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SPORTING 3856-13
Renovou agora o seu contrato e já disse que queria
acabar a carreira no Sporting CP. O que a faz ficar
aqui?
É a minha casa. Sou do Sporting CP, nascida e cria-
da. Sou Sportinguista, não podia ser de outra manei-
ra e nem podia pensar em vestir outra camisola em
Portugal.
Apesar de ser Sportinguista, calculo que não ficasse
se não a tratassem bem. Sente-se acarinhada?
Sim, sem dúvida. Sinto-me bastante acarinhada, tan-
to no balneário como pelos adeptos. Mesmo que não
sentisse esse carinho, jamais seria capaz de vestir outra
camisola que não a do Sporting CP.
Já referiu que é a voz das restantes jogadoras, princi-
palmente das mais jovens. O que pesa mais: respon-
sabilidade ou orgulho?
Pesam os dois. Estou super orgulhosa de ser a voz de
tanto talento que temos no balneário, seja das mais
novas ou das mais velhas. Sou a voz das 23, mas não
sou mais do que nenhuma delas. Todas temos o nosso
peso e somos importantes para o grupo.
Ver tantas jovens da formação a treinar e a jogar con-
sigo, e cada vez mais ano após ano, deixa-a a pensar
em quê?
Faz-me pensar que temos uma formação com bastante
qualidade. A aposta do Sporting CP tem sido imensa
nessa área e o fruto disso é que temos muitas meninas
“NÃO É O SPORTING CP QUE TEM SORTE EM TER UMA ANA BORGES.
EU É QUE TENHO SORTE EM SER DO SPORTING CP”
ENTREVISTA ANA BORGES
Aos 31 anos, Ana Borges renovou o contrato que a liga ao Sporting Clube de Portugal desde 2016/2017. Capitã da equipa principal feminina
de futebol do emblema de Alvalade, a internacional portuguesa assinou um vínculo sem termo definido com o objectivo de pendurar as
botas de Leão ao peito: “Tenho a certeza de que me vou retirar aqui”, garantiu. Em entrevista ao Jornal Sporting, Ana Borges falou do amor
ao Clube, do quão bem se sente de verde e branco, da aposta na formação e da evolução do futebol feminino, entre outros temas.
Texto: Luís Santos Castelo Fotografia: Isabel Silva
14- SPORTING 3856
[na equipa principal] que vieram da formação. Quem
vê os jogos sabe a qualidade que elas têm. Com a ajuda
do Sporting CP, elas foram aperfeiçoando isso mesmo.
O facto de o Sporting CP lhes ter aberto as portas tam-
bém as vai ajudar. Daqui a uns anos, muitas das que
estão aqui vão ser o nome de Portugal. Isso deixa-me
super orgulhosa.
“Quando eu comecei, não tinha metade das
condições que elas hoje têm”
Gostava de ter tido as condições que elas hoje têm
quando tinha a idade delas?
Claro que sim. Quando eu comecei, não tinha metade
das condições que elas hoje têm, mas as pessoas que se
estavam a retirar nessa altura não tinham tido nada do
que o que eu tive. Hoje, há muitas condições. Já se pode
viver em Portugal do futebol feminino e isso diz muito
da evolução. Se trocava [a minha experiência pela das
mais novas de hoje]? Acho que não. Voltaria a nascer
no mesmo ano e a fazer tudo igual porque a dificuldade
que senti também me ajudou a crescer enquanto joga-
dora e pessoa.
Fez com que enfrentasse os desafios de hoje com ou-
tros olhos?
Sem dúvida. Se calhar, cresci mais rápido do que era
normal. Fui para fora com 17 anos e, hoje, as nossas
meninas não têm de o fazer. Elas têm uma base onde
agarrar e eu não tinha. É uma mais-valia para elas, mas
eu não trocaria.
É natural de Gouveia, no distrito da Guarda. Como
era a sua vida na infância e adolescência?
Era ir para a escola, treinar três vezes por semana ou
às vezes nem isso, jogar com os meus amigos e irmãos.
Entretanto, via a minha mãe a chamar-me no fundo da
rua e eu ia a correr para casa com medo de que ela me
desse um berro à frente de toda a gente. Até aos 17 anos,
foi isto. Nem havia tantas coisas para fazer, era muito
mais pequeno do que é aqui, em Lisboa.
“Nunca pensei em mudar de clube. Sempre
fui do Sporting CP”
Lembra-se de apoiar o Sporting CP nessa altura?
