexuais de sua esposa e filhas, temendo as conseqüências afirma: “Se continuo, estas mulheres são capazes de pendurar-me naquela travessa e aqui me deixarem exposto, por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e julgar.” (Qorpo-Santo, 2001 :175). E de fato, é este o rumo que a peça toma: ao ser enforcado e ficar exposto no centro da cena, Malherbe torna-se um símbolo do sagrado, objeto de reflexão para as atitudes libertinas da esposa e filhas, levando-as ao arrependimento e contrição: “- Não nos meteremos / Mais com relações / Maridos procuremos, / Pois temos corações!” (Idem : 178). Cabe destacar que com “As relações naturais”, Qorpo-Santo mais que levar à cena personagens fictícios que discutem sobre sexualidade e repressão, tem sua própria imagem exposta, no tocante à sua visão sobre a sexualidade contraposta aos valores da sociedade gaúcha do século XIX. Isto foi de certa forma destacado pelo grupo A Pausa ao transformar as rubricas em um personagem, que apontava para o posicionamento de Qorpo-Santo diante desta visão de mundo, e a maneira como os personagens criados e a problemática levantada em 1866 ainda encontra lugar de escândalo em 2008 e qualquer outro tempo, uma vez que é necessário que a normalidade dê espaço à calamidade, para que se torne possível a concretização dos desejos e “pulsões cultural e socialmente reprimidas”. Considerações Finais A gripe espanhola de 1918 foi o fato histórico que moveu as narrativas contidas no espetáculo “O mez da grippe”, sendo apresentadas ao público de forma descolada de seu contexto, dando ênfase às “pulsões social e culturalmente reprimidas”. A descrição dos fatos se deu não pelos recortes de jornais, ou com base em qualquer outro documento escrito, e sim através da voz de pessoas que os presenciaram: Dona Lúcia, que relembrou os fatos em entrevista dada em 1976 e “Um homem”, que, não se sabe ao certo ser um personagem real ou ficcional, relatando a explosão de seus desejos sexuais viabilizados graças a ausência de “gentes” na cidade. Desta maneira, o grupo A Pausa trouxe à cena a voz de Qorpo-Santo, um personagem histórico, que teve seus desejos reprimidos tanto pela sociedade em que viveu quanto por sua auto-repressão, proveniente de sua religiosidade, que transforma o desejo pela liberdade sexual no anseio por um corpo santo. A ênfase dada na oralidade proporcionou a criação destes novos personagens: as mulheres que ganharam a voz da multivocal Dona Lúcia e as rubricas do texto de Qorpo-Santo, transformadas em personagem. Esta polifonia trouxe à cena momentos da história de Curitiba de 1918 e Porto Alegre de 1866 de modo que o espectador voltasse sua atenção para a história oral, posta em evidência. O espetáculo “O Mez da Grippe” trouxe ao palco uma série de narrativas, abrangendo desde uma esfera ampla – uma calamidade que atingiu toda a população, a devoção universal a uma santa e a opinião geral de uma população em relação à repressão à sexualidade – a um contexto restrito, dando atenção às vozes de pessoas comuns – a narrativa de
  • 11. Dona Lúcia contraposta à opinião dos jornais, a descrição de um homem sem nome a respeito de sua atitude diante da cidade “sem gente”, a devoção individual de Padre José de Anchieta à Virgem Maria e o desejo que distanciava um corpo que se quis santo da possibilidade de sua santificação. Referências O Mez da Grippe. Espetáculo em cartaz de 24 de julho a 31 de agosto de 2008 no Teatro Novelas Curitibanas, Curitiba-PR. Direção de Moacir Chaves. QORPO-SANTO. Teatro Completo. São Paulo: Iluminuras, 2001. XAVIER, Valêncio. O mez da grippe e outros livros. São Paulo: Companhias das Letras, 1998.