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Diego Ecker
Ésio Francisco Salvetti
Organizadores
Nelio Vieira de Melo
Marcelo Fabri
Simeão Donizeti Sass
Noeli Dutra Rossatto
Cecília Pires
Passo Fundo
IFIBE
2013
EXISTÊNCIA E LIBERDADE:
DIÁLOGOS FILOSÓFICOS E PEDAGÓGICOS
EM JEAN-PAUL SARTRE
© 2013 Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE
Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE
Mantido pelo Instituto da Sagrada Família
Coleção Temáticas Filosóficas
Editor: Iltomar Siviero
Co-Editora: Nilva Rosin
Diretor Geral: José André da Costa
Diretor Pedagógico: Paulo César Carbonari
Diretor Administrativo: Iltomar Siviero
Vice-Diretor Administrativo: Moacir Filipin
Vice-Diretor Pedagógico: Valdevir Both
Edição: Editora IFIBE
Coordenação Editorial: Diego Ecker e Ésio Francisco Salvetti
Capa e projeto gráfico: Diego Ecker
Diagramação e normatização: Wanduir R. Sausen
Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier
Coleção Temáticas Filosóficas, v. 6
Rua Senador Pinheiro, 350 - Rodrigues
99070-220 - Passo Fundo - RS
Fone (54) 3045-3277
E-mail: editora@ifibe.edu.br
Site: www.ifibe.edu.br/editora
2013
Proibida reprodução total ou parcial nos termos da lei.
Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE
CIP – Catalogação na Publicação
E96 Existência e liberdade: diálogos filosóficos e pedagógicos em
Jean-Paul Sartre / organizadores Diego Ecker, Ésio Francisco
Salvetti; Cecília Pires... [et al.] – Passo Fundo: IFIBE, 2013.
127 p. ; 21 cm. - (Coleção temáticas filosóficas; v.6).
ISBN: 978-85-8259-008-9
Inclui bibliografia
1. Sartre, Jean-Paul, 1905-1980 – Crítica e interpretação. 2.
Educação – Filosofia. I. Ecker, Diego, coord. II. Salvetti, Ésio
Francisco, coord. III. Pires, Cecilia. IV. Título.
CDU: 37.01
Catalogação: Bibliotecária Daniele Rosa Monteiro - CRB 10/2091
SUMÁRIO
Apresentação............................................................................. 7
Educação e engajamento a partir de Sartre........................ 11
Nelio Vieira de Melo
Intencionalidade e moralidade:
o humanismo de J.-P. Sartre.................................................... 45
Marcelo Fabri
O debate entre Sartre e Merleau-Ponty............................... 63
Simeão Donizeti Sass
Sartre místico: existência e liberdade em A náusea............ 83
Noeli Dutra Rossatto
Sartre, um projeto ético de compromisso político...........107
Cecília Pires
Sobre os autores(as)...................................................................125
7
APRESENTAÇÃO
Jean-Paul Sartre (1905-1980), escritor, dramaturgo e filó-
sofo, foi um dos principais expoentes do existencialismo. Sendo
um filósofo de importância para a atualidade. Sartre ilustra sua
filosofia com ações que se estendem ao engajamento político e
social. O reflexo de suas obras e de seu posicionamento mar-
cou significativamente os anos de 1950 a 1960 e, até hoje, ecoa
na Filosofia, na Literatura, na Educação, entre outras áreas.
O existencialismo foi compreendido de distintos modos,
tornando-se praticamente um fenômeno cultural, um modis-
mo, sobretudo no contexto do pós-guerra. Para Sartre, o exis-
tencialismo é uma doutrina filosófica que se desenvolve sobre
a tese de que a existência precede a essência.
A existência humana ganha sentido a partir das ações
realizadas por cada pessoa. Não há uma essência pré-definida
a partir da qual o ser humano corresponda de algum modo;
sua irrupção no mundo é inteiramente gratuita e tudo o que
ele vier a ser o será em virtude do que fizer de si mesmo, de
suas escolhas, das ações que praticar.
A responsabilidade que recai sobre nossas ações decorre
da própria indeterminação originária do humano, pois, tendo
em vista sua plena abertura para as possibilidades, pode ser
8
entendido como um projeto. Ao projetar-se, o ser humano se
lança para o futuro em vista de suas possibilidades de reali-
zação. Assim, como diz Sartre, o ser humano está condenado
à liberdade: condenado porque não se criou a si próprio; e, no
entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é respon-
sável por tudo quanto fizer.
A realização do VI Seminário Temático – Existência e
liberdade: diálogos filosóficos e pedagógicos em Jean-Paul Sartre,
nos dias 17 a 19 de setembro de 2012, no Instituto Superior
de Filosofia Berthier (IFIBE), em Passo Fundo, RS, enfocou o
tema da relação entre liberdade e existência a partir de Sartre,
motivada pelos desafios atuais que emergem no âmbito da Filo-
sofia e da Educação. Esta obra tem a finalidade de registrar
a reflexão produzida a partir deste encontro e propiciar aos
pesquisadores e interessados a continuidade do diálogo.
O tema central do encontro foi debatido a partir de três
eixos temáticos: 1) Existência e liberdade, abordando a dimen-
são fenomenológica do humanismo existencialista sartreano;
2) Moral e política, tratando das implicações entre a liberdade
e o compromisso ético; e 3) Educação e engajamento, proble-
matizando concepções de educação pelo viés crítico do con-
ceito de engajamento. No discorrer da programação do evento
os três eixos temáticos foram abordados em três conferências,
um painel, um cine-fórum – com exibição do documentário
Sartre por ele mesmo – e oito comunicações. O evento reuniu
mais de 80 participantes, dentre eles acadêmicos de graduação
e pós-graduação em filosofia e áreas afins, além de professores/
as e pesquisadores/as do pensamento de Sartre. A coordenação
da organização do evento contou com a parceria do Curso de
Graduação em Filosofia da Universidade de Passo Fundo (Fi-
losofia/UPF) e do Programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade de Passo Fundo (PPGEdu/UPF).
Nesta sexta edição da Coleção Temáticas Filosóficas, da
Editora IFIBE, foram organizados os textos que serviram de
base para a realização das conferências.
9
O primeiro texto é de autoria do professor Nelio Vieira
de Melo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
de Recife, PE. No texto Educação e engajamento a partir de
Sartre, problematiza a educação a partir do referencial exis-
tencialista sartreano mostrando que a educação é um dado
constituinte do sujeito, algo que está para além das manifesta-
ções de reprodução social e de todas as formas instituídas de
controle ideológico que aprisionam os sujeitos em estruturas,
vivências sociais e ordens definidas de conhecimentos tidos
como padrão. Aborda o engajamento na educação e nas or-
ganizações sociais e políticas a partir de três aspectos do agir
humano e educativo: o diálogo incondicional, a reciprocidade
sem intermédio e a responsabilidade e compromisso ético.
O professor Marcelo Fabri, da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM), RS, em seu texto, Intencionalidade e
moralidade: o humanismo de J.-P. Sartre, apresenta a con-
tribuição de Sartre para o desenvolvimento de um conceito
fenomenológico de ética a partir da tradição fenomenológica
e da reflexão sobre a condição humana, traços que marcam
profundamente o pensamento de Sartre.
Simeão Donizeti Sass, da Universidade Federal de Uber-
lândia (UFU), MG, no texto O debate entre Sartre e Merleau-
-Ponty, explora comparativamente o desenvolvimento da filo-
sofia sartreana a partir do diálogo com Ponty e suas críticas à
Sartre. Trata-se de uma análise que tenciona as posições dos
dois filósofos e desdobra suas implicações teóricas com pre-
cisão e agudeza.
O texto do professor Noeli Dutra Rossatto, da Universi-
dade Federal de Santa Maria, RS, é muito provocativo, desde
seu título Sartre místico: existência e liberdade em A Náusea,
o leitor habituado com a perspectiva tradicional de aborda-
gem da filosofia sartreana sofre um mal-estar. Trata-se de
uma abordagem aguçada e reveladora onde A Náusea é to-
mada desde a perspectiva de análise que investiga a existên-
cia ou não de um elemento místico.
10
Com o texto da professora Cecília Pires, da Universida-
de do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), RS, encerramos a
coletânea na abordagem de Sartre, um projeto ético de com-
promisso político, onde a relação entre ética e política é arti-
culada pelo conceito de liberdade mostrando que a filosofia
sartreana ultrapassa a dimensão meramente especulativa e se
insere na historicidade de seu tempo reconstruindo a unidade
entre as dimensões ética e política que se traduzem no com-
promisso do fazer histórico.
***
Como responsáveis pela organização desta obra e da re-
alização do Seminário, agradecemos a todos e todas que co-
laboraram nas mais variadas atividades em vista de sua reali-
zação. Com esta publicação queremos partilhar a riqueza e a
proficuidade dos debates e das provocações construídas. Ofe-
recemos ao público interessado na leitura de temas filosóficos
um subsídio consistente, tanto para quem é iniciante quan-
to para quem se insere no universo da pesquisa acadêmica.
Além do mais, o Seminário e esta obra procuram posicionar
elementos de discussão e de retomada do pensamento sartre-
ano na perspectiva de colaborar com as reflexões já existentes
e motivar a pesquisa de temas que consideramos de grande
importância para o contexto histórico de nossos dias a partir
da obra de Sartre.
Passo Fundo, outubro de 2013.
Diego Ecker
Ésio Francisco Salvetti
Organizadores
11
EDUCAÇÃO E ENGAJAMENTO
A PARTIR DE SARTRE
Nelio Vieira de Melo
1. Problematização inicial
O que fazer da educação é algo que não se separa das
formas de organização social e das justificativas teóricas que
dão sustentação aos projetos históricos. Comungamos com
as afirmações de que a educação seja uma reprodução dos
interesses dominantes e admitimos também que não exista
projeto educacional sem projeto de sociedade e de classes.
Entretanto, estamos cientes de que os movimentos históri-
cos das classes sociais dominantes carregam, no seu bojo,
o verme das suas próprias contradições. Consideramos a
vida e as organizações sociais como um fenômeno, ao modo
do movimento da evolução criadora, de Henri Bergson1
, e a
1 A ideia bergsoniana a que me refiro é a da interpenetração dos elementos na-
turais sem que haja um simples fato causal que sirva como base descritiva ou
explicativa. Achamos muito importante a ideia que desenvolve sobre modo
de ser da consciência do sujeito que elabora os conhecimentos: “A consciência
12
teoria dos jogos, de Norbert Elias2
. Não dá para considerar a
condição humana e o fenômeno social em geral. O fenômeno
humano e as suas manifestações se dão em processos muitas
vezes relacionados, por vezes infinitamente fugidios e nem
sempre classificáveis em conceitos determinados, pois o tem-
po da sua duração é o mesmo da sua substituição.
A história ocidental e o pensamento educacional brasilei-
ro são depositários de muitos registros importantes de como
a educação pode se tornar um projeto engajado na transfor-
mação da pessoa e da sociedade. Muitas tendências teóricas e
metodológicas se cruzam nesse cenário. Algumas se alinham
com os modelos políticos e ideológicos dominantes, outras
tentam fazer ajustes estruturalistas no âmbito da linguagem e
das teias interdependentes do fenômeno cultural, social, eco-
nômico e alguns enveredaram pela análise crítica da filosofia
e das ciências humanas e sociais. O pensamento educacional
anda sempre lado a lado com as possibilidades de pensar o
humano e suas formas de organização. O desenvolvimento da
ação educativa está atrelado aos modelos de organização so-
cial, política e econômica que desejamos. Essas constatações
não nos dão direito de pensar que a toda e qualquer ação edu-
cativa sejam engajadas. Há que se dizer que há ações que não
que nos é própria é a consciência de um certo ser vivo, localizado em um certo
ponto do espaço; e, embora vá realmente na mesma direção que seu princípio,
é incessantemente puxada no sentido inverso, obrigada, ainda que caminhe
para frente, a olhar para trás” (BERGSON, 2005, p. 258).
2 	 A ideia está estreitamente ligada à compreensão da organização da sociedade
dos indivíduos. Elias compreende a sociedade como uma teia de relações de
indivíduos interdependentes, de grupos sociais, de figurações sociais. A teo-
ria dos jogos de Norbert Elias objetiva uma análise sociológica e as relações
interdependentes como jogos constantes, que podem ou não ser regrados, e
que explicitam nas relações sociais, a disputa constante ou a manutenção do
poder. A utilização desse modelo é uma ferramenta valiosa para facilitar a
análise da sociedade, buscando a sua interpretação e explicação, a partir dos
diferentes níveis de competição presente nas relações sociais. Os modelos de
jogo ajudam a mostrar como os problemas sociológicos se tornam mais claros
e como é mais fácil lidar com eles se os reorganizarmos em termos de equilí-
brio, mais que em termos reificantes (ELIAS, 2008).
13
são senão uma reprodução social definida a partir das elites
burocráticas dominantes. O reproducionismo é a forma mais
comum de pensar a educação desde a antiguidade. Reprodu-
zir o modelo não é compromisso social, é subserviência. En-
gajamento só é possível pensar a partir da crítica aos modelos
reproducionistas instalados e impostos nas sociedades.3
O século XIX e XX foram palcos de muitas lutas e mu-
danças importantes. Tivemos grandes revoluções sociais mo-
vidas pelo anseio de libertação das classes trabalhadoras. As
ciências, como produto do humano, estiveram e ainda hoje
se mantêm divididas entre o participar do jogo do poder, o
manter-se neutra e pôr-se na postura crítica e do lado dos que
buscavam as transformações. Só dá para pensar o engajamen-
to a partir dos que se põem a serviço da transformação de
sujeitos e da sociedade. Engajamento não se coaduna com o
reproducionismo e com a neutralidade.
Muitos pensadores europeus e latino-americanos do sé-
culo XX foram importantes para que entendamos o sentido
do intelectual engajado4
e, por conseguinte, do fazer pedagó-
3 Nosso viés para pensar a questão tem como referência importante três pen-
sadores: Norbert Elias, com a teoria da interdependência; Max Weber, com
a concepção de sociedade burocrática; e Pierre Bourdieu coma teoria da re-
produção social. Na esteira do problema não ponho de lado o modo de pensar
a cultura e as organizações humanas como sugeriram Levis Straus, Peirce,
Vigotsky e outros. Temos consciência da abrangência desses teóricos em suas
concepções e das críticas que a eles são feitas. O que neles buscamos como
orientação são as contribuições relativas à compreensão da educação como
forma do agir social que tende a criar e reproduzir o ato criado como projeto
que se impõe vigorosamente em todas as dimensões do agir humano e se visi-
bilizando na vida social, educacional, racional, linguística, religiosa, política,
ética, etc. O humano se torna uma realizada que se pode enxergar a partir do
que o humano faz, fala, organiza e define como modo de ser.
4 Não é muito simples falar em intelectual engajado Como em qualquer país, a
França teve tem ainda seus momentos de profundas crises políticas, sociais
e econômicas. A França de Jean-Paul Sartre, Maurice Merleu-Ponty, Albert
Camus, Maurice Blanchot, Simone de Beauvoir viveu o despotismo que deu
origem a Resistência. Após a guerra de 1945 a Resistência não se dissolveu,
mas se multiplicou em muitas formas de reconstrução daquilo que o auto-
ritarismo destruiu. O engajamento é algo que tem que ser analisado a partir
do compromisso dos sujeitos com projetos sociais e políticos relevantes para
14
gico e educativo.5
Queremos deixar claro que o engajamento
do intelectual e do educador não está imediatamente associa-
do ao fato de ser uma pessoa renomada nos meios acadêmi-
cos, artísticos, culturais e midiáticos. Nem sempre o sujeito
que está em evidência nesses meios citados vive e se compro-
mete com o que fala. Esse é o velho dilema da coerência en-
tre teoria e prática suscitado pela dialética e conhecido pelos
educadores. As críticas conhecidas de Pierre Bourdieu a Sar-
tre, as de Marilena Chauí ao expor a disputatio entre Sartre e
Merleau-Ponty6
e tantas outras nos fazem entender o quanto é
a vida de um povo como todo. Há intelectuais que se tornaram referência de
sujeitos engajados para a mídia. Há os que se tornaram líderes e que faziam da
sua arte de pensar e escrever um ato político. Criticando Sartre, Pierre Bour-
dieu afirma: “Muitas vezes escrevem o que ninguém está apto a entender com
construções racionais malabarescas. “Desde a morte de Sartre, há 15 anos, não
surgiu na França nenhum “maitre-à-penser”... São os intelectuais mediáticos
e os jornalistas que dizem isso - porque, naturalmente, eles próprios não são
“maitres-á-penser”. É preciso levar em conta que o modelo sartriano de inte-
lectual engajado correspondeu a uma etapa diferente da vida cultural fran-
cesa e, sobretudo a uma etapa diferente da relação entre os intelectuais e os
meios de comunicação. Muitas ações políticas de Sartre, ou mesmo de Michel
Foucault, foram bem sucedidas porque contaram com um enorme apoio da
imprensa. Hoje o espaço máximo que Sartre teria num jornal seria o de um
artigo na página de opinião, porque os intelectuais mediáticos exercem uma
espécie de monopólio da mídia. Suas obras são sem interesse, mas eles estão
sempre dispostos a falar qualquer bobagem sobre qualquer assunto. “Aliás, até
mesmo Sartre disse muitas besteiras” (TRIGO, 2013).
5 Lembramos as grandes contribuições dos pensadores que seguem a trilha de
Antonio Gramsci, da teoria crítica e da dialética, dentre eles Paulo Freire,
que resinificaram o agir pedagógico como compromisso libertador e trans-
formador da sociedade. O movimento dialético da educação continua sendo
uma das mais importantes formas de pensar a educação como forma de en-
gajamento dos sujeitos envolvidos nos processos transformador da sociedade.
Pessoa e sociedade constituem os elementos inseparáveis da transformação
social, política, cultural e econômica.
6 Gostaria de destacar também que os movimentos históricos do engajamento
não abrangem só as filosofias e as ciências. As grandes mudanças históricas
envolvem a cultura, as artes, as religiões e todas as formas de organizações
sociais. A questão que está em jogo e, talvez, essa seja a questão fulcral, é: o
engajamento tem uma meta centrada na lógica disfarçada do capital ou visa à
transformação da sociedade? E aí nos deparamos com uma realidade cruel que
decepciona muitas vezes: a arte e o pensamento engajado podem ser coop-
tados e recuperados pela lógica do capital e do poder. Basta que se perceba
como um dado cultural popular passa de vulgar para o erudito. Na músi-
ca brasileira temos muitas referências disso que estamos falando (TRIGO,
2013; CHAUÍ, 2013; DOS SANTOS, 2005).
15
complicado falar de intelectuais como Sartre. É fundamental
que a nossa percepção de educadores eleve o entendimento
de que vivemos em uma sociedade com muitas possibilidades
de expressão e de engajamento. Não há modelos teóricos e
práticos que sejam melhores ou superiores aos outros. Não
há juízo de valor que se defina como o mais certo ou o mais
ético para a análise de um modelo de engajamento. Os su-
jeitos devem ser compreendidos em seu contexto. Hoje, nem
Sartre, nem Merleau-Ponty, nem Bourdieu, nem mesmo os
renomados acadêmicos franceses do século passado devem
ser os melhores exemplos de homens e de mulheres engajados
nas transformações sociais. Os pensamentos deles podem ser
uma inspiração, nunca poderão se tornar dogmas!
Retomar o tema do engajamento de Sartre depois dos
sentidos que foram dados a essa “atitude de um intelectual”
não é uma tarefa muito simples. Muito menos ainda pensar
a educação a partir de uma concepção de engajamento tão
sofrível como foi a de Sartre. Contudo, aceitamos o desafio da
tarefa, cientes de que é necessário trazer à memória elementos
que constituem aquilo que chamamos de inspiração do nosso
pensador, o itinerário anterior aos conflitos intelectuais e mi-
diáticos que ainda hoje parecem tão importantes para alguns
acadêmicos também midiáticos. Querelas, elas são mais de-
sejadas, lidas e divulgadas pela mídia. Vão sempre existir por
haver quem discorde do modo de pensar e de viver de alguém.
As querelas não nos atraem. Não são relevantes. Só revelam
a antiga intriga academicista de intelectuais que pensam que
o mundo deveria girar em torno deles. Adotamos em nossos
estudos uma atitude: entender uma pessoa que construiu um
pensamento e um projeto de vida pessoal e social a partir do
centro do seu interesse. Ficamos com o possível, o impossível
descartamos!
16
2. 
As re-visões7
das concepções de sujeito na
fenomenologia de Husserl
A relação entre a educação e o engajamento na fenome-
nologia existencial de Sartre exige que façamos uma passa-
gem necessária nos modos de entender o sujeito do conheci-
mento humano na fenomenologia de Husserl, ainda que haja
rastros da fenomenologia idealista de Hegel e da fenomeno-
logia existencial de Heidegger. Entendemos que o problema
do sujeito seja uma questão inicialmente centrada no fato
do conhecimento de si, do mundo e do outro. A herança do
racionalismo moderno e da fenomenologia fazem de Sartre
ora um construcionista da ideia do sujeito autônomo, ora um
desconstrucionista da ideia de subjetividade pura e do conhe-
cimento como forma de instrumentalização do mundo das
coisas e do outro. Queremos de antemão alertar para o pro-
blema iminente da ambiguidade própria de Sartre e de vários
pensadores de herança fenomenológica e dialética, bem como
de outras tendências filosóficas e científicas contemporâneas.
Isso não deve causar problemas para quem se torna um leitor-
-pesquisador. A ambiguidade é um fato que não deve trazer
pré-juízos para a reflexão filosófica. Ela é um dado do pensa-
mento humano mesmo.8
7 O uso do hífen em muitos conceitos presentes na filosofia existencialista de
Sartre e de outros filósofos do movimento fenomenológico tem uma motiva-
ção: ora o conceito desconstrói o significado que lhe é próprio, ora mantém
o significado original. A partir do conceito de revisão (re-visão), serão en-
contradas no texto outros conceitos com essa forma ambígua de significação.
Esperamos que o leitor entenda tais conceitos sem estranheza e perceba que o
grau da ambiguidade é proposital dentro da nossa leitura do existencialismo
de Sartre e dos filósofos do movimento fenomenológico.
8 É necessário que se tenha claro que a fenomenologia adota em parte o itine-
rário moderno da construção do conhecimento quando parte da ideia de
sujeito. Não desejamos com isso pré-judicar inicialmente a compreensão
sartreana, nem mesmo nivelar a base dos seus princípios. A ideia de sujeito fe-
nomenológica de Sartre e de toda a fenomenologia é invertida, isto é, parte da
exterioridade, da realidade fora do sujeito para construir um projeto ontológico.
17
Sartre é um entre muitos pensadores contemporâneos que
traçou seu itinerário partindo da fenomenologia de Husserl e
de Heidegger sem perder de vista a forte influência de Hegel e
das concepções modernas que deram à razão humana a estru-
tura que ainda marca indelevelmente a concepção de educação,
de pessoa, de ética, de sociedade, de política e de ciências.
As re-visões filosóficas do movimento fenomenológi-
co iniciado por Husserl são marcadas por muita diversidade
e divergência. No mundo humano, na filosofia e na ciência
isso é uma constante. A desconstrução da ciência em Husserl
se tornou marcante pelo ponto de partida ter sido deslocado.
Na ciência moderna, o sujeito é o centro e o sentido de tudo.
A metafísica é constituída a partir da singularidade do ego
e para ele retorna como em um imenso giro hiperbólico de
um ser sintetizador que a tudo absorve e dá significação. O
ego moderno é o polo do universo (HUSSERL, 2013a, p. 3-4).