Quem era a sua maior influência de Sporting CP?
Não tinha um jogador específico que me chamasse a
atenção. Foi todo o Clube, os adeptos. Temos uma mas-
sa adepta da qual nos podemos orgulhar. Estivemos
muitos anos onde não conseguimos conquistar [títu-
los] e eles sempre estiveram lá. Nunca pensei em mudar
de clube. Sempre fui do Sporting CP e nunca foi por
um jogador em concreto. (…) Via sempre os jogos pe-
la televisão e quando não corria bem trancava os meus
irmãos fora de casa e atirava-lhes tangerinas por eles se
estarem a rir.
Começou a jogar na Fundação Laura Santos. Quando
percebeu que tinha qualidade para, se calhar, um dia
viver do futebol como acontece hoje?
Talvez quando fui chamada à selecção nacional pela
primeira vez. Não achava que estava acima de qualquer
outra atleta, mas sim que tinha tido a sorte de ter esta-
do dentro do lote de jogadoras que foram ao primeiro
estágio. A quantidade de atletas foi reduzindo ao longo
do estágio e eu fui sempre ficando, pelo que alguma coi-
sa teria de ter de bom. Quando fui para fora, comecei
a pensar que queria fazer vida do futebol. Antes, não
pensava nisso. Gostava muito de jogar futebol, mas não
pensava em ser jogadora profissional.
Quase 15 anos depois dessa decisão de sair de Portu-
gal, calculo que considere que tenha sido uma deci-
são acertada. Como olha para essa escolha?
Quando aceitei ir para fora, nem pensei. Aceitei por-
que era uma oportunidade que não podia desperdiçar.
Pensei que podia acabar os estudos em qualquer altura,
mas o futebol tinha um prazo. Atirei-me de cabeça e
aceitei. Hoje em dia, teria ponderado mais, mas não me
arrependo.
Já jogou em Espanha, nos EUA e em Inglaterra para
além de Portugal. Onde gostou mais de jogar?
Onde mais gostei de jogar foi no Sporting CP porque
sou do Sporting CP, mas, a nível de competitividade,
Inglaterra está num patamar elevado. Agora, onde es-
tou é onde eu quero.
Há muito caminho para andar no futebol feminino,
ainda que os últimos anos tenham visto uma grande
evolução com a entrada de vários clubes poderosos
na Liga. Qual devia ser a prioridade máxima das en-
tidades responsáveis neste momento?
A entrada de equipas como o Sporting CP fez com que
o futebol feminino em Portugal fosse visto de outra ma-
neira. No entanto, não podemos esquecer que foram as
ditas equipas ‘pequenas’ que seguraram o futebol femi-
nino. Devia haver mais apoio para estas equipas. A en-
trada de mais equipas que temos no futebol masculino
também ia ajudar.
“Sou do Sporting CP, nascida e criada. (...) Nem podia pensar em vestir outra camisola em Portugal”, garantiu a jogadora
A internacional portuguesa soma um golo em 2021/2022, diante do Clube Albergaria
SPORTING 3856-15
“Ainda há um bocadinho de preconceito,
mas não tem nada a ver com o que era há
15 anos”
Uma mulher a jogar futebol ainda sofre de precon-
ceito em 2022?
Ainda há um bocadinho de preconceito, ainda se no-
ta, mas não tem nada a ver com o que era há 15 anos.
Hoje, o futebol feminino é visto de outra maneira. Já
há mais informação, jogos a passar na televisão. Há 15
anos, diziam que o futebol era para rapazes e hoje já nos
aplaudem.
Porque é que não vemos mais mulheres em cargos
de poder no futebol, como treinadoras, dirigentes ou
árbitras?
Também tem a ver com o facto de não haver muitas
pessoas a querer esses cargos, mas acho que estamos a
caminhar no bom sentido. Há muitas treinadoras na
primeira divisão e seleccionadoras na Federação. Esta-
mos a melhorar bastante.
Acha que, um dia, vai ser possível ver várias treinado-
ras e árbitras no primeiro escalão masculino?
Penso que sim, até porque tanto a árbitra como a trei-
nadora têm muita qualidade e têm a preocupação de
querer ser melhores. Se vemos isso em outras ligas, por-
que não apostar? Já vemos árbitras na segunda divisão
e, em breve, pode acontecer na primeira. E a treinadora,
se tem competência para treinar mulheres, tem compe-
tência para treinar homens.
