SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 184
Baixar para ler offline
II
UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUME
C O L E Ç Ã O F I L O S O F I A E T R A D I Ç Ã O
H I S T Ó R I A , L I T E R A T U R A E A R Q U E O L O G I A
ESTUDOS
CLÁSSICOS
GABRIELE CORNELLI
GILMÁRIO GUERREIRO DA COSTA
Brasília, 2013
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 1
Esclarecimento
A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as
suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicação,
os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo
do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao
gênero feminino.
Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas
opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As
indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer
opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de
suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 2
Gabriele Cornelli
Gilmário Guerreiro da Costa
(Orgs.)
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 3
UNESCO
Representação no Brasil
Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar
70070-912 – Brasília/DF – Brasil
Tel.: (55 61) 2106-3500
Fax: (55 61) 2106-3967
Site: www.unesco.org/brasilia
E-mail: brasilia@unesco.org
facebook.com/unesconarede
twitter: @unescobrasil
Imprensa da Universidade
de Coimbra (IUC)
Rua da Ilha, 1
3000-214
Coimbra, Portugal
Cátedra UNESCO Archai
Universidade de Brasília
Caixa Postal 4497
70904-970
Brasília/DF
Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC)
em cooperação com a UNESCO.
Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil,
a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora.
© UNESCO 2013.Todos os direitos reservados.
Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil
Revisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO Archai
Projeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil
Ilustrações: Fábio Vergara Cerqueira, Cora Dukelski e Paulo Faber
Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornelli
e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai,Annablume
Editora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.
190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2).
Incl. Bibl.
ISBN: 978-85-7652-183-9
1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais
5. Civilizações antigas 6. História 7. Literatura 8.Arqueologia 9. Metodologia científica
I. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III. Cátedra UNESCO
Archai IV. Universidade de Coimbra
Impresso no Brasil pela Annablume Editora
Impresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 4
Coleção filosofia e tradição
A coleção “Filosofia e tradição” é um reflexo das atividades da Cátedra UNESCO
Archai, que, desde 2001, promove investigações, organiza seminários e elabora
publicações com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabalho e constituir
um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento
ocidental. O objetivo fundamental consiste em compreender, com base em uma
perspectiva cultural, a nossa tradição, isto é, de onde viemos, para que possamos
compreender nossos caminhos presentes e desejos futuros. Nesse sentido, visando
a uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia e, de modo mais
amplo, do pensamento ocidental, os problemas que orientam as pesquisas da
Cátedra UNESCO Archai são de ordem histórica, ética e política. Trata-se de uma
reação ao mal-estar experimentado com a forma excessivamente presentista de se
contar a história desse processo de formação, forma que pensa a filosofia como
um saber estanque, independente das condições históricas que permitiram o
surgimento desse tipo de discurso.A proposta de trabalho historiográfico-filosófico
da Cátedra procura, portanto, lançar um olhar diferente sobre os primórdios do
pensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretação éticos,
políticos, artísticos, culturais e religiosos. Este trabalho dedica-se, em particular, a
enraizar o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, e se contrapõe às lições de
uma historiografia filosófica racionalista que, anacronicamente, projeta sobre o
contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha às
múltiplas e tolerantes formas do lógos antigo.A questão é politicamente relevante,
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 5
em virtude da influência que ainda mantém essa “narrativa” das origens do
pensamento sobre a compreensão da atual epistême ocidental. De fato, na tentativa
de justificar sua pretensão à verdade absoluta e universal da cultura dos vencedores,
a ciência e as culturas ocidentais servem-se de um mito das origens, fundamentado
nessa mesma visão presentista e asséptica da filosofia clássica. Esse mito, aliás,
utiliza a diversidade da cultura ocidental em contraposição – e não em diálogo –
com as outras culturas e visões de mundo que a globalização aproximou de maneira
mais forte nos últimos anos. O que esta coleção deseja, portanto, é realizar um
olhar sobre o passado, sobre as origens do pensamento ocidental, que se revela
extremamente atual e contemporâneo.
Gabriele Cornelli
Editor da coleção filosofia e tradição
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 6
Sumário
Apresentação ................................................................................................................9
Parte I: profa. dra. Sandra Lúcia Rocha
Literatura grega ..........................................................................................................15
Capítulo I : Representações do amor na literatura grega .........................................17
Capítulo II: Ecos homéricos em representações da morte em Atenas .......................29
Parte II: prof. dr. José Luiz Brandão
Literatura romana .......................................................................................................37
Capítulo III:A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial ..........39
Capítulo IV: Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos..........67
Parte III: prof. dr. Fábio V. Cerqueira
História grega .............................................................................................................83
Capítulo V: Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagética
dos pintores de vaso: representação iconográfica do casamento
e do amor matrimonial na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.) .......................85
Capítulo VI: Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos,
dos gregos aos modernos: desnaturalizando noções, diversificando
a homo/heterossexualidade ........................................................................119
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 7
Parte IV: profa. dra. Renata Garraffoni
História romana ........................................................................................................147
Capítulo VII: Pensando conceitos para estudar a história de Roma ........................149
Capítulo VIII: O exército romano: diferentes maneiras
de pensar sobre Roma e seus exércitos .....................................................155
Parte V: prof. dr. Pedro Paulo Funari
Arqueologia ..............................................................................................................163
Capítulo IX:Arqueologia clássica: os inícios ..........................................................165
Parte VI: prof. dr. Sílvio Marino
Metodologia da pesquisa em estudos clássicos ..........................................................173
Capítulo X: Questões introdutórias ......................................................................175
Capítulo XI: Problemas de interpretação dos textos antigos ..................................183
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 8
1. Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCOArchai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos.
2. Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai).
9
Apresentação
Prof. dr. Gabriele Cornelli1
Prof. dr. Gilmário Guerreiro da Costa2
Muitas vezes se indagou sobre os motivos de persistirem os estudos clássicos ao
longo da história, em geral, e em nossa época, mais especificamente. De onde
proviria seu encanto e sedução?A história da recepção dos textos clássicos antigos
notabiliza-se por respostas percucientes a essa questão, dentre as quais vem a
propósito destacar a amplitude das pesquisas e os planos múltiplos oferecidos no
tratamento dos seus objetos de investigação. Mostra significativa desse movimento
pode atestar-se no segundo volume do Curso de Introdução aos Estudos Clássicos
que ora oferecemos aos nossos leitores, com trabalhos que articulam história,
literatura e arqueologia. No arremate desta publicação, uma seção é dedicada a
problemas metodológicos peculiares a essa área de pesquisa.
Este volume consta de seis partes. Inicia-se com estudos em torno a aspectos
importantes da literatura grega, escritos pela profa. dra. Sandra Lúcia Rocha, da
Universidade de Brasília (UnB).Lida com dois temas complementares em sua aparente
antítese: as representações do amor e da morte na literatura grega, os quais
haveriam de fundar toda uma tradição incessantemente revisitada e reinventada.
No que tange ao tema do amor, a autora evidencia a força formadora do tema no
Ocidente,não raro motivada por distorções e exageros consideráveis na representação
da cultura grega: ora vista enquanto espaço e tempo de costumes dissolutos, ora
imaginada na qualidade de nostálgica era de liberdade erótica. Tais extremos
respondem a simplificações que obstam uma análise mais acurada do tema. Haveria
ainda outras duas dificuldades nesse gênero de estudo: o fato de ser a literatura
amorosa grega escrita na maior parte das vezes por homens, e a grande profusão
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 9
10
de caminhos experimentados por esses textos. Isso posto, a autora enfrentará tais
dificuldades mediante estudo, tanto quanto possível, da escrita de mulheres, e
organizará o seu trabalho acerca das representações do amor em três grupos: amor
entre homem e mulher, entre mulheres e entre homens.
Na literatura grega, a tonalidade erótica no amor entre homem e mulher sobressai
antes ou fora do casamento. Neste, tende a esmaecer-se, tornando-se em afeto, o
que implica, no enfraquecimento do desejo, perder os traços do amor, por lhe ser
agora escassa a visita de Eros. Em acurada análise de passagens dos poemas
homéricos, a autora evidencia o quanto o arrebatamento erótico no matrimônio
ocorre em situações excepcionais. O amor entre mulheres, por sua vez, pelas
evidências de que dispomos no momento, parece ter sido prática menos assente
culturalmente, se comparada ao homoerotismo masculino. De qualquer forma, sua
elaboração artística encontra forma rica e delicada nos poemas de Safo. Somos
conduzidos, assim, da poesia épica para a lírica, apresentados ao quadro rico e
variegado da literatura grega. Por fim, no que se refere ao amor entre homens, a
autora sublinha tratar-se de prática culturalmente estabelecida na época, o que o
atestaria todo um quadro literário e iconográfico. Em uma sociedade ausente de
instituições de formação educacional, recorria-se com frequência aos symposia, nos
quais os jovens se inseriam em espaço pedagógico mais aprimorado, o que incluía
a iniciação erótica. O quadro formativo era amplo, desde a poesia à partilha de
valores éticos. No intercurso erótico, evidenciava-se a relação entre um homem
maduro e outro mais jovem, que se notabilizava pelo tom afetivo, raiz de uma
fidelidade transposta futuramente para a cena política. No âmbito literário, aparece
especialmente na prosa do século V a.C., como por exemplo, em Tucídides, a cuja
análise a autora dedica considerável espaço.
O segundo texto da profa. Sandra ocupa-se do tema da morte, cuja compreensão
acha-se intimamente ligada à questão da vingança e da honra, articulada por via
diferente no caso da morte individual e da coletiva. No tocante à primeira, intentou-
se desde a Lei de Drácon, em 621 a.C., impor limites consistentes à prática do
homicídio enquanto resgate da honra. É um horizonte sobremodo fértil para a
análise do tema conforme disposto nos poemas homéricos, sobretudo em Aquiles,
premido que se sentia, na “Ilíada”, por vingar a morte do amigo, Pátroclo. Promete
manter um propósito incoercível de reconquistar para si e para o amigo a honra
que o assassínio cometido por Heitor lhes roubara. Em belo diálogo com Vernant,
a autora sustenta a necessidade da morte do herói, uma vez que a sua honra,
medida da sua vida, não mais se pôde resgatar. A proximidade de som e sentido
entre honra (timé) e vingança (timoría) sugere o fato de se buscar reparação,
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 10
11
mediante a vingança, da honra ferida.Amiúde se intentava satisfazê-la no tribunal,
recorrendo-se à ação do Estado, que se encarregava de julgar a sua pertinência,
seja pelo interesse em proteger a piedade religiosa da cidade, seja pela relevância
educativa do evento, passível de evitar a recorrência de comportamentos julgados
indesejáveis pelo Estado. Em diversos outros níveis também avulta o liame entre
honra e morte, como é o caso da oração fúnebre, objeto de sensível exame no texto.
De aspectos da literatura latina ocupa-se a segunda parte deste volume, a cargo
do prof. dr. José Luiz Brandão, da Universidade de Coimbra (UC). A princípio,
interessa-lhe o estudo da representação da Roma Antiga conforme se lê nos
epigramas de Marcial. Aqui se sublinha o caráter vivo do modo de inserir essa
cidade na literatura, pois não interessa ao escritor um registro arqueológico, mas
artístico e repleno de movimento. Conforma os traços das suas personagens com