Husserl põe em cheque essa estrutura sintetizante e solipsista
do ego e propõe uma inversão que todo o movimento feno-
menológico adotou. O conhecimento humano é um processo
que se dá em meio à manifestação de fenômenos. O ser hu-
mano é um ser em relação, ou seja, entre coisas e seres que se
manifestam, ofertando-se e revelando-se a. O ser que pensa
não é senão alguém capaz de perceber, tecer relações entre o
ser do fenômeno e o fenômeno, elaborar processos de análise
e desenvolver os meios de doação de sentidos. A abstração
ideativa do fenômeno não se resume para Husserl somente
na ideação do fenômeno. É necessário ir além da evidência da
oferta de si do ser e de revelar os enunciados das essências. A
via para se chegar a essência é longa e exige um re-posiciona-
mento da consciência do sujeito cognoscente. O começo pas-
sa pelo estreitamento necessário do sujeito entender que ele é
o que é porque há seres e coisas fora dele que se manifestam
Chamamos de sujeito invertido pelo fato de a realidade exterior ao sujeito
se tornar a referência do entendimento da consciência das coisas. Existência,
existentes e realidades exteriores são os elementos que tornam a consciência
de alguém uma consciência posicional.
18
a ele. Sua consciência é o que é, mas ante a realidade do mun-
do circundante. O método fenomenológico começa por aí,
pela re-posição do sujeito ou da consciência e da suspensão
da realidade transcendente ou de qualquer recurso indutivo
ou dedutivo que pré-condicione a investigação da ciência
(HUSSERL, 2013a, p. 7-14). O eixo da via fenomenológica é
a intencionalidade. O ser da consciência está em constante
relação com as manifestações fenomênicas das coisas – Er-
lebnis. O ato de conhecer não se dá por uma simples ação do
sujeito sobre o objeto, mas de uma ação exterior ao sujeito
que lhe imprime possibilidades de entendimento. A posição
do sujeito muda, portanto, dentro da relação tradicional da
formulação do conhecimento humano; isto é, na relação com
a exterioridade do mundo e das coisas, o sujeito deixa de estar
no primeiro plano e passa para o de estar presente ante ao
que se lhe manifesta: a consciência é em ato de ser consciên-
cia das coisas (LEVINAS, 1930, p. 65-85).9
Intencionalidade
e consciência formam a mesma realidade existencial e subje-
tiva, o que podemos chamar de unidade subjetiva do sujei-
to enquanto existente presente ante si mesmo, seres e coisas.
Este modo de ser do sujeito o torna diferente daquele que o
concebe como realidade que antecede e a tudo sintetiza com
seu poder que é puro cogitatio.
Em grandes linhas, a fenomenologia de Husserl é consti-
tuída por movimentos de intensas correlações entre consciên-
cia intencional e realidades objetivas. As reduções transcen-
dentais ou fenomenológicas são iniciadas por un pas arrière,
ou seja, pelo retorno à consciência de qualquer coisa. A re-
dução fenomenológica consiste inicialmente na suspensão da
experiência e dos conteúdos da realidade objetiva presentes
na consciência como conteúdos do real. Isso permite ao sujeito
9 Seguimos a leitura de Lévinas (1930), sobre a obra Ideen de Husserl. Este capí-
tulo apresenta a questão da intencionalidade da consciência de maneira mui-
to sugestiva e sintética para quem deseja aprofundar as ideias de consciência
como consciência de.
19
do conhecimento afastar-se da possibilidade de condicionar a
percepção do fenômeno em dados enganosos e de revelar o
fenômeno transcendental como correlato da consciência.
Nossa preocupação aqui é também entender, dentro do
retorno de Husserl à consciência como consciência de, como
acontece a relação intersubjetiva e o modo do sujeito ser com-
prometido em relação aos demais (PELIZZOLI, 1994, p. 34-36).
Na análise fenomenológica do conhecimento há sim um en-
tendimento da intersubjetividade ao modo de relações entre
sujeitos. O modo pelo qual se estabelece a relação do eu com
o alter ego vai aparecer na quinta Meditação Cartesiana: os
outros são ao mesmo tempo percebidos pelo sujeito como
objetos do mundo e como outros sujeitos que têm experiên-
cia do mesmo mundo e do mesmo mundo do sujeito que não
são eles (HUSSERL, MC, § 48)10
. No mundo se encontram
os objetos naturais e culturais, ele está sempre aí, pronto; os
outros estão aí e a filosofia não tem como meta representar o
mundo diferentemente daquilo que ele é. A meta de Husserl
foi resolver os problemas das possibilidades do conhecimen-
to objetivo e, em meio à questão, apresentar a existência do
sujeito para si e da relação de outrem para si, como proble-
ma da teoria transcendental. A priori o problema da relação
eu-outro-outrem em Husserl é pensada a partir da relação
sujeito-objeto, ou seja, no âmbito da relação cognoscitiva que
desemboca na subjetividade pessoal. Nas Conferências de Pa-
ris, de 1929, Husserl afirma:
É justamente assim que a subjectividade transcendental se alar-
ga em intersubjectividade, em socialidade intersubjectivamente
transcendental, que é o solo transcendental para a natureza e o
mundo intersubjectivos em geral, não menos para o ser inter-
subjectivo de todas as objectalidades ideais. O primeiro ego, a
que conduz a redução transcendental, dispensa ainda as distin-
ções entre o intencional, que lhe é originariamente peculiar, e o
que nele é espelhamento do alter ego. É necessária, em primeiro
10 Utilizaremos a sigla MC para referir a obra: HUSSERL, 2001.
20
lugar, uma fenomenologia concreta ampliada, para alcançar a
intersubjectividade como transcendental. Mas, apesar de tudo,
revela-se aqui que, para quem medita filosoficamente, o seu ego
é o ego originário e que, em seguida, numa sequência ulterior,
a intersubjectividade só é, por seu turno, pensável para todo o
ego imaginável como alter ego enquanto nele se reflecte. Nesta
elucidação da empatia, revela-se também que há uma diferença
abissal entre a constituição da natureza que já tem um sentido de
ser para o ego abstractamente isolado, mas não ainda um sentido
intersubjectivo, e a constituição do mundo do espírito. Por isso,
o idealismo fenomenológico descobre-se como uma monadolo-
gia fenomenológico-transcendental, que não é apenas qualquer
construção metafísica, mas uma explicitação sistemática do sen-
tido, que o mundo tem para nós todos antes de todo o filosofar,
sentido esse que unicamente pode ser filosoficamente desfigura-
do, mas não alterado (HUSSERL, 2013a, p. 35-36).
A relação intersubjetiva de Husserl se tornou questioná-
vel para vários de seus opositores pelo fato de haver uma nítida
polaridade egológica na síntese do “eu-tu”, “nós”: de um lado
se encontra a realidade do eu e de seu mundo, de outro, a do
coletivo humano e do indivíduo. O parágrafo 50 das Medita-
ções Cartesianas é concluído com a afirmação de uma “síntese
intersubjetiva” que forma uma “comunidade do nós” “orien-
tada no mundo comum”. A questão se torna enigmática e dei-
xa em aberto o modo pelo qual essa tríade (eu-nós-”mundo da
vida”) garantiria a unidade “transcendental” do conhecimen-
to e a ideia de uma intersubjetividade consistente. Contudo, a
meta de Husserl não é resolver a questão da intersubjetividade,
não é indicar provas da existência de outro sujeito, ou do mun-
do em geral, mas por em evidência o sentido dos atos inten-
cionais em que outro sujeito é visado e posto como existente.
(CESCON, 2009).
Diante do exposto, entendemos que a fenomenologia fez
itinerários que põem em evidência a relação intersubjetiva e
aponta para as possibilidades de uma ética do compromisso
entre sujeitos diferentes e partícipes de experiências e repre-
21
sentação que vão além do mundo natural, isto é, que se esta-
belecem nos processos de interação e de sentidos presentes nos
mundos humanos. Husserl abriu caminhos. Cremos que o seu
projeto seja inacabado. Seus discípulos mesmos reconheceram
isso e fizeram do movimento fenomenológico um depositá-
rio de diversas tendências com pontos importantes de partida,
seguindo a trilha da razão re-posicionada. É aí que podemos
buscar as contribuições de Heidegger, Fink, Dufrenne, Stein,
Merleau-Ponty, Sartre, de Henry, Lévinas, Gadamer, Derrida,
Ricoeur e de tantos outros.
Nossa intenção aqui não é defender Sartre como segui-
dor do pensamento fenomenológico fundado por Husserl. Sem
dúvida há em Sartre um nômade que trilha entre as margens
da fenomenologia e das des-razões modernas. A sua ideia de
sujeito tem algo de Husserl, embora o Ego moderno não es-
teja tão ausente nas formas do agir ético. Não cremos que haja
pensadores puros que se atenham a uma única fonte na cons-
trução do pensamento. Se pensarmos como Elias, somos uma
rede de projetos interconectados. Desse modo, nas raízes da
concepção do sujeito sartreano, encontramos elementos que
podem nos ajudar a entender o sujeito consigo mesmo, sua re-
lação com o mundo e com o outro e o sentido do compromis-
so, aspecto importante que podemos relacionar à educação.
3. 
As re-visões da concepção de sujeito e engajamento
em Jean-Paul Sartre e possibilidades de interfaces
com a educação
Estamos habituados a buscar o conhecimento de um pen-
sador a partir de outros. Isso é já um problema para a questão
hermenêutica. A metodologia de análise da obra de um pensador
22
exige um itinerário que deve partir dele próprio. Para mim
esse itinerário é constituído de: uma imersão na obra, uma
análise descritiva e reveladora da obra, uma contextualização
histórico-crítica e, por fim, uma afirmação da posição frente ao
pensamento estudado. As metodologias podem ser diversas, e
não há uma regra única para isso, embora muitos desejem. No
âmbito do pensamento humano e das ciências não há verda-
des muito definitivas. Isso pode ser um problema para muitos,
mas isso é uma questão irresolvível.
Falar da obra de Sartre em geral como muito se tem feito
é complicado. A obra dele é vasta e cheia de possibilidades de
compreensões. As classificações conhecidas dividem, criam
rótulos e sintetizam tudo ao modo das concepções históricas
e científicas que se habituaram a fragmentar e fixar o sujeito
em estruturas determinadas. Sartre, como todos os pensado-
res, escapam aos determinismos históricos que o mundo aca-
dêmico e científico se habituou a classificar. O caminho para
entender Sartre é o que ele mesmo fez em cada obra e no con-
junto das suas ações, sem pré-juízos estabelecidos.
Faço aqui um itinerário de entendimento de Sartre que
vai da filosofia ao engajamento pelo ângulo das obras L’être et
le Néant e L’Existencialisme est un Humanisme.11
Não temos in-
tenção de abordar as questões surgidas a partir da aproximação
de Sartre e o Marxismo, na obra Critiques de la Raison Dialec-
tiques, nem pretensão de encerrá-lo em um dos esquematismos
filosóficos, literários ou científicos gerados pelas querelas inte-
lectuais entre Sartre e tantos pensadores do seu tempo. Esta-
mos em outros tempos, e Sartre só se faz presente pela sua obra.
Traçamos três pontos que nos possibilita acessar a ques-
tão do engajamento e da educação. No primeiro abordamos
o pressuposto de que a consciência de si-mesmo se dá como
consciência de ser-no-mundo; no segundo discorremos como
a escolha de si, enquanto projeto, torna-se também a escolha
11 Usamos as siglas EN e EH para indicar estas obras de Sartre.
23
do para-outro; e, no último ponto, a partir do para-outro em
relação ao projeto, discorreremos sobre o compromisso pelo
outro, ou seja, sobre o engajamento. É nesse terceiro ponto que
faremos a incursão necessária da educação a partir da filosofia
existencial sartreana.
3.1. 
Emergência da subjetividade e a educação como
diálogo in-condicional
A primeira via de compreensão do sujeito na concepção
ontológica de Sartre é a escolha da existência, a descoberta
de si mesmo como existente entre seres que estão no mundo.
Essa caracterização de experiência existencial foi descrita de
maneira magistral na obra “A Nausea”, quando o sujeito se
sente no abandono de si como ser jogado no mundo. A ex-
periência existencial é narrada de uma forma quase mística:
sujeito e coisas são existentes que se misturam, e, em um dado
momento, só o homem tem a possibilidade de dar significado
à experiência e às coisas:
[...] ainda agora no jardim público. A raiz do castanheiro se en-
fiava na terra bem por baixo do meu banco. Já não me lembrava
de que era uma raiz. As palavras se haviam dissipado e com elas
o significado das coisas, seus modos de emprego, os frágeis pon-
tos de referências que os homens traçam em sua superfície. Es-
tava sentado, a cabeça baixa, sozinho diante dessa massa negra e
nodosa, inteiramente bruta e assustadora. E depois tive essa ilu-
minação. [...] E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como
o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto
inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas,
aquela raiz estava sovada de existência. Ou antes, a raiz, as gra-
des do jardim, o banco, a relva rala do gramado, tudo se desva-
necera; a diversidade das coisas, sua individualidade, era apenas
uma aparência, um verniz. Esse verniz se dissolvera, restavam
massas monstruosas e moles, em desordem - nuas, de uma nu-
dez apavorante e obscena. [...] Todas as coisas, suavemente, ter-
namente, se entregavam à existência... Existindo, era necessário
24
existir até aquele ponto, até o bolor, a tumidez, a obscenidade.
[...] Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar pelo me-
nos uma dessas existências supérfluas. Mas até mesmo a minha
morte teria sido demais [...]: e eu era demais para a eternidade
(SARTRE, 1986, p. 187-190).
A náusea de Roquentin é um evento que vai além do
constatar a gratuidade do mundo e do homem, descobrindo-
-se na impossibilidade de ser justificado. A princípio, essa
responsabilidade é sentida como um horror, pois a tendência
humana é recusá-la. Depois, o homem percebe que não pode
fugir da própria existência e das coisas. Sartre define-se pela
sinceridade, lucidez e responsabilidade da pessoa. Isso o leva
a reduzir o homem a ser responsável por tudo o que faz: não
há desculpa e nem álibi para quem deseja viver covardemente
sem descortinar a sua existência livre e nua.
O sentir-se ante as coisas, abandonado a si mesmo, sujei-
to de tudo, inclusive da sua participação no mundo é um even-
to originário que Sartre propõe ao modo de não se ter como
fugir ou se esconder. Todos estão aí, sendo e existindo, gra-
tuitamente. Em EN, Sartre, seguindo a trilha do movimento
fenomenológico, expõe a questão que estamos tratando: não
há como a pessoa descortinar o sentido da existência e do hu-
mano fora da manifestação do fenômeno. Tudo começa no
palco da existência nua e pastosa do em-si. O humano é um
em-si, é um ser entre outros, pureza original de uma mate-
rialidade que a tudo envolve e contém. No evento originário
do sujeito nada lhe precede. Sartre faz da imersão do sujeito
como ser entre seres, como modo de tomar consciência de ser
e existir entre seres e coisas que aparecem. Nesse movimen-
to, a consciência toma posição: é percebente. Sartre chama tal
movimento de ser da aparição: o fenômeno daquilo que se
manifesta é o que se pode perceber dele. Ele é a condição do
desvelamento: é que se desvela, é oferta de dados, pura ma-
nifestação. Sartre, como Husserl, cria uma cisão necessária
25
entre a realidade do fenômeno do em-si e a realidade do para-
-si, mas deixa claro que uma realidade não existe sem a outra,
formando uma unidade: a consciência posicional. A consci-
ência não existe por si-mesma. Ela é o que é como consciência
de algo (EN, p. 20). O sujeito se constitui como consciência
de existir na relação imediata com as coisas. Em si mesma a
consciência não é nada, não tem conteúdo, é vazia. Ela neces-
sita do ser-em-si, ou seja, do ser identificado consigo mesmo,
para se constituir como realidade única. Com isso, Sartre não
estaria definindo a consciência como uma realidade que exis-
te e não existe ao mesmo tempo. Ela é o que não é ante o que
é. É nesse contexto que emerge o fenômeno da nadificação:
próprio do evento do sujeito, isto é, do para-si com o em-si:
é pelo sujeito que o nada entra no mundo e se faz encrustado
no âmago do coração humano como um verme (EN, p. 50).
A consciência de si como consciência do projeto originá-
rio revela o que de fato o humano é: contingência, facticidade,
gratuidade e liberdade. Essa é a verdadeira realidade do hu-
mano: injustificável e abandonado a si mesmo como ser dos
possíveis. O sujeito se percebe como consciência de ser em re-
lação às coisas (consciência de consciência de), mas separado
delas, cindido e impossibilidade de coincidência, presente a si
mesmo, mas fissurado (EN, p. 114). A fissura é o nada, é a cons-
ciência eternamente em falta consigo mesma, impossibilitada
de coincidência consigo mesma. O para-si é o ser que se deter-
mina a si mesmo a existir sem nunca poder coincidir consigo
mesmo. Aí é que reside o nada, no interior do para-si. O nada
é o ser posto em questão, é o ser humano que está sempre esca-
pando da totalização dos conceitos definitivos e prontos.
Essa primeira via de entendimento do projeto sartreano
nos leva a por em questão o sentido que estamos buscando
para a educação como engajamento. No viés da eleição pelo
projeto originário, como a educação poderia proporcionar
essa vivência? É possível fazer essa experiência no contexto da
educação institucional e ou formal? Como isso pode se dar?
26
O primeiro aspecto que devemos lembrar: para Sartre, nada
e ninguém influenciaria alguém no ato de escolha do projeto
originário. Diante da impossibilidade da eleição ser teleguia-
da, como pensar a educação engajada? E se consideramos a
crítica bourdieusiana da reprodução social na educação?
Como relacionar o evento do sujeito sartreano no contexto
de uma educação sem sujeitos? Sartre poria a questão a nossa
época: os determinismos ideológicos agem intencionalmente
para atingir a fragilidade do sujeito, coisificando, tornando-o
qual uma peça a mais na engrenagem social por meio das ide-
ologias. O despertar para um projeto pessoal tem seu ponto
de partida na formação da subjetividade e da consciência. As
duas são realidades que se complementam. A descoberta da
consciência passa necessariamente pelo modo de um sujeito
se entender como o cogito, ou seja, pelo reconhecimento de
si mesmo como ser que antecede as coisas e demais seres que
estão no mundo. O ser do fenômeno e o fenômeno são reali-
dades distintas, mas inseparáveis. Um complementa o outro.
Como já pudemos ver a subjetividade e a consciência de si
não existem de forma etérea, mas preenchidas pela realida-
de mundana que as circundam. Somos o que somos e nossas
próprias circunstâncias, ou seja, não podemos existir como
sujeitos e como consciência se não for dentro de um projeto
existencial. Mesmo sendo a subjetividade uma realidade inte-
rior ela só se constrói na exterioridade. Suas significações são
encontradas no mundo.
Entendemos que a eleição do projeto originário sartre-
ano emerge dessa descoberta de si como consciência situa-
da em meio às possibilidades de negação por meio da má-fe.
Aqui está uma questão importante para que os processos edu-
cativos tenham clareza: todo sujeito só é livre para se escolher
a si e ao projeto originário; ele não é livre para agir na má-fe.
Escolher-se a si e ao projeto é um ato de continuamente fazer-
-se, de vigilância do único valor que é sempre um sendo, rea-
lizando-se. A má-fe é o ato de representação e de cristalização
da identidade do sujeito em uma forma pré-estabelecida.
27
Os processos desenvolvidos por uma educação compro-
metida com a causa da formação do sujeito podem sugerir ao
educador e ao educando o diálogo que põe as questões e ex-
põe a nudez da existência sem reservas, categorias, princípios
e modelos predefinidos. Se lermos atentamente os exemplos
que Sartre dá em EH, podemos chamar essa forma de diálogo
de in-condicional, modo de estabelecer uma relação educativa
sem visar princípios, objetivos, estratégias e tempos. A elei-
ção dos sujeitos são eventos em constante definição. É assim
o evento da eleição do projeto originário. É um fazer-se que
vai se dando no cotidiano da existência de cada um, tanto do
educador quanto do educando. A prática dessa modalidade de
relação dialogal desconstrói os planos que reificam e identifi-
cam pessoas, tornando-as parte de uma totalidade impessoal
e objetiva.
Tratamos essa possibilidade da educação como uma des-
construção da educação fundada em princípios abstratos que
visam à estruturação de sujeitos adequados ao que se define
previamente como verdade a ser seguida e observada. A elei-
ção do projeto originário põe os sujeitos na plena in-condição
de serem adequados. Certamente, todas as concepções de edu-
cação que as sociedades atuais defendem terão dificuldades de
entender e aceitar esse modo de pensar o papel da educação.
3.2. 
A eleição de si-mesmo como ser-para-outro e a
possibilidade de pensar a educação na reciprocidade
sem inter-médio
Sartre concebe a subjetividade como liberdade: “o ho-
mem é livre, o homem é liberdade” (EH, p. 253). Nada pode
definir a priori o ser do homem e sua presença no cosmos não
é de uma coisa a mais. A pessoa é o único ser que pode dar
sentido a sua existência e a tudo que a circunda. O ser-no-
28
-mundo não se distingue do ser-livre: existência e liberdade
são uma só realidade e um mesmo projeto (EH, p. 267). A li-
berdade é o projeto originário; é a própria pessoa. Tal liberda-
de só se revela por meio do agir. A ação e a expressão da liber-
dade. O que move o sujeito na ação são os motivos e móveis
e estes transcendem o sujeito porque estão fora dele. Entre-
tanto, é em vão prender-se a eles, pois não há determinismos
que condicionem qualquer ação humana: “Estou condenado a
existir para sempre além de minha essência, além dos móveis,
dos motivos de meus atos: estou condenado a ser livre. Isso
significa... que não somos livres de cessar de ser livres” (EN,
p. 484). Sartre pensa a condição humana sem qualquer apoio,
auxílio, condenada a inventar-se a cada instante.
Na frase “o homem não é o que ele é e é o que ele não é”
Sartre expõe a tensão da facticidade entre os o poder-ser e o
poder-sendo para justificar a estranheza da liberdade: o ser do
para-si é esse movimento de um fazer-se sem poder deixar
de inventar-se na sua cotidianidade. Nada está pronto, tudo
está para ser feito. Desse modo, a existência é uma realidade
injustificável, o homem é inevitavelmente a sua própria facti-
cidade. Sem a facticidade o para-si seria determinado a ser e
fazer conforme um projeto exterior ao seu (SARTRE, 1986,
p. 193; EN, p. 119; EH, p. 278; COLOMBEL, 1986, p. 430).
A contingência da liberdade se dá no plenum do ser do
mundo. Sartre chama isto de situação. E o datum, aquilo que
está sempre corroendo a liberdade e aparecendo ao homem
como o que está iluminado por um fim, Sartre torna-o seme-
lhante a um motivo. Isso explica o porquê da relação e da
identificação entre situação e motivo (EN, p. 534).
Desse modo, não há obstáculo para que a liberdade pos-
sa ser absoluta para a pessoa. Sartre deduz que os obstáculos
e resistências podem existir, podem ser superados por mim e
podem existir para outros e serem superados por eles e não
representar nada. É o homem que dá sentido a esse coeficiente
de adversidades. Sua realidade é feita dessas coisas que não
29
dependem do homem. O que Sartre chama de facticidade da
liberdade é o dado que ela há de ser e que é iluminado pelo
seu projeto. Contudo, esse dado não é mais o que está fora, é a
realidade inerente do ser que não mais pode deixar de ser ele
mesmo (EN, p. 535).