Na renovação, disse que a conquista da Supertaça
desta temporada foi o troféu mais saboroso ao servi-
ço do Sporting CP porque foi o primeiro que levan-
tou enquanto capitã. Como recorda esse momento?
Foi lindo. Não só por ter levantado o troféu, mas por te-
rem saído tantas jogadoras e pouca gente acreditar em
nós. Demos uma grande resposta e soube muito melhor.
Foiumaconquistadeumtítulo,sim,mastambémdeuma
equipa e de um público. Teve um sabor muito especial.
“Este é o projecto Sporting CP,
trabalhar a formação”
É um ano de transição e de mudança de paradigma,
mas a equipa já demonstrou vários sinais de evolu-
ção. Que balanço faz de 2021/2022?
Temos pouco tempo enquanto equipa, mas já fizemos
muito enquanto colectivo. Isso diz muito do Sporting CP.
Não interessa que tenham saído muitas jogadoras se as
que chegaram trouxeram ainda mais qualidade. Este é o
projecto Sporting CP, trabalhar a formação. Esta mistura
entre formação e experiência tem-nos levado a conquistar
muitos pontos. A recente derrota com o FC Famalicão foi
uma aprendizagem para todos. Se calhar, toda a gente
achava que íamos ser goleadas. Estavam muitas meninas
da formação e elas deram uma resposta que nos vai dar
muita força para o resto da época. Não importa se têm 15
anos, jogaram como se tivessem 28 ou 30.
Essa aposta na formação tem sido vista em muitas
equipas do Sporting CP, tanto no futebol como nas
modalidades. É importante que todo o Clube tenha
esse ADN incutido?
Sim. Esta mistura [de juventude e experiência] tem
dado os seus frutos. Fomos Campeões Nacionais [em
masculinos] no ano em que mais se apostou na for-
mação. Nós ganhámos a Supertaça no ano em que ti-
vemos mais formação. Temos muita qualidade e o im-
portante é não ter medo de apostar nestas meninas.
“É o adepto Sporting CP: seja num momento
bom ou menos bom, vão estar lá sempre”
Como tem sentido o apoio dos adeptos desde que
chegou ao Sporting CP em 2016/2017?
São incansáveis. Tivemos dois anos em que conquistá-
mos tudo e, depois, três anos complicados, mas nunca
nos abandonaram. Mesmo com a pandemia, sem poder
ter adeptos nos estádios, apoiaram-nos pelas redes so-
ciais ou na rua. É o adepto Sporting CP: seja num mo-
mento bom ou menos bom, vão estar lá sempre.
Ainda se lembra do primeiro jogo pelo Sporting CP?
[08/01/2017, Sporting CP 1-0 Boavista FC]
Lembro, foi contra o Boavista FC. Ganhámos 1-0, golo
de penálti. Estava nervosa e é muito raro ficar nervo-
sa antes de um jogo. Foi a primeira vez que defendi o
Sporting CP em campo. Foi um jogo muito complicado,
mas conquistar os três pontos em casa foi o melhor iní-
cio que podia pedir.
Qual é o sentimento de marcar um golo pelo Spor-
ting CP?
Seja marcar, assistir, estar no jogo ou estar no banco de
suplentes é uma vitória. Não me importa muito marcar
um golo, mas sim ganhar o jogo. O mais importante
são os três pontos para o Sporting CP. Claro que marcar
pelo Sporting CP tem um sabor especial, é o meu Clube
do coração, mas nem sei festejar um golo.
Calculo que jogar e ganhar títulos em Alvalade tenha
sido muito especial para uma Sportinguista...
Sim. Quando entramos nesta casa, queremos conquis-
tar o máximo de títulos possível. Conquistar em Alva-
lade… Não se explica. É daquelas coisas que só se sen-
tem naquele momento, ainda por cima com os nossos
adeptos. O jogo com o SC Braga, em 2016/2017, com
tanta gente, deu-nos muita força. Hoje, sempre que vejo
os vídeos, arrepio-me. Não consigo explicar aquilo que
nós sentimos nesses momentos.
Por tudo isso, continuar a sentir isso é um desejo e,
acredito, um privilégio?
Sem dúvida. Ainda há pouco tempo disse que não é o
Sporting CP que tem sorte em ter uma Ana Borges. Eu é
que tenho sorte em ser do Sporting CP. Dá-me um gozo
e um privilégio enorme jogar pelo Sporting CP, ganhar
o máximo de títulos pelo Sporting CP. Tenho a certeza
de que me vou retirar aqui, no Sporting CP.