esse objetivo.A mordacidade de Marcial alia com arte rara o senso espirituoso e a
compreensão profunda do sofrimento das vidas a que seus versos oferecem a tessitura.
Sua Roma viva lida com a difícil articulação entre ter e ser e com o belo e o horrendo.
No primeiro caso, por exemplo, oferece o molde de uma crítica às graves assimetrias
sociais em Roma, não com o intuito de palmilhar o caminho da subversão, mas
precisamente com o receito de que ela se efetiva. Move-o, portanto, um impulso
conservador. Nos tipos inesquecíveis que então dispõe, sobressaem-se os caçadores
de heranças; os que parasitam em diversos jantares; os novos-ricos; e profissões,
dentre as quais a advocacia,que,segundo o poeta,não oferecem muitos rendimentos,
se o seu praticante for honesto... Configura-se assim todo um quadro com o qual
o poeta submete aocastigatridendomoresos contornos do ridículo na relação assimétrica
entre as classes, desde as que se enchem de orgulho com o trato bajulatório de
pessoas despossuídas de bens, até a ginástica exaustiva de muitos ao propugnarem
por agradar os superiores na luta pela sobrevivência diária.
O segundo texto, um pouco mais breve, mas não menos denso, examina a obra
“Vida dos césares”, de Suetônio, a partir de uma questão instigante: os elementos
ficcionais em uma narrativa que se pretende histórica. Tome-se o caso de César:
move-se no livro muito mais próximo de uma forma teatral do que de uma
representação estritamente factual, além do farto e hábil uso de recursos narrativos.
Desde o plano tenso do embate entre vício e virtude nas ações de Augusto, ao
plano degenerativo da vida de Tibério, urde-se um texto capaz de oferecer tanto
inteligibilidade histórica, quanto narrativa, ampliando consideravelmente o quadro
hermenêutico de aproximação da vida activa dos imperadores romanos, e por via
de consequência, oferta por entre as fímbrias desses homens um olhar sobre
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 11
12
a vida e a sociedade da época. Caracteres teatrais a conformar a figura de Calígula,
o uso de expedientes de retardamento narrativo na apresentação de Cláudio,
preparatório da katastrophe representada por Nero, são alguns dos muitos recursos
literários farta e ricamente urdidos por Suetônio em sua biografia. Por toda a obra,
recursos tomados à comédia, ao romance sentimental e à tragédia se disseminam,
explicando parte considerável do seu encanto imperecível.
O prof. dr. FábioV. Cerqueira, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), encarrega-
-se da terceira parte, dedicada à análise de aspectos da história grega antiga. Em
um de seus textos, focaliza a representação pictórica da intimidade da vida
feminina da mulher ateniense, conforme se veem em vasos áticos. Avultam-se as
cenas ligadas ao casamento e os divertimentos no espaço interior da residência, o
gineceu. É ao primeiro tipo que se dedica o texto, movido pela investigação da
abordagem dos sentimentos femininos nessa série iconográfica, em um caminho
diverso do palmilhado por uma historiografia hegemônica, que reputava ser o
casamento entre os gregos antigos em tudo infenso ao afeto e ao amor. Certamente
o matrimônio entrelaçava-se a um conjunto de práticas econômicas e políticas, seja
por facultar aos descendentes os meios de partilha da herança, seja por lhes
oferecer os direitos de cidadania pertencentes aos pais. Esse quadro institucional,
no entanto,fez com que muitos historiadores negligenciassem o papel dos sentimentos
femininos no interior da vida conjugal. Seguindo de perto os resultados dos estudos
de Claude Calame, o prof. Fábio articula cuidadosamente uma leitura mais sensível
e apropriada do cotidiano desses espaços familiares, julgando assim indevido o
hiato entre casamento e desejo, conforme o sustentou, por exemplo, setores de uma
investigação de jaez feminista. Estaria longe de significar, portanto, a anulação dos
sentimentos da noiva.As narrativas iconográficas analisadas pelo autor ofertariam uma
sensível inserção poética no universo dos sentimentos amorosos no casamento grego.
Da relação entre homossexualismo e heterossexualismo trata o segundo texto do
prof. Fábio, movido pelo intento crítico de desmontagem de aparatos discursivos
que buscam naturalizar o tratamento da questão. Com uma fluência agradável, em
parte devida a uma apresentação oral da qual se originou, o seu escrito discorre
sobre os benefícios do estudo da história de épocas e culturas afastadas no tempo
e no espaço, exercício passível de oferecer certo estranhamento com respeito a
ideias e procedimentos que se naturalizaram em nossa época. Rompe-se a pretensa
atemporalidade dos valores, matriz do esquecimento da sua feição transitória e
relativa ao tempo e ao espaço. Tal se lhe afigura vetor necessário à análise da
efeminação na Grécia Antiga, reveladora de outras modalidades de leitura da
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 12
13
sexualidade nessa cultura. Em uma passagem especialmente esclarecedora e
perspicaz, sublinha o quanto os preconceitos têm de jogo entre as ações permitidas
e a transgressão dessas regras – transgressão essa que exibe o caráter de
artefato, de jogo, precisamente de tais regras.
Ainda no âmbito dos estudos históricos, depara-se-nos a contribuição da profa. dra.
Renata Garraffoni, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na quarta parte
deste volume. Roma é seu objeto de estudo, que se inicia com análise preparatória
em torno aos conceitos fundadores desse gênero de investigação, atendo-se ao
contexto do seu desenvolvimento e ao modo como seriam relidos e reinterpretados
em períodos posteriores. Resiste-se dessa maneira a um objetivismo acrítico, com
o seu intento de sobrevoar as teias contextuais de produção de significado pelos
historiadores. Em vez disso, a autora opta pelo exame de temas importantes na
história romana, tal como o dos gladiadores, evidenciando seu contexto de
elaboração e sua recepção posterior. Texto e contexto se entrelaçam intimamente
nesse tipo de pesquisa.
É a esse respeito assaz esclarecedor o artigo que a profa. Renata dedica ao estudo
do exército romano. Sublinha o lugar de destaque dessa instituição em diversos
setores da vida romana, dado um percurso histórico marcado por conflitos com os
mais diversos povos durante as guerras de conquista, a exigir um apuro especial
na organização dos seus militares, que permitiria a Roma constituir um império
de notável extensão. Tal percurso dá azo a que se reflita sobre as formas de se
escrever o passado, mormente devido ao fascínio que exerceria a história romana
sobre militares diversos ao longo da história, sobressaindo, no caso, estudos de
história militar. E visto que a história se lê a partir de modelos inter-pretativos que
os estudiosos colhem da sua época, a autora julga oportuno atentar-se para as
críticas pós-coloniais dirigidas precisamente a aspectos da história militar. Se no
século XIX, marcado pelo imperialismo europeu, abundavam estudos que preten-
diam extrair da história romana lições militares importantes, a partir dos eventos
em torno do 11 de Setembro de 2001, o interesse passa a residir nas margens de
todo o discurso triunfalista, com a atenção agora residindo no modo como os
romanos lidavam com a perda, bem como no sofrimento dos povos conquistados
e dos escravos. Tudo isso acena para uma maior diversificação dos estudos,
conforme o testemunha o diálogo com a arqueologia, a servir-se de traços da cultura
material (por exemplo, ânforas, lápides etc.) capazes de mover as pesquisas para
além dos temas ligados à dominação de povos por Roma.
Contribuição fundamental a essa discussão é oferecida, na quinta parte, pelo prof.
dr. Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esclarece
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 13
14
ter sido a arqueologia clássica pioneira nos estudos de arqueologia. O Iluminismo
e a obra de Winckelmann exerceram impulso decisivo nessa direção, mormente no
âmbito dos estudos dedicados a Roma, que se desenvolveram com notável
celeridade a partir do século XIX, beneficiados pelos novos rumos técnicos e de
industrialização. O interesse inicial moveu-se em direção a grandes edifícios, cujas
escavações mudariam a feição da cidade, e inscrições, as quais abriram vias férteis
de investigação de objetos os mais diversos. Notabiliza-se, assim, o desenvolvimento
de uma ciência hoje crucial nos estudos clássicos, de cujo diálogo bem se beneficiam
a filosofia, a história e a literatura.
O volume não poderia encerrar-se de modo mais oportuno: detém-se em conside-
rações metodológicas guiadas com segurança e desvelo pelo prof. dr. Sílvio Marino,
da Universidade de São Paulo (USP) e Unicamp.Explorando inicialmente a etimologia
do termo método, o autor sublinha tratar-se de um instrumento com vistas a tornar
mais efetivos os resultados de uma investigação, cujo arremate é, não obstante,
matéria controversa, sobretudo no âmbito das assim chamadas humanidades, para
marcar a sua diferença com respeito às ciências exatas. Os textos não são um dado
objetivo da natureza, mas uma interpretação inserida no âmbito dos diversos
extratos da sua época e cultura. É o movimento de um trabalho marcado pela
interpretação de interpretações.Tal assesto poderia facilmente sugerir a defesa de
um relativismo irrefreável, mas não é essa uma conclusão necessária. Um bom
método ofereceria limites desejáveis a essa operação, precisamente a sorte de
esclareci-mento que o prof. Sílvio apresenta. Acima de tudo, cumpre ater-se a um
elemento crucial em pesquisas em estudos clássicos: o texto. Para esse fim, é mister
conceder-se a devida atenção às línguas em que foram escritos, a uma predisposição
ao diálogo interdisciplinar e à análise do contexto histórico no qual se inserem os
escritos antigos.São notas efetivamente úteis e passíveis de fomentar bons trabalhos.
O segundo texto do autor aprofunda essas questões, desdobrando alguns dos
principais problemas na interpretação da obra dos pré-socráticos e de Platão, bem
como orientações sobre a peculiaridade da indicação das citações nesses tipos
textuais. Sua defesa da atenção à intenção do texto, em vez da intenção autoral,
é, sob todos os aspectos, crucial ao entendimento crítico das obras, propensa a
fazer avançar efetivamente os estudos consagrados a essa área.
Nossa expectativa é a de serem os textos reunidos neste volume um meio valioso
de pesquisa e aprimoramento nos estudos clássicos, inspirando, esclarecendo e
fortalecendo o ânimo dos seus leitores na dedicação a uma fonte abundante de
reflexão e beleza.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 14
Profa. dra. Sandra Lúcia Rocha
Universidade de Brasília (UnB)
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 15
Capítulo I
Representações do amor na literatura grega
O amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com
fios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás
de um único e evidente ‘eu te amo’ há uma multiplicidade
de componentes, e é justamente a associação destes
componentes inteiramente diversos que faz a coerência do
’eu te amo’. Em uma extremidade há um componente físico
e, pela palavra físico, entende-se o componente biológico,
que não se reduz ao componente sexual, mas inclui o
engajamento do ser corporal. No outro extremo, encontram-
se os componentes mitológico e imaginário; incluo-me entre
aqueles para quem o mito e o imaginário não representam
uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão,
mas, sim, uma profunda realidade humana. (Edgar Morin,
2011, p. 26)
Como em várias culturas, o amor se manifesta de múltiplas formas na GréciaAntiga,
mesmo quando escolhemos um determinado período de tempo para investigá-lo.
O amor, como sentimento culturalmente determinado que é, envolve hábitos e
atitudes que variam no tempo e de indivíduo para indivíduo durante determinado
período e região. Codificações culturais prescrevem essas variações. Dando ênfase
à reflexão sobre o amor na literatura grega, veremos como alguns desses códigos
funcionam na Grécia Antiga.
17
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 17
3. Edgar Morin fala da “verdadeira disjunção entre o amor vivido como mito e como desejo” (MORIN, 2011, p. 23).
18
Bem observa Simon Goldhill que, quando o Ocidente se inquieta com questões que
dizem respeito ao amor e à sexualidade, sobretudo dos homens, a Grécia Antiga
emerge ou como um fantasma da depravação ultrajante ou como o paraíso perdido
da liberdade sexual (GOLDHILL, 2004, p. 66) – visões obviamente simplificadoras
do passado. Assim, ao abordarmos esse assunto, é necessário, em primeiro lugar,
adotarmos a perspectiva do antropólogo que se esforça conscientemente para
despir-se de seus preconceitos ao estudar determinada cultura. Só assim poderemos
entender um pouco da Grécia Antiga quanto a dois aspectos que os gregos
consideravam tão fundamentais para a continuidade da vida: amor e sexo. Esse
par assim se coloca porque, diferentemente de concepções amorosas que hoje
em dia buscam separá-los na experiência humana3
– concepções cujos traços
podem também ser rastreados entre os gregos antigos –, amor e sexo constituíam
um par inextrincável para a maior parte dos gregos dos PeríodosArcaico e Clássico.
A potência divina de Afrodite está em estimular a geração da vida, para a qual
a prática do sexo é condição sine qua non no universo humano, enquanto Eros
representa as atribulações emocionais que o desejo físico, para a continuação da
espécie, pode provocar. Portanto, Afrodite e Eros não existem para representar um
amor puramente espiritual.
Há que se considerar ainda, à guisa de introdução, que a maioria das evidências
literárias das representações do amor são produzidas por homens, poetas ou prosa-
dores, fato que, por si só, ilustra a preponderância de uma certa visão masculina