Situação e móveis supõem a facticidade: meu lugar, meu
passado, meus entornos, meu próximo, minha morte, são limi-
tes, conscientes ou não; eles emergem em meio às possibilidades
de escolha, em situação, da qual eu não posso fugir. O para-si
é livre, mas em situação. Não há situação senão pela liberdade;
o homem é liberdade por ser capaz de superar seus limites, de
alargar o campo das suas possibilidades, de criar e dar sentido
às situações (EN, p. 535-598; COLOMBEL, 1986, p. 435-436).
A liberdade implica que o homem realize, mesmo que
na angústia, a sua condição de estar comprometido com a sua
realização, com a realização do outro. A liberdade só se des-
cobre no ato. Sartre cria uma unidade entre a liberdade e o ato
de modo tal que a responsabilidade não passa de uma escolha,
em situação, sem fundamento. O homem, como responsável
pelo seu destino, é o fundamento do seu valor. Se o homem é
liberdade, se a liberdade é o fundamento do valor, sua moral
não existe senão nele mesmo.
Um dado fundamental dessa construção ética sartrea-
na é o fato de o homem estar obrigado a relacionar-se com o
outro sem distâncias, sem intermédios: pelas minhas escolhas
estou comprometido com o ser do outro; pelas escolhas do
outro ele está comprometido comigo. Levantar possibilidade
de refletir a ação educativa, considerando a afirmação sartre-
ana de que a liberdade é definição do homem e não depende
de outrem nos leva a preocupação sugerida pelo próprio pen-
sador: a reciprocidade é o único modo de ser de uma relação
inter-humana e educativa. Os sujeitos da educação são iguais
no processo: a liberdade de um é um fim e devo considerar a
do outro do mesmo modo. A lógica da relação é, portanto, a
30
da reciprocidade sem inter-médio. Isso significa que a relação
educativa acontece na esfera da inteira gratuidade existencial
e intersubjetiva de seres dos possíveis, factíveis e implicados
pelo compromisso que lhes toca pela eleição de si mesmos,
como seres inteiramente pro-jetados no mundo, situados em
uma condição histórica pessoal e social, para se realizarem
como pessoas. A base da reciprocidade é a da separação radi-
cal – a diferença ontológica – que impõe a cada um e a todas as
pessoas é a da responsabilidade de um pelo outro e por todos.
Analisando a questão da reciprocidade sem inter-médio
como forma do agir educativo, percebemos que algumas ques-
tões deverão ser entendidas a partir do olhar da educação. A
educação é realizada por meio de processos de intervenções
pedagógicas entre pessoas educadoras e pessoas educandas.
Cada processo é feito de elementos intencionais pré-dados e
com mediações previstas. Vivemos modelos de educação que
atribuem à pessoa educadora a função de inter-médio e de de-
senvolver conteúdos, metodologias e estratégias que apontam
para o alcance de metas. Mesmo os mais avançados processos
educativos e métodos que desenvolvemos concebem a pessoa
educadora como um inter-médio e a pessoa educanda como
sujeitos modeláveis por meio das ações desenvolvidas. Visto
pelo ângulo dos processos da educação que age desse modo,
a reciprocidade sem inter-médio é impossível como modo de
desenvolver processos educativos. Encontramo-nos diante de
um obstáculo irremovível.
O princípio da reciprocidade esbarra nas propostas insti-
tucionais e nos seus projetos prontos do ensinar e do aprender,
restando à pessoa-educadora e à pessoa-educanda a agirem no
contexto das relações interpessoais. Por isso é que afirmamos
que as ações são sem inter-medio. O projeto sartreano foi ou-
sadia para a sua época e nos lembra as “transgressões” do pro-
fessor John Keating (no filme Sociedade dos Poetas Mortos),
que numa academia conservadora (Academia Welton), com o
31
seu talento e sabedoria, inspira os seus alunos a perseguir as
suas paixões individuais e tornar as suas vidas extraordiná-
rias. Outro filme que nos recorda essa relação dentro de mode-
los rígidos é o filme “Escritores da Liberdade”, cuja professora
Erin Gruwell rompe as estruturas rígidas que reproduzem na
escola a segregação racial e social, estimulando o desenvolvi-
mento de potencialidades que nenhum dos jovens da sua clas-
se tinha consciência. Esses e outros enredos de filme ajudam a
ilustrar o sentido da nossa proposição. A educação, em geral, é
reprodutora de esquematismos definidos como oficiais e aco-
modam cada pessoa em estruturas fixas. Agir como pessoa-
-educadora não é tarefa fácil, mas acomodar-se a elas. Para
Sartre, fazer o jogo da reprodução é a tentativa de negação da
liberdade, portanto má-fé. A pessoa-educadora responsável
pela pessoa-educanda e consciente da sua ação, sabe que sozi-
nha não pode muito, mas pode agir no sentido de gerar atitu-
des e descobertas importantes para as vivências dos que estão
participando do mesmo projeto de educação. A reciprocidade
sem inter-médio pode ser entendida como esse processo rela-
cional que suscita a reflexão e a tomada de atitudes de pessoas
livres, conscientes de que são sujeitos de suas próprias vidas e
capazes de superar as barreiras do reproducionismo classista
e conservador.
3.3. Responsabilidade, educação e compromisso ético
O problema da relação intersubjetiva de Sartre não pode
ser entendido como um evento solitário. O sujeito sartreano
é simétrico e recíproco em relação ao outro. O outro é como
sou: um ser entre outros e em relação comigo. Como sou livre,
também ele é liberdade na facticidade, isto é, na a relação que
o revela como ser-no-mundo percebe-se como ser que é para-
32
-outro, absolutamente livre frente ao outro que é absoluta-
mente outro ser-para-mim. O próximo é também um sistema
de representação, cujo centro é ele mesmo, como o eu o é de
si mesmo. Ele é o outro que não sou e para quem eu sou um
objeto: “ele é o que não sou: uma totalidade-destotalizadora,
negação radical” (EN, p. 260), com quem só é possível uma re-
lação de reciprocidade. O outro é aquele-que-me-vê. A minha
ligação com ele consistirá na permanente possibilidade de ser
visto e de ser constituído como um ser-objeto, enquanto ele é
captado por mim como sujeito-objeto. O meu ser passa para
ele, sem deixar de ser meu; apreendo-me como ser-para-ou-
tro. Tal experiência traduz-se na expressão: estou sendo visto
por outrem. Nessa relação em que eu me estabeleço como su-
jeito, sou a minha própria transcendência, mas logo sou de-
gradado, ameaçado pelo outro, na condição de objeto; nela,
também eu, faço do outro um objeto que, porém, me escapa
em sua dimensão básica: sua subjetividade, seu ser-para-si,
seu ser sujeito (EN, p. 293-294). No eixo da reciprocidade há
um resíduo conflitual entre o ser que logo sou e o outro sujeito
que pode me apreender e me alienar dentro do seu sistema
de representação. Forma-se aqui uma configuração monádica
semelhante a que Husserl elabora na sua fenomenologia.
Como a intersubjetividade é possível no interior da rela-
ção conflitual? E como entender nesse jogo dual a responsa-
bilidade? A lógica de Sartre não se resolve na síntese da dia-
lética do senhor e do escravo, nem na abertura do sujeito ao
outro com a atitude de construção da comunidade de sujeitos
de sujeitos. Sartre mantém a autonomia de “eus” e se recusa
a admitir que a intersubjetividade seja a simples relação de
sujeitos iguais regidos por princípios que os unem, regulam e
controlam. Não há síntese nem ponto de conexão no processo
relacional sartreano. A autonomia de um é a mesma do outro
na diferença ontológica radical. Entre os dois se encontra um
dado que transcende e que tem uma configuração ideativa ao
33
modo de Husserl. No meio da dualidade está posto o proje-
to originário que não pode ser recusado por mim nem pelo
outro. Esse elemento é o que pode tornar possível o fim da
dualidade conflitual entre os sujeitos.
A emergência da intersubjetividade se dá, portanto, na
relação processual entre sujeitos autônomos na facticidade. Os
sujeitos se entendem dentro de um círculo de tentações do
“malgré soi même” e do compromisso pré-existente no pro-
-jeto originário. A intersubjetividade é um despertar para
o compromisso com o outro: sou responsável por alguém,
mesmo que isso me renda o viver na vigília contra a redução
objetal e subjetal. O compromisso não é algo que se alimenta
em relação a alguém, como movido por um sentimento ou
um motivo qualquer, não é uma verificação de algo que se
faz. Pelo contrário, é um projeto abraçado no cotidiano que
independe de qualquer princípio (EH, p. 238).
O primeiro significado que Sartre dá ao compromisso
é que por meio dele o homem se realiza, realizando um tipo
de humanidade (BURNIER, 1996, p. 38; BEAUVOIR, 1963,
p. 33). Essa abrangência universal do compromisso passa pelo
limite da condição humana: comprometer-se com o outro é as-
sumir a condição humana, com seu coeficiente de diversidade.
A responsabilidade não é uma simples aceitação da in-
-condição existencial, mas é uma reivindicação lógica das
consequências de nossa liberdade: tudo o que me ocorre é meu
acontecimento e estou comprometido com todos aqueles que,
direta e indiretamente, estão envolvidos também. O fazer-
-se cotidiano do homem, por mais insignificante que pareça,
é comprometido com o outro (EH, p. 280).12
O compromisso
do homem está em relação ao projeto existencial. Nele o ho-
mem torna-se irremediavelmente comprometido com o outro.
12 Em face de qualquer situação, qualquer escolha deve ser responsável e me
compromete com toda a humanidade, mesmo que não haja nenhum valor a
priori que a defina.
34
A consciência desse compromisso existencial lança o homem
como transformador da sua realidade, que por vez é a reali-
dade do outro; essa não é uma segunda concepção de com-
promisso, mas é um modo, uma vivência (Erlebnis), através
da qual o compromisso torna-se evidente. É aí que o enga-
jamento de Sartre difere da teoria da práxis do materialismo
dialético (BURNIER, 1996, p. 39).
A filosofia do engajamento, por ser centrada no para-si,
torna-se profundamente ambígua, mas não incompreensível.
Nessa ambiguidade, as relações intersubjetivas são imprevisí-
veis, pois nada é definido e toda ação resulta de uma escolha
gratuita. Mas isso não significa, segundo Simone de Beauvoir,
que ela não seja coerente; a autenticidade dela reside na am-
biguidade como tal. O destino e a ação do homem estão por
ser feito e todos os projetos resvalam para o nada de ser. Sartre
declara que todo homem é livre e que não tem meio algum de
deixar de sê-lo; e ainda, quando quer escapar do seu destino é
livremente que o faz. Portanto é na existência mesma do ho-
mem que a ambiguidade está instalada. E, o querer-se livre im-
pulsiona o homem para o indefinido, para o vertiginoso, para
o circuito das suas possibilidades (BEAUVOIR, 1970, p. 17-18).
Do ponto de vista do engajamento social Sartre define o
compromisso na mesma perspectiva: o homem não é compro-
metido somente pelo fato de optar por um partido político, por
um sindicato, por uma agremiação qualquer; o compromisso,
como a liberdade, é anterior a qualquer opção que se faz. Como
teoria política, a filosofia do engajamento não se sustenta em
suas bases fenomenológicas. Sartre tentou uma aproxima-
ção com o movimento filosófico dialético, mas não foi mui-
to bem sucedido. As críticas dos marxistas, ainda que sejam
carregadas de ranços históricos e de antipatias literárias, tem
muitas razões e verdades. Sartre por um bom tempo apregoou
um propositado “desligamento” caracterizado por uma verda-
deira aversão a partidos e movimentos combativos. Sartre se
propôs fazer da literatura, do teatro de situação e do periódico
35
Les Temps Modernes, os meios que alimentariam a Resistência.
A escritura se tornaria sua forma de provocar a juventude e os
adeptos dos movimentos combativos franceses. Contudo, isso
não era muito bem aceito entre intelectuais da época. Merleau-
-Ponty, um dos seus primeiros companheiros, tornou-se um
dos principais opositores. Para ele dificilmente se encontraria
um homem coerente com aquilo que pensava. Sartre escrevia o
que vivia e influenciava os outros com seus pensamentos per-
niciosos (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 79-88).
A filosofia do engajamento desenvolve uma compre-
ensão da práxis sócio-política, deixando em aberto muitas
questões, dentre elas a moralidade, a historicidade, a adesão
e a participação política de transformação social e histórica.
Dessa forma, a estrutura teórica da atuação sócio-política é
marcada por uma neutralidade aparente. Aparente porque,
mesmo não assumindo um papel ideológico, de certo grupo
ou classe social, sua concepção não estaria isenta de desem-
penhar uma função política (GERASSI, 1990, p. 139-151). O
existencialismo não pretende gerar vontades revolucionárias,
nem empurrar as pessoas para engrossar as fileiras desse ou
daquele partido. Sartre quer o existencialismo como refe-
rencial, mas rejeita traçar diretrizes que delineiem possíveis
decisões de indivíduos que acatam sua doutrina. Nenhum
compromisso se justifica em si mesmo. Por que teria o exis-
tencialismo que traçar diretrizes? Em nome de quê? Da liber-
dade? (BURNIER, 1996, p. 15).
Entendemos que a filosofia do engajamento de Sartre não
seja em tudo perfeita. As dificuldades apresentadas por tantos
opositores de Sartre, no seu tempo e em outras épocas, não
podem ser desconsideradas, mas não é o objeto deste traba-
lho. Nossa preocupação agora é entender a concepção de Sar-
tre como uma inspiração, apontando possíveis contribuições
para a educação em geral. Chamamos de inspiração porque
não seria coerente fazer dessa concepção uma doutrina a ser
posta em prática, ao modo das filosofias modernas que, em
36
geral, partem de princípios fundantes para a fundação de
ações conscientes. Acolhemos a inspiração sartreana do enga-
jamento como modo de enxergar a realidade do mundo que
nos circunda (mundo do outro, mundo dos outros, mundo das
coisas) e de ser responsável com as pessoas dos outros e das
coisas com as quais vivemos no mundo. Entendemos que o en-
gajamento de Sartre não nos levaria além dessas duas possibi-
lidades que se configuram para nós como atitudinais de quem
atua no campo da educação, tanto como desenvolve processos
educativos nas instâncias da educação escolar e social, quanto
quem atua na instância da formação direta de pessoas com-
prometidas com a educação em geral.
A primeira possibilidade está relacionada a permanente
capacidade de enxergar a realidade pessoal, relacional, social,
política, etc., o que para isso o educador vai precisar elaborar
constantemente. Isso é chamado no meio acadêmico de for-
mação continuada, que pode se caracterizar como a aquisi-
ção permanente de instrumentos hermenêuticos que ajudem
na compreensão do mundo em que se vive e dos processos
educativos necessários. Lembramos que essa atitude tem um
caráter relacional, isto é, põe a pessoa educadora na busca do
entendimento da realidade, no contexto das relações huma-
nas e da condição humana como tal. A inspiração sartreana
não nos permitiria enveredar pela via da dialética e seus re-
ferenciais hermenêuticos. Sartre nos põe na trilha da pessoa
educadora em relação, na mais sincera transparência pessoal
de entendimento do mundo pessoal, das pessoas e das coisas.
Para Sartre, a atitude da pessoa educadora se torna um modo
de pôr em questão a falta de coerência entre o ser, o agir e o
pensar. Tal atitude se revela nas formas do agir, afinal a exis-
tência não é senão um ato, um fazer-se contínuo e responsável
pelo outro, pelo mundo e por si mesmo.
Na segunda possibilidade apontamos para um dos as-
pectos mais importantes da ética da alteridade de Sartre, a
37
responsabilidade pelo outro. Por ela, Sartre rompe a dualidade
conflitual instalada na condição humana radical da pessoa. A
responsabilidade é elemento constituinte da condição huma-
na. Somos responsáveis por todos e por tudo, também por nós
mesmos. A responsabilidade se manifesta de duas maneiras:
uma é subjetiva e a outra é objetiva; uma é pessoal e a outra
é interpessoal e social. Entendemos que a educação já é por si
mesma uma ação que exige plena responsabilidade das insti-
tuições e das pessoas educadoras. A responsabilidade educativa
passa necessariamente pelas vivências relacionais que elevam
as formas de as pessoas se tornarem promotoras da construção
de si mesmas, dos outros e do mundo circundante. Isso não é
feito de processos relacionais abstratos, mas por meio de ações
interconectadas. A responsabilidade educativa aponta para
uma realidade humana e social dominadas pela facticidade
e abertas ao mundo dos possíveis da condição humana. Isso
implica a pessoa educadora e a todas as pessoas educandas
em um mesmo processo de vivências plenas de respeito, de
aceitação da condição humana e de buscas comuns em favor
dos direitos de todas. O compromisso ético é a base das vivên-
cias educativas: a minha responsabilidade passa a ser também
responsabilidade do outro, criando assim, uma abertura ao
infinito das ações de todos e todas que estão envolvidas nesse
processo de educação.
4. À guisa de conclusão
Conhecemos não muitas iniciativas de pesquisadores da
educaçãoedeoutrasáreasquefizeramincursõesnopensamento
de Jean-Paul Sartre para aproximá-lo das muitas preocupações
38
relativas à educação e às práticas educativas em geral.13
Consi-
derando as iniciativas existentes, constatamos que a tarefa de
analisar a problemática do engajamento sartreano sob o ponto
de vista da educação seja complexa e exigente. O engajamento
por si exige uma compreensão ampla e articulada no conjunto
da obra do nosso pensador. Torna-se necessário que se decida
também que aspecto da educação tratar de relacionar. Cremos
que o problema aponte o caminho a ser tomado e os pontos a
serem analisados. Mesmo assim, achamos necessário estrei-
tar mais a questão: De qual educação devemos falar? Quem
é o sujeito do processo do engajamento? É impossível falar de
educação em geral em uma sociedade como a nossa e em um
mundo como o atual. Mais impossível ainda falar do enga-
jamento em Sartre de maneira abrangente. Isso exigiria uma
elaboração hercúlea! Do Sartre que conhecemos até os dias de
hoje, a vida social e política deu guinada de mudanças mui-
to profundas. Os ideais de educação também deram muitas
guinadas. Resolvemos partir de um ponto que poderia nos ser
mais produtivo. Depois de enxergarmos a questão filosófica do
engajamento como se apresenta nas obras de Sartre L’Être et le
Néant e L’Existencialiesme est un Humanisme, optamos por
seguir a trilha das possibilidades que a fenomenologia existen-
cial oferece para o entendimento do engajamento dos sujeitos
da educação no âmbito dos determinismos estruturais da so-
ciedade que submete o saber científico aos modos de produção
mercadológica. Adotamos a ideia de possibilidades de pensar
a educação sob uma ótica da fenomenologia existencial, cons-
cientes do risco de ir além de Sartre.
Sartre foi um pensador que despertou o interesse de
muitos leitores franceses e de grande parte do Ocidente. Ele
suscitou debates filosóficos, literários e políticos que atraiu os
mais diversos públicos. Concordamos com as tantas críticas,
13 Os trabalhos mais citados que encontramos sobre a temática são: BENHAMIDA,
2007, p. 230-239; DETMER, 2005, p. 78-90; KNELLER, 1958; MORRIS, 1966;
GORDON,2001;BURSTOW,2000,n.71;GALLO,2000;LIMA,2004; MARQUES,
2007; RESENDE, 2001.
39
como as de Merleau-Ponty, Bourdieu e Chauí, de que ele foi
um fenômeno midiático, citado e apontado como um sujeito
que exercia influência no modo de pensar e de agir da juven-
tude das décadas de 70 e 80 do século passado. Polêmico e
ousado, Sartre demonstrou com a própria vida as suas cren-
ças e convicções filosóficas, classificadas com os mais diversos
rótulos. Como constata Merleau-Ponty, ele foi autêntico e o
mais livre dos pensadores do século, mesmo que tenha causa-
do a ira de diversas tendências literárias, ideológicas, teológi-
cas e filosóficas:
[...] Para aquellos que conocen a Sartre, su destino literário
oferece, a primera vista, um mistério: no existe hombre menos
provocador y, sin embargo, como autor, causa escândalo. [...] Él
seguirá, pues, su caminho, entre la completa estima de unos y la
cólera de otros. [...] Es bueno que exista, de cuando en cuando,
un hombre libre (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 79-88).
O engajamento concebido por Sartre nas suas obras foi
o seu próprio projeto. Se imergirmos no sentido desse projeto
enxergamos nele um movimento triádico, típico do método
fenomenológico: mundo, coisas e sujeito, não se separam. O
sujeito só se entende a partir do mundo e dos significados do
mundo e de coisas de que o sujeito se torna responsável. O ser
enquanto ser é pura gratuidade e oferta, o homem é o único
ser que é consciência de si e daquilo que é oferta e de que é o
doador do sentido de tudo que lhe é ofertado. Entre a oferta
e o ofertado o sujeito é o único que é pura possibilidade. Nele
está o valor da existência e de toda e qualquer ação. Com isso,
queremos dizer que o engajamento enquanto projeto só tem
sentido para o sujeito em situação.
Adotamos em nossa tarefa de refletir a educação e o en-
gajamento a partir de Sartre cientes das dificuldades que a
temática nos trás. Falar da educação já é por si só um traba-
lho exigente. É necessário estar atento aos projetos históricos
40
que nos permitem pensar essa importante ação na sociedade.
Nosso referencial é o que expomos no início da exposição.
Entendemos a educação como um projeto que se realiza para
além das tentações do reproducionismo e de todas as mani-
festações ideológicas que aprisionam os sujeitos em estrutu-
ras fixistas de vivências humanas e sociais e ordens definidas
de conhecimentos tidos como padrão. Falar de engajamento
da e na educação nas organizações sociais atuais a partir de
Sartre exigiu-nos que adotássemos três dimensões do agir hu-
mano e educativo que o existencialismo nos inspira: o diálogo
in-condicional, a reciprocidade sem inter-medio e a responsa-
bilidade e compromisso ético.
Uma dimensão está relacionada à outra dentro dos pro-
cessos educativos. A ação educativa é em si mesma uma to-
talidade des-totalizadora: busca a totalidade da pessoa e dos
seus processos ciente de que nunca chegará a ser totalidade.
A dialogicidade sem condições pré-concebidas, a relação sem
mediações estabelecidas e as ações éticas responsáveis são, de
fato, as possibilidades de realização de processos educativos
coerentes que o existencialismo de Sartre pode nos inspirar.
Quando iniciamos esta reflexão partindo da ideia de su-
jeito que está por trás da concepção de engajamento de Sar-
tre, pensamos em torno de um dos mais graves problemas da
educação hoje. Mudamos em muito as formas de discursos
e as práticas educativas, descartamos as formas autoritárias
do agir pedagógico, mas adotamos projetos de educação ba-
seados em princípios que totalizam os saberes e as vivências
educacionais em conteúdos estruturados e definidos a partir
das classes dominantes. O conhecimento é uma forma de po-
der. Husserl e o movimento fenomenológico ainda se tornam
atuais para nos ajudar a crer que essa forma de fazer ciência
não passa de um equívoco. Nossa compreensão dos aspectos
des-totalizadores da educação voltada para as competências
e habilidades que uma sociedade define para as pessoas em
41
processos educativos e formativos negam o sujeito em si mes-
mo e elevam os níveis de possibilidade de diálogo, respeito
pelo outro e de compromisso social. A inspiração sartreana
não é senão uma via que conduz ao valor do humano, das
suas potencialidades dialogais e do despertar para a vida ética
responsável. Ainda que o existencialismo tenha deixado fis-
suras entre o pessoal e o social, é possível ver nele os indica-
dores para que os sujeitos sejam um projeto em construção e
pleno de aberturas para a vida ética responsável.