Para Ana Borges, a conquista da última Supertaça foi um momento inesquecível
Ana Borges em acção na presente temporada

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  • 1. SPORTING 3856-13 Renovou agora o seu contrato e já disse que queria acabar a carreira no Sporting CP. O que a faz ficar aqui? É a minha casa. Sou do Sporting CP, nascida e cria- da. Sou Sportinguista, não podia ser de outra manei- ra e nem podia pensar em vestir outra camisola em Portugal. Apesar de ser Sportinguista, calculo que não ficasse se não a tratassem bem. Sente-se acarinhada? Sim, sem dúvida. Sinto-me bastante acarinhada, tan- to no balneário como pelos adeptos. Mesmo que não sentisse esse carinho, jamais seria capaz de vestir outra camisola que não a do Sporting CP. Já referiu que é a voz das restantes jogadoras, princi- palmente das mais jovens. O que pesa mais: respon- sabilidade ou orgulho? Pesam os dois. Estou super orgulhosa de ser a voz de tanto talento que temos no balneário, seja das mais novas ou das mais velhas. Sou a voz das 23, mas não sou mais do que nenhuma delas. Todas temos o nosso peso e somos importantes para o grupo. Ver tantas jovens da formação a treinar e a jogar con- sigo, e cada vez mais ano após ano, deixa-a a pensar em quê? Faz-me pensar que temos uma formação com bastante qualidade. A aposta do Sporting CP tem sido imensa nessa área e o fruto disso é que temos muitas meninas “NÃO É O SPORTING CP QUE TEM SORTE EM TER UMA ANA BORGES. EU É QUE TENHO SORTE EM SER DO SPORTING CP” ENTREVISTA ANA BORGES Aos 31 anos, Ana Borges renovou o contrato que a liga ao Sporting Clube de Portugal desde 2016/2017. Capitã da equipa principal feminina de futebol do emblema de Alvalade, a internacional portuguesa assinou um vínculo sem termo definido com o objectivo de pendurar as botas de Leão ao peito: “Tenho a certeza de que me vou retirar aqui”, garantiu. Em entrevista ao Jornal Sporting, Ana Borges falou do amor ao Clube, do quão bem se sente de verde e branco, da aposta na formação e da evolução do futebol feminino, entre outros temas. Texto: Luís Santos Castelo Fotografia: Isabel Silva
  • 2. 14- SPORTING 3856 [na equipa principal] que vieram da formação. Quem vê os jogos sabe a qualidade que elas têm. Com a ajuda do Sporting CP, elas foram aperfeiçoando isso mesmo. O facto de o Sporting CP lhes ter aberto as portas tam- bém as vai ajudar. Daqui a uns anos, muitas das que estão aqui vão ser o nome de Portugal. Isso deixa-me super orgulhosa. “Quando eu comecei, não tinha metade das condições que elas hoje têm” Gostava de ter tido as condições que elas hoje têm quando tinha a idade delas? Claro que sim. Quando eu comecei, não tinha metade das condições que elas hoje têm, mas as pessoas que se estavam a retirar nessa altura não tinham tido nada do que o que eu tive. Hoje, há muitas condições. Já se pode viver em Portugal do futebol feminino e isso diz muito da evolução. Se trocava [a minha experiência pela das mais novas de hoje]? Acho que não. Voltaria a nascer no mesmo ano e a fazer tudo igual porque a dificuldade que senti também me ajudou a crescer enquanto joga- dora e pessoa. Fez com que enfrentasse os desafios de hoje com ou- tros olhos? Sem dúvida. Se calhar, cresci mais rápido do que era normal. Fui para fora com 17 anos e, hoje, as nossas meninas não têm de o fazer. Elas têm uma base onde agarrar e eu não tinha. É uma mais-valia para elas, mas eu não trocaria. É natural de Gouveia, no distrito da Guarda. Como era a sua vida na infância e adolescência? Era ir para a escola, treinar três vezes por semana ou às vezes nem isso, jogar com os meus amigos e irmãos. Entretanto, via a minha mãe a chamar-me no fundo da rua e eu ia a correr para casa com medo de que ela me desse um berro à frente de toda a gente. Até aos 17 anos, foi isto. Nem havia tantas coisas para fazer, era muito mais pequeno do que é aqui, em Lisboa. “Nunca pensei em mudar de clube. Sempre fui do Sporting CP” Lembra-se de apoiar o Sporting CP