sobre o tema. O fato de nos terem chegado representações masculinas não significa,
entretanto, que vozes femininas tenham sido de todo caladas no que diz respeito
à expressão do amor. Não é somente Safo que nos deixa seu registro excepcional,
não menos marcante, na história da literatura grega, mas também Corina, Erina e
Nossis, e outras poetisas ainda pouco conhecidas, cujos fragmentos têm sido
recentemente estudados (GREENE,2005).Devido à importância e extensão do corpus
poético da poetisa de Lesbos, se comparada às outras, nos restringiremos à sua
valiosa contribuição quando abordarmos a representação do amor por voz feminina.
Para tratar do tema, distinguimos três tipos de representações do amor que se
encontram nos textos gregos e que, de resto, são as que mais povoam nosso
imaginário e despertam nossa curiosidade sobre o universo cultural da GréciaAntiga
quanto a esse aspecto: o amor entre homem e mulher, o amor entre mulheres e o
amor entre homens.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 18
4. As traduções da “Ilíada” utilizadas neste texto são de Frederico Lourenço (ver bibliografia).
19
O amor entre homem e mulher
Entre os gregos, a relação amorosa entre homem e mulher encontra sua expressão
mais erótica antes ou fora do casamento. Quando a moça é virgem e está prestes
a casar-se, ou quando ainda é recém-casada, o desejo do marido se manifesta de
forma ardente; mas, após o casamento, o amor erótico parece diluir-se em certa
afetividade que toma seu lugar (GOLDHILL, 2004, p. 50). Nesse caso, não se trata
mais exatamente de amor, pois não há Eros, não há desejo; mas de afeto produzido
pelo respeito e por boa dose de convenções sociais e familiares. Quando
representado na literatura, o desejo entre cônjuges marcado por Eros normalmente,
associa-se à tragédia ou a situações trágicas ou muito excepcionais dentro de
determinada narrativa. É assim que, na épica homérica, Zeus é surpreendido pelo
desejo súbito que sente pela esposa, Hera, quando a deusa decide interferir junto
a ele, para favorecer a reação grega na Guerra de Troia. Após ter recebido de
Afrodite uma cinta com todos os encantamentos do amor, Hera aproxima-se de
Zeus, de modo dissimulado, informando estar de partida para visitar Oceano eTétis.
Tomado de desejo nesse momento, diz-lhe o soberano Olímpio:
Hera, para lá também poderás ir mais tarde:
voltemo-nos agora para o prazer do amor.
Pois dessa maneira nunca o desejo de deusa ou mulher
me subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito,
nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon,
que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho;
nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio,
que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens;
nem pela filha do famigerado Fênix,
que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto;
nem por Sémele ou Alcmena em Tebas,
esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânino,
ao passo que Sémele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais;
nem pela soberana Deméter das belas tranças;
nem pela gloriosa Leto – e nem mesmo por ti própria
me apaixonei como agora te amo, dominado pelo doce
desejo.
(Ilíada4, XIV, 313-328)
A situação é tão incomum, que, ao externar sua estupefação diante do repentino
desejo que lhe desperta a deusa esposa, Zeus apresenta uma lista de mulheres, de
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 19
5. Em toda a poesia arcaica, termos que se referem a leito são usados em referências metafóricas ao contato sexual entre amantes
(CALAME, 1996, p. 47).
20
relações extraconjugais, todas dignas de menção por lhe terem provocado desejo
incomparável até então, das quais nascera uma prole não menos digna de registro.
Pois é fora do matrimônio que o Olímpio está habituado a ser tocado por Eros. Com
efeito, no presente instante, é graças à cinta especial deAfrodite, que a auxilia, que
Hera consegue abalar eroticamente o ímpeto do marido. Nem ela própria, como
esposa, havia anteriormente despertado tamanho desejo – diz Zeus –, salvo em
seus primeiros encontros. De fato, a situação coloca-se de tal modo em nível de
exceção, que o narrador homérico buscará a semelhança desse encontro entre
marido e mulher na primeira vez em que Hera e Zeus fizeram amor:
Assim que a viu, o amor [eros] envolveu-lhe o espírito
robusto,
tal como quando primeiro fizeram amor [philoteti],
deitados na cama, às ocultas dos seus progenitores.
(Ilíada, XIV, 294-297)
Por outro lado, o decoro e o respeito que o matrimônio devia manter entre cônjuges,
à distância dos arroubos eróticos, manifesta-se na resposta de Hera a Zeus:
Se o que tu queres agora é deitar-te em amor
nos píncaros do Ida, isso estaria à vista de todos!
Como seria se um dos deuses que são para sempre
nos visse a dormir e depois fosse contar a todos os deuses?
Pela minha parte já não poderia regressar à tua casa,
depois de me levantar do leito, pois isso seria uma vergonha.
Mas se é essa a tua vontade e se é agradável ao teu
coração,
tens um tálamo, que te construiu o teu próprio filho,
Hefesto, tendo ajustado às ombreiras portas robustas.
Vamos então deitar-nos lá, visto que o leito é o teu desejo.
(Ilíada, XIV, 330-340)
Ao que lhe responde Zeus:
Hera, não receies que algum deus ou homem
observe o ato, tal é a nuvem dourada com que
te esconderei. Nem o próprio Sol nos descortinaria,
embora nenhuma luz veja mais agudamente que a dele.
(Ilíada, XIV, 342-345)
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 20
21
É preciso que uma nuvem, dourada como Afrodite, envolva o cume do monte
Ida para que a esposa possa deitar-se5
em amor com o marido fora do tálamo –
aposento onde a conjunção carnal e erótica entre cônjuges é apropriada. Com essa
solução, arremata Homero, destacando o estatuto insólito da parceira sexual em
tais circunstâncias:
Falou; e nos seus braços tomou a esposa [parakoitin] o filho de
Crono.
(Ilíada, XIV, 346)
Com essas considerações, não se quer dizer que o amor entre homem e mulher,
porém, se reduzisse a um intercurso sexual de hábito, sem desejo e destituído de
afeto. Eros (amor-desejo) e philotes (afeto) aparecem associados, embora essa
associação se destaque mais frequentemente na representação das relações
homoeróticas masculinas da poesia mélica, em que a confiança entre homens, em
relações eróticas, se transfere para a vida política (CALAME, 1996, p. 44-45). É que
philotes marca um traço de confiança, de afetuosidade, que pode acompanhar o
arrebatamento erótico, embora não lhe seja necessário. Dada a composição
coetânea da poesia épica e lírica, não é de nos surpreender que, na citação do
narrador homérico acima,em que se descreve o súbito efeito de Hera aos olhos de Zeus,
este seja tomado de eros e philotes simultaneamente, termos que o tradutor traduziu
por amor em português.
Outro exemplo homérico do caráter afetuoso que prepondera no matrimônio, pouco
povoado de expressões de desejo erótico entre homem e mulher, é encontrado no
último encontro de Heitor e Andrômaca. Diz Andrômaca ao esposo:
Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmão
e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito.
(Ilíada,VI, 429-430)
Uma leve evocação ao amor-desejo se vislumbra em “vigoroso companheiro do
meu leito”, pois é, em primeiro lugar, a conjunção de afetos familiares o que define
a importância de Heitor na vida deAndrômaca.A menção ao leito constitui, todavia,
uma referência indireta ao amor erótico, em linguagem bastante discreta. Da mesma
forma, a Heitor preocupa tão somente a condição de escrava a que será submetida
Andrômaca, quando ele morrer. Não se lhe aventa a possibilidade de que, também
como escrava, seja Andrômaca forçada a ter relações sexuais com seu futuro dono.
Outra expressão que o amor entre homem e mulher pode adquirir é a de um desejo
não concretizável, impossibilitado. Na poesia dos cantos corais, em que o amor é
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 21
6. Fragmento n. 26 da edição de Page (= P): D.L. Page (ed.) Poetae melici Graeci. Oxford: Clarendon Press, 1962 (FERRATÉ, 2000,
p. 172).
7. Tradução minha.
8. É comum na poesia arcaica a associação de Eros com a doçura, muitas vezes evocando mel e abelhas
22
manifestado, em geral, por homens maduros, e dirigido para jovens, moços ou
moças, encontra-se, frequentemente, a impossibilidade da realização do desejo.
Alcman, poeta de Esparta e autor de partênios, canção entoada por um coro de
virgens em festivais cívico-religiosos, celebra o amor sem reciprocidade ou
dificultado por alguma condição ou circunstância impeditiva. O fragmento a seguir,
em que o sujeito poético dirige-se a mulheres virgens, exemplifica essa temática
(fragmento 26 P6
):
Não mais, ó virgens de doce e sagrada voz,
as pernas me levar podem.Ah, ah, se eu fosse um alcatraz,
que sobre a flor da onda junto com as alcíones voa,
e tem valente coração – ave sagrada, púrpura como o mar!7
Eis a voz do homem envelhecido, de condições físicas precárias, diante das virgens
de voz adocicada pelo charme de Eros8
. Seu desejo é poder constituir um par
amoroso à semelhança do que narra o mito de Alcíone e Ceíce, cuja felicidade os
fazia comparar-se a Hera e Zeus, irritando o casal olímpico de tal forma, que os
transformou em pássaros, o alcatraz e a alcíone, os quais representam no poema a
leveza do enlace repleto de energia e vigor para desfrutar do dulcíssimo amor. É
importante lembrar que a virgindade entre os gregos não é vista como sinônimo
de castidade, como na tradição judaico-cristã, mas apenas como uma fase de
intensa sensualidade das jovens, entre a infância e a idade adulta (RAGUSA, 2010,
p. 165). Assim, não há elemento algum de perversão, no sentido mais comum do
termo, no desejo do homem mais velho pela virgem.
O amor entre mulheres
A existência de relações homoeróticas entre mulheres gregas – apesar de contar
com alguma tradição interpretativa entre os estudiosos – tem sido mais
recentemente objeto de controvérsia, tendo em vista as poucas evidências de fato
em que se apoiam os que acreditam que o homoerotismo feminino tenha
correspondido a uma prática culturalmente bem estabelecida como a da
homossexualidade masculina (RAGUSA, 2005, p. 68 e ss.). No entanto, não vemos
problema em refletir sobre a representação do homoerotismo feminino, por tratar-
-se de uma possibilidade de interpretação que não deve ser descartada, quando os
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 22
9. Tradução (e notações) de Joaquim Brasil Fontes (ver bibliografia).
23
textos a permitem, e que tampouco precisa estar associada de imediato a um
discurso excessivamente marcado por questões de gênero. Além disso, apesar de
poucos, há poemas de Safo que favorecem sobremaneira tal interpretação. É o caso
do seguinte fragmento:
] que morta, sim, eu estivesse:
ela me deixava, entre lágrimas
_ _ _ _ _ _
e lágrimas, dizendo: [
‘Ah, o nosso amargo destino,
minha Psappha: eu me vou contra a vontade’.
_ _ _ _ _ _
Esta resposta eu lhe dei:
‘Adeus, alegra-te! De mim,
guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti
_ _ _ _ _ _
– se não, quero trazer de novo
à tua memória [ ]
... [ ] as lindas horas que vivemos
_ _ _ _ _ _
] de violetas,
de rosas e aça[flor]
... [ ] nós duas lado a lado
_ _ _ _ _ _
[ ] tecendo grinaldas
[ ] teu delicioso colo
] flores [
_ _ _ _ _ _
[ ] e perfumes
[ ]
] feitos
para rainhas;
_ _ _ _ _ _
ungias com óleos, num leito [
delicioso [
e o desejo da ausente [
nem ] grutas
] danças
] ou sons9
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 23
10. Segundo West, com relação ao grupo de Safo, a visão mais aceita atualmente é a de que jovens mulheres fossem confiadas a seu
grupo para instrução em música e talvez em leitura e escrita (WEST, 1994, p. xiii).
24
O poema apresenta a expressão do amor impedido, nesse caso pela partida de uma
das envolvidas na relação amorosa. Não há dúvida de que são duas vozes femininas
cujo discurso direto se reproduz no poema, e, apesar do vocativo Safo, não tem
relevância a discussão biografista quanto a se tratar de expressão de experiência
pessoal da própria poetisa ou de sua persona poética. Nisso, são acertadas, no
geral, as considerações de Ragusa (2005, p. 303). Por outro lado, o poema descreve
a dor da ausência da mulher amada sentida por outra mulher, que a recorda a partir
de experiências compartilhadas, descritas por uma linguagem povoada de imagens
eróticas. Gentilli oferece uma interessante interpretação da existência de relações
homoeróticas em Lesbos, que poderia acomodar uma possível leitura do poema
acima no quadro do homoerotismo feminino. Havia em Lesbos, assim como em
Esparta, grupos de mulheres que partilhavam de rituais religiosos comuns e relações
pessoais, marcadas por fortes identidades, afetos e rivalidades; no interior desses
grupos, as relações entre mulheres eram variáveis, podendo ter o caráter oficial de
vínculo afetivo de compromisso ou ainda compreender um breve período de
iniciação de jovens à vida adulta, anterior ao casamento com homens (GENTILI,
1990, p. 72 e ss.)10
.Talvez o poema acima represente uma situação desse tipo, em
que a jovem amada se despede da outra com a qual compartilhara momentos de
intimidade no grupo (“Sabe o que nos prendia a ti”), encaminhando-se agora para
o matrimônio (“eu me vou contra a vontade”). Se, por um lado, os poemas de Safo
impõem certa cautela a leituras que neles privilegiem somente o homoerotismo
feminino (RAGUSA, 2005), por outro lado tais conjecturas, quando possíveis, como
no caso do poema acima, não devem ser ignoradas, tendo em vista alguns
testemunhos antigos e a pesquisa de tantos outros sérios estudiosos do assunto
nas últimas décadas.
O amor entre homens
Ao contrário das relações eróticas entre mulheres, o relacionamento homoerótico
entre homens, amplamente atestado na iconografia e descrito em textos de prosa