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45
INTENCIONALIDADE E MORALIDADE:
O HUMANISMO DE J.-P. SARTRE
Marcelo Fabri
1. Introdução
O objetivo do presente texto é apresentar a contribuição
de Sartre para a formulação de um conceito fenomenológico
de ética, tendo em vista a herança do conceito de intenciona-
lidade em sua reflexão sobre a realidade humana. A dimensão
ética da existência, que caracteriza o pensamento do filósofo
como um humanismo não-metafísico, ou tradicional, é explo-
rada de modo notável nos famosos Cahiers pour une morale
(SARTRE, 1983). Nessa obra fragmentada, e só publicada
postumamente, Sartre não deixa de pressupor o influxo de
Franz Brentano, para quem a consciência humana existe sem-
pre em busca de um fim. Na perspectiva sartreana, que tal
fim seja realizado é sempre desejável, uma vez que um valor
46
o acompanha necessariamente (SARTRE, 1983, p. 286). Para
Brentano, com efeito, a origem do conhecimento moral não
nos vem a partir de representações intuitivas de conteúdo físi-
co (qualidades sensíveis), mas sim de representações intuitivas
de conteúdo psíquico. E isso significa: o que importa, em tais
representações, é a sua referência intencional (BRENTANO,
2003, p. 51). Tal é a tese que tanto marcará a obra de Husserl, e
a partir da qual Sartre, por sua vez, afirma que a intencionali-
dade é reveladora do mundo para nós. A hipótese que guiará
nossa investigação é esta: ao dizer que “um fim humano tem,
por si mesmo, valor” (SARTRE, 1983, p. 287), Sartre não só
complementa como também ultrapassa as propostas de Bren-
tano e de Husserl sobre a moral. Por quê? Porque ele pensa
que, do ponto de vista moral, devo querer que os outros possam
fazer com que o ser venha a existir sobre o mundo. Um fim a
ser realizado se justifica, primeiramente, porque “é valor de
alguém neste mundo” (SARTRE, 1983, p. 292). Assim, se em
Brentano, e depois em Husserl, o bem que se torna evidente
para nós pede realização, Sartre parece buscar algo que trans-
borda o aristotelismo que permanece em ambos (permanên-
cia por vezes explícita, como no caso de Brentano, mas mui-
tas vezes apenas implícita, como no caso de Husserl). Como
entender essa ultrapassagem? Ora, na perspectiva sartreana,
“todo fim é bom, como realização de valor, até demonstração
em contrário” (SARTRE, 1983, p. 287). Em outros termos, o
ser só possui sentido na medida em que nos esforçamos para
que “o homem tenha um sentido” (SARTRE, 1983, p. 502). Tal
esforço é, desde o início, ação criadora, e não apenas passagem
da potência ao ato (isto é, passagem de um bem intencionado
para um bem realizado). Em Sartre, o agir é criador. A inten-
cionalidade afetiva ou prática, compreendida tanto em Bren-
tano quanto em Husserl por analogia aos atos teóricos, se vê
ultrapassada ou transcendida, uma vez que o Bem não é, para
47
Sartre, apenas o fim intencionado e, em seguida, possivelmen-
te realizado, mas, sobretudo, algo a ser criado por nós. Como
quer que seja, tentaremos mostrar que se trata de uma visão
inovadora da consciência moral, mediante uma releitura ética
do conceito de intencionalidade.
2. Intencionalidade e moralidade segundo Brentano
Comecemos evidenciando a relação entre intencionali-
dade e moralidade segundo Franz Brentano. Uma das teses
principais da psicologia brentaniana é esta: os fenômenos psí-
quicos (o querer, o desejar, o imaginar, etc.) têm sempre uma
unidade real que os abarca, e essa unidade é a consciência
(BRENTANO, 2008, p. 169). Quando, por exemplo, notamos
uma pessoa que se aproxima de nós, ocorre uma representa-
ção sob a forma de percepção. A tal intencionalidade se so-
brepõe uma outra: reconheço, por exemplo, que tal pessoa é
um amigo, e fico imensamente feliz com o encontro. Tenho,
assim, sobre a base de um representado, um sentimento de
alegria indescritível e, no entanto, evidente para mim. Ora, a
representação e o sentimento que tenho não são atos desco-
nectados, isto é, não formam uma realidade separada uma
da outra. Tudo se passa como se a representação do objeto
amado viesse se fundir ao próprio amor. Tomado em senti-
do moral, isso significa que a consciência põe, para si mesma,
fins. Mais ainda: ela organiza os meios para realizar esses fins.
Nas palavras de Brentano: “Se queremos o meio, queremos o
fim, sendo que nosso desejo encerra tanto a representação do
meio quanto a do fim” (BRENTANO, 2008, p. 173). Numa pa-
lavra: nós fazemos escolhas por um ato único, e não de modo
48
fragmentado e desconectado. A consciência não só representa
os objetos sobre as quais a escolha se volta como também os
motivos que agradam em tal objeto. Assim: “O conjunto de
nossa vida psíquica, qualquer que seja a sua complexidade, cons-
titui sempre uma unidade real” (BRENTANO, 2008, p. 176).
Isso explica por que algo só pode ser desejado se for an-
tes representado. Qual a diferença? É que, nas representações,
não há contrários. A intensidade existente na representação
não ultrapassa aquela que se dá na vivacidade do fenômeno
(BRENTANO, 2008, p. 239). Dito de outro modo, nas repre-
sentações não há verdade nem falsidade, não há virtude nem
maldade. Amor e ódio são, portanto, uma intencionalidade
segunda, que se exerce sobre uma representação de base. Am-
bos entram no campo da atividade psíquica, do mesmo modo
que o ato de julgar. Nos juízos, há verdade ou falsidade, ao
passo que, nos sentimentos, há atração ou repulsão. No en-
tanto, quando amamos um objeto por causa de outro, rea-
lizamos um ato análogo ao juízo. Como? Não é verdade que
um juízo pode derivar de outro juízo, segundo leis particula-
res? (BRENTANO, 2008, p. 241). A diferença é que se no juízo
algo é admitido ou recusado, nos sentimentos algo é dotado
ou não de valor (BRENTANO, 2008, p. 254). Ora, se o objeto
em questão possui valor, ele será chamado bom, caso contrá-
rio será mau, ou ruim. Quando gostamos de algo, amamos
que ele seja assim como é. Quando queremos realizar uma
ação, amamos fazê-la, seja por si mesma, seja em consequên-
cia de algo (BRENTANO, 2008, p. 262).
Mas aqui é preciso cuidado. Não se trata de dizer que
é apenas porque me agrada que um determinado objeto seja
digno de ser amado. O que deve prevalecer é a correção, isto
é, uma espécie de concordância, conveniência ou justeza do
amor a um objeto. O sentimento daquele que ama de modo
justo se comporta de maneira adequada em relação ao objeto
49
do sentimento. Certo, o conhecimento sobre o bem não an-
tecede o sentimento sobre o bem, mas deve haver uma expe-
riência subjetiva, chamada evidência apodítica, que nos faz
ver que, assim como algo é correto do ponto de vista do juízo,
ele será correto também do ponto de vista afetivo. Há, por-
tanto, atos de amor e de ódio que podem ser considerados
corretos. Por que há valorações legítimas? Porque os axiomas
de valor podem ser imediatamente evidentes. Não é verda-
de que temos ódio natural à dor? E prazer, quando obtemos
uma compreensão clara de algo? (BRENTANO, 2003, p. 64).
Por conseguinte, a correção e a evidência do juízo, bem como
a correção e a nobreza do sentimento, aparecem como conse-
quência do bem (BRENTANO, 2003, p. 66). Pergunta Bren-
tano: como um ato afetivo pode ser considerado bom por si
mesmo? Em primeiro lugar, ele deve ser justo (o prazer causado
pela visão do espetáculo do mal, por exemplo, será incorreto).
Em segundo lugar, é preciso que tal ato seja prazeroso. Assim,
quando experimentamos em nós um amor considerado justo,
estaremos em condições de formar, na medida de nossas forças
e de nosso esforço crítico, o conhecimento de que existe um
bem verdadeiro e indubitável (BRENTANO, 2003, p. 66).
Chegamos, assim, ao núcleo da discussão brentaniana
sobre o conhecimento moral. O imperativo incontornável é
a realização do melhor entre aquilo que se pode atingir. For-
malmente, temos: a) é preferível a totalidade de um bem a
uma de suas partes; b) é preferível uma das partes do mal à
sua totalidade. No que diz respeito ao bem, a soma das par-
tes é melhor que apenas uma das partes. O princípio supremo
é, portanto, a soma do bem. É preciso evitar que uma parte
seja escolhida em detrimento do todo. O maior dever que
possuímos é o dom de si, pois promover o bem na soma de
suas partes é o fim mais justo possível em toda ação humana
(BRENTANO, 2003, p. 75).
50
3. 
Aspiração ao racional: a consciência
ética em Husserl
Até que ponto Husserl segue Brentano? Vimos que,
para este último, escolher um fim implica escolher também
os meios para realizá-lo. Ora, isso não se dá na perspectiva
husserliana, para a qual podemos muito bem escolher um fim
sem ter clareza quanto aos meios necessários para realizá-lo.
Nem sempre querer um fim é querer este meio singular. Para
Husserl, o querer sempre almeja alguma coisa. A vontade di-
rigida a um fim só é possível através de um caminho, mas isso
não implica a representação desse caminho como algo deter-
minado. O caminho pode ser aclarado posteriormente, e de
modo crescente. É assim que a vontade vai se determinando a
si mesma. Nas palavras de Husserl: “Há representações deter-
minadas e representações indeterminadas, e essas duas formas
podem estar na base do querer” (HUSSERL, 2009, p. 128).
No entanto, um inevitável prolongamento das teses de
Brentano se faz notar na ética fenomenológica, pois Husserl
afirma que o verdadeiro homem deve conduzir sua vida sub-
metendo-se a este imperativo: “Seja um verdadeiro homem,
conduza uma vida que de regra possa justificar de maneira
evidente, uma vida fundada na razão prática” (HUSSERL,
1999, p. 43). Regular a vida pelo imperativo categórico é exigir
da vida o melhor possível diante da razão, e os atos pessoais
são decisivos para tal (HUSSERL, 1999, p. 48). O influxo bren-
taniano sobre Husserl se faz notar, sobretudo, no seguinte. A
busca do bem maior, isto é, daquilo que seria o melhor entre
o que é possível realizar, deve ser o de uma vida à procura de
justificações evidentes. A consciência ética, para Husserl, de-
pende da consciência de uma responsabilidade racional, que
não é outra senão a responsabilidade pelo justo e pelo injusto,
em tudo o que fazemos (HUSSERL, 1999, p. 38). O querer é
51
racional porque se funda na representação de algo que deve ser
realizado. Algo vem almejado quando surge como um valor,
isto é, quando exige que a ação seja realizada. Querer é dar
significado ao fazer, é intencionar algo que ainda não é sob a
forma de um bem, ou o Bem (HUSSERL, 2009, p. 226).
Segundo a ética husserliana, o ser humano pode sem-
pre julgar a si mesmo, avaliando seus atos tanto quanto suas
possibilidades práticas. Certo, podemos nos tornar presas
das paixões, das inclinações e dos afetos, mas ao agir passivo
sobrepõe-se o agir autêntico, graças a um sujeito que sempre
pode querer para além de si mesmo, isto é, de seu egoísmo. No
entanto, mais do que um formalismo universalista, está em
jogo uma subjetividade humana como aspiração, vale dizer,
como orientação para bens positivos. A ação positiva, que sem-
pre é motivada de modo novo, nos conduz tanto a desilusões
quanto a satisfações. O sujeito vive numa luta interminável
por uma vida plena de valor, abandonando sua passividade.
Ele toma posse de sua vida, aspirando ao bem e à realização
(HUSSERL, 1999, p. 31). É nesse sentido que Husserl fala de
uma aspiração racional, que se dá sob a forma de busca de
clareza intuitiva. Trata-se da “aspiração a lançar luz, através
da apreensão evidente, sobre o ‘verdadeiro’, nos aspectos res-
pectivos – o verdadeiro ser, o verdadeiro conteúdo do juízo,
os verdadeiros ou ‘autênticos’ valores e bens [...]” (HUSSERL,
1999, p. 31). O influxo de Brentano se evidencia ainda mais,
uma vez que, para Husserl, a aspiração racional supõe leis prá-
ticas capazes de direcionar o agir. A fórmula “Entre os bens
realizáveis, escolhe o melhor” é algo formalmente correto, in-
dependentemente da matéria ou situação real (contingente)
na qual nos encontramos. Do mesmo modo:
Da realização coletiva dos bens práticos, que em tal processo
não sofram uma diminuição de valor, resulta um “bem su-
mular”, que possui um valor maior em relação àquele de cada
uma das somas parciais agregadas ou de cada membro singular
(HUSSERL, 1999, p. 39).
52
A satisfação almejada ultrapassa todo bem singular, par-
cial, egoísta. Podemos adquirir a certeza de poder conduzir
a vida inteira regidos por esse critério. A consciência moral
(Gewissen) não é outra senão a consciência de responsabilida-
de que emerge em situações individuais concretas, mas diante
das quais seriam possíveis justificações evidentes, capazes de
fornecer balizas para prepararmos antecipadamente as ações,
sem, no entanto, esquecermos de justificá-las posteriormente.
Uma correção sempre é possível, pois a responsabilidade pelo
justo e pelo injusto, em todas as situações, nos acompanha
necessariamente. Esse desejo de autorregulação racional, fun-
dada na consciência ética, conduz inevitavelmente à autojus-
tificação e à autossatisfação (HUSSERL, 1999, p. 39). O ser
humano não é racional porque possui uma faculdade racio-
nal, mas, sim, porque aspira ao racional como valor prático.
Procura realizar o verdadeiro bem, isto é, aquele que apresen-
ta como sendo o melhor.
O dever que se cumpre conduz ao prazer e à satisfa-
ção. Estamos inclinados naturalmente ao prazer, mas o ser
humano, entendido essencialmente como aspiração, toma
posição “em relação a si mesmo e em relação à vida” (BIAN-
CHI, 1999, p. 149). Eis o desejo forte de se viver uma vida
racional, em que a razão lógica pode guiar a esfera afetiva.
A ética requer a ideia de um ser humano prático, em sentido
ideal. É como se um Eu ideal acompanhasse o eu empírico,
incentivando-o à busca de clareza, de verdade, de justiça.
O Eu pode, assim, tomar a si mesmo como sujeito e objeto
da ética (HUSSERL, 1999, p. 44). Em cada situação, se deve
fazer o melhor possível. Eis por que a pessoa racional é cria-
dora de si mesma, é o sujeito que cria a si mesmo enquanto
absolutamente racional.
53
4. 
A liberdade para além da aspiração ao racional
(Sartre)
Quando nos voltamos para o existencialismo sartreano,
a distância em relação ao “racionalismo ético” exposto aci-
ma parece enorme. Em Sartre, com efeito, a conquista sobre
si mesmo será a marca decisiva da liberdade, entendida como
“movimento pelo qual perpetuamente nos desprendemos e nos
libertamos” (SARTRE, 1948, p. 75). Não se pode, portanto,
dizer que a liberdade simplesmente é, uma vez que sua re-
alidade depende de uma conquista numa situação histórica
(SARTRE, 1948, p. 76). Como existente humano no mundo,
meus atos ensinam a existência de minha liberdade. Ou seja,
meus atos mostram que, “em meu ser, a liberdade está em
questão” (SARTRE, 1943, p. 493). Por conseguinte, a liber-
dade não é para Sartre um ato volitivo que realizará ou não
uma intenção. A liberdade é o nada que constrange a realida-
de humana a agir, a fazer-se, a tornar-se presente a ela mesma.
(SARTRE, 1943, p. 497). Nos Cahiers pour une morale, o fi-
lósofo afirma: “A ação do homem é a criação do mundo; mas
a criação do mundo é a criação do homem. O homem se cria
por intermédio de sua ação sobre o mundo” (1983, p. 129). O
mundo se organiza em motivos porque a consciência é viva,
atuante e, sobretudo, livre. A liberdade está para além dos
motivos, dos móbeis e dos fins exatamente porque nenhum
deles pode ser tomado como permanente ou transcendente
(SARTRE, 1943, p. 505).
Minha ação tem sentido porque é projeto de mim mes-
mo em direção a um possível (SARTRE, 1943, p. 515). Certo,
nossas ações tendem a realizar algo que ainda não é, mas
esse movimento é um projetar-se, uma escolha de mim mes-
mo no mundo. Ao agir, não busco igualar-me a um Eu ideal
(Husserl). Quero apenas fazer que uma realidade indiferente
54
receba a marca de minha subjetividade, de minha ação cria-
dora. Através dessa nadificação, um novo mundo pode surgir
(SARTRE, 1943, p. 516). Toda ação particular recebe seu
sentido a partir da liberdade. Cada um de meus atos me re-
vela a mim mesmo. Revela, igualmente, o mundo para mim
(SARTRE, 1943, p. 517). Por conseguinte, algo só me aparece
como sendo digno de ser escolhido porque já fiz uma escolha
de mim mesmo.
Tudo aquilo que possuímos ou que nos é familiar, bem
como tudo o que realizamos de significativo no mundo, já
traz a marca de nossa escolha, de nosso próprio ser. Tudo o
que me surge como possível já depende do fundo de liber-
dade que me faz humano. Eu já me escolhi a mim mesmo
sob a forma de uma nadificação, entendida como ato de fazer
que o futuro venha dizer aquilo que eu sou. É esse porvir que
confere um novo sentido àquilo que eu próprio fui (SARTRE,
1943, p. 521). Eis por que a liberdade, desde o início, põe os
fins originais. Antes de tudo, há uma escolha original de nós
mesmos. Sem isso, nada seria compreensível. Na falta de tal
escolha, não poderíamos organizar, no mundo, nossos moti-
vos, nossos móbeis, nossos desafios, nosso tempo. Escolha e
consciência não são distintas uma da outra. Por quê?
A escolha original já estava “lá” quando decidimos refletir e,
portanto, identifica-se com a espontaneidade irrefletida da
consciência. E, se prestarmos atenção, veremos que só tomamos
consciência de nós mesmos enquanto comprometidos em certos
empreendimentos, esperando certas “respostas” do mundo, rece-
bendo outras possibilidades, e assim por diante [...] (GUIMARÃES
RODRIGUES, 2010, p. 188-189).
É como se meus atos e escolhas parciais ao longo da vida
estivessem, necessariamente, atrelados a uma totalidade que
permite compreendê-los (interpretação existencial da unida-
de da consciência, de Brentano?). Não há nada que permita
55
justificar a ausência de liberdade no para-si (consciência).
Nada de exterior pode livrá-lo das escolhas que deve fazer de
seus fins primários e secundários. Os fins escolhidos são in-
terpretados graças à ligação entre eles, mas tal ligação não se
dá por uma estrutura lógica e a priori. Em cada caso, o para-si
fornece seus próprios critérios (SARTRE, 1943, p. 527). Uma
vez que somos livres, e nada fundamenta a liberdade, po-
demos fazer disso ou daquilo uma realidade a ser almejada
volitivamente. Nosso ser, sendo originariamente escolha, é o
que faz de nós sujeitos que realizarão sua liberdade de modo
“nobre” ou “vil”, de maneira “humilhante” ou “grandiosa”. É
a partir da escolha original que deveremos encontrar os meios
para realizar os fins que nos propomos realizar. “A vontade
só tem eficácia no quadro de minha escolha fundamental”
(SARTRE, 1943, p. 531). Sem que o projeto fundamental seja
mudado, tudo o que se faz, no plano volitivo, apenas confir-
ma o que já se havia escolhido. No entanto, ainda aqui é a
liberdade que nos define, pois sempre poderemos, mesmo que
em instantes extraordinários e maravilhosos, fazer que um
novo projeto suplante o anterior (SARTRE, 1943, p. 532). A
vontade emerge de um projeto original de nós mesmos, mas a
liberdade se mantém de modo a tornar possível uma transfor-
mação radical em nossa existência, sem a qual a vontade, por
si mesma, nada poderia fazer.
A liberdade é, pois, criadora. Um mundo novo sempre
pode surgir por nossos atos. Só podemos ser o que já fomos
sob a condição de nos lançarmos para nossos possíveis. Nós
nos apreendemos como escolha em vias de se fazer. Nunca
nos realizarmos plenamente. Seremos sempre inacabados.
A escolha não possui nenhum apoio, nenhuma segurança,
nenhum descanso numa realidade em si. Diferentemente de
Husserl, não é a busca de evidências racionais que será, para
Sartre, o ponto de partida de uma fenomenologia da vontade,
56
mas sim a descrição do nosso existir como escolha, para além
de todas as razões. As razões surgirão enquanto dependentes
da liberdade. Se eu não tivesse de me escolher perpetuamente,
então eu poderia ser um em-si. Mas somos lançados na pró-
pria liberdade, entendida como falta de ser (SARTRE, 1943,
p. 542). Um simples dado já é um motivo, mas este só se es-
clarece à luz de um fim escolhido. Seremos motivados desse
ou daquele modo a partir da projeção em direção a um fim.
É porque somos livres que encontramos obstáculos. Minha
liberdade me faz conhecer minha facticidade (meu lugar no
mundo, minha situação na vida, meu passado, e assim por
diante) (SARTRE, 1943, p. 551). É hora de nos perguntarmos:
pode-se pensar numa moral com base nessas proposições? O
primado da liberdade não nega qualquer proposição prática
que procura limitar a própria liberdade? Há um imperativo
categórico sartreano?
4.1. Intencionalidade e responsabilidade
Na nossa perspectiva, Sartre termina se aproximando da
ética, em sentido fenomenológico. Por quê? Porque o existir
no mundo me chama à responsabilidade. Devo sempre tomar
posição não apenas acerca do que projeto para mim mesmo,
pois tal projeção já me compromete com os projetos de outrem
e dos outros. O ser humano, que está condenado a ser livre, é
aquele que carrega em si “o peso do mundo inteiro sobre suas
costas” (SARTRE, 1943, p. 612). Esta solidão é apenas trágica,
ou traz em si um sentido moral? Ora, para Sartre é graças
a outrem e aos outros que posso dar um sentido objetivo a
subjetividades extintas. A morte não é apenas a minha pos-
sibilidade a mais própria (Heidegger), pois a finitude revela o
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  • 2. © 2013 Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE Mantido pelo Instituto da Sagrada Família Coleção Temáticas Filosóficas Editor: Iltomar Siviero Co-Editora: Nilva Rosin Diretor Geral: José André da Costa Diretor Pedagógico: Paulo César Carbonari Diretor Administrativo: Iltomar Siviero Vice-Diretor Administrativo: Moacir Filipin Vice-Diretor Pedagógico: Valdevir Both Edição: Editora IFIBE Coordenação Editorial: Diego Ecker e Ésio Francisco Salvetti Capa e projeto gráfico: Diego Ecker Diagramação e normatização: Wanduir R. Sausen Impressão e Acabamento: Gráfica Berthier Coleção Temáticas Filosóficas, v. 6 Rua Senador Pinheiro, 350 - Rodrigues 99070-220 - Passo Fundo - RS Fone (54) 3045-3277 E-mail: editora@ifibe.edu.br Site: www.ifibe.edu.br/editora 2013 Proibida reprodução total ou parcial nos termos da lei. Instituto Superior de Filosofia Berthier – IFIBE CIP – Catalogação na Publicação E96 Existência e liberdade: diálogos filosóficos e pedagógicos em Jean-Paul Sartre / organizadores Diego Ecker, Ésio Francisco Salvetti; Cecília Pires... [et al.] – Passo Fundo: IFIBE, 2013. 127 p. ; 21 cm. - (Coleção temáticas filosóficas; v.6). ISBN: 978-85-8259-008-9 Inclui bibliografia 1. Sartre, Jean-Paul, 1905-1980 – Crítica e interpretação. 2. Educação – Filosofia. I. Ecker, Diego, coord. II. Salvetti, Ésio Francisco, coord. III. Pires, Cecilia. IV. Título. CDU: 37.01 Catalogação: Bibliotecária Daniele Rosa Monteiro - CRB 10/2091
  • 3. SUMÁRIO Apresentação............................................................................. 7 Educação e engajamento a partir de Sartre........................ 11 Nelio Vieira de Melo Intencionalidade e moralidade: o humanismo de J.-P. Sartre.................................................... 45 Marcelo Fabri O debate entre Sartre e Merleau-Ponty............................... 63 Simeão Donizeti Sass Sartre místico: existência e liberdade em A náusea............ 83 Noeli Dutra Rossatto Sartre, um projeto ético de compromisso político...........107 Cecília Pires Sobre os autores(as)...................................................................125
  • 4.