nessa altura? Quem era a sua maior influência de Sporting CP? Não tinha um jogador específico que me chamasse a atenção. Foi todo o Clube, os adeptos. Temos uma mas- sa adepta da qual nos podemos orgulhar. Estivemos muitos anos onde não conseguimos conquistar [títu- los] e eles sempre estiveram lá. Nunca pensei em mudar de clube. Sempre fui do Sporting CP e nunca foi por um jogador em concreto. (…) Via sempre os jogos pe- la televisão e quando não corria bem trancava os meus irmãos fora de casa e atirava-lhes tangerinas por eles se estarem a rir. Começou a jogar na Fundação Laura Santos. Quando percebeu que tinha qualidade para, se calhar, um dia viver do futebol como acontece hoje? Talvez quando fui chamada à selecção nacional pela primeira vez. Não achava que estava acima de qualquer outra atleta, mas sim que tinha tido a sorte de ter esta- do dentro do lote de jogadoras que foram ao primeiro estágio. A quantidade de atletas foi reduzindo ao longo do estágio e eu fui sempre ficando, pelo que alguma coi- sa teria de ter de bom. Quando fui para fora, comecei a pensar que queria fazer vida do futebol. Antes, não pensava nisso. Gostava muito de jogar futebol, mas não pensava em ser jogadora profissional. Quase 15 anos depois dessa decisão de sair de Portu- gal, calculo que considere que tenha sido uma deci- são acertada. Como olha para essa escolha? Quando aceitei ir para fora, nem pensei. Aceitei por- que era uma oportunidade que não podia desperdiçar. Pensei que podia acabar os estudos em qualquer altura, mas o futebol tinha um prazo. Atirei-me de cabeça e aceitei. Hoje em dia, teria ponderado mais, mas não me arrependo. Já jogou em Espanha, nos EUA e em Inglaterra para além de Portugal. Onde gostou mais de jogar? Onde mais gostei de jogar foi no Sporting CP porque sou do Sporting CP, mas, a nível de competitividade, Inglaterra está num patamar elevado. Agora, onde es- tou é onde eu quero. Há muito caminho para andar no futebol feminino, ainda que os últimos anos tenham visto uma grande evolução com a entrada de vários clubes poderosos na Liga. Qual devia ser a prioridade máxima das en- tidades responsáveis neste momento? A entrada de equipas como o Sporting CP fez com que o futebol feminino em Portugal fosse visto de outra ma- neira. No entanto, não podemos esquecer que foram as ditas equipas ‘pequenas’ que seguraram o futebol femi- nino. Devia haver mais apoio para estas equipas. A en- trada de mais equipas que temos no futebol masculino também ia ajudar. “Sou do Sporting CP, nascida e criada. (...) Nem podia pensar em vestir outra camisola em Portugal”, garantiu a jogadora A internacional portuguesa soma um golo em 2021/2022, diante do Clube Albergaria
  • 3. SPORTING 3856-15 “Ainda há um bocadinho de preconceito, mas não tem nada a ver com o que era há 15 anos” Uma mulher a jogar futebol ainda sofre de precon- ceito em 2022? Ainda há um bocadinho de preconceito, ainda se no- ta, mas não tem nada a ver com o que era há 15 anos. Hoje, o futebol feminino é visto de outra maneira. Já há mais informação, jogos a passar na televisão. Há 15 anos, diziam que o futebol era para rapazes e hoje já nos aplaudem. Porque é que não vemos mais mulheres em cargos de poder no futebol, como treinadoras, dirigentes ou árbitras? Também tem a ver com o facto de não haver muitas pessoas a querer esses cargos, mas acho que estamos a caminhar no bom sentido. Há muitas treinadoras na primeira divisão e seleccionadoras na Federação. Esta- mos a melhorar bastante. Acha que, um dia, vai ser possível ver várias treinado- ras e árbitras no primeiro escalão masculino? Penso que sim, até porque tanto a árbitra como a trei- nadora têm muita qualidade e têm a preocupação de querer ser melhores. Se vemos isso em outras ligas, por- que não apostar? Já vemos árbitras na segunda divisão e, em breve, pode acontecer na primeira. E a treinadora, se tem competência para treinar mulheres, tem compe- tência para treinar homens. Na renovação, disse