e poesia da Grécia Antiga, é tema de consenso entre os estudiosos. Não
surpreende o fato de que, em uma cultura que se desenvolve sob o controle dos
homens, também sobre o homossexualismo masculino nos tenham chegado mais
evidências. Na Grécia Arcaica, as relações erótico-afetivas entre homens desenvol-
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 24
25
veram-se provavelmente no interior dos sumposia, encontros masculinos de
entretenimento e discussões, regados a vinho, que ofereciam também a
oportunidade de os jovens se iniciarem à vida social. Segundo Calame, a iniciação
à vida adulta – e que inclui experiências eróticas – que se dá no sumposium
corresponde ao espaço destinado à educação em uma sociedade, como a grega,
em que não há instituição estabelecida para a formação educacional (CALAME,
1996, p. 120 e ss.). Esse espaço, que se fundamenta em laços de afeto entre os
convivas, compreende não só a recitação de poemas como também a exaltação de
valores éticos que devem ser transmitidos aos jovens. Portanto, o amor erótico que
se manifesta nesses contextos tende a ocorrer especificamente entre um homem
maduro e um jovem rapaz, e normalmente vem acompanhado de afetuosidade
(philotes), que será a base igualmente de ligações e fidelidades políticas,
posteriormente, entre eles, quando o jovem já tiver se transformado em homem
adulto e atuante politicamente na cidade (CALAME, 1996, p. 126-127). Goldhill
salienta que o desejo, nesse caso, se distribui entre papel ativo e passivo, cabendo
ao homem adulto (o amante) o ativo tanto na expressão e no sentimento do desejo
erótico quanto na transmissão de valores e ensinamentos, não sendo ele bem visto
socialmente caso se coloque na posição de amado (GOLDHILL, 2004, p. 52).
A prosa do século V a.C. tem inúmeros exemplos de representação do amor entre
homens e das repercussões sociais de suas relações. Um dos mais notáveis é
apresentado porTucídides, em sua versão da história da sucessão de poder durante
a tirania dos pisistrátidas. O relato sobre a relação amorosa surge a propósito de
uma referência à tirania de Pisístrato, que teria sido lembrada pelo povo ateniense
quando os cidadãos associaram a mutilação das estatuetas de Hermes emAtenas,
em 415 a.C., cuja responsabilidade estava sendo investigada, a uma tentativa de
tomada de poder de tipo tirânico. O objetivo primeiro da menção ao Pisistrátidas é
corrigir informação histórica que Tucídides julga estar equivocada entre os
atenienses e os demais gregos. Diz Tucídides que quem sucedeu no poder,
quando Pisístrato morreu, foi seu filho Hípias, e não Hiparco, como acreditava a
maioria dos atenienses. É nesse contexto que se insere o episódio que aqui nos
interessa:
A ação ousada de Aristógiton e Harmódio foi levada a cabo
por causa de um incidente de natureza amorosa [di’ erotiken
xuntuchian], por meio do qual, após eu relatá-lo de forma
mais demorada, vou demonstrar que nem os outros
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 25
26
[gregos], nem os atenienses nada dizem de exato tanto
acerca de seus próprios tiranos quanto acerca deste fato
ocorrido. [...] Quando Harmódio estava no auge de sua
brilhante juventude, Aristógito, um homem da cidade,
cidadão de posição social mediana, o tinha como amante.
E Harmódio, ao ser cortejado por Hiparco, o filho de
Pisístrato, embora por ele não tivesse sido seduzido,
denuncia o caso a Aristógiton. Este, sofrendo por amor
[erotikos perialgesas] e com medo do poder de Hiparco, de
que este pudesse aproximar-se de Harmódio à força,
planejou tão logo quanto possível, a partir da posição social
que detinha, a dissolução da tirania. E, nesse ínterim,
Hiparco,como,apesar de novamente ter cortejado Harmódio,
não o seduzisse de modo algum, e não querendo tomar
nenhuma atitude violenta, como se não fosse por isso,
de uma maneira encoberta preparava-se para insultá-lo
(Tucídides,VI, 54,1-4).
A empresa ousada fora o assassinato do filho do tirano Pisístrato, Hiparco, que o
casal, juntamente com outros companheiros políticos, cometem por ocasião da festa
panatenaica – o que Tucídides narra nos capítulos seguintes. No entanto, o que
interessa na representação da relação amorosa na narrativa tucidideana é
exatamente seu caráter subordinado a questões políticas, pois isso revela um
pouco da complexidade dos relacionamentos homoeróticos entre homens
gregos. Tucídides apresenta a situação destacando especificamente o que é
relevante para se compreender como tais relações funcionavam. Harmódio está
no “auge de sua brilhante juventude”, e Aristógito é um homem adulto, já
estabelecido socialmente. Hornblower salienta que a expressão grega aqui traduzida
como “de posição social mediana” significa, na prática, “de classe média”, e é
indicativa da influência política que Aristógito podia ter em Atenas, a tal ponto que
já sinalizaria para a existência do grupo de companheiros com as mesmas
convicções políticas que apoiará o casal no assassinato (Tucídides, VI, 56-57)
(HORNBLOWER, 2008, p. 442). A narrativa também mostra como o jovem amado
é subordinado e ligado ao amante por laços de confiança, já que, tão logo é
cortejado pelo filho do tirano, denuncia o caso a Aristógito. A reação deste é
ciumenta e passional, descreve Tucídides (“sofrendo por amor”), mas é provocada
também por uma consciência do poder político do rival (“com medo do poder de
Hiparco”). Ora, a relação entre homens, nesse caso, está intrinsecamente ligada a
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 26
27
um contexto de formação do cidadão jovem para sua posterior atuação política,
estabelecendo um elo que vai além do simplesmente amoroso-sexual. Tucídides
fecha o excurso resumindo que a conspiração ocorrera “por causa de ressentimento
amoroso” (di’ erotiken lupen) e que, após o assassinato, a atuação dos tiranos
recrudesceu, gerando insatisfações entre os atenienses, que acabaram por derrubar
a tirania posteriormente.
O período a que se reporta o relato de Tucídides é o do século VI a.C., entretanto,
nos séculosV e IV a.C. abundam referências a tais relações, algumas famosas, como
a de Sócrates e Alcibíades. Do Período Arcaico ao Período Clássico, portanto,
encontram-se várias evidências desse tipo de relação homoerótica entre homens,
em contexto de educação e formação do indivíduo jovem para a vida adulta em
sociedade – o que permite afirmar que esse é um traço cultural relativamente estável
da GréciaAntiga, ao longo de alguns séculos. O amor, nesses casos, não se restringe
a um encontro afetivo e erótico, mas se desenvolve no seio de grupos masculinos
com afinidades diversas, de natureza intelectual a política, como se viu no trecho
acima.
Eis, portanto, alguns casos de representação do amor na literatura grega antiga.
Como se pode ver, algumas práticas amorosas dos gregos que aparentemente ainda
se mantêm na vida ocidental são, todavia, hoje destituídas dos caracteres culturais
específicos que as determinavam no contexto grego, como as relações homoeróticas
entre mulheres e entre homens, que emergiam, em geral, de uma necessidade social
de introdução e iniciação de jovens em práticas sociais do mundo adulto. Cabe
ainda frisar que as evidências literárias podem fornecer uma visão bastante limitada
da vida grega quanto a esse aspecto, tendo em vista o forte caráter oral da Grécia
durante toda a Antiguidade. A literatura, porém, ainda é uma fonte fértil que
continua atraindo pesquisadores a explorar esse mundo ainda tão desconhecido
para nós que é o dos antigos, em geral, e o dos gregos, em particular. Muito
provavelmente, como na maioria das sociedades, a manifestação do desejo erótico
seria muito mais variada e complexa do que os materiais objeto de pesquisa
restantes do mundo grego antigo podem indicar. Ainda assim, a precaução
investigativa, no âmbito de fontes textuais, requer que as interpretações se atenham
àquilo que temos de mais objetivo, os textos – o que constituiu nossa diretriz
principal ao longo das reflexões feitas aqui.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 27
28
Bibliografia
CALAME, C. L’Éros dans la Grèce Antique. Paris: Belin, 1996.
FERRATÉ, J. Líricos griegos arcaicos. Barcelona: El Acantilado, 2000.
GENTILI, B. Poetry and its public in Ancient Greece: from Homer to the fifth century.
Baltimore:The Johns Hopkins University Press, 1988.
GOLDHILL, S. Love, sex & tragedy: how the Ancient World shapes our lives. London:
John Murray Publishers, 2004.
GREENE, E. (Ed.). Women poets in Ancient Greece and Rome. Norman (OK): University
of Oklahoma Press, 2005.
GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana.Trad.Victor Jabouille. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1997.
HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
HORNBLOWER, S. A commentary on Thucydides, v. 3: Books 5.25-8.109. Oxford:
Oxford University Press, 2008.
HORNBLOWER, S.; SPAWFORTH, A. The Oxford classical dictionary. Oxford: Oxford
University Press, 2003.
KERENYI, K. Os deuses gregos.Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1998.
MORIN, E. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
RAGUSA, G. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo.
Campinas: Editora Unicamp, 2005.
RAGUSA, G. Lira, mito e erotismo:Afrodite na poesia mélica grega arcaica. Campinas:
Editora Unicamp, 2010.
SAFO DE LESBOS. Poemas e fragmentos. Trad. Joaquim Brasil Fontes. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford
University Press, [s.d.]. (Oxford classical text).
VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1996.
WEST, M. L. (Ed.). Greek lyric poetry. Oxford: Oxford University Press, 1993.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 28
29
Capítulo II
Ecos homéricos em representações da morte em Atenas
A vingança também é agradável; pois, se é doloroso não
alcançar uma coisa, é agradável alcançá-la; e os iracundos
afligem-se em demasia quando não gozam vingar-se, mas
regozijam-se quando esperam fazê-lo.
[...]
A honra e a boa reputação contam-se entre as coisas mais
agradá-veis, porque cada um imagina que possui as
qualidades de um homem virtuoso, e sobretudo quando o
afirmam pessoas que ele considera dizerem a verdade.
Contam-se entre eles os vizinhos mais do que os que se
encontram afastados, os familiares e os concidadãos mais
do que os estranhos, os contemporâneos mais do que os
vindouros, os sensatos mais do que os insensatos, e a
maioria mais do que a minoria; pois é mais provável que
digam a verdade os que acabamos de mencionar do que os
contrários [...]
(Aristóteles, Retórica, p. 1370b, 1371a)
A vingança e a honra, dois conceitos que Aristóteles elenca entre aqueles funda-
mentais para que o orador entenda como o prazer deve ser considerado como
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 29
30
11. Cf. Lísias, Oração fúnebre, 17-23; Ésquines, Contra Timarco, I.5.
12. A Lei de Drácon dispõe sobre homicídio intencional e não intencional. O conhecimento que se tem dos termos da lei remete à
sua republicação pelos atenienses em 408/9 a.C., em que aparecem disposições somente sobre o homicício não intencional,
que deve ser punido com exílio ou recompensa monetária. Há várias conjecturas sobre o tratamento dado, na Lei de Drácon, ao
homicídio intencional, sobretudo em vista de a lei punir com morte outros crimes, como o roubo e traição; entretanto, a inscrição
com a republicação da lei não traz os termos referentes ao homicídio intencional.
13. Na “Ilíada”, 18.497-508, no novo escudo de Aquiles feito por Hefesto há uma narrativa visual que menciona um julgamento
que refere compensação monetária por homicídio.Alguns estudiosos têm assumido isso como evidência de tipo de punição de
homicídio na Grécia Arcaica (GAGARIN, 1981).
matéria da oratória judicial, são também dois aspectos essenciais da representação
da morte entre os gregos, desde Homero. Nos espaços institucionais de Atenas,
no Período Clássico, eles figuram frequentemente associados à morte individual ou
coletiva, e incorporados a práticas bem estabelecidas, de natureza religiosa e social.
No caso da morte do indivíduo, é interessante analisar como a honra aparece
travestida em necessidade de vingança nas representações do homicídio levado a
julgamento. No que diz respeito à morte coletiva dos guerreiros-cidadãos que
morrem combatendo em nome da cidade, a honra transfere-se da morte do
indivíduo para a vida da coletividade, revelando como a ideologia ateniense
consolida a fusão entre o valor individual e a glória da pólis em uma ocasião
simultaneamente religiosa e político-educativa: a da oração fúnebre proferida por
ocasião dos ritos funerários aos mortos de guerra.Tanto no tratamento do homicídio
quanto na louvação coletiva aos mortos, percebe-se a exaltação desse importante
aspecto da representação da morte do herói homérico:a relação entre morte e honra.
Em uma cidade que se proclama, entre as demais da Grécia Antiga, a mais
“civilizada”11
, é natural que, desde o início de sua constituição, a pólis ateniense
tenha normatizado, pela lei ou pelo costume, o ato brutal de tirar a vida alheia. Em
621 a.C., a Lei de Drácon dispõe sobre o crime de homicídio, pressupondo uma
certa tradição de procedimentos convencionais – anteriores à lei, portanto –
relativos ao homícidio. Uma das questões centrais da Lei de Drácon é limitar a
vingança individual: a lei estabelece que os casos de homicídio devem ir a julga-
mento12
, do que se tem inferido que buscava impedir “justiça com as próprias
mãos”, provavelmente uma prática costumeira até então (COHEN, 2005). Percebe-
-se que a tradição que atravessa os termos da Lei de Drácon – e chega ao Período
Clássico – mantém um aspecto fundamental da justiça do herói homérico com
relação ao homicídio13
: a vingança como resgate da honra.
Na Grécia Arcaica, Aquiles encarna não só o herói que se lança conscientemente