  • 5. 7 APRESENTAÇÃO Jean-Paul Sartre (1905-1980), escritor, dramaturgo e filó- sofo, foi um dos principais expoentes do existencialismo. Sendo um filósofo de importância para a atualidade. Sartre ilustra sua filosofia com ações que se estendem ao engajamento político e social. O reflexo de suas obras e de seu posicionamento mar- cou significativamente os anos de 1950 a 1960 e, até hoje, ecoa na Filosofia, na Literatura, na Educação, entre outras áreas. O existencialismo foi compreendido de distintos modos, tornando-se praticamente um fenômeno cultural, um modis- mo, sobretudo no contexto do pós-guerra. Para Sartre, o exis- tencialismo é uma doutrina filosófica que se desenvolve sobre a tese de que a existência precede a essência. A existência humana ganha sentido a partir das ações realizadas por cada pessoa. Não há uma essência pré-definida a partir da qual o ser humano corresponda de algum modo; sua irrupção no mundo é inteiramente gratuita e tudo o que ele vier a ser o será em virtude do que fizer de si mesmo, de suas escolhas, das ações que praticar. A responsabilidade que recai sobre nossas ações decorre da própria indeterminação originária do humano, pois, tendo em vista sua plena abertura para as possibilidades, pode ser
  • 6. 8 entendido como um projeto. Ao projetar-se, o ser humano se lança para o futuro em vista de suas possibilidades de reali- zação. Assim, como diz Sartre, o ser humano está condenado à liberdade: condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é respon- sável por tudo quanto fizer. A realização do VI Seminário Temático – Existência e liberdade: diálogos filosóficos e pedagógicos em Jean-Paul Sartre, nos dias 17 a 19 de setembro de 2012, no Instituto Superior de Filosofia Berthier (IFIBE), em Passo Fundo, RS, enfocou o tema da relação entre liberdade e existência a partir de Sartre, motivada pelos desafios atuais que emergem no âmbito da Filo- sofia e da Educação. Esta obra tem a finalidade de registrar a reflexão produzida a partir deste encontro e propiciar aos pesquisadores e interessados a continuidade do diálogo. O tema central do encontro foi debatido a partir de três eixos temáticos: 1) Existência e liberdade, abordando a dimen- são fenomenológica do humanismo existencialista sartreano; 2) Moral e política, tratando das implicações entre a liberdade e o compromisso ético; e 3) Educação e engajamento, proble- matizando concepções de educação pelo viés crítico do con- ceito de engajamento. No discorrer da programação do evento os três eixos temáticos foram abordados em três conferências, um painel, um cine-fórum – com exibição do documentário Sartre por ele mesmo – e oito comunicações. O evento reuniu mais de 80 participantes, dentre eles acadêmicos de graduação e pós-graduação em filosofia e áreas afins, além de professores/ as e pesquisadores/as do pensamento de Sartre. A coordenação da organização do evento contou com a parceria do Curso de Graduação em Filosofia da Universidade de Passo Fundo (Fi- losofia/UPF) e do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (PPGEdu/UPF). Nesta sexta edição da Coleção Temáticas Filosóficas, da Editora IFIBE, foram organizados os textos que serviram de base para a realização das conferências.
  • 7. 9 O primeiro texto é de autoria do professor Nelio Vieira de Melo, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), de Recife, PE. No texto Educação e engajamento a partir de Sartre, problematiza a educação a partir do referencial exis- tencialista sartreano mostrando que a educação é um dado constituinte do sujeito, algo que está para além das manifesta- ções de reprodução social e de todas as formas instituídas de controle ideológico que aprisionam os sujeitos em estruturas, vivências sociais e ordens definidas de conhecimentos tidos como padrão. Aborda o engajamento na educação e nas or- ganizações sociais e políticas a partir de três aspectos do agir humano e educativo: o diálogo incondicional, a reciprocidade sem intermédio e a responsabilidade e compromisso ético. O professor Marcelo Fabri, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), RS, em seu texto, Intencionalidade e moralidade: o humanismo de J.-P. Sartre, apresenta a con- tribuição de Sartre para o desenvolvimento de um conceito fenomenológico de ética a partir da tradição fenomenológica e da reflexão sobre a condição humana, traços que marcam profundamente o pensamento de Sartre. Simeão Donizeti Sass, da Universidade Federal de Uber- lândia (UFU), MG, no texto O debate entre Sartre e Merleau- -Ponty, explora comparativamente o desenvolvimento da filo- sofia sartreana a partir do diálogo com Ponty e suas críticas à Sartre. Trata-se de uma análise que tenciona as posições dos dois filósofos e desdobra suas implicações teóricas com pre- cisão e agudeza. O texto do professor Noeli Dutra Rossatto, da Universi- dade Federal de Santa Maria, RS, é muito provocativo, desde seu título Sartre místico: existência e liberdade em A Náusea, o leitor habituado com a perspectiva tradicional de aborda- gem da filosofia sartreana sofre um mal-estar. Trata-se de uma abordagem aguçada e reveladora onde A Náusea é to- mada desde a perspectiva de análise que investiga a existên- cia ou não de um elemento místico.
  • 8. 10 Com o texto da professora Cecília Pires, da Universida- de do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), RS, encerramos a coletânea na abordagem de Sartre, um projeto ético de com- promisso político, onde a relação entre ética e política é arti- culada pelo conceito de liberdade mostrando que a filosofia sartreana ultrapassa a dimensão meramente especulativa e se insere na historicidade de seu tempo reconstruindo a unidade entre as dimensões ética e política que se traduzem no com- promisso do fazer histórico. *** Como responsáveis pela organização desta obra e da re- alização do Seminário, agradecemos a todos e todas que co- laboraram nas mais variadas atividades em vista de sua reali- zação. Com esta publicação queremos partilhar a riqueza e a proficuidade dos debates e das provocações construídas. Ofe- recemos ao público interessado na leitura de temas filosóficos um subsídio consistente, tanto para quem é iniciante quan- to para quem se insere no universo da pesquisa acadêmica. Além do mais, o Seminário e esta obra procuram posicionar elementos de discussão e de retomada do pensamento sartre- ano na perspectiva de colaborar com as reflexões já existentes e motivar a pesquisa de temas que consideramos de grande importância para o contexto histórico de nossos dias a partir da obra de Sartre. Passo Fundo, outubro de 2013. Diego Ecker Ésio Francisco Salvetti Organizadores
  • 9. 11 EDUCAÇÃO E ENGAJAMENTO A PARTIR DE SARTRE Nelio Vieira de Melo 1. Problematização inicial O que fazer da educação é algo que não se separa das formas de organização social e das justificativas teóricas que dão sustentação aos projetos históricos. Comungamos com as afirmações de que a educação seja uma reprodução dos interesses dominantes e admitimos também que não exista projeto educacional sem projeto de sociedade e de classes. Entretanto, estamos cientes de que os movimentos históri- cos das classes sociais dominantes carregam, no seu bojo, o verme das suas próprias contradições. Consideramos a vida e as organizações sociais como um fenômeno, ao modo do movimento da evolução criadora, de Henri Bergson1 , e a 1 A ideia bergsoniana a que me refiro é a da interpenetração dos elementos na- turais sem que haja um simples fato causal que sirva como base descritiva ou explicativa. Achamos muito importante a ideia que desenvolve sobre modo de ser da consciência do sujeito que elabora os conhecimentos: “A consciência
  • 10. 12 teoria dos jogos, de Norbert Elias2 . Não dá para considerar a condição humana e o fenômeno social em geral. O fenômeno humano e as suas manifestações se dão em processos muitas vezes relacionados, por vezes infinitamente fugidios e nem sempre classificáveis em conceitos determinados, pois o tem- po da sua duração é o mesmo da sua substituição. A história ocidental e o pensamento educacional brasilei- ro são depositários de muitos registros importantes de como a educação pode se tornar um projeto engajado na transfor- mação da pessoa e da sociedade. Muitas tendências teóricas e metodológicas se cruzam nesse cenário. Algumas se alinham com os modelos políticos e ideológicos dominantes, outras tentam fazer ajustes estruturalistas no âmbito da linguagem e das teias interdependentes do fenômeno cultural, social, eco- nômico e alguns enveredaram pela análise crítica da filosofia e das ciências humanas e sociais. O pensamento educacional anda sempre lado a lado com as possibilidades de pensar o humano e suas formas de organização. O desenvolvimento da ação educativa está atrelado aos modelos de organização so- cial, política e econômica que desejamos. Essas constatações não nos dão direito de pensar que a toda e qualquer ação edu- cativa sejam engajadas. Há que se dizer que há ações que não que nos é própria é a consciência de um certo ser vivo, localizado em um certo ponto do espaço; e, embora vá realmente na mesma direção que seu princípio, é incessantemente puxada no sentido inverso, obrigada, ainda que caminhe para frente, a olhar para trás” (BERGSON, 2005, p. 258). 2  A ideia está estreitamente ligada à compreensão da organização da sociedade dos indivíduos. Elias compreende a sociedade como uma teia de relações de indivíduos interdependentes, de grupos sociais, de figurações sociais. A teo- ria dos jogos de Norbert Elias objetiva uma análise sociológica e as relações interdependentes como jogos constantes, que podem ou não ser regrados, e que explicitam nas relações sociais, a disputa constante ou a manutenção do poder. A utilização desse modelo é uma ferramenta valiosa para facilitar a análise da sociedade, buscando a sua interpretação e explicação, a partir dos diferentes níveis de competição presente nas relações sociais. Os modelos de jogo ajudam a mostrar como os problemas sociológicos se tornam mais claros e como é mais fácil lidar com eles se os reorganizarmos em termos de equilí- brio, mais que em termos reificantes (ELIAS, 2008).
  • 11. 13 são senão uma reprodução social definida a partir das elites burocráticas dominantes. O reproducionismo é a forma mais comum de pensar a educação desde a antiguidade. Reprodu- zir o modelo não é compromisso social, é subserviência. En- gajamento só é possível pensar a partir da crítica aos modelos reproducionistas instalados e impostos nas sociedades.3 O século XIX e XX foram palcos de muitas lutas e mu- danças importantes. Tivemos grandes revoluções sociais mo- vidas pelo anseio de libertação das classes trabalhadoras. As ciências, como produto do humano, estiveram e ainda hoje se mantêm divididas entre o participar do jogo do poder, o manter-se neutra e pôr-se na postura crítica e do lado dos que buscavam as transformações. Só dá para pensar o engajamen- to a partir dos que se põem a serviço da transformação de sujeitos e da sociedade. Engajamento não se coaduna com o reproducionismo e com a neutralidade. Muitos pensadores europeus e latino-americanos do sé- culo XX foram importantes para que entendamos o sentido do intelectual engajado4 e, por conseguinte, do fazer pedagó- 3 Nosso viés para pensar a questão tem como referência importante três pen- sadores: Norbert Elias, com a teoria da interdependência; Max Weber, com a concepção de sociedade burocrática; e Pierre Bourdieu coma teoria da re- produção social. Na esteira do problema não ponho de lado o modo de pensar a cultura e as organizações humanas como sugeriram Levis Straus, Peirce, Vigotsky e outros. Temos consciência da abrangência desses teóricos em suas concepções e das críticas que a eles são feitas. O que neles buscamos como orientação são as contribuições relativas à compreensão da educação como forma do agir social que tende a criar e reproduzir o ato criado como projeto que se impõe vigorosamente em todas as dimensões do agir humano e se visi- bilizando na vida social, educacional, racional, linguística, religiosa, política, ética, etc. O humano se torna uma realizada que se pode enxergar a partir do que o humano faz, fala, organiza e define como modo de ser. 4 Não é muito simples falar em intelectual engajado Como em qualquer país, a França teve tem ainda seus momentos de profundas crises políticas, sociais e econômicas. A França de Jean-Paul Sartre, Maurice Merleu-Ponty, Albert Camus, Maurice Blanchot, Simone de Beauvoir viveu o despotismo que deu origem a Resistência. Após a guerra de 1945 a Resistência não se dissolveu, mas se multiplicou em muitas formas de reconstrução daquilo que o auto- ritarismo destruiu. O engajamento é algo que tem que ser analisado a partir do compromisso dos sujeitos com projetos sociais e políticos relevantes para
  • 12. 14 gico e educativo.5 Queremos deixar claro que o engajamento do intelectual e do educador não está imediatamente associa- do ao fato de ser uma pessoa renomada nos meios acadêmi- cos, artísticos, culturais e midiáticos. Nem sempre o sujeito que está em evidência nesses meios citados vive e se compro- mete com o que fala. Esse é o velho dilema da coerência en- tre teoria e prática suscitado pela dialética e conhecido pelos educadores. As críticas conhecidas de Pierre Bourdieu a Sar- tre, as de Marilena Chauí ao expor a disputatio entre Sartre e Merleau-Ponty6 e tantas outras nos fazem entender o quanto é a vida de um povo como todo. Há intelectuais que se tornaram referência de sujeitos engajados para a mídia. Há os que se tornaram líderes e que faziam da sua arte de pensar e escrever um ato político. Criticando Sartre, Pierre Bour- dieu afirma: “Muitas vezes escrevem o que ninguém está apto a entender com construções racionais malabarescas. “Desde a morte de Sartre, há 15 anos, não surgiu na França nenhum “maitre-à-penser”... São os intelectuais mediáticos e os jornalistas que dizem isso - porque, naturalmente, eles próprios não são “maitres-á-penser”. É preciso levar em conta que o modelo sartriano de inte- lectual engajado correspondeu a uma etapa diferente da vida cultural fran- cesa e, sobretudo a uma etapa diferente da relação entre os intelectuais e os meios de comunicação. Muitas ações políticas de Sartre, ou mesmo de Michel Foucault, foram bem sucedidas porque contaram com um enorme apoio da imprensa. Hoje o espaço máximo que Sartre teria num jornal seria o de um artigo na página de opinião, porque os intelectuais mediáticos exercem uma espécie de monopólio da mídia. Suas obras são sem interesse, mas eles estão sempre dispostos a falar qualquer bobagem sobre qualquer assunto. “Aliás, até mesmo Sartre disse muitas besteiras” (TRIGO, 2013). 5 Lembramos as grandes contribuições dos pensadores que seguem a trilha de Antonio Gramsci, da teoria crítica e da dialética, dentre eles Paulo Freire, que resinificaram o agir pedagógico como compromisso libertador e trans- formador da sociedade. O movimento dialético da educação continua sendo uma das mais importantes formas de pensar a educação como forma de en- gajamento dos sujeitos envolvidos nos processos transformador da sociedade. Pessoa e sociedade constituem os elementos inseparáveis da transformação social, política, cultural e econômica. 6 Gostaria de destacar também que os movimentos históricos do engajamento não abrangem só as filosofias e as ciências. As grandes mudanças históricas envolvem a cultura, as artes, as religiões e todas as formas de organizações sociais. A questão que está em jogo e, talvez, essa seja a questão fulcral, é: o engajamento tem uma meta centrada na lógica disfarçada do capital ou visa à transformação da sociedade? E aí nos deparamos com uma realidade cruel que decepciona muitas vezes: a arte e o pensamento engajado podem ser coop- tados e recuperados pela lógica do capital e do poder. Basta que se perceba como um dado cultural popular passa de vulgar para o erudito. Na músi- ca brasileira temos muitas referências disso que estamos falando (TRIGO, 2013; CHAUÍ, 2013; DOS SANTOS, 2005).
  • 13. 15 complicado falar de intelectuais como Sartre. É fundamental que a nossa percepção de educadores eleve o entendimento de que vivemos em uma sociedade com muitas possibilidades de expressão e de engajamento. Não há modelos teóricos e práticos que sejam melhores ou superiores aos outros. Não há juízo de valor que se defina como o mais certo ou o mais ético para a análise de um modelo de engajamento. Os su- jeitos devem ser compreendidos em seu contexto. Hoje, nem Sartre, nem Merleau-Ponty, nem Bourdieu, nem mesmo os renomados acadêmicos franceses do século passado devem ser os melhores exemplos de homens e de mulheres engajados nas transformações sociais. Os pensamentos deles podem ser uma inspiração, nunca poderão se tornar dogmas! Retomar o tema do engajamento de Sartre depois dos sentidos que foram dados a essa “atitude de um intelectual” não é uma tarefa muito simples. Muito menos ainda pensar a educação a partir de uma concepção de engajamento tão sofrível como foi a de Sartre. Contudo, aceitamos o desafio da tarefa, cientes de que é necessário trazer à memória elementos que constituem aquilo que chamamos de inspiração do nosso pensador, o itinerário anterior aos conflitos intelectuais e mi- diáticos que ainda hoje parecem tão importantes para alguns acadêmicos também midiáticos. Querelas, elas são mais de- sejadas, lidas e divulgadas pela mídia. Vão sempre existir por haver quem discorde do modo de pensar e de viver de alguém. As querelas não nos atraem. Não são relevantes. Só revelam a antiga intriga academicista de intelectuais que pensam que o mundo deveria girar em torno deles. Adotamos em nossos estudos uma atitude: entender uma pessoa que construiu um pensamento e um projeto de vida pessoal e social a partir do centro do seu interesse. Ficamos com o possível, o impossível descartamos!
  • 14. 16 2. As re-visões7 das concepções de sujeito na fenomenologia de Husserl A relação entre a educação e o engajamento na fenome- nologia existencial de Sartre exige que façamos uma passa- gem necessária nos modos de entender o sujeito do conheci- mento humano na fenomenologia de Husserl, ainda que haja rastros da fenomenologia idealista de Hegel e da fenomeno- logia existencial de Heidegger. Entendemos que o problema do sujeito seja uma questão inicialmente centrada no fato do conhecimento de si, do mundo e do outro. A herança do racionalismo moderno e da fenomenologia fazem de Sartre ora um construcionista da ideia do sujeito autônomo, ora um desconstrucionista da ideia de subjetividade pura e do conhe- cimento como forma de instrumentalização do mundo das coisas e do outro. Queremos de antemão alertar para o pro- blema iminente da ambiguidade própria de Sartre e de vários pensadores de herança fenomenológica e dialética, bem como de outras tendências filosóficas e científicas contemporâneas. Isso não deve causar problemas para quem se torna um leitor- -pesquisador. A ambiguidade é um fato que não deve trazer pré-juízos para a reflexão filosófica. Ela é um dado do pensa- mento humano mesmo.8 7 O uso do hífen em muitos conceitos presentes na filosofia existencialista de Sartre e de outros filósofos do movimento fenomenológico tem uma motiva- ção: ora o conceito desconstrói o significado que lhe é próprio, ora mantém o significado original. A partir do conceito de revisão (re-visão), serão en- contradas no texto outros conceitos com essa forma ambígua de significação. Esperamos que o leitor entenda tais conceitos sem estranheza e perceba que o grau da ambiguidade é proposital dentro da nossa leitura do existencialismo de Sartre e dos filósofos do movimento fenomenológico. 8 É necessário que se tenha claro que a fenomenologia adota em parte o itine- rário moderno da construção do conhecimento quando parte da ideia de sujeito. Não desejamos com isso pré-judicar inicialmente a compreensão sartreana, nem mesmo nivelar a base dos seus princípios. A ideia de sujeito fe- nomenológica de Sartre e de toda a fenomenologia é invertida, isto é, parte da exterioridade, da realidade fora do sujeito para construir um projeto ontológico.
  • 15. 17 Sartre é um entre muitos pensadores contemporâneos que traçou seu itinerário partindo da fenomenologia de Husserl e de Heidegger sem perder de vista a forte influência de Hegel e das concepções modernas que deram à razão humana a estru- tura que ainda marca indelevelmente a concepção de educação, de pessoa, de ética, de sociedade, de política e de ciências. As re-visões filosóficas do movimento fenomenológi- co iniciado por Husserl são marcadas por muita diversidade e divergência. No mundo humano, na filosofia e na ciência isso é uma constante. A desconstrução da ciência em Husserl se tornou marcante pelo ponto de partida ter sido deslocado. Na ciência moderna, o sujeito é o centro e o sentido de tudo. A metafísica é constituída a partir da singularidade do ego e para ele retorna como em um imenso giro hiperbólico de um ser sintetizador que a tudo absorve e dá significação. O ego moderno é o polo do universo (HUSSERL, 2013a, p. 3-4). Husserl põe em cheque essa estrutura sintetizante e solipsista do ego e propõe uma inversão que todo o movimento feno- menológico adotou. O conhecimento humano é um processo que se dá em meio à manifestação de fenômenos. O ser hu- mano é um ser em relação, ou seja, entre coisas e seres que se manifestam, ofertando-se e revelando-se a. O ser que pensa não é senão alguém capaz de perceber, tecer relações entre o ser do fenômeno e o fenômeno, elaborar processos de análise e desenvolver os meios de doação de sentidos. A abstração ideativa do fenômeno não se resume para Husserl somente na ideação do fenômeno. É necessário ir além da evidência da oferta de si do ser e de revelar os enunciados das essências. A via para se chegar a essência é longa e exige um re-posiciona- mento da consciência do sujeito cognoscente. O começo pas- sa pelo estreitamento necessário do sujeito entender que ele é o que é porque há seres e coisas fora dele que se manifestam Chamamos de sujeito invertido pelo fato de a realidade exterior ao sujeito se tornar a referência do entendimento da consciência das coisas. Existência, existentes e realidades exteriores são os elementos que tornam a consciência de alguém uma consciência posicional.