que a conquista da Supertaça desta temporada foi o troféu mais saboroso ao servi- ço do Sporting CP porque foi o primeiro que levan- tou enquanto capitã. Como recorda esse momento? Foi lindo. Não só por ter levantado o troféu, mas por te- rem saído tantas jogadoras e pouca gente acreditar em nós. Demos uma grande resposta e soube muito melhor. Foiumaconquistadeumtítulo,sim,mastambémdeuma equipa e de um público. Teve um sabor muito especial. “Este é o projecto Sporting CP, trabalhar a formação” É um ano de transição e de mudança de paradigma, mas a equipa já demonstrou vários sinais de evolu- ção. Que balanço faz de 2021/2022? Temos pouco tempo enquanto equipa, mas já fizemos muito enquanto colectivo. Isso diz muito do Sporting CP. Não interessa que tenham saído muitas jogadoras se as que chegaram trouxeram ainda mais qualidade. Este é o projecto Sporting CP, trabalhar a formação. Esta mistura entre formação e experiência tem-nos levado a conquistar muitos pontos. A recente derrota com o FC Famalicão foi uma aprendizagem para todos. Se calhar, toda a gente achava que íamos ser goleadas. Estavam muitas meninas da formação e elas deram uma resposta que nos vai dar muita força para o resto da época. Não importa se têm 15 anos, jogaram como se tivessem 28 ou 30. Essa aposta na formação tem sido vista em muitas equipas do Sporting CP, tanto no futebol como nas modalidades. É importante que todo o Clube tenha esse ADN incutido? Sim. Esta mistura [de juventude e experiência] tem dado os seus frutos. Fomos Campeões Nacionais [em masculinos] no ano em que mais se apostou na for- mação. Nós ganhámos a Supertaça no ano em que ti- vemos mais formação. Temos muita qualidade e o im- portante é não ter medo de apostar nestas meninas. “É o adepto Sporting CP: seja num momento bom ou menos bom, vão estar lá sempre” Como tem sentido o apoio dos adeptos desde que chegou ao Sporting CP em 2016/2017? São incansáveis. Tivemos dois anos em que conquistá- mos tudo e, depois, três anos complicados, mas nunca nos abandonaram. Mesmo com a pandemia, sem poder ter adeptos nos estádios, apoiaram-nos pelas redes so- ciais ou na rua. É o adepto Sporting CP: seja num mo- mento bom ou menos bom, vão estar lá sempre. Ainda se lembra do primeiro jogo pelo Sporting CP? [08/01/2017, Sporting CP 1-0 Boavista FC] Lembro, foi contra o Boavista FC. Ganhámos 1-0, golo de penálti. Estava nervosa e é muito raro ficar nervo- sa antes de um jogo. Foi a primeira vez que defendi o Sporting CP em campo. Foi um jogo muito complicado, mas conquistar os três pontos em casa foi o melhor iní- cio que podia pedir. Qual é o sentimento de marcar um golo pelo Spor- ting CP? Seja marcar, assistir, estar no jogo ou estar no banco de suplentes é uma vitória. Não me importa muito marcar um golo, mas sim ganhar o jogo. O mais importante são os três pontos para o Sporting CP. Claro que marcar pelo Sporting CP tem um sabor especial, é o meu Clube do coração, mas nem sei festejar um golo. Calculo que jogar e ganhar títulos em Alvalade tenha sido muito especial para uma Sportinguista... Sim. Quando entramos nesta casa, queremos conquis- tar o máximo de títulos possível. Conquistar em Alva- lade… Não se explica. É daquelas coisas que só se sen- tem naquele momento, ainda por cima com os nossos adeptos. O jogo com o SC Braga, em 2016/2017, com tanta gente, deu-nos muita força. Hoje, sempre que vejo os vídeos, arrepio-me. Não consigo explicar aquilo que nós sentimos nesses momentos. Por tudo isso, continuar a sentir isso é um desejo e, acredito, um privilégio? Sem dúvida. Ainda há pouco tempo disse que não é o Sporting CP que tem sorte em ter uma Ana Borges. Eu é que tenho sorte em ser do Sporting CP. Dá-me um gozo e um privilégio enorme jogar pelo Sporting CP, ganhar o máximo de títulos pelo Sporting CP. Tenho a certeza de que me vou retirar aqui, no Sporting CP. Para Ana Borges, a conquista da última Supertaça foi um momento inesquecível Ana Borges em acção na presente temporada