para a morte em troca de renome, mas também o vingador por excelência. Logo
após saber da morte de Pátroclo, diz ele à mãe, Tétis, que não viverá enquanto
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 30
14. Em trabalho de iniciação científica por mim orientado, Luiz Eudásio Barroso Capelo Silva (2009) mostra que, em Antifonte e em
Tucídides, o conceito de τιμωρία não compreende somente o resgate da honra ultrajada, mas também o reguardo, a proteção
da honra que pode vir a ser ofendida. Nesse sentido, o verbo τιμωρέω é muitas vezes traduzido para o português como
“proteger”, pois ocorre em contextos em que se procurar proteger a honra de uma possível ofensa a ser ainda sofrida.
15. Ilíada, XVIII, 79-81: “Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu meu companheiro amado, Pátroclo, a quem eu honrava acima
de todos os outros, como a mim próprio?”
31
“Heitor não perder a vida pela minha lança e pagar a espoliação de Pátroclo” (Ilíada,
XVIII, 93). Aqui se refere Aquiles às armas de Pátroclo, de que Heitor se apossara.
Entretanto, logo em seguida ele explicita com mais ênfase seu desejo: “E agora irei
ao encontro de quem a cabeça amada me matou: Heitor” (Ilíada, XVIII, 114-115).
Eis o real motivo que movimenta o herói de volta às hostes dos aqueus – vingar o
amigo morto, matando o assassino e mais alguns troianos:
Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo
da terra,
não te sepultarei, antes que para aqui eu tenha
trazido
as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti,
magnânimo.
E na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze
gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado.
(Ilíada, XVIII, 333-337).
Como bem salienta Vernant, o herói morre porque sua honra não pode ser
empenhada; sua honra é a medida de sua vida, em um plano metafísico, não social,
razão pela qual o prestígio social, que pode ser gozado e adquirido no plano de
sua existência mortal, não lhe interessa (VERNANT, 1989, p. 47). Por estar em
outro plano de valores, a honra do herói é o que o faz trocar a vida mortal pela
imortalidade na memória coletiva, pela lembrança reiterativa do canto. Ora, a
vingança (τιμωρία), que, na GréciaArcaica, pode permitir que uma morte se pague
com outra morte, não é nada mais do que o ato de resguardar a honra ultrajada,
o que bem mostra a relação entre os termos honra (τιμή) e vingança (τιμωρία),
que partilham de um mesmo radical (τιμ-). McHardy, em seu estudo sobre a
vingança na cultura grega, mostra que o vocábulo τιμωρία resulta da composição
entre os radicais do substantivo τιμή (honra) e do verbo ὄρομαι (resguardar)
(McHARDY, 2008, p. 3)14
. No caso de Aquiles em relação a Pátroclo, a honra que o
pelida busca resgatar, ao lançar-se sobre Heitor para vingar Pátroclo, é como se
fosse a sua própria15
. Nesse contexto, é fundamental a Aquiles recuperar o corpo
do amigo, pois deixar Pátroclo insepulto é não concretizar a passagem do amigo
ao mundo dos mortos, como que o deixando no vácuo entre a vida e a morte,
já não mais vivo, mas ainda não exatamente na condição de morto, que é a do
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 31
16. Gernet (2004) traz uma interessante discussão sobre diversas penas de morte utilizadas até o século IV a.C. em Atenas:
ἀποτυμπανισμός (morte em que a vítima é amarrada nua a um poste de madeira para “morrer viva” – pena que lembra a
crucificação); o envenenamento por cicuta, que tão bem conhecemos pelo caso de Sócrates; e o βάραθρον (lançamento de
vítimas em abismo – se vivas ou já mortas, há controvérsias entre os estudiosos). À pena de morte podia somar-se também a
pena de privação do sepultamento da vítima.
17. Além de “Contra a madrasta”, ver “Tetralogia” I, 9.
32
indivíduo cujo corpo, finda a vida, passa pelos ritos fúnebres de limpeza e purificação
para chegar ao Hades (VERNANT, 1989, p. 70-73).
O ideal da honra preservada, se necessário, pela vingança de morte deve ter
influenciado o imaginário dos atenienses por muito tempo, a julgar pelas evidências
de alguns textos do Período Clássico. Apesar de o homicídio ter sido regrado pela
Lei de Drácon, que aparentemente não sofreu grandes modificações ao longo do
tempo (Antifonte, Acerca do Coreuta, 2; Demóstenes, Contra Aristócrates, 51), muito
embora os termos relativos ao homicídio intencional não nos tenham chegado, é
possível que uma série de disposições tenham sido acrescentadas à lei original para
regulamentar, por exemplo, a execução de pessoas julgadas por homicídio
intencional e consideradas culpadas16
. Mais frequentemente, a pena capital era a
contrapartida para o descumprimento da pena de exílio.Apesar de, em princípio, o
sistema legal ateniense pressupor que cabe à pólis julgar e processar os casos de
homicídio em geral, existe no Período Clássico uma retórica bem articulada e
empenhada em afastar, dos casos levados a júri, o desejo de vingança pessoal como
motivo desencadeador da ação penal. Tal retórica, argumenta Cohen, pode muito
bem indicar que, na realidade, o valor corrente entre os atenienses era buscar o
tribunal – no caso de homicídios, o Areópago – para obter a vingança pessoal
(COHEN, 2005b, p. 219 e ss.).
Alguns discursos de Antifonte obliteram claramente a distinção entre vingança
pessoal e punição do Estado. Em “Contra a madrasta”, o litigante, filho do pai
assassinado pela madrasta, interpela o júri a assumir seu papel de “vingadores do
morto” (21: τῷ τεθνεῶτι τιμωρούς)17
, vingando simultaneamente as leis de
Atenas – ou, para lembrarmos o sentido de τιμωρία, resgatando a honra do morto
e resguardando a honra das leis atenienses. Para os atenienses, o homicídio,
ressalte-se, é um crime que, mesmo perpetrado na esfera privada, tem repercussão
direta sobre a vida da pólis, certamente porque contém um aspecto diretamente
relacionado à vida religiosa da cidade. Os homicidas eram proibidos de entrar nos
espaços públicos e julgados somente pelo Areópago. Em “Contra a madrasta”, o
filho dirige-se aos juízes, dizendo-lhes que o morto
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 32
18. Não se pense que execuções sumárias, sem julgamento, não fossem permitidas por lei. Sobressai como peculiar – e figura no
discurso de Lísias, “Sobre o assassinato de Eratosthenes” – o caso do homicídio lícito, permitido quando um homem surpreende
outro com sua mulher, mãe, filha, irmã ou concubina que mantenha para procriar filhos livres (cf. também Demóstenes, Contra
Aristócrates, 53).
33
é digno de receber de vossa parte compaixão, auxílio e
vingança [τιμωρίας], ele, que teve de abandonar a vida
antes do que lhe fora destinado,de modo inglório [ἀκλεῶς],
contrariamente ao divino [ἀθέως], pelas mãos dos mais
miseráveis (Contra a madrasta, 21).
A vingança restitui, assim, o estado de piedade divina que merece o morto, mas
também parece ter certo efeito educativo, como o de castigar comportamento que
deve ser evitado, funcionando também, portanto, como meio de justiça educativa
(COHEN, 2005a). Esse tipo de interpelação dos juízes, como observa Cohen a
propósito de outra peça de oratória (Licurgo, Contra Leócrates, 141-6), tende a
mesclar a distinção entre vingança e punição que o exercício da lei e o julgamento
público deveriam, idealmente, preservar em Atenas (COHEN, 2005b, p. 225). Em
“Contra a madrasta”, o julgamento e a declaração de culpabilidade atenderiam ao
pedido do pai do impetrante da ação, que, antes de morrer, em vista de ter ficado
vinte dias padecendo de doença decorrente do envenenamento, conseguira pedir
ao filho que buscasse a vingança (Contra a madrasta, 30). As vítimas de homicídio
premeditado, diz o filho, se “ainda conseguem reagir antes de morrer, chamam seus
amigos e os parentes ligados por necessidade, dizem por que mãos pereceram e
recomendam a vingança daqueles que sofreram injustiça” (Contra a madrasta, 29).
Em Atenas, o homicídio intencional, apesar de ser crime de efeito sobre a vida dos
cidadãos de um modo geral, só podia ser objeto de ação penal por algum membro
da família do morto.Aparece aqui a morte representada e regulamentada no âmbito
das instituições, mas ainda assim suscitando o desejo de vingança pessoal,
assumida, porém, ou, de certa forma, facultada, pelo encaminhamento de uma
acusação para julgamento, de modo que o corpo coletivo da cidade – que o corpo
de juízes representa – se torne o vingador da vítima18
.
O valor da honra do morto,segundoVernant,também se manifesta pelo seu contrário,
pela sua desvalorização com a profanação do cadáver impedido de sepultamento.
Na epopeia, obstruir a recolha do cadáver é privar o inimigo de ter fixada sua
memória de forma estável, em ato correlato ao canto, por meio do memorial que
constitui, no fim dos ritos funerários, a edificação do túmulo com a stele, estável,
imperecível, como marca da vida concluída ou da morte acabada, enquanto
processo de passagem para o mundo dos mortos (VERNANT, 1989, p. 70-1).
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 33
19. Péricles refere-se a desfrutar de sua riqueza, no caso dos combatentes ricos, ou escapar da pobreza e tornar-se rico, no caso
dos pobres – caso visassem somente à sobrevivência.
20. Tradução minha.
34
A isso dedicam-se com empenho, respectivamente, Heitor e os troianos, com o
cadáver de Pátroclo, e, depois, Aquiles, com o de Heitor, ainda de modo mais
extremo. O resgate e consequente sepultamento do corpo do morto é, portanto,
desde sempre, um valor caro aos gregos em geral – com frequência ignorado por
inimigos, voluntariamente, em contextos de guerra.
Entre os atenienses, vinculada ao sepultamento de combatentes mortos em guerra
em nome da pólis está a oração fúnebre, que, entre outras funções, tem a função
retórica de disseminar em prosa a glória dos mortos, à semelhança do que faz o
canto em relação à bela morte do herói. Entretanto, na oração fúnebre o herói não
é mais indivíduo, mas faz parte de um grupo amorfo e inominado de cadáveres que
promovem, na realidade e acima de tudo, a glória da pólis; são “heróis” sem nome,
a serviço do renome da cidade.A famosa oração fúnebre de Péricles revela algumas
características, na apresentação do ethos coletivo dos mortos, que evocam, por
analogia e diferença, alguns aspectos da tradição da bela morte do herói homérico:
Considerando que a vingança contra seus inimigos era
mais desejável do que essas coisas19
e julgando que este
era o mais nobre dos riscos, decidiram vivenciá-lo e vingar-
se daqueles e abandonar aquelas. Deixaram à esperança a
imprevisibilidade do acerto e, quanto à ação que para eles
já era visível, julgaram-se dignos de vivê-la. E preferiram o
ato de defender-se e padecer a salvar-se entregando-se: de
um lado, escaparam do opróbrio da palavra; de outro,
enfrentaram a ação com o corpo e, no breve momento do
acaso, no auge da glória, não do medo, eles nos deixaram
(Tucídides, II, 42.4).20
Assim comoAquiles ou Heitor, os primeiros mortos da Guerra do Peloponeso perdem
sua vida vingando-se de seus inimigos, isto é, resguardando ou resgatando a honra,
em combate. Porém, diferentemente do herói homérico por excelência, seus destinos
não estão previamente selados, mas resultam do “breve momento do acaso”.
Tampouco é o vigor físico ou a juventude – qualidades do corpo do herói que
sucumbe à morte (VERNANT, 1989, p. 56-57) – o que se destaca quando se
mencionam a coragem e o enfrentamento com o corpo na ação fatal de guerra,
mas, sim, a δόξα – a fama, a glória advinda da opinião alheia.A linguagem poética
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 34
35
de Tucídides aqui visa a sensibilizar, não para o lamento, mas para a exaltação, a
fictícia audiência interna da história tucidideana, ou seja, os demais atenienses vivos
que ouvem as palavras de Péricles (LORAUX, 1986, p. 48). Nesse sentido, ressalta-
-se mais uma distinção entre a oração fúnebre ateniense e a tradição épica: nada
na oração de Péricles relembra o lamento de Troia inteira a ver Príamo chegar com
o corpo de Heitor (Ilíada, XXIV, 720-776). A oração fúnebre ateniense inscreve-se
em um contexto didático em que os vivos são convocados a identificar-se com os
belos feitos dos mortos de forma imediata, excluindo-se o distanciamento que
favorece o lamento, pois a glória da cidade, mantida por aqueles que em deter-
minado momento entregaram sua vida bravamente e que merecem então ser
honrados, depende da continuidade da bravura nos cidadãos vivos.A oração fúnebre
é uma lição de moralidade cívica endereçada aos vivos, acrescenta Loraux (1986,
p. 98). A morte transfigura-se assim em um destino resultante do acaso que deve
ser aceito pelos sobreviventes em nome da glória da cidade, que celebra seus
cidadãos somente porque estão mortos, uma forma igualmente de apelar aos vivos
que não desistam em combate e morram pela cidade, para tornar-se objeto de tal
celebração.
Tanto na representação do homicídio levado a julgamento quanto no elogio dos
mortos de guerra de Atenas, a honra é característica marcante da abordagem dos
vivos em relação aos mortos, tal qual já cantava Homero. Em um caso, ela conecta-se
com a vingança; em outro, com a glória.Todavia, na oração fúnebre, os mortos não
têm mais nome, e, no julgamento do homicídio, os juízes são convocados a vingar
não só o morto, mas também as leis da cidade. No âmbito das instituições e
ritos atenienses, a morte é representada como uma experiência que se incorpora e
se ressignifica no discurso da pólis e do cidadão, subestimando-se seu caráter
individual.
Bibliografia
ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2005.
COHEN, D.Theories of punishment. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge
companion to Ancient Greek law. New York: Cambridge University Press, 2005a.
COHEN, D. Crime, punishment, and the rule of law in Classical Athens. In:
GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge companion to Ancient Greek law. New