  • 16. 18 a ele. Sua consciência é o que é, mas ante a realidade do mun- do circundante. O método fenomenológico começa por aí, pela re-posição do sujeito ou da consciência e da suspensão da realidade transcendente ou de qualquer recurso indutivo ou dedutivo que pré-condicione a investigação da ciência (HUSSERL, 2013a, p. 7-14). O eixo da via fenomenológica é a intencionalidade. O ser da consciência está em constante relação com as manifestações fenomênicas das coisas – Er- lebnis. O ato de conhecer não se dá por uma simples ação do sujeito sobre o objeto, mas de uma ação exterior ao sujeito que lhe imprime possibilidades de entendimento. A posição do sujeito muda, portanto, dentro da relação tradicional da formulação do conhecimento humano; isto é, na relação com a exterioridade do mundo e das coisas, o sujeito deixa de estar no primeiro plano e passa para o de estar presente ante ao que se lhe manifesta: a consciência é em ato de ser consciên- cia das coisas (LEVINAS, 1930, p. 65-85).9 Intencionalidade e consciência formam a mesma realidade existencial e subje- tiva, o que podemos chamar de unidade subjetiva do sujei- to enquanto existente presente ante si mesmo, seres e coisas. Este modo de ser do sujeito o torna diferente daquele que o concebe como realidade que antecede e a tudo sintetiza com seu poder que é puro cogitatio. Em grandes linhas, a fenomenologia de Husserl é consti- tuída por movimentos de intensas correlações entre consciên- cia intencional e realidades objetivas. As reduções transcen- dentais ou fenomenológicas são iniciadas por un pas arrière, ou seja, pelo retorno à consciência de qualquer coisa. A re- dução fenomenológica consiste inicialmente na suspensão da experiência e dos conteúdos da realidade objetiva presentes na consciência como conteúdos do real. Isso permite ao sujeito 9 Seguimos a leitura de Lévinas (1930), sobre a obra Ideen de Husserl. Este capí- tulo apresenta a questão da intencionalidade da consciência de maneira mui- to sugestiva e sintética para quem deseja aprofundar as ideias de consciência como consciência de.
  • 17. 19 do conhecimento afastar-se da possibilidade de condicionar a percepção do fenômeno em dados enganosos e de revelar o fenômeno transcendental como correlato da consciência. Nossa preocupação aqui é também entender, dentro do retorno de Husserl à consciência como consciência de, como acontece a relação intersubjetiva e o modo do sujeito ser com- prometido em relação aos demais (PELIZZOLI, 1994, p. 34-36). Na análise fenomenológica do conhecimento há sim um en- tendimento da intersubjetividade ao modo de relações entre sujeitos. O modo pelo qual se estabelece a relação do eu com o alter ego vai aparecer na quinta Meditação Cartesiana: os outros são ao mesmo tempo percebidos pelo sujeito como objetos do mundo e como outros sujeitos que têm experiên- cia do mesmo mundo e do mesmo mundo do sujeito que não são eles (HUSSERL, MC, § 48)10 . No mundo se encontram os objetos naturais e culturais, ele está sempre aí, pronto; os outros estão aí e a filosofia não tem como meta representar o mundo diferentemente daquilo que ele é. A meta de Husserl foi resolver os problemas das possibilidades do conhecimen- to objetivo e, em meio à questão, apresentar a existência do sujeito para si e da relação de outrem para si, como proble- ma da teoria transcendental. A priori o problema da relação eu-outro-outrem em Husserl é pensada a partir da relação sujeito-objeto, ou seja, no âmbito da relação cognoscitiva que desemboca na subjetividade pessoal. Nas Conferências de Pa- ris, de 1929, Husserl afirma: É justamente assim que a subjectividade transcendental se alar- ga em intersubjectividade, em socialidade intersubjectivamente transcendental, que é o solo transcendental para a natureza e o mundo intersubjectivos em geral, não menos para o ser inter- subjectivo de todas as objectalidades ideais. O primeiro ego, a que conduz a redução transcendental, dispensa ainda as distin- ções entre o intencional, que lhe é originariamente peculiar, e o que nele é espelhamento do alter ego. É necessária, em primeiro 10 Utilizaremos a sigla MC para referir a obra: HUSSERL, 2001.
  • 18. 20 lugar, uma fenomenologia concreta ampliada, para alcançar a intersubjectividade como transcendental. Mas, apesar de tudo, revela-se aqui que, para quem medita filosoficamente, o seu ego é o ego originário e que, em seguida, numa sequência ulterior, a intersubjectividade só é, por seu turno, pensável para todo o ego imaginável como alter ego enquanto nele se reflecte. Nesta elucidação da empatia, revela-se também que há uma diferença abissal entre a constituição da natureza que já tem um sentido de ser para o ego abstractamente isolado, mas não ainda um sentido intersubjectivo, e a constituição do mundo do espírito. Por isso, o idealismo fenomenológico descobre-se como uma monadolo- gia fenomenológico-transcendental, que não é apenas qualquer construção metafísica, mas uma explicitação sistemática do sen- tido, que o mundo tem para nós todos antes de todo o filosofar, sentido esse que unicamente pode ser filosoficamente desfigura- do, mas não alterado (HUSSERL, 2013a, p. 35-36). A relação intersubjetiva de Husserl se tornou questioná- vel para vários de seus opositores pelo fato de haver uma nítida polaridade egológica na síntese do “eu-tu”, “nós”: de um lado se encontra a realidade do eu e de seu mundo, de outro, a do coletivo humano e do indivíduo. O parágrafo 50 das Medita- ções Cartesianas é concluído com a afirmação de uma “síntese intersubjetiva” que forma uma “comunidade do nós” “orien- tada no mundo comum”. A questão se torna enigmática e dei- xa em aberto o modo pelo qual essa tríade (eu-nós-”mundo da vida”) garantiria a unidade “transcendental” do conhecimen- to e a ideia de uma intersubjetividade consistente. Contudo, a meta de Husserl não é resolver a questão da intersubjetividade, não é indicar provas da existência de outro sujeito, ou do mun- do em geral, mas por em evidência o sentido dos atos inten- cionais em que outro sujeito é visado e posto como existente. (CESCON, 2009). Diante do exposto, entendemos que a fenomenologia fez itinerários que põem em evidência a relação intersubjetiva e aponta para as possibilidades de uma ética do compromisso entre sujeitos diferentes e partícipes de experiências e repre-
  • 19. 21 sentação que vão além do mundo natural, isto é, que se esta- belecem nos processos de interação e de sentidos presentes nos mundos humanos. Husserl abriu caminhos. Cremos que o seu projeto seja inacabado. Seus discípulos mesmos reconheceram isso e fizeram do movimento fenomenológico um depositá- rio de diversas tendências com pontos importantes de partida, seguindo a trilha da razão re-posicionada. É aí que podemos buscar as contribuições de Heidegger, Fink, Dufrenne, Stein, Merleau-Ponty, Sartre, de Henry, Lévinas, Gadamer, Derrida, Ricoeur e de tantos outros. Nossa intenção aqui não é defender Sartre como segui- dor do pensamento fenomenológico fundado por Husserl. Sem dúvida há em Sartre um nômade que trilha entre as margens da fenomenologia e das des-razões modernas. A sua ideia de sujeito tem algo de Husserl, embora o Ego moderno não es- teja tão ausente nas formas do agir ético. Não cremos que haja pensadores puros que se atenham a uma única fonte na cons- trução do pensamento. Se pensarmos como Elias, somos uma rede de projetos interconectados. Desse modo, nas raízes da concepção do sujeito sartreano, encontramos elementos que podem nos ajudar a entender o sujeito consigo mesmo, sua re- lação com o mundo e com o outro e o sentido do compromis- so, aspecto importante que podemos relacionar à educação. 3. As re-visões da concepção de sujeito e engajamento em Jean-Paul Sartre e possibilidades de interfaces com a educação Estamos habituados a buscar o conhecimento de um pen- sador a partir de outros. Isso é já um problema para a questão hermenêutica. A metodologia de análise da obra de um pensador
  • 20. 22 exige um itinerário que deve partir dele próprio. Para mim esse itinerário é constituído de: uma imersão na obra, uma análise descritiva e reveladora da obra, uma contextualização histórico-crítica e, por fim, uma afirmação da posição frente ao pensamento estudado. As metodologias podem ser diversas, e não há uma regra única para isso, embora muitos desejem. No âmbito do pensamento humano e das ciências não há verda- des muito definitivas. Isso pode ser um problema para muitos, mas isso é uma questão irresolvível. Falar da obra de Sartre em geral como muito se tem feito é complicado. A obra dele é vasta e cheia de possibilidades de compreensões. As classificações conhecidas dividem, criam rótulos e sintetizam tudo ao modo das concepções históricas e científicas que se habituaram a fragmentar e fixar o sujeito em estruturas determinadas. Sartre, como todos os pensado- res, escapam aos determinismos históricos que o mundo aca- dêmico e científico se habituou a classificar. O caminho para entender Sartre é o que ele mesmo fez em cada obra e no con- junto das suas ações, sem pré-juízos estabelecidos. Faço aqui um itinerário de entendimento de Sartre que vai da filosofia ao engajamento pelo ângulo das obras L’être et le Néant e L’Existencialisme est un Humanisme.11 Não temos in- tenção de abordar as questões surgidas a partir da aproximação de Sartre e o Marxismo, na obra Critiques de la Raison Dialec- tiques, nem pretensão de encerrá-lo em um dos esquematismos filosóficos, literários ou científicos gerados pelas querelas inte- lectuais entre Sartre e tantos pensadores do seu tempo. Esta- mos em outros tempos, e Sartre só se faz presente pela sua obra. Traçamos três pontos que nos possibilita acessar a ques- tão do engajamento e da educação. No primeiro abordamos o pressuposto de que a consciência de si-mesmo se dá como consciência de ser-no-mundo; no segundo discorremos como a escolha de si, enquanto projeto, torna-se também a escolha 11 Usamos as siglas EN e EH para indicar estas obras de Sartre.
  • 21. 23 do para-outro; e, no último ponto, a partir do para-outro em relação ao projeto, discorreremos sobre o compromisso pelo outro, ou seja, sobre o engajamento. É nesse terceiro ponto que faremos a incursão necessária da educação a partir da filosofia existencial sartreana. 3.1. Emergência da subjetividade e a educação como diálogo in-condicional A primeira via de compreensão do sujeito na concepção ontológica de Sartre é a escolha da existência, a descoberta de si mesmo como existente entre seres que estão no mundo. Essa caracterização de experiência existencial foi descrita de maneira magistral na obra “A Nausea”, quando o sujeito se sente no abandono de si como ser jogado no mundo. A ex- periência existencial é narrada de uma forma quase mística: sujeito e coisas são existentes que se misturam, e, em um dado momento, só o homem tem a possibilidade de dar significado à experiência e às coisas: [...] ainda agora no jardim público. A raiz do castanheiro se en- fiava na terra bem por baixo do meu banco. Já não me lembrava de que era uma raiz. As palavras se haviam dissipado e com elas o significado das coisas, seus modos de emprego, os frágeis pon- tos de referências que os homens traçam em sua superfície. Es- tava sentado, a cabeça baixa, sozinho diante dessa massa negra e nodosa, inteiramente bruta e assustadora. E depois tive essa ilu- minação. [...] E depois foi isto: de repente, ali estava, claro como o dia: a existência subitamente se revelara. Perdera seu aspecto inofensivo de categoria abstrata: era a própria massa das coisas, aquela raiz estava sovada de existência. Ou antes, a raiz, as gra- des do jardim, o banco, a relva rala do gramado, tudo se desva- necera; a diversidade das coisas, sua individualidade, era apenas uma aparência, um verniz. Esse verniz se dissolvera, restavam massas monstruosas e moles, em desordem - nuas, de uma nu- dez apavorante e obscena. [...] Todas as coisas, suavemente, ter- namente, se entregavam à existência... Existindo, era necessário
  • 22. 24 existir até aquele ponto, até o bolor, a tumidez, a obscenidade. [...] Pensava vagamente em me suprimir, para aniquilar pelo me- nos uma dessas existências supérfluas. Mas até mesmo a minha morte teria sido demais [...]: e eu era demais para a eternidade (SARTRE, 1986, p. 187-190). A náusea de Roquentin é um evento que vai além do constatar a gratuidade do mundo e do homem, descobrindo- -se na impossibilidade de ser justificado. A princípio, essa responsabilidade é sentida como um horror, pois a tendência humana é recusá-la. Depois, o homem percebe que não pode fugir da própria existência e das coisas. Sartre define-se pela sinceridade, lucidez e responsabilidade da pessoa. Isso o leva a reduzir o homem a ser responsável por tudo o que faz: não há desculpa e nem álibi para quem deseja viver covardemente sem descortinar a sua existência livre e nua. O sentir-se ante as coisas, abandonado a si mesmo, sujei- to de tudo, inclusive da sua participação no mundo é um even- to originário que Sartre propõe ao modo de não se ter como fugir ou se esconder. Todos estão aí, sendo e existindo, gra- tuitamente. Em EN, Sartre, seguindo a trilha do movimento fenomenológico, expõe a questão que estamos tratando: não há como a pessoa descortinar o sentido da existência e do hu- mano fora da manifestação do fenômeno. Tudo começa no palco da existência nua e pastosa do em-si. O humano é um em-si, é um ser entre outros, pureza original de uma mate- rialidade que a tudo envolve e contém. No evento originário do sujeito nada lhe precede. Sartre faz da imersão do sujeito como ser entre seres, como modo de tomar consciência de ser e existir entre seres e coisas que aparecem. Nesse movimen- to, a consciência toma posição: é percebente. Sartre chama tal movimento de ser da aparição: o fenômeno daquilo que se manifesta é o que se pode perceber dele. Ele é a condição do desvelamento: é que se desvela, é oferta de dados, pura ma- nifestação. Sartre, como Husserl, cria uma cisão necessária
  • 23. 25 entre a realidade do fenômeno do em-si e a realidade do para- -si, mas deixa claro que uma realidade não existe sem a outra, formando uma unidade: a consciência posicional. A consci- ência não existe por si-mesma. Ela é o que é como consciência de algo (EN, p. 20). O sujeito se constitui como consciência de existir na relação imediata com as coisas. Em si mesma a consciência não é nada, não tem conteúdo, é vazia. Ela neces- sita do ser-em-si, ou seja, do ser identificado consigo mesmo, para se constituir como realidade única. Com isso, Sartre não estaria definindo a consciência como uma realidade que exis- te e não existe ao mesmo tempo. Ela é o que não é ante o que é. É nesse contexto que emerge o fenômeno da nadificação: próprio do evento do sujeito, isto é, do para-si com o em-si: é pelo sujeito que o nada entra no mundo e se faz encrustado no âmago do coração humano como um verme (EN, p. 50). A consciência de si como consciência do projeto originá- rio revela o que de fato o humano é: contingência, facticidade, gratuidade e liberdade. Essa é a verdadeira realidade do hu- mano: injustificável e abandonado a si mesmo como ser dos possíveis. O sujeito se percebe como consciência de ser em re- lação às coisas (consciência de consciência de), mas separado delas, cindido e impossibilidade de coincidência, presente a si mesmo, mas fissurado (EN, p. 114). A fissura é o nada, é a cons- ciência eternamente em falta consigo mesma, impossibilitada de coincidência consigo mesma. O para-si é o ser que se deter- mina a si mesmo a existir sem nunca poder coincidir consigo mesmo. Aí é que reside o nada, no interior do para-si. O nada é o ser posto em questão, é o ser humano que está sempre esca- pando da totalização dos conceitos definitivos e prontos. Essa primeira via de entendimento do projeto sartreano nos leva a por em questão o sentido que estamos buscando para a educação como engajamento. No viés da eleição pelo projeto originário, como a educação poderia proporcionar essa vivência? É possível fazer essa experiência no contexto da educação institucional e ou formal? Como isso pode se dar?
  • 24. 26 O primeiro aspecto que devemos lembrar: para Sartre, nada e ninguém influenciaria alguém no ato de escolha do projeto originário. Diante da impossibilidade da eleição ser teleguia- da, como pensar a educação engajada? E se consideramos a crítica bourdieusiana da reprodução social na educação? Como relacionar o evento do sujeito sartreano no contexto de uma educação sem sujeitos? Sartre poria a questão a nossa época: os determinismos ideológicos agem intencionalmente para atingir a fragilidade do sujeito, coisificando, tornando-o qual uma peça a mais na engrenagem social por meio das ide- ologias. O despertar para um projeto pessoal tem seu ponto de partida na formação da subjetividade e da consciência. As duas são realidades que se complementam. A descoberta da consciência passa necessariamente pelo modo de um sujeito se entender como o cogito, ou seja, pelo reconhecimento de si mesmo como ser que antecede as coisas e demais seres que estão no mundo. O ser do fenômeno e o fenômeno são reali- dades distintas, mas inseparáveis. Um complementa o outro. Como já pudemos ver a subjetividade e a consciência de si não existem de forma etérea, mas preenchidas pela realida- de mundana que as circundam. Somos o que somos e nossas próprias circunstâncias, ou seja, não podemos existir como sujeitos e como consciência se não for dentro de um projeto existencial. Mesmo sendo a subjetividade uma realidade inte- rior ela só se constrói na exterioridade. Suas significações são encontradas no mundo. Entendemos que a eleição do projeto originário sartre- ano emerge dessa descoberta de si como consciência situa- da em meio às possibilidades de negação por meio da má-fe. Aqui está uma questão importante para que os processos edu- cativos tenham clareza: todo sujeito só é livre para se escolher a si e ao projeto originário; ele não é livre para agir na má-fe. Escolher-se a si e ao projeto é um ato de continuamente fazer- -se, de vigilância do único valor que é sempre um sendo, rea- lizando-se. A má-fe é o ato de representação e de cristalização da identidade do sujeito em uma forma pré-estabelecida.
  • 25. 27 Os processos desenvolvidos por uma educação compro- metida com a causa da formação do sujeito podem sugerir ao educador e ao educando o diálogo que põe as questões e ex- põe a nudez da existência sem reservas, categorias, princípios e modelos predefinidos. Se lermos atentamente os exemplos que Sartre dá em EH, podemos chamar essa forma de diálogo de in-condicional, modo de estabelecer uma relação educativa sem visar princípios, objetivos, estratégias e tempos. A elei- ção dos sujeitos são eventos em constante definição. É assim o evento da eleição do projeto originário. É um fazer-se que vai se dando no cotidiano da existência de cada um, tanto do educador quanto do educando. A prática dessa modalidade de relação dialogal desconstrói os planos que reificam e identifi- cam pessoas, tornando-as parte de uma totalidade impessoal e objetiva. Tratamos essa possibilidade da educação como uma des- construção da educação fundada em princípios abstratos que visam à estruturação de sujeitos adequados ao que se define previamente como verdade a ser seguida e observada. A elei- ção do projeto originário põe os sujeitos na plena in-condição de serem adequados. Certamente, todas as concepções de edu- cação que as sociedades atuais defendem terão dificuldades de entender e aceitar esse modo de pensar o papel da educação. 3.2. A eleição de si-mesmo como ser-para-outro e a possibilidade de pensar a educação na reciprocidade sem inter-médio Sartre concebe a subjetividade como liberdade: “o ho- mem é livre, o homem é liberdade” (EH, p. 253). Nada pode definir a priori o ser do homem e sua presença no cosmos não é de uma coisa a mais. A pessoa é o único ser que pode dar sentido a sua existência e a tudo que a circunda. O ser-no-
  • 26. 28 -mundo não se distingue do ser-livre: existência e liberdade são uma só realidade e um mesmo projeto (EH, p. 267). A li- berdade é o projeto originário; é a própria pessoa. Tal liberda- de só se revela por meio do agir. A ação e a expressão da liber- dade. O que move o sujeito na ação são os motivos e móveis e estes transcendem o sujeito porque estão fora dele. Entre- tanto, é em vão prender-se a eles, pois não há determinismos que condicionem qualquer ação humana: “Estou condenado a existir para sempre além de minha essência, além dos móveis, dos motivos de meus atos: estou condenado a ser livre. Isso significa... que não somos livres de cessar de ser livres” (EN, p. 484). Sartre pensa a condição humana sem qualquer apoio, auxílio, condenada a inventar-se a cada instante. Na frase “o homem não é o que ele é e é o que ele não é” Sartre expõe a tensão da facticidade entre os o poder-ser e o poder-sendo para justificar a estranheza da liberdade: o ser do para-si é esse movimento de um fazer-se sem poder deixar de inventar-se na sua cotidianidade. Nada está pronto, tudo está para ser feito. Desse modo, a existência é uma realidade injustificável, o homem é inevitavelmente a sua própria facti- cidade. Sem a facticidade o para-si seria determinado a ser e fazer conforme um projeto exterior ao seu (SARTRE, 1986, p. 193; EN, p. 119; EH, p. 278; COLOMBEL, 1986, p. 430). A contingência da liberdade se dá no plenum do ser do mundo. Sartre chama isto de situação. E o datum, aquilo que está sempre corroendo a liberdade e aparecendo ao homem como o que está iluminado por um fim, Sartre torna-o seme- lhante a um motivo. Isso explica o porquê da relação e da identificação entre situação e motivo (EN, p. 534). Desse modo, não há obstáculo para que a liberdade pos- sa ser absoluta para a pessoa. Sartre deduz que os obstáculos e resistências podem existir, podem ser superados por mim e podem existir para outros e serem superados por eles e não representar nada. É o homem que dá sentido a esse coeficiente de adversidades. Sua realidade é feita dessas coisas que não
  • 27. 29 dependem do homem. O que Sartre chama de facticidade da liberdade é o dado que ela há de ser e que é iluminado pelo seu projeto. Contudo, esse dado não é mais o que está fora, é a realidade inerente do ser que não mais pode deixar de ser ele mesmo (EN, p. 535). Situação e móveis supõem a facticidade: meu lugar, meu passado, meus entornos, meu próximo, minha morte, são limi- tes, conscientes ou não; eles emergem em meio às possibilidades de escolha, em situação, da qual eu não posso fugir. O para-si é livre, mas em situação. Não há situação senão pela liberdade; o homem é liberdade por ser capaz de superar seus limites, de alargar o campo das suas possibilidades, de criar e dar sentido às situações (EN, p. 535-598; COLOMBEL, 1986, p. 435-436). A liberdade implica que o homem realize, mesmo que na angústia, a sua condição de estar comprometido com a sua realização, com a realização do outro. A liberdade só se des- cobre no ato. Sartre cria uma unidade entre a liberdade e o ato de modo tal que a responsabilidade não passa de uma escolha, em situação, sem fundamento. O homem, como responsável pelo seu destino, é o fundamento do seu valor. Se o homem é liberdade, se a liberdade é o fundamento do valor, sua moral não existe senão nele mesmo. Um dado fundamental dessa construção ética sartrea- na é o fato de o homem estar obrigado a relacionar-se com o outro sem distâncias, sem intermédios: pelas minhas escolhas estou comprometido com o ser do outro; pelas escolhas do outro ele está comprometido comigo. Levantar possibilidade de refletir a ação educativa, considerando a afirmação sartre- ana de que a liberdade é definição do homem e não depende de outrem nos leva a preocupação sugerida pelo próprio pen- sador: a reciprocidade é o único modo de ser de uma relação inter-humana e educativa. Os sujeitos da educação são iguais no processo: a liberdade de um é um fim e devo considerar a do outro do mesmo modo. A lógica da relação é, portanto, a
  • 28. 30 da reciprocidade sem inter-médio. Isso significa que a relação educativa acontece na esfera da inteira gratuidade existencial e intersubjetiva de seres dos possíveis, factíveis e implicados pelo compromisso que lhes toca pela eleição de si mesmos, como seres inteiramente pro-jetados no mundo, situados em uma condição histórica pessoal e social, para se realizarem como pessoas. A base da reciprocidade é a da separação radi- cal – a diferença ontológica – que impõe a cada um e a todas as pessoas é a da responsabilidade de um pelo outro e por todos. Analisando a questão da reciprocidade sem inter-médio como forma do agir educativo, percebemos que algumas ques- tões deverão ser entendidas a partir do olhar da educação. A educação é realizada por meio de processos de intervenções pedagógicas entre pessoas educadoras e pessoas educandas. Cada processo é feito de elementos intencionais pré-dados e com mediações previstas. Vivemos modelos de educação que atribuem à pessoa educadora a função de inter-médio e de de- senvolver conteúdos, metodologias e estratégias que apontam para o alcance de metas. Mesmo os mais avançados processos educativos e métodos que desenvolvemos concebem a pessoa educadora como um inter-médio e a pessoa educanda como sujeitos modeláveis por meio das ações desenvolvidas. Visto pelo ângulo dos processos da educação que age desse modo, a reciprocidade sem inter-médio é impossível como modo de desenvolver processos educativos. Encontramo-nos diante de um obstáculo irremovível. O princípio da reciprocidade esbarra nas propostas insti- tucionais e nos seus projetos prontos do ensinar e do aprender, restando à pessoa-educadora e à pessoa-educanda a agirem no contexto das relações interpessoais. Por isso é que afirmamos que as ações são sem inter-medio. O projeto sartreano foi ou- sadia para a sua época e nos lembra as “transgressões” do pro- fessor John Keating (no filme Sociedade dos Poetas Mortos), que numa academia conservadora (Academia Welton), com o
  • 29. 31 seu talento e sabedoria, inspira os seus alunos a perseguir as suas paixões individuais e tornar as suas vidas extraordiná- rias. Outro filme que nos recorda essa relação dentro de mode- los rígidos é o filme “Escritores da Liberdade”, cuja professora Erin Gruwell rompe as estruturas rígidas que reproduzem na escola a segregação racial e social, estimulando o desenvolvi- mento de potencialidades que nenhum dos jovens da sua clas- se tinha consciência. Esses e outros enredos de filme ajudam a ilustrar o sentido da nossa proposição. A educação, em geral, é reprodutora de esquematismos definidos como oficiais e aco- modam cada pessoa em estruturas fixas. Agir como pessoa- -educadora não é tarefa fácil, mas acomodar-se a elas. Para Sartre, fazer o jogo da reprodução é a tentativa de negação da liberdade, portanto má-fé. A pessoa-educadora responsável pela pessoa-educanda e consciente da sua ação, sabe que sozi- nha não pode muito, mas pode agir no sentido de gerar atitu- des e descobertas importantes para as vivências dos que estão participando do mesmo projeto de educação. A reciprocidade sem inter-médio pode ser entendida como esse processo rela- cional que suscita a reflexão e a tomada de atitudes de pessoas livres, conscientes de que são sujeitos de suas próprias vidas e capazes de superar as barreiras do reproducionismo classista e conservador. 3.3. Responsabilidade, educação e compromisso ético O problema da relação intersubjetiva de Sartre não pode ser entendido como um evento solitário. O sujeito sartreano é simétrico e recíproco em relação ao outro. O outro é como sou: um ser entre outros e em relação comigo. Como sou livre, também ele é liberdade na facticidade, isto é, na a relação que o revela como ser-no-mundo percebe-se como ser que é para-
  • 30. 32 -outro, absolutamente livre frente ao outro que é absoluta- mente outro ser-para-mim. O próximo é também um sistema de representação, cujo centro é ele mesmo, como o eu o é de si mesmo. Ele é o outro que não sou e para quem eu sou um objeto: “ele é o que não sou: uma totalidade-destotalizadora, negação radical” (EN, p. 260), com quem só é possível uma re- lação de reciprocidade. O outro é aquele-que-me-vê. A minha ligação com ele consistirá na permanente possibilidade de ser visto e de ser constituído como um ser-objeto, enquanto ele é captado por mim como sujeito-objeto. O meu ser passa para ele, sem deixar de ser meu; apreendo-me como ser-para-ou- tro. Tal experiência traduz-se na expressão: estou sendo visto por outrem. Nessa relação em que eu me estabeleço como su- jeito, sou a minha própria transcendência, mas logo sou de- gradado, ameaçado pelo outro, na condição de objeto; nela, também eu, faço do outro um objeto que, porém, me escapa em sua dimensão básica: sua subjetividade, seu ser-para-si, seu ser sujeito (EN, p. 293-294). No eixo da reciprocidade há um resíduo conflitual entre o ser que logo sou e o outro sujeito que pode me apreender e me alienar dentro do seu sistema de representação. Forma-se aqui uma configuração monádica semelhante a que Husserl elabora na sua fenomenologia. Como a intersubjetividade é possível no interior da rela- ção conflitual? E como entender nesse jogo dual a responsa- bilidade? A lógica de Sartre não se resolve na síntese da dia- lética do senhor e do escravo, nem na abertura do sujeito ao outro com a atitude de construção da comunidade de sujeitos de sujeitos. Sartre mantém a autonomia de “eus” e se recusa a admitir que a intersubjetividade seja a simples relação de sujeitos iguais regidos por princípios que os unem, regulam e controlam. Não há síntese nem ponto de conexão no processo relacional sartreano. A autonomia de um é a mesma do outro na diferença ontológica radical. Entre os dois se encontra um dado que transcende e que tem uma configuração ideativa ao
  • 31. 33 modo de Husserl. No meio da dualidade está posto o proje- to originário que não pode ser recusado por mim nem pelo outro. Esse elemento é o que pode tornar possível o fim da dualidade conflitual entre os sujeitos. A emergência da intersubjetividade se dá, portanto, na relação processual entre sujeitos autônomos na facticidade. Os sujeitos se entendem dentro de um círculo de tentações do “malgré soi même” e do compromisso pré-existente no pro- -jeto originário. A intersubjetividade é um despertar para o compromisso com o outro: sou responsável por alguém, mesmo que isso me renda o viver na vigília contra a redução objetal e subjetal. O compromisso não é algo que se alimenta em relação a alguém, como movido por um sentimento ou um motivo qualquer, não é uma verificação de algo que se faz. Pelo contrário, é um projeto abraçado no cotidiano que independe de qualquer princípio (EH, p. 238). O primeiro significado que Sartre dá ao compromisso é que por meio dele o homem se realiza, realizando um tipo de humanidade (BURNIER, 1996, p. 38; BEAUVOIR, 1963, p. 33). Essa abrangência universal do compromisso passa pelo limite da condição humana: comprometer-se com o outro é as- sumir a condição humana, com seu coeficiente de diversidade. A responsabilidade não é uma simples aceitação da in- -condição existencial, mas é uma reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade: tudo o que me ocorre é meu acontecimento e estou comprometido com todos aqueles que, direta e indiretamente, estão envolvidos também. O fazer- -se cotidiano do homem, por mais insignificante que pareça, é comprometido com o outro (EH, p. 280).12 O compromisso do homem está em relação ao projeto existencial. Nele o ho- mem torna-se irremediavelmente comprometido com o outro. 12 Em face de qualquer situação, qualquer escolha deve ser responsável e me compromete com toda a humanidade, mesmo que não haja nenhum valor a priori que a defina.
  • 32. 34 A consciência desse compromisso existencial lança o homem como transformador da sua realidade, que por vez é a reali- dade do outro; essa não é uma segunda concepção de com- promisso, mas é um modo, uma vivência (Erlebnis), através da qual o compromisso torna-se evidente. É aí que o enga- jamento de Sartre difere da teoria da práxis do materialismo dialético (BURNIER, 1996, p. 39). A filosofia do engajamento, por ser centrada no para-si, torna-se profundamente ambígua, mas não incompreensível. Nessa ambiguidade, as relações intersubjetivas são imprevisí- veis, pois nada é definido e toda ação resulta de uma escolha gratuita. Mas isso não significa, segundo Simone de Beauvoir, que ela não seja coerente; a autenticidade dela reside na am- biguidade como tal. O destino e a ação do homem estão por ser feito e todos os projetos resvalam para o nada de ser. Sartre declara que todo homem é livre e que não tem meio algum de deixar de sê-lo; e ainda, quando quer escapar do seu destino é livremente que o faz. Portanto é na existência mesma do ho- mem que a ambiguidade está instalada. E, o querer-se livre im- pulsiona o homem para o indefinido, para o vertiginoso, para o circuito das suas possibilidades (BEAUVOIR, 1970, p. 17-18). Do ponto de vista do engajamento social Sartre define o compromisso na mesma perspectiva: o homem não é compro- metido somente pelo fato de optar por um partido político, por um sindicato, por uma agremiação qualquer; o compromisso, como a liberdade, é anterior a qualquer opção que se faz. Como teoria política, a filosofia do engajamento não se sustenta em suas bases fenomenológicas. Sartre tentou uma aproxima- ção com o movimento filosófico dialético, mas não foi mui- to bem sucedido. As críticas dos marxistas, ainda que sejam carregadas de ranços históricos e de antipatias literárias, tem muitas razões e verdades. Sartre por um bom tempo apregoou um propositado “desligamento” caracterizado por uma verda- deira aversão a partidos e movimentos combativos. Sartre se propôs fazer da literatura, do teatro de situação e do periódico
  • 33. 35 Les Temps Modernes, os meios que alimentariam a Resistência. A escritura se tornaria sua forma de provocar a juventude e os adeptos dos movimentos combativos franceses. Contudo, isso não era muito bem aceito entre intelectuais da época. Merleau- -Ponty, um dos seus primeiros companheiros, tornou-se um dos principais opositores. Para ele dificilmente se encontraria um homem coerente com aquilo que pensava. Sartre escrevia o que vivia e influenciava os outros com seus pensamentos per- niciosos (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 79-88). A filosofia do engajamento desenvolve uma compre- ensão da práxis sócio-política, deixando em aberto muitas questões, dentre elas a moralidade, a historicidade, a adesão e a participação política de transformação social e histórica. Dessa forma, a estrutura teórica da atuação sócio-política é marcada por uma neutralidade aparente. Aparente porque, mesmo não assumindo um papel ideológico, de certo grupo ou classe social, sua concepção não estaria isenta de desem- penhar uma função política (GERASSI, 1990, p. 139-151). O existencialismo não pretende gerar vontades revolucionárias, nem empurrar as pessoas para engrossar as fileiras desse ou daquele partido. Sartre quer o existencialismo como refe- rencial, mas rejeita traçar diretrizes que delineiem possíveis decisões de indivíduos que acatam sua doutrina. Nenhum compromisso se justifica em si mesmo. Por que teria o exis- tencialismo que traçar diretrizes? Em nome de quê? Da liber- dade? (BURNIER, 1996, p. 15). Entendemos que a filosofia do engajamento de Sartre não seja em tudo perfeita. As dificuldades apresentadas por tantos opositores de Sartre, no seu tempo e em outras épocas, não podem ser desconsideradas, mas não é o objeto deste traba- lho. Nossa preocupação agora é entender a concepção de Sar- tre como uma inspiração, apontando possíveis contribuições para a educação em geral. Chamamos de inspiração porque não seria coerente fazer dessa concepção uma doutrina a ser posta em prática, ao modo das filosofias modernas que, em
  • 34. 36 geral, partem de princípios fundantes para a fundação de ações conscientes. Acolhemos a inspiração sartreana do enga- jamento como modo de enxergar a realidade do mundo que nos circunda (mundo do outro, mundo dos outros, mundo das coisas) e de ser responsável com as pessoas dos outros e das coisas com as quais vivemos no mundo. Entendemos que o en- gajamento de Sartre não nos levaria além dessas duas possibi- lidades que se configuram para nós como atitudinais de quem atua no campo da educação, tanto como desenvolve processos educativos nas instâncias da educação escolar e social, quanto quem atua na instância da formação direta de pessoas com- prometidas com a educação em geral. A primeira possibilidade está relacionada a permanente capacidade de enxergar a realidade pessoal, relacional, social, política, etc., o que para isso o educador vai precisar elaborar constantemente. Isso é chamado no meio acadêmico de for- mação continuada, que pode se caracterizar como a aquisi- ção permanente de instrumentos hermenêuticos que ajudem na compreensão do mundo em que se vive e dos processos educativos necessários. Lembramos que essa atitude tem um caráter relacional, isto é, põe a pessoa educadora na busca do entendimento da realidade, no contexto das relações huma- nas e da condição humana como tal. A inspiração sartreana não nos permitiria enveredar pela via da dialética e seus re- ferenciais hermenêuticos. Sartre nos põe na trilha da pessoa educadora em relação, na mais sincera transparência pessoal de entendimento do mundo pessoal, das pessoas e das coisas. Para Sartre, a atitude da pessoa educadora se torna um modo de pôr em questão a falta de coerência entre o ser, o agir e o pensar. Tal atitude se revela nas formas do agir, afinal a exis- tência não é senão um ato, um fazer-se contínuo e responsável pelo outro, pelo mundo e por si mesmo. Na segunda possibilidade apontamos para um dos as- pectos mais importantes da ética da alteridade de Sartre, a
  • 35. 37 responsabilidade pelo outro. Por ela, Sartre rompe a dualidade conflitual instalada na condição humana radical da pessoa. A responsabilidade é elemento constituinte da condição huma- na. Somos responsáveis por todos e por tudo, também por nós mesmos. A responsabilidade se manifesta de duas maneiras: uma é subjetiva e a outra é objetiva; uma é pessoal e a outra é interpessoal e social. Entendemos que a educação já é por si mesma uma ação que exige plena responsabilidade das insti- tuições e das pessoas educadoras. A responsabilidade educativa passa necessariamente pelas vivências relacionais que elevam as formas de as pessoas se tornarem promotoras da construção de si mesmas, dos outros e do mundo circundante. Isso não é feito de processos relacionais abstratos, mas por meio de ações interconectadas. A responsabilidade educativa aponta para uma realidade humana e social dominadas pela facticidade e abertas ao mundo dos possíveis da condição humana. Isso implica a pessoa educadora e a todas as pessoas educandas em um mesmo processo de vivências plenas de respeito, de aceitação da condição humana e de buscas comuns em favor dos direitos de todas. O compromisso ético é a base das vivên- cias educativas: a minha responsabilidade passa a ser também responsabilidade do outro, criando assim, uma abertura ao infinito das ações de todos e todas que estão envolvidas nesse processo de educação. 4. À guisa de conclusão Conhecemos não muitas iniciativas de pesquisadores da educaçãoedeoutrasáreasquefizeramincursõesnopensamento de Jean-Paul Sartre para aproximá-lo das muitas preocupações
  • 36. 38 relativas à educação e às práticas educativas em geral.13 Consi- derando as iniciativas existentes, constatamos que a tarefa de analisar a problemática do engajamento sartreano sob o ponto de vista da educação seja complexa e exigente. O engajamento por si exige uma compreensão ampla e articulada no conjunto da obra do nosso pensador. Torna-se necessário que se decida também que aspecto da educação tratar de relacionar. Cremos que o problema aponte o caminho a ser tomado e os pontos a serem analisados. Mesmo assim, achamos necessário estrei- tar mais a questão: De qual educação devemos falar? Quem é o sujeito do processo do engajamento? É impossível falar de educação em geral em uma sociedade como a nossa e em um mundo como o atual. Mais impossível ainda falar do enga- jamento em Sartre de maneira abrangente. Isso exigiria uma elaboração hercúlea! Do Sartre que conhecemos até os dias de hoje, a vida social e política deu guinada de mudanças mui- to profundas. Os ideais de educação também deram muitas guinadas. Resolvemos partir de um ponto que poderia nos ser mais produtivo. Depois de enxergarmos a questão filosófica do engajamento como se apresenta nas obras de Sartre L’Être et le Néant e L’Existencialiesme est un Humanisme, optamos por seguir a trilha das possibilidades que a fenomenologia existen- cial oferece para o entendimento do engajamento dos sujeitos da educação no âmbito dos determinismos estruturais da so- ciedade que submete o saber científico aos modos de produção mercadológica. Adotamos a ideia de possibilidades de pensar a educação sob uma ótica da fenomenologia existencial, cons- cientes do risco de ir além de Sartre. Sartre foi um pensador que despertou o interesse de muitos leitores franceses e de grande parte do Ocidente. Ele suscitou debates filosóficos, literários e políticos que atraiu os mais diversos públicos. Concordamos com as tantas críticas, 13 Os trabalhos mais citados que encontramos sobre a temática são: BENHAMIDA, 2007, p. 230-239; DETMER, 2005, p. 78-90; KNELLER, 1958; MORRIS, 1966; GORDON,2001;BURSTOW,2000,n.71;GALLO,2000;LIMA,2004; MARQUES, 2007; RESENDE, 2001.
  • 37. 39 como as de Merleau-Ponty, Bourdieu e Chauí, de que ele foi um fenômeno midiático, citado e apontado como um sujeito que exercia influência no modo de pensar e de agir da juven- tude das décadas de 70 e 80 do século passado. Polêmico e ousado, Sartre demonstrou com a própria vida as suas cren- ças e convicções filosóficas, classificadas com os mais diversos rótulos. Como constata Merleau-Ponty, ele foi autêntico e o mais livre dos pensadores do século, mesmo que tenha causa- do a ira de diversas tendências literárias, ideológicas, teológi- cas e filosóficas: [...] Para aquellos que conocen a Sartre, su destino literário oferece, a primera vista, um mistério: no existe hombre menos provocador y, sin embargo, como autor, causa escândalo. [...] Él seguirá, pues, su caminho, entre la completa estima de unos y la cólera de otros. [...] Es bueno que exista, de cuando en cuando, un hombre libre (MERLEAU-PONTY, 1972, p. 79-88). O engajamento concebido por Sartre nas suas obras foi o seu próprio projeto. Se imergirmos no sentido desse projeto enxergamos nele um movimento triádico, típico do método fenomenológico: mundo, coisas e sujeito, não se separam. O sujeito só se entende a partir do mundo e dos significados do mundo e de coisas de que o sujeito se torna responsável. O ser enquanto ser é pura gratuidade e oferta, o homem é o único ser que é consciência de si e daquilo que é oferta e de que é o doador do sentido de tudo que lhe é ofertado. Entre a oferta e o ofertado o sujeito é o único que é pura possibilidade. Nele está o valor da existência e de toda e qualquer ação. Com isso, queremos dizer que o engajamento enquanto projeto só tem sentido para o sujeito em situação. Adotamos em nossa tarefa de refletir a educação e o en- gajamento a partir de Sartre cientes das dificuldades que a temática nos trás. Falar da educação já é por si só um traba- lho exigente. É necessário estar atento aos projetos históricos
  • 38. 40 que nos permitem pensar essa importante ação na sociedade. Nosso referencial é o que expomos no início da exposição. Entendemos a educação como um projeto que se realiza para além das tentações do reproducionismo e de todas as mani- festações ideológicas que aprisionam os sujeitos em estrutu- ras fixistas de vivências humanas e sociais e ordens definidas de conhecimentos tidos como padrão. Falar de engajamento da e na educação nas organizações sociais atuais a partir de Sartre exigiu-nos que adotássemos três dimensões do agir hu- mano e educativo que o existencialismo nos inspira: o diálogo in-condicional, a reciprocidade sem inter-medio e a responsa- bilidade e compromisso ético. Uma dimensão está relacionada à outra dentro dos pro- cessos educativos. A ação educativa é em si mesma uma to- talidade des-totalizadora: busca a totalidade da pessoa e dos seus processos ciente de que nunca chegará a ser totalidade. A dialogicidade sem condições pré-concebidas, a relação sem mediações estabelecidas e as ações éticas responsáveis são, de fato, as possibilidades de realização de processos educativos coerentes que o existencialismo de Sartre pode nos inspirar. Quando iniciamos esta reflexão partindo da ideia de su- jeito que está por trás da concepção de engajamento de Sar- tre, pensamos em torno de um dos mais graves problemas da educação hoje. Mudamos em muito as formas de discursos e as práticas educativas, descartamos as formas autoritárias do agir pedagógico, mas adotamos projetos de educação ba- seados em princípios que totalizam os saberes e as vivências educacionais em conteúdos estruturados e definidos a partir das classes dominantes. O conhecimento é uma forma de po- der. Husserl e o movimento fenomenológico ainda se tornam atuais para nos ajudar a crer que essa forma de fazer ciência não passa de um equívoco. Nossa compreensão dos aspectos des-totalizadores da educação voltada para as competências e habilidades que uma sociedade define para as pessoas em
  • 39. 41 processos educativos e formativos negam o sujeito em si mes- mo e elevam os níveis de possibilidade de diálogo, respeito pelo outro e de compromisso social. A inspiração sartreana não é senão uma via que conduz ao valor do humano, das suas potencialidades dialogais e do despertar para a vida ética responsável. Ainda que o existencialismo tenha deixado fis- suras entre o pessoal e o social, é possível ver nele os indica- dores para que os sujeitos sejam um projeto em construção e pleno de aberturas para a vida ética responsável. Referências bibliográficas BEAUVOIR, Simone. La force des choses. Paris: Gallimard, 1963. ______. Moral da ambiguidade. Trad. Anamaria de Vasconcelos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1970. BENHAMIDA, Khemais. Sartre’s Existentialism and Edu- cation: The Missing Foundations of Human Relationships. Educational Theory, Illinois, University of Illinois, 23, Issue 3, p. 191-276. 2007. BERGSON, Henri. A evolução criadora. Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BURNIER, Michel-Antoine. Los existencialistas y la política. Buenos Aires: Paidos, 1996. BURSTOW, Bonnie. A filosofia sartreana como fundamento da educação. Educação e Sociedade, Campinas, ano 21, n. 71, abr. 2000.
  • 40. 42 CESCON, Everaldo. A doutrina husserliana da consciência: um estudo a partir das Investigações Lógicas (Vª) e das Me- ditações Cartesianas (Vª). In: Dialegesthai - Rivista telemati- ca di filosofia [in linea], anno 11, 2009. Inserito il 20 dicem- bre 2009. Disponível em: http://mondodomani.org/dialeges thai/. Acesso em: 6 mai. 2013. CHAUÍ, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: SEMINÁRIO CULTURA E PENSAMENTO - O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS, 1., 2005. Áudio da conferência. Disponível em: http://sanger1983.blogspot. com.br/2010/03/marilena-chaui-palestras-para-download. html. Acesso em: 6 maio 2013. COLOMBEL, Jeannette. Jean-Paul Sartre, une oeuvre aux mille têtes. Textes et débats. Paris: Librairie Générale Française, 1986. v. 2. DETMER, David. Sartre on freedom and education. Sartre Studies international, v. 11, Issues 1-2, p. 78-90, Spring, 2005. DOS SANTOS, Roberval de Jesus Leone. Modelos de enga- jamento. Estudos Avançados, São Paulo, Instituto de Estudos Avançados - USP, n. 19, v. 54, p. 391-427, 2005. ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Trad. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 2008. GALLO, Sílvio. Subjetividade e educação: a construção do sujeito. In: LEITE, César D. Pereira; OLIVEIRA, Maria B. Loureiro; SALLES, Leila Maria (orgs). Educação, psicologia e contempora- neidade. Taubaté: Cabral, 2000. GERASSI, J. Jean-Paul Sartre: consciência odiada de seu século. Trad. Sergio Flaksman. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. v. 1. GORDON, Haim; GORDON, Rivca. Sartre’s philosophy and the challenge of education. New York: The Edwin Mellen Press, 2001.
  • 41. 43 HUSSERL, Edmund. Conferências de Paris (1929). Trad. Artur Morão e António Fidalgo. Covilhã. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/husserl_conferencias_de_ paris.pdf . Acesso em: 6 mai. 2013a. ______. Meditações cartesianas. São Paulo: Madras, 2001. ______. A idéia da fenomenologia. Trad. Artur Mourão. Lisboa: Edições 70, 2000. ______. A crise da humanidade europeia e a filosofia. Tradução e introdução: Pedro M. S. Alves. Covilhã, 2006. Disponível em: http://www.lusosofia.net/textos/husserl_ edmund_crise_da_humanidade_europeia_filosofia.pdf. 2006. Acesso em: 6 mai. 2013b. KNELLER, George. Existentialism and education. Nova York: The Philosophical Library, 1958. LÉVINAS, Emmanuel. Théorie de L’Intuition dans La Phéno- ménologie de Husserl. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1930. LIMA, Walter Matias. Jean-Paul Sartre: educação e razão dialética. Maceió: EDUFAL, 2004. MARQUES, Cássio Donizete. Do individual ao coletivo na Crítica da Razão Dialética de Sartre: perspectivas educacio- nais. 2007. 137 f. Tese (Doutorado em Educação)-Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campi- nas, 2007. MELO, Nelio V. A idéia de fenomenologia em Husserl. Studium, Recife, ano 6, n. 11, p. 7-14, jul. 2003. ______. A escolha de si como escolha do outro: liberdade e alteridade em Sartre. Recife: INSAF, 2003. MERLEAU-PONTY, M. Sentido y sinsentido. Barcelona: Penínsola, 1972.
  • 42. 44 MORRIS, Van Cleve. Existentialism in education. Nova York: Harper and Row, 1966. PELIZZOLI, Marcelo Luis. A relação ao outro em Husserl e Lévinas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994. RESENDE, Selmo Haroldo. A formação do educador: uma leitura a partir do projeto existencial de Sartre. Educação e Filosofia, Uberlandia, v. 15, n. 30, 2001. SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Trad. Rita Braga. 6. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. ______. L’être et le néant: essai d’ontologie phenomenologique. Paris: Gallimard, 1994. ______. L’existencialisme est un humanisme. Paris: Nagel, 1970. ______. O existencialismo é um humanismo. Trad. e notas Vergílio Ferreira. 2. ed. Lisboa: Presença, [s/d]b. BOURDIEU, Pierre. Entrevista com Pierre Bourdieu. [s.d]. Entrevistador: Luciano Trigo. Disponível em: http://www. icb.ufmg.br/lpf/Trigo,Entrevista-com-Pierre-Bourdieu. html. Acesso em: 6 maio 2013. WILD, Bianca. As reflexões de Marilene Chauí apresentadas na abertura do ciclo de conferências “O silêncio dos intelec- tuais”. Disponível em: http://www.recantodasletras.com.br/ artigos/704902. Acesso em: 6 maio 2013.
  • 43. 45 INTENCIONALIDADE E MORALIDADE: O HUMANISMO DE J.-P. SARTRE Marcelo Fabri 1. Introdução O objetivo do presente texto é apresentar a contribuição de Sartre para a formulação de um conceito fenomenológico de ética, tendo em vista a herança do conceito de intenciona- lidade em sua reflexão sobre a realidade humana. A dimensão ética da existência, que caracteriza o pensamento do filósofo como um humanismo não-metafísico, ou tradicional, é explo- rada de modo notável nos famosos Cahiers pour une morale (SARTRE, 1983). Nessa obra fragmentada, e só publicada postumamente, Sartre não deixa de pressupor o influxo de Franz Brentano, para quem a consciência humana existe sem- pre em busca de um fim. Na perspectiva sartreana, que tal fim seja realizado é sempre desejável, uma vez que um valor
  • 44. 46 o acompanha necessariamente (SARTRE, 1983, p. 286). Para Brentano, com efeito, a origem do conhecimento moral não nos vem a partir de representações intuitivas de conteúdo físi- co (qualidades sensíveis), mas sim de representações intuitivas de conteúdo psíquico. E isso significa: o que importa, em tais representações, é a sua referência intencional (BRENTANO, 2003, p. 51). Tal é a tese que tanto marcará a obra de Husserl, e a partir da qual Sartre, por sua vez, afirma que a intencionali- dade é reveladora do mundo para nós. A hipótese que guiará nossa investigação é esta: ao dizer que “um fim humano tem, por si mesmo, valor” (SARTRE, 1983, p. 287), Sartre não só complementa como também ultrapassa as propostas de Bren- tano e de Husserl sobre a moral. Por quê? Porque ele pensa que, do ponto de vista moral, devo querer que os outros possam fazer com que o ser venha a existir sobre o mundo. Um fim a ser realizado se justifica, primeiramente, porque “é valor de alguém neste mundo” (SARTRE, 1983, p. 292). Assim, se em Brentano, e depois em Husserl, o bem que se torna evidente para nós pede realização, Sartre parece buscar algo que trans- borda o aristotelismo que permanece em ambos (permanên- cia por vezes explícita, como no caso de Brentano, mas mui- tas vezes apenas implícita, como no caso de Husserl). Como entender essa ultrapassagem? Ora, na perspectiva sartreana, “todo fim é bom, como realização de valor, até demonstração em contrário” (SARTRE, 1983, p. 287). Em outros termos, o ser só possui sentido na medida em que nos esforçamos para que “o homem tenha um sentido” (SARTRE, 1983, p. 502). Tal esforço é, desde o início, ação criadora, e não apenas passagem da potência ao ato (isto é, passagem de um bem intencionado para um bem realizado). Em Sartre, o agir é criador. A inten- cionalidade afetiva ou prática, compreendida tanto em Bren- tano quanto em Husserl por analogia aos atos teóricos, se vê ultrapassada ou transcendida, uma vez que o Bem não é, para
  • 45. 47 Sartre, apenas o fim intencionado e, em seguida, possivelmen- te realizado, mas, sobretudo, algo a ser criado por nós. Como quer que seja, tentaremos mostrar que se trata de uma visão inovadora da consciência moral, mediante uma releitura ética do conceito de intencionalidade. 2. Intencionalidade e moralidade segundo Brentano Comecemos evidenciando a relação entre intencionali- dade e moralidade segundo Franz Brentano. Uma das teses principais da psicologia brentaniana é esta: os fenômenos psí- quicos (o querer, o desejar, o imaginar, etc.) têm sempre uma unidade real que os abarca, e essa unidade é a consciência (BRENTANO, 2008, p. 169). Quando, por exemplo, notamos uma pessoa que se aproxima de nós, ocorre uma representa- ção sob a forma de percepção. A tal intencionalidade se so- brepõe uma outra: reconheço, por exemplo, que tal pessoa é um amigo, e fico imensamente feliz com o encontro. Tenho, assim, sobre a base de um representado, um sentimento de alegria indescritível e, no entanto, evidente para mim. Ora, a representação e o sentimento que tenho não são atos desco- nectados, isto é, não formam uma realidade separada uma da outra. Tudo se passa como se a representação do objeto amado viesse se fundir ao próprio amor. Tomado em senti- do moral, isso significa que a consciência põe, para si mesma, fins. Mais ainda: ela organiza os meios para realizar esses fins. Nas palavras de Brentano: “Se queremos o meio, queremos o fim, sendo que nosso desejo encerra tanto a representação do meio quanto a do fim” (BRENTANO, 2008, p. 173). Numa pa- lavra: nós fazemos escolhas por um ato único, e não de modo
  • 46. 48 fragmentado e desconectado. A consciência não só representa os objetos sobre as quais a escolha se volta como também os motivos que agradam em tal objeto. Assim: “O conjunto de nossa vida psíquica, qualquer que seja a sua complexidade, cons- titui sempre uma unidade real” (BRENTANO, 2008, p. 176). Isso explica por que algo só pode ser desejado se for an- tes representado. Qual a diferença? É que, nas representações, não há contrários. A intensidade existente na representação não ultrapassa aquela que se dá na vivacidade do fenômeno (BRENTANO, 2008, p. 239). Dito de outro modo, nas repre- sentações não há verdade nem falsidade, não há virtude nem maldade. Amor e ódio são, portanto, uma intencionalidade segunda, que se exerce sobre uma representação de base. Am- bos entram no campo da atividade psíquica, do mesmo modo que o ato de julgar. Nos juízos, há verdade ou falsidade, ao passo que, nos sentimentos, há atração ou repulsão. No en- tanto, quando amamos um objeto por causa de outro, rea- lizamos um ato análogo ao juízo. Como? Não é verdade que um juízo pode derivar de outro juízo, segundo leis particula- res? (BRENTANO, 2008, p. 241). A diferença é que se no juízo algo é admitido ou recusado, nos sentimentos algo é dotado ou não de valor (BRENTANO, 2008, p. 254). Ora, se o objeto em questão possui valor, ele será chamado bom, caso contrá- rio será mau, ou ruim. Quando gostamos de algo, amamos que ele seja assim como é. Quando queremos realizar uma ação, amamos fazê-la, seja por si mesma, seja em consequên- cia de algo (BRENTANO, 2008, p. 262). Mas aqui é preciso cuidado. Não se trata de dizer que é apenas porque me agrada que um determinado objeto seja digno de ser amado. O que deve prevalecer é a correção, isto é, uma espécie de concordância, conveniência ou justeza do amor a um objeto. O sentimento daquele que ama de modo justo se comporta de maneira adequada em relação ao objeto
  • 47. 49 do sentimento. Certo, o conhecimento sobre o bem não an- tecede o sentimento sobre o bem, mas deve haver uma expe- riência subjetiva, chamada evidência apodítica, que nos faz ver que, assim como algo é correto do ponto de vista do juízo, ele será correto também do ponto de vista afetivo. Há, por- tanto, atos de amor e de ódio que podem ser considerados corretos. Por que há valorações legítimas? Porque os axiomas de valor podem ser imediatamente evidentes. Não é verda- de que temos ódio natural à dor? E prazer, quando obtemos uma compreensão clara de algo? (BRENTANO, 2003, p. 64). Por conseguinte, a correção e a evidência do juízo, bem como a correção e a nobreza do sentimento, aparecem como conse- quência do bem (BRENTANO, 2003, p. 66). Pergunta Bren- tano: como um ato afetivo pode ser considerado bom por si mesmo? Em primeiro lugar, ele deve ser justo (o prazer causado pela visão do espetáculo do mal, por exemplo, será incorreto). Em segundo lugar, é preciso que tal ato seja prazeroso. Assim, quando experimentamos em nós um amor considerado justo, estaremos em condições de formar, na medida de nossas forças e de nosso esforço crítico, o conhecimento de que existe um bem verdadeiro e indubitável (BRENTANO, 2003, p. 66). Chegamos, assim, ao núcleo da discussão brentaniana sobre o conhecimento moral. O imperativo incontornável é a realização do melhor entre aquilo que se pode atingir. For- malmente, temos: a) é preferível a totalidade de um bem a uma de suas partes; b) é preferível uma das partes do mal à sua totalidade. No que diz respeito ao bem, a soma das par- tes é melhor que apenas uma das partes. O princípio supremo é, portanto, a soma do bem. É preciso evitar que uma parte seja escolhida em detrimento do todo. O maior dever que possuímos é o dom de si, pois promover o bem na soma de suas partes é o fim mais justo possível em toda ação humana (BRENTANO, 2003, p. 75).
  • 48. 50 3. Aspiração ao racional: a consciência ética em Husserl Até que ponto Husserl segue Brentano? Vimos que, para este último, escolher um fim implica escolher também os meios para realizá-lo. Ora, isso não se dá na perspectiva husserliana, para a qual podemos muito bem escolher um fim sem ter clareza quanto aos meios necessários para realizá-lo. Nem sempre querer um fim é querer este meio singular. Para Husserl, o querer sempre almeja alguma coisa. A vontade di- rigida a um fim só é possível através de um caminho, mas isso não implica a representação desse caminho como algo deter- minado. O caminho pode ser aclarado posteriormente, e de modo crescente. É assim que a vontade vai se determinando a si mesma. Nas palavras de Husserl: “Há representações deter- minadas e representações indeterminadas, e essas duas formas podem estar na base do querer” (HUSSERL, 2009, p. 128). No entanto, um inevitável prolongamento das teses de Brentano se faz notar na ética fenomenológica, pois Husserl afirma que o verdadeiro homem deve conduzir sua vida sub- metendo-se a este imperativo: “Seja um verdadeiro homem, conduza uma vida que de regra possa justificar de maneira evidente, uma vida fundada na razão prática” (HUSSERL, 1999, p. 43). Regular a vida pelo imperativo categórico é exigir da vida o melhor possível diante da razão, e os atos pessoais são decisivos para tal (HUSSERL, 1999, p. 48). O influxo bren- taniano sobre Husserl se faz notar, sobretudo, no seguinte. A busca do bem maior, isto é, daquilo que seria o melhor entre o que é possível realizar, deve ser o de uma vida à procura de justificações evidentes. A consciência ética, para Husserl, de- pende da consciência de uma responsabilidade racional, que não é outra senão a responsabilidade pelo justo e pelo injusto, em tudo o que fazemos (HUSSERL, 1999, p. 38). O querer é
  • 49. 51 racional porque se funda na representação de algo que deve ser realizado. Algo vem almejado quando surge como um valor, isto é, quando exige que a ação seja realizada. Querer é dar significado ao fazer, é intencionar algo que ainda não é sob a forma de um bem, ou o Bem (HUSSERL, 2009, p. 226). Segundo a ética husserliana, o ser humano pode sem- pre julgar a si mesmo, avaliando seus atos tanto quanto suas possibilidades práticas. Certo, podemos nos tornar presas das paixões, das inclinações e dos afetos, mas ao agir passivo sobrepõe-se o agir autêntico, graças a um sujeito que sempre pode querer para além de si mesmo, isto é, de seu egoísmo. No entanto, mais do que um formalismo universalista, está em jogo uma subjetividade humana como aspiração, vale dizer, como orientação para bens positivos. A ação positiva, que sem- pre é motivada de modo novo, nos conduz tanto a desilusões quanto a satisfações. O sujeito vive numa luta interminável por uma vida plena de valor, abandonando sua passividade. Ele toma posse de sua vida, aspirando ao bem e à realização (HUSSERL, 1999, p. 31). É nesse sentido que Husserl fala de uma aspiração racional, que se dá sob a forma de busca de clareza intuitiva. Trata-se da “aspiração a lançar luz, através da apreensão evidente, sobre o ‘verdadeiro’, nos aspectos res- pectivos – o verdadeiro ser, o verdadeiro conteúdo do juízo, os verdadeiros ou ‘autênticos’ valores e bens [...]” (HUSSERL, 1999, p. 31). O influxo de Brentano se evidencia ainda mais, uma vez que, para Husserl, a aspiração racional supõe leis prá- ticas capazes de direcionar o agir. A fórmula “Entre os bens realizáveis, escolhe o melhor” é algo formalmente correto, in- dependentemente da matéria ou situação real (contingente) na qual nos encontramos. Do mesmo modo: Da realização coletiva dos bens práticos, que em tal processo não sofram uma diminuição de valor, resulta um “bem su- mular”, que possui um valor maior em relação àquele de cada uma das somas parciais agregadas ou de cada membro singular (HUSSERL, 1999, p. 39).
  • 50. 52 A satisfação almejada ultrapassa todo bem singular, par- cial, egoísta. Podemos adquirir a certeza de poder conduzir a vida inteira regidos por esse critério. A consciência moral (Gewissen) não é outra senão a consciência de responsabilida- de que emerge em situações individuais concretas, mas diante das quais seriam possíveis justificações evidentes, capazes de fornecer balizas para prepararmos antecipadamente as ações, sem, no entanto, esquecermos de justificá-las posteriormente. Uma correção sempre é possível, pois a responsabilidade pelo justo e pelo injusto, em todas as situações, nos acompanha necessariamente. Esse desejo de autorregulação racional, fun- dada na consciência ética, conduz inevitavelmente à autojus- tificação e à autossatisfação (HUSSERL, 1999, p. 39). O ser humano não é racional porque possui uma faculdade racio- nal, mas, sim, porque aspira ao racional como valor prático. Procura realizar o verdadeiro bem, isto é, aquele que apresen- ta como sendo o melhor. O dever que se cumpre conduz ao prazer e à satisfa- ção. Estamos inclinados naturalmente ao prazer, mas o ser humano, entendido essencialmente como aspiração, toma posição “em relação a si mesmo e em relação à vida” (BIAN- CHI, 1999, p. 149). Eis o desejo forte de se viver uma vida racional, em que a razão lógica pode guiar a esfera afetiva. A ética requer a ideia de um ser humano prático, em sentido ideal. É como se um Eu ideal acompanhasse o eu empírico, incentivando-o à busca de clareza, de verdade, de justiça. O Eu pode, assim, tomar a si mesmo como sujeito e objeto da ética (HUSSERL, 1999, p. 44). Em cada situação, se deve fazer o melhor possível. Eis por que a pessoa racional é cria- dora de si mesma, é o sujeito que cria a si mesmo enquanto absolutamente racional.
  • 51. 53 4. A liberdade para além da aspiração ao racional (Sartre) Quando nos voltamos para o existencialismo sartreano, a distância em relação ao “racionalismo ético” exposto aci- ma parece enorme. Em Sartre, com efeito, a conquista sobre si mesmo será a marca decisiva da liberdade, entendida como “movimento pelo qual perpetuamente nos desprendemos e nos libertamos” (SARTRE, 1948, p. 75). Não se pode, portanto, dizer que a liberdade simplesmente é, uma vez que sua re- alidade depende de uma conquista numa situação histórica (SARTRE, 1948, p. 76). Como existente humano no mundo, meus atos ensinam a existência de minha liberdade. Ou seja, meus atos mostram que, “em meu ser, a liberdade está em questão” (SARTRE, 1943, p. 493). Por conseguinte, a liber- dade não é para Sartre um ato volitivo que realizará ou não uma intenção. A liberdade é o nada que constrange a realida- de humana a agir, a fazer-se, a tornar-se presente a ela mesma. (SARTRE, 1943, p. 497). Nos Cahiers pour une morale, o fi- lósofo afirma: “A ação do homem é a criação do mundo; mas a criação do mundo é a criação do homem. O homem se cria por intermédio de sua ação sobre o mundo” (1983, p. 129). O mundo se organiza em motivos porque a consciência é viva, atuante e, sobretudo, livre. A liberdade está para além dos motivos, dos móbeis e dos fins exatamente porque nenhum deles pode ser tomado como permanente ou transcendente (SARTRE, 1943, p. 505). Minha ação tem sentido porque é projeto de mim mes- mo em direção a um possível (SARTRE, 1943, p. 515). Certo, nossas ações tendem a realizar algo que ainda não é, mas esse movimento é um projetar-se, uma escolha de mim mes- mo no mundo. Ao agir, não busco igualar-me a um Eu ideal (Husserl). Quero apenas fazer que uma realidade indiferente
  • 52. 54 receba a marca de minha subjetividade, de minha ação cria- dora. Através dessa nadificação, um novo mundo pode surgir (SARTRE, 1943, p. 516). Toda ação particular recebe seu sentido a partir da liberdade. Cada um de meus atos me re- vela a mim mesmo. Revela, igualmente, o mundo para mim (SARTRE, 1943, p. 517). Por conseguinte, algo só me aparece como sendo digno de ser escolhido porque já fiz uma escolha de mim mesmo. Tudo aquilo que possuímos ou que nos é familiar, bem como tudo o que realizamos de significativo no mundo, já traz a marca de nossa escolha, de nosso próprio ser. Tudo o que me surge como possível já depende do fundo de liber- dade que me faz humano. Eu já me escolhi a mim mesmo sob a forma de uma nadificação, entendida como ato de fazer que o futuro venha dizer aquilo que eu sou. É esse porvir que confere um novo sentido àquilo que eu próprio fui (SARTRE, 1943, p. 521). Eis por que a liberdade, desde o início, põe os fins originais. Antes de tudo, há uma escolha original de nós mesmos. Sem isso, nada seria compreensível. Na falta de tal escolha, não poderíamos organizar, no mundo, nossos moti- vos, nossos móbeis, nossos desafios, nosso tempo. Escolha e consciência não são distintas uma da outra. Por quê? A escolha original já estava “lá” quando decidimos refletir e, portanto, identifica-se com a espontaneidade irrefletida da consciência. E, se prestarmos atenção, veremos que só tomamos consciência de nós mesmos enquanto comprometidos em certos empreendimentos, esperando certas “respostas” do mundo, rece- bendo outras possibilidades, e assim por diante [...] (GUIMARÃES RODRIGUES, 2010, p. 188-189). É como se meus atos e escolhas parciais ao longo da vida estivessem, necessariamente, atrelados a uma totalidade que permite compreendê-los (interpretação existencial da unida- de da consciência, de Brentano?). Não há nada que permita
  • 53. 55 justificar a ausência de liberdade no para-si (consciência). Nada de exterior pode livrá-lo das escolhas que deve fazer de seus fins primários e secundários. Os fins escolhidos são in- terpretados graças à ligação entre eles, mas tal ligação não se dá por uma estrutura lógica e a priori. Em cada caso, o para-si fornece seus próprios critérios (SARTRE, 1943, p. 527). Uma vez que somos livres, e nada fundamenta a liberdade, po- demos fazer disso ou daquilo uma realidade a ser almejada volitivamente. Nosso ser, sendo originariamente escolha, é o que faz de nós sujeitos que realizarão sua liberdade de modo “nobre” ou “vil”, de maneira “humilhante” ou “grandiosa”. É a partir da escolha original que deveremos encontrar os meios para realizar os fins que nos propomos realizar. “A vontade só tem eficácia no quadro de minha escolha fundamental” (SARTRE, 1943, p. 531). Sem que o projeto fundamental seja mudado, tudo o que se faz, no plano volitivo, apenas confir- ma o que já se havia escolhido. No entanto, ainda aqui é a liberdade que nos define, pois sempre poderemos, mesmo que em instantes extraordinários e maravilhosos, fazer que um novo projeto suplante o anterior (SARTRE, 1943, p. 532). A vontade emerge de um projeto original de nós mesmos, mas a liberdade se mantém de modo a tornar possível uma transfor- mação radical em nossa existência, sem a qual a vontade, por si mesma, nada poderia fazer. A liberdade é, pois, criadora. Um mundo novo sempre pode surgir por nossos atos. Só podemos ser o que já fomos sob a condição de nos lançarmos para nossos possíveis. Nós nos apreendemos como escolha em vias de se fazer. Nunca nos realizarmos plenamente. Seremos sempre inacabados. A escolha não possui nenhum apoio, nenhuma segurança, nenhum descanso numa realidade em si. Diferentemente de Husserl, não é a busca de evidências racionais que será, para Sartre, o ponto de partida de uma fenomenologia da vontade,
  • 54. 56 mas sim a descrição do nosso existir como escolha, para além de todas as razões. As razões surgirão enquanto dependentes da liberdade. Se eu não tivesse de me escolher perpetuamente, então eu poderia ser um em-si. Mas somos lançados na pró- pria liberdade, entendida como falta de ser (SARTRE, 1943, p. 542). Um simples dado já é um motivo, mas este só se es- clarece à luz de um fim escolhido. Seremos motivados desse ou daquele modo a partir da projeção em direção a um fim. É porque somos livres que encontramos obstáculos. Minha liberdade me faz conhecer minha facticidade (meu lugar no mundo, minha situação na vida, meu passado, e assim por diante) (SARTRE, 1943, p. 551). É hora de nos perguntarmos: pode-se pensar numa moral com base nessas proposições? O primado da liberdade não nega qualquer proposição prática que procura limitar a própria liberdade? Há um imperativo categórico sartreano? 4.1. Intencionalidade e responsabilidade Na nossa perspectiva, Sartre termina se aproximando da ética, em sentido fenomenológico. Por quê? Porque o existir no mundo me chama à responsabilidade. Devo sempre tomar posição não apenas acerca do que projeto para mim mesmo, pois tal projeção já me compromete com os projetos de outrem e dos outros. O ser humano, que está condenado a ser livre, é aquele que carrega em si “o peso do mundo inteiro sobre suas costas” (SARTRE, 1943, p. 612). Esta solidão é apenas trágica, ou traz em si um sentido moral? Ora, para Sartre é graças a outrem e aos outros que posso dar um sentido objetivo a subjetividades extintas. A morte não é apenas a minha pos- sibilidade a mais própria (Heidegger), pois a finitude revela o