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 35
York: Cambridge University Press, 2005b.
DEMÓSTENES. Discursos políticos III. Madrid: Editorial gredos, 2008.
GAGARIN, M. Drakon and early Athenian homicide law. New Haven: Yale University
Press, 1981.
GAGARIN, M. The unity of Greek law. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The
Cambridge companion to Ancient Greek law. New York: Cambridge University Press,
2005.
GERNET, L. Capital punishment. In: RHODES, P. J. (Ed.). Athenian democracy.
Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004.
HOMERO. Ilíada. [Trad. de Frederico Lourenço]. Lisboa: Livros Cotovia, 2005.
LISIAS. Discursos. Madrid: Editorial Gredos, 1988.
LORAUX, N. The invention of Athens: the funeral oration in the classical city.
Cambridge: Harvard University Press, 1986.
McHARDY, F. Revenge in Athenian culture. Washington: Duckworth, 2008.
THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford
University Press, [s.d.]. (Oxford classical text).
VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1989.
36
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 36
Prof. dr. José Luiz Brandão
Universidade de Coimbra (UC)
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 37
21. Foi usado neste trabalho, embora com uma organização diversa, grande parte do material publicado em Brandão (2012, p.
135-161).
39
Capítulo III
A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial21
O poeta Marcial deixa-nos um retrato da Roma do século I. E quando nos fala das
ruas da urbe, dos edifícios, dos espaços de convívio públicos e privados, não faz
uma descrição arqueológica, do gênero de um catálogo de museu, mas dá-nos um
testemunho vivo das gentes que povoavam tais espaços, desde o rico, ou novo-rico,
ao mais miserável dos arruinados; desde o mais poderoso patrono ao último dos
clientes, desde o romano da mais pura gema aos mais extravagantes provincianos,
desde as mais nobres matronas às mais repelentes rameiras. Por isso, Marcial é
considerado il poeta di Roma vivente – como dirá Enrico Paoli. Reflete a Roma imperial,
com a sua sociedade piramidal e a monumentalidade de cariz totalitário, acumulada
sobretudo durante o período dos Júlio-Cláudios e dos Flávios.
Roma é o cenário privilegiado dos epigramas. No prólogo do Livro XII, Marcial refere com
saudade os espaços por onde costumava passear (12.21). É a Roma engrandecida
pelos Flávios e motivo de adulação por parte do poeta, é o local de atuação dos
tipos sociais que vai referindo, são os espaços da vida literária (vendas dos livreiros,
percursos dos livros para saudar um patrono) e são os trajetos das deambulações
e canseiras do poeta, que descreve as impressões dos meandros urbanos. Embora
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 39
22. Vide SULLIVAN, 1991, p. 147 e ss.; ROMAN, 2010, p. 99 e ss.; COLEMAN, 2006, p. 15.
23. Cf. Suetônio, Aug. 28.3: “Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inundationibus incendiisque obnoxiam excoluit adeo, ut iure sit
gloriatus ‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero, quantum prouideri humana ratione potuit, etiam in posterum
praestitit”.
24. Suetônio, Ves. 8.1: “Ac per totum inperii tempus nihil habuit antiquius quam prope afflictam nutan-temque rem p. stabilire primo, deinde et
ornare”.
25. Vide PAILLER, 1981, p. 79-87; ROMAN, 2010, p. 111.
40
deseje o otium fora da urbe, Marcial vive esta contradição de necessitar do espaço
urbano para a sua criação poética. A representação topográfica da urbe é, pois,
uma estratégia literária associada ao gênero que o nosso poeta cultiva; para mais,
em um período em que as estruturas da urbe sublinham a afirmação do poder de
uma nova dinastia. Muitos dos epigramas integram-se no consagrado gênero da
laus urbis22
.
A Roma dos epigramas é um espaço em metamorfose. Augusto dissera que encontrara
uma Roma de tijolo e a deixara de mármore. Como outrora Augusto23
,Vespasiano
e os filhos procuraram restaurar e ornamentar moral e fisicamente a cidade depois
da sumptuosidade de Nero e das consequências do conflito civil de 68-69 d.C. na
disciplina e nos edifícios24
. O “Liber spectaculorum”, cuja publicação celebra a
inauguração do anfiteatro Flávio em 80 d.C. No segundo epigrama desse livro,
Marcial estabelece o contraste entre passado e presente por meio do louvor das
construções que se elevaram no lugar da Domus Aurea, o extravagante palácio de
Nero, construído no centro da urbe na sequência do incêndio de 64 d.C. Agora,
reddita Roma sibi est (“Roma foi restituída a si mesma”) (Sp. 2.11).A oposição entre
passado e presente corresponde à metamorfose de espaço fechado em espaços
abertos de deslocamento, de convívio e de espetáculo; à transformação dos deleites
do tirano (dominus) em deleites do populus (Sp. 2.12)25
. A imagem da Fênix é
associada a Roma, que por obra de Domiciano renasce das cinzas, provavelmente
depois do incêndio de 80 d.C. (5.7). Uma alusão a Domiciano enquanto restaurador
e construtor de templos é feita de forma espirituosa em 9.3: ao colocar o imperador
como credor do pai dos deuses, Marcial sublinha o aspecto religioso da política de
construções, em continuidade com a herança augustana (8.80).
Roma permite um cruzamento de percursos poéticos e interpoéticos. Marcial refere-se
diversas vezes a percursos da cidade feitos pelas personagens dos epigramas, por
si próprio ou pelo livro que envia como seu embaixador. É o caso do roteiro de Sélio,
que circula pelo o Campo de Marte na ânsia de conseguir um convite para jantar
(2.14). Outro itinerário destacado é o que faz o poeta até aos seus protetores (1.70;
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 40
26. Cf. Ovídio, Trist. 1.1; 3.7; Pont. 4.5.
27. Um poema que, pelo local e pelas referências, recorda também o “Ibam forte Via Sacra”, de Horácio (Sat. 1.9). Descreve uma
subida desde o Fórum, centro de Roma, até ao Palatino, com menção dos locais que se vão encontrando.
28. Vide ROMAN, 2010, p. 103-105.
41
1.108; 1.117; 2.5; 5.22; 10.20.4-5; 10.56; 10.82). A relação entre o autor e os
espaços da urbe opera-se também por meio do livro, usado muitas vezes como
metonímia do poeta. O motivo ovidiano de enviar o livro do exílio26
é transferido
por Marcial para o contexto das obrigações de cliente, como forma de evitar a perda
de tempo de ir pessoalmente cumprir a salutatio (1.108). Encontra, assim, pretexto
para introduzir passo a passo alusões topográficas e arquitetônicas na descrição
de um percurso: é o caso do trajeto do livro que envia ao amigo Próculo (1.70)27
,
ou do livro que envia a Plínio (10.20)28
. Contudo, há também os percursos descritos
no sentido de levar os leitores até ao lugar dos epigramas, com indicações do nome
dos livreiros e dos locais onde se podem encontrar os epigramas à venda (1.2;
1.117; 4.72). Nesses itinerários, a criação literária recorre a relações intertextuais e
interpoéticas, pela interseção com a arquitetura, a pintura, a vida cultural e social.
1. Roma viva
Atento ao mundo em que vive na busca de inspiração para a sua obra, Marcial
capta a realidade e representa-a por meio do olhar de poeta epigramático. E nos
quadros representados figuram caracteres, virtudes e vícios, tipos sociais, grupos,
profissões. O leitor depara-se com alguns dramas humanos, transmitidos algumas
vezes de forma crua e irônica, outras vezes, empática, e a maior parte das vezes
espirituosa, como manda o gênero: o epigrama, pela sua tradição. É a escolha
adequada para descrições concisas, argutas e contundentes. Marcial deixa-nos,
por isso, um retrato ao mesmo tempo realista e divertido da vida social da Roma
dos Flávios. É uma poesia que, apesar da caricatura, mantém o sabor humano,
como salienta o poeta (10.4.10). A mordacidade e a sátira vão alternando com
a sensibilidade e a empatia com o sofrimento.
1.1. Sobreviver em Roma: entre o ter e o ser
Um dos problemas que mais preocupa a humanidade é o da procura dos meios da
sobrevivência. Marcial parece obcecado com o problema da distribuição da riqueza
e da pobreza na sociedade; não como um paladino da luta pela igualdade social
dos tempos modernos, mas como um cavaleiro conservador, preocupado com o
perigo da subversão da ordem na sociedade romana. Em Roma, o poder político e
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 41
29. Vide MARACHE, 1961b, p. 12-13.
30. Cf. Petrônio, Satyr. 76.
31. O topos foi aparecendo em Horácio (Sat. 2.5), Petrônio (117), Pérsio (5.73), Juvenal (por ex. 1.37-41).Vide SULLIVAN, 1991, p.
159 e ss.
42
social estava tradicionalmente associado à riqueza. Desde tempos antigos, que nos
comitia centuriata votavam em primeiro lugar os mais ricos, os da primeira classe.
Nos tempos do poeta, o status de senador e cavaleiro estava dependente da posse
de um determinado valor patrimonial, um milhão de sestércios para o primeiro e
400 mil para o último. A ordem senatorial tem o seu estatuto e patrimônio
tradicionalmente ligados à posse da terra. Para um cavaleiro, a indústria e o grande
comércio são recomendados29
, mas um naufrágio, por exemplo, pode arruinar um
homem rico30
. As atividades assalariadas e laborais são consideradas desonrosas
para um homem ilustre. Por vezes, os imperadores tinham de subsidiar indivíduos
dessas classes para que não perdessem o estatuto. Marcial zurze, com voz
moralizante, as situações que subvertem a realidade social.
1.1.1. Heranças e dotes
Um dos principais alvos de Marcial são os caçadores de heranças.A caça à herança
ou ao dote é um fenômeno comum em Roma por causa das disposições testamen-
tárias que garantiam a propriedade privada e a defesa do direito de cada um dispor
dos bens a seu desejo. A captatio tornou-se topos dos poetas satíricos31
. Os alvos
são mulheres ricas ou velhos sem herdeiros. É bastante conhecido e repetido, como
paradigmático do gênero cultivado por Marcial, o epigrama sobre as núpcias de
Maronila, que se torna atraente por estar tísica, e, por isso, perto da morte (1.10);
ou o caso de Névia que, para atrair um pretendente, usa de publicidade enganosa:
tosse de forma exagerada (2.26) – situações caricatas que refletem a realidade dos
expedientes a que se podia recorrer para sobreviver na urbe. Dada a proteção de
que gozava a propriedade da mulher romana, surge a suspeita de que certos
homens vendessem os seus favores sexuais em troca do dinheiro das mulheres – é
o que se deduz da censura feita a Basso, por gastar a sua potência sexual com
rapazinhos, subtraindo à esposa o vigor que ela tinha pago com o dote (12.97); da
ventura de Gélio, que casou com uma velha rica (9.80); ou da desgraça de Matão,
que para sobreviver tem comércio carnal com mulheres, contra os seus hábitos
(6.33). E, dadas as disposições legais sobre o adultério – a restauração por parte
de Domiciano da lex Iulia de adulteriis coercendis promulgada por Augusto –, certas
mulheres optam por casar com sucessivos amantes (6.7; 6.22). Na Roma Antiga,
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 42
32. Vide SULLIVAN, 1991, p. 161.
33. Outros exemplos de caçadores de heranças: 2.76; 4.56; 4.70; 6.62; 6.63; 7.66; 8.44; 9.48; 9.82; 9.88; 11.55; 11.83
34. Etão considera como maldição ter de jantar em casa três dias seguidos (12.77).
43
o homem tinha só direito ao uso do dote enquanto durava o casamento, e tinha de
o devolver em caso de divórcio32
. Por isso, Proculeia descobre que é mais lucrativo
abandonar o marido por causa da despesa com a brilhante carreira dele (10.41).
Por outro lado, a morte de esposas ricas é uma fonte de rendimento (2.65; 5.37;
10.43), pelo que estas podem tornar-se vítimas de envenenamentos (4.69.3; 12.91).
Os velhos sem herdeiros são também vítimas naturais. Os caçadores de heranças
enchem-nos de presentes na esperança de verem o seu nome no testamento (8.27;
9.8; 11.44; 11.67). É a síndrome de Eumolpo do romance de Petrônio (Sat. 116-
141), que, ao saber que, em Crotona, só existiam heredipetae, se faz passar por velho
rico para conseguir benesses. O próprio Marcial se inclui no grupo: troça do seu
próprio desejo frustrado de ser incluído em um testamento (5.39; 9.48; 10.98;
12.73)33
, ou de receber uma herança (10.97).
1.1.2. Espórtula e jantares
Outro tópico fértil são os convites para jantar e o parasitismo que existia nesse
contexto, como no caso de Sélio (2.11; 2.14; 2.27), de Vacerra (11.77) ou
Menógenes (12.82), que procuram por todos os meios receber um convite. Era sinal
de certo êxito social ter muitos convites34
, pelo que alguns fingem ser bastante
requestados (5.47; 12.19). No entanto, também ficaria bem socialmente não
mostrar demasiado entusiasmo ou até certa contrariedade em jantar fora, como
sugere a denúncia por parte do poeta de atitudes desdenhosas que soam a
hipocrisia (2.69; 6.51).
A verdade é que ser convidado para jantar era uma forma de subsistência, como
demonstra o caso de Filão: jurava que nunca jantava em casa, porque, quando não
tinha convite, não jantava (5.47).Alguns aproveitam para fazer provisões, roubando
comida nos banquetes (3.23; 7.20). Esse topos está, pois, relacionado com as
obrigações padronizadas entre patrono e cliente.A provisão de comida é uma das
formas primitivas de suporte dos dependentes, que depois se transforma em dádiva
de dinheiro: a sportula.A “clientela” era uma verdadeira instituição em Roma e, ao
mesmo tempo, uma forma socialmente digna de um poeta pobre ganhar a vida.
Uma vez que o trabalho remunerado era considerado pouco acima de compor-
tamento servil, quem não tivesse meios de subsistência e quisesse manter o status
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 43
35. Vide MARACHE, 1961, p. 38-53; MOHLER, 1967, p. 241;AUGELLO, 1968-1969, p. 259-260, e n. 156.
36. Vide ROBERT, 2004a, 48 e ss.
37. Sob tal designação se podem incluir os presentes oferecidos durante o jantar, como sugere Plínio (Ep. 2.14.4), e nesse caso é
comparável com os xenia ou apophoreta; ou pode ser dada durante os banhos (Marcial 8.42), ou durante a salutatio (Juvenal
1.95-102; 120-122;127-128): vide MOHLER, 1967, p. 251 e ss.
38. Cf. 1.80: “Cano morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou... porque foi só uma”.
39. VideAUGELLO, 1968-1969, p. 263.
40. A abolição temporária da sportula é um dos temas recorrentes nesse livro: 3.7, 3.14, 3.30, 3.60.Vide SULLIVAN, 1991, p. 31.
44
tinha de optar pelo recurso à “caridade” de um patrono poderoso. E Marcial
envereda relutantemente por esta prática, que juridicamente tem uma origem servil35
.
É que o papel do cliente sofreu transformações desde a República: nessa fase, o
vínculo entre patronus e cliens consistia em uma relação moral bilateral baseada na
fides; o cliente encontrava proteção no patrono e este precisava do cliente, inclusive
para apoio armado. Com o advento do Império, a ligação moral deixa de existir,
porque o imperador é politicamente o único verdadeiro patrono, pelo que resta só
a ligação econômica36
. Como o patrono nada tem a esperar dos seus clientes,
a relação paternalista torna-se uma espécie de vassalagem para garantir a
sobrevivência e ritualiza-se. Há dois momentos fortes do dia em que se efetua o
encontro ritual entre os patronos e os clientes: a salutatio matinal e a cena, se o
cliente tiver a sorte de ser convidado. Em troca, o cliente recebe a tal quantia que
lhe permite sobreviver na urbe (3.30), sem que isso constitua um estigma social.
Entretanto, à exceção dos dias especiais, como o aniversário do patrono, em que a
quantia pode aumentar consideravelmente (10.27), o valor da sportula37
é escasso
(3.7; 6.88; 8.42); pelo que o estafado cliente se vê obrigado a correr, para saudar
vários patronos.38
Domiciano, na sua tentativa de apagar de Roma os traços neronianos39
, emitiu
legislação para transformar a sportula, cuja tarifa remontava a Nero (um cesto de
comida ou dinheiro), na dádiva de um jantar. Contudo, a nova disposição não
agradava nem aos patronos, que ficavam vinculados a ter à mesa os seus
dependentes, nem aos clientes, que necessitavam de dinheiro vivo.Tal circunstância
é repetidamente tratada no Livro III dos “Epigramas”.Afastado de Roma, em Forum
Cornelii (Ímola), com a justificativa de não poder suportar mais o aborrecimento
da toga (3.4.6), o poeta dá voz ao descontentamento gerado pela abolição da
sportula40
. Em vez de um jantar, o poeta sugere a atribuição de um salário (3.7). No
entanto, a disposição de Domiciano acaba por ser esquecida e a anterior prática
retomada, como mostra o fato de o poeta continuar a referir a espórtula nos livros
seguintes.
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 44
41. 10.56; 10.82.
42. Vide PIMENTEL, 1993, p. 249-261; BRANDÃO, 1998, p. 151-172.
43. Vide HARRIS, 2011, p. 27-54.
45
O poeta acusa repetidamente a humilhação e o cansaço resultante dessa veneração
– o termo que usa é colere em 2.55 – dos patronos. Queixa-se do fato de o cliente,
ao romper da aurora, ter de se dirigir aos átrios dos patronos para a salutatio
matutina, a tremer (9.92.5); da obrigação de ir vestido a rigor, isto é, de toga, peça
sobre a qual Marcial faz passar uma ideia de desconforto (3.4.6; 12.18.6.); da
humilhação de ter de saudar o patrono como dominus et rex, títulos tirânicos que o
poeta se mostra renitente em usar (1.112; 2.68.2; 10.10.5), mas o tratamento pelo
nome próprio em vez de por dominus pode implicar a perda da espórtula (6.88).
Nessa pirâmide social cujo vértice é o imperador, os patronos do poeta são, por sua
vez, clientes de outros mais poderosos, situação a qual Marcial não deixa de ironizar
(2.18; 2.32). E no Livro X confessa-se exausto41
; o que deseja é levar uma vida frugal
e simples, longe do afã citadino (10.47), e dormir sossegado (10.74). Irá encontrar
essa paz, pelo menos inicialmente, com o regresso a Bílbilis, a sua terra natal42
.
Em suma, sob o disfarce da caricatura, a abordagem é moral e pessimista. Homens,
provavelmente arruinados, que, com os seus bens, perderam todo o amor próprio:
Sélio desfaz-se em bajulações e, esgotado, corre a todos os locais em busca de
quem o convide, para, ao fim da tarde, deambular só por um pórtico vazio (2.14;
2.11); Menógenes suja-se de pó ao devolver a bola a um poderoso, para receber
um convite para jantar (12.82); Tuca come avidamente e até já se mostra feliz
quando lhe chamam alarve (12.41); Ceciliano não se inibe de roubar comida no
banquete, porque a antecipação da fome de amanhã já lhe é mais dolorosa que a
vergonha de hoje (2.37; 3.23); Santra chega ao quarto cansado com toda a comida
que conseguiu palmar, para no dia seguinte a ir vender (7.20); Filão, mais orgulhoso,
não admite, mas passa fome quando não o convidam (5.47); Cota, com a desculpa
de furtos, vem descalço e traz um séquito que é só um escravo (12.87); Etão
necessita tanto de um convite para jantar, que a sua falta é uma maldição dos
deuses (12.77). É degradante à vista o cortejo de trastes de Vacerra, que está a
mudar de casa com a mãe e a irmã (12.32). De qualquer modo, é preciso ter em
conta que se trata de tradição literária: certos retratos de indigência extrema (como
1.92) podem ser mais uma forma de glosar o mote do que expressão da realidade43
.
A crueldade da troça em alguns dos quadros sugere que a pobreza é resultado de
culpa. Pode-se descortinar o topos da retórica contra a suntuosidade, presente na
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 45
44. Cf. 3.62; 7.98; 11.66.
45. O nome aparece em vários epigramas desde o início da carreira de Marcial: 2.16; 2.19; 2.42; 2.58; 2.81; 3.29; 3.82; 4.77;
5.79; 6.91; 11.12; 11.30; 11.37; 11.54; 11.85; 11.92. Marcial ter-se-á inspirado em um crítico homérico do século IV a.C.,
alcunhado de Homeromástix, odiado pela sua maledicência. Para o estudo das influências literárias e históricas sofridas por
Marcial na criação desta personagem, vide KAY, 1985, p. 92-93.
46. 3.82. cf. Petrônio, 32-78.Vide LEÃO, 2004, p. 191-208.
47. Cf. 3.29: possui os anéis distintivos desta classe.
48. Cf. 2.81; Filipe (6.84) e Afro (6.77) têm uma atitude semelhante de ostentação.
crítica aos esbanjadores44
e em vocabulário relacionado com luxuria. Porém,
intensifica-se a censura quando se trata de mostrar o que não se é. Com efeito, em
Marcial está patente o empobrecimento de um grupo em especial: uma classe nobre
com a qual o poeta convive e na qual se inclui. São pessoas de gostos requintados
e, por isso, dispendiosos.Assim, nesse século I d.C., ao lado de libertos riquíssimos,
surge uma ordem equestre arruinada. Entre os cavaleiros, há quem, apesar do
aparato, tenha mesmo de empenhar o anel distintivo da sua classe (2.57). São
pessoas que, habituadas a privar com a nata da nobreza romana, continuam a
cultivar o bom gosto. Contudo, para um homem de gostos requintados e empo-
brecido, como Mamurra, uma visita às montras transforma-se em um verdadeiro
suplício (9.59; 10.80). Quem se habituou a viver com sumptuosidade, dificilmente
se habituará a uma vida simples, como demonstra a referida anedota sobre a morte
de Apício. Em contraste, o liberto Sirisco herdou uma fortuna do patrono, mas
desperdiça-a com gostos plebeus (5.70).
1.1.3. Novo-riquismo
Como seria de esperar, em uma sociedade que tem escravos, os libertos e novos-
-ricos são bastante atacados pelo poeta, sobretudo aqueles que procuram ostentar
insolentemente as riquezas ou disfarçar os sinais da antiga escravatura (2.29). Zoilo
é quem melhor encarna o liberto e novo-rico sumptuoso, luxurioso, cultor de falsas
aparências, imbuído de mau-caráter e de mau gosto45
. As suas extravagâncias
durante o jantar recordam as deTrimalquião no “Satyricon” de Petrônio46
. Usurpou
o status de cavaleiro47
, e a ostentação frívola que marca a sua vida evidencia-se
pelo tamanho do anel (11.37), pela excessiva mudança de roupa durante a cena
(5.79), pelo esplendor das colchas do leito (2.16), pela envergadura da liteira48
.
Contudo, afinal, tudo assenta em bases falsas. Marcial diz que ele é ladrão e escravo
fugitivo (11.54) e um filho de ninguém, dada a sua origem servil, jogando com o
fato de, à face da lei romana, um escravo não ter pais nem filhos (11.12). Marcial
mostra-se preocupado com o status das ordens sociais e as tentativas de usurpação
46
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 46
49. Cf. 5.8; 5.25; 5.35; 5.38; 5.41.Vide MOURITSEN, 2011, p. 91, 106 e n. 190.
por parte dos libertos, como denotam os reiterados ataques contra os que violavam
a lex Roscia theatralis, que impunha uma distribuição dos lugares no teatro de acordo
com a posição e a hierarquia social49
.
Os libertos imperiais são exceção à regra, porque se trata da intocável majestade
do imperador, cujos mores eles espelham (9.79); mas também porque eles estão na
sua correta posição social: ao serviço do seu patrono, com as funções que este neles
delega. Por outro lado, Augusto usara escravos e libertos da sua casa para
desempenhar tarefas administrativas no Império, por não achar apropriado
empregar cidadãos livres em tais serviços. No entanto, com Cláudio os libertos
atingiram um poder invejável à frente dos gabinetes da administração imperial.
Na crise de 68-69, tanto Otão como Vitélio empregaram cavaleiros nestas funções;
e Domiciano distribuiu-as entre cavaleiros e libertos (Suet. Dom. 7.2), apesar de, na
“Historia augusta”, se dizer que Adriano foi o primeiro a substituir os libertos por
cavaleiros nas secretarias de ab epistolis e a libellis. O biógrafo Suetônio, membro da
classe equestre, desempenhou esses cargos nos principados de Trajano e Adriano.
1.1.4. Profissões com saída
Objeto da atenção do poeta são as profissões, ou o modo como são desem-
penhadas. Segundo Marcial, a advocacia era uma profissão rentável: recebiam
muitos presentes, sobretudo pela festa das Saturnais (4.46). E auferiam pagamento
(2.13; 8.16; 8.17). Já naquela época os litígios se arrastavam (7.65). É uma
alternativa respeitável que os amigos aconselham ao poeta, e que este declina: usar
os dotes retóricos para ganhar a vida como patronus ou causidicus. Entre os nomes
provavelmente fictícios desses conselheiros (1.17; 2.30; 5.16), figura um aparente-
mente real: o do célebre retórico Quintiliano (2.90). No entanto, em 3.38, Marcial
apresenta a advocacia – a par da poesia – como geradora de fracos rendimentos,
sobretudo se o praticante é um homem honesto. O poeta ataca tanto os advogados
que se calam (1.97; 8.7), como os palavrosos, que se apoiam em vãos floreados
retóricos: é bem conhecido o epigrama sobre o causídico que disserta sobre
momentos dramáticos e grandes heróis da história romana, quando em causa está
o simples furto de três cabrinhas (6.19). A Ceciliano, que pedira o tempo de sete
clepsidras para falar, como tem muita sede, o poeta aconselha-o a beber da clepsidra
(6.35). Há ainda aqueles que mudam de profissão, como Cípero, um antigo padeiro
47
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 47
50. Vide HOWELL, 2009, p. 74-75; HANSON, 2010, p. 492-496. A referência aos Romanos como bárbaros reproduz o ponto de
vista grego, recorrente por exemplo em Plauto (Asin. 11; Poen. 598; Tin. 19).
51. Marcial, jogando com o sentido do cínico, diz que um determinado seguidor dessa escola, de tão sórdido que está, parece um
verdadeiro cão (4.53).
que agora defende causas (8.16), ou um advogado que se tornou agricultor e
empobreceu (12.72).
Outra profissão ligada ao uso da voz e que envolvia muito dinheiro era a dos
leiloeiros: Marcial aconselha-a como forma de singrar na vida, e, surpreenden-
temente, associa-a à de arquiteto no rendimento (5.56); constata que, quando se
trata de casamento, um leiloeiro é melhor partido que pretores, tribunos, advogados
ou poetas (6.8). Por outro lado, expõe a falta de senso de alguns que, por causa de
tiradas infelizes no uso do seu proverbial espírito, acabam por prejudicar a venda
(1.85; 6.66).
A crítica aos médicos é comum na comédia, no epigrama satírico e mesmo em
epitáfios. Em Roma, os médicos eram sobretudo gregos, e abundava a incompe-
tência e falta de controle sobre a atividade. Plínio, oVelho, na sua “História natural”
(29.1-29), produz uma longa diatribe contra os médicos, apontando a sua avidez
por dinheiro, adultérios, assassínios por más práticas. Segundo esse autor, Catão, o
Antigo advertira o filho de que os gregos teriam jurado matar todos os “bárbaros”
por meio da medicina e de que cobravam pagamento para se tornarem mais
convincentes (Nat. 29.14)50
.A troça centra-se, pois, nos médicos cujo desempenho
tem o efeito contrário do esperado, com resultados muitas vezes fatais – um certo
indivíduo antes era médico, agora é cangalheiro; mas o que faz como cangalheiro,
já o fazia como médico (1.47 e 1.30, ver 8.74); ou com o agravamento dos sintomas
– um dia o poeta estava adoentado, veio um médico com os seus cem discípulos e
o poeta foi apalpado por cem mãos gélidas do Aquilão: se antes não tinha febre,
agora tem (5.9.).A hipérbole no tratamento do tema leva o poeta a sugerir que se
pode morrer por ter sonhado com o médico (6.53). No entanto, há a ideia de que
os clínicos podem matar deliberadamente por razões passionais (6.31) ou
incapacitar permanentemente (11.74), e que seduzem as pacientes (11.71). Outro
motivo comum é de que aproveitam para roubar os doentes (9.96).
O hábito de fazer a barba existiu em Roma sobretudo desde o século III a.C.Adriano
(117-138 d.C.) restaurou a moda de usar barba, pelo que muitos o imitaram.Antes
esse costume era típico dos filósofos51
. Era comum os romanos ricos terem barbeiros
entre os seus escravos. Marcial compôs um belo epitáfio do seu escravo barbeiro
48
Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 48
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf
Estudos_classicos_II.pdf

Mais conteúdo relacionado

Semelhante a Estudos_classicos_II.pdf

Laplantine.françoise. aprender antropologia
Laplantine.françoise. aprender antropologiaLaplantine.françoise. aprender antropologia
Laplantine.françoise. aprender antropologiaFelipeMiguel12
 
Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)Geani Pedrosa
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologiaLuiz Vieira
 
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)Aprender antropologia (françois laplantine) (1)
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)Psicologia_2015
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologiaEduardo Reis
 
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdf
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdfHistória geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdf
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdfssuser9aea45
 
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdf
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdfDesafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdf
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdfwilliannogueiracosta
 
Experiencia Com Universitarios
Experiencia Com UniversitariosExperiencia Com Universitarios
Experiencia Com UniversitariosMargari León
 
8653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911
8653745 texto do artigo-75159-2-10-202009118653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911
8653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911Telma Oya
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologiaAUR100
 
Release Cultura Revivalista [Itinerante]
Release Cultura Revivalista [Itinerante]Release Cultura Revivalista [Itinerante]
Release Cultura Revivalista [Itinerante]Mariana Nobre
 

Semelhante a Estudos_classicos_II.pdf (20)

291 922-1-pb
291 922-1-pb291 922-1-pb
291 922-1-pb
 
Laplantine.françoise. aprender antropologia
Laplantine.françoise. aprender antropologiaLaplantine.françoise. aprender antropologia
Laplantine.françoise. aprender antropologia
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologia
 
Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologia
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologia
 
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)Aprender antropologia (françois laplantine) (1)
Aprender antropologia (françois laplantine) (1)
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologia
 
HistoriaGlobal.pdf
HistoriaGlobal.pdfHistoriaGlobal.pdf
HistoriaGlobal.pdf
 
Sangiorgi e barco
Sangiorgi e barcoSangiorgi e barco
Sangiorgi e barco
 
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdf
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdfHistória geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdf
História geral da Africa, I metodologia e pré-história da Africa.pdf
 
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdf
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdfDesafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdf
Desafios para a historiografia frente à Diversidade cultural.pdf
 
Experiencia Com Universitarios
Experiencia Com UniversitariosExperiencia Com Universitarios
Experiencia Com Universitarios
 
8653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911
8653745 texto do artigo-75159-2-10-202009118653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911
8653745 texto do artigo-75159-2-10-20200911
 
Aprender antropologia
Aprender antropologiaAprender antropologia
Aprender antropologia
 
Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)Aprender antropologia (françois laplantine)
Aprender antropologia (françois laplantine)
 
Inf historia 8
Inf historia 8Inf historia 8
Inf historia 8
 
Inf historia 3
Inf historia 3Inf historia 3
Inf historia 3
 
Release Cultura Revivalista [Itinerante]
Release Cultura Revivalista [Itinerante]Release Cultura Revivalista [Itinerante]
Release Cultura Revivalista [Itinerante]
 
Antropologia
AntropologiaAntropologia
Antropologia
 

Mais de LilianeBA

Democracia em Colapso.pdf
Democracia em Colapso.pdfDemocracia em Colapso.pdf
Democracia em Colapso.pdfLilianeBA
 
2 Slide - Sociologia da Educação.pdf
2 Slide - Sociologia da Educação.pdf2 Slide - Sociologia da Educação.pdf
2 Slide - Sociologia da Educação.pdfLilianeBA
 
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdfRelatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdfLilianeBA
 
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptx
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptxTexto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptx
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptxLilianeBA
 
Sociologia da educação.pdf
Sociologia da educação.pdfSociologia da educação.pdf
Sociologia da educação.pdfLilianeBA
 
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdf
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdfFUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdf
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdfLilianeBA
 
Educação para a Democracia.pdf
Educação para a Democracia.pdfEducação para a Democracia.pdf
Educação para a Democracia.pdfLilianeBA
 
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdf
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdfO saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdf
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdfLilianeBA
 
Introdução à Sociologia.pdf
Introdução à Sociologia.pdfIntrodução à Sociologia.pdf
Introdução à Sociologia.pdfLilianeBA
 
existencia_liberdade.pdf
existencia_liberdade.pdfexistencia_liberdade.pdf
existencia_liberdade.pdfLilianeBA
 
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdf
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdfCEALE Literatura_leitura_literaria.pdf
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdfLilianeBA
 
ana-z-aonde-vai-voce.pdf
ana-z-aonde-vai-voce.pdfana-z-aonde-vai-voce.pdf
ana-z-aonde-vai-voce.pdfLilianeBA
 
Contos de Fadas.pdf
Contos de Fadas.pdfContos de Fadas.pdf
Contos de Fadas.pdfLilianeBA
 
breve-panorama.pdf
breve-panorama.pdfbreve-panorama.pdf
breve-panorama.pdfLilianeBA
 
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdf
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdfAspectos educativos da arte Duarte Jr.pdf
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdfLilianeBA
 
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdf
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdfPoesia e humor para crianças Léo Cunha.pdf
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdfLilianeBA
 
Minha bandeira pessoal......
Minha bandeira pessoal......Minha bandeira pessoal......
Minha bandeira pessoal......LilianeBA
 
Minha bandeira pessoal
Minha bandeira pessoalMinha bandeira pessoal
Minha bandeira pessoalLilianeBA
 
A sociologia da educação de pierre bourdieu
A sociologia da educação de pierre bourdieuA sociologia da educação de pierre bourdieu
A sociologia da educação de pierre bourdieuLilianeBA
 

Mais de LilianeBA (20)

Democracia em Colapso.pdf
Democracia em Colapso.pdfDemocracia em Colapso.pdf
Democracia em Colapso.pdf
 
2 Slide - Sociologia da Educação.pdf
2 Slide - Sociologia da Educação.pdf2 Slide - Sociologia da Educação.pdf
2 Slide - Sociologia da Educação.pdf
 
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdfRelatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
Relatorio_A_distancia_que_nos_une.pdf
 
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptx
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptxTexto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptx
Texto-de-Tamara-Maria-Bordin.pptx
 
Sociologia da educação.pdf
Sociologia da educação.pdfSociologia da educação.pdf
Sociologia da educação.pdf
 
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdf
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdfFUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdf
FUNDAMENTOS SOCIOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO etnico racial.pdf
 
Educação para a Democracia.pdf
Educação para a Democracia.pdfEducação para a Democracia.pdf
Educação para a Democracia.pdf
 
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdf
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdfO saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdf
O saber e o poder a contribuição de Michel Foucault.pdf
 
Introdução à Sociologia.pdf
Introdução à Sociologia.pdfIntrodução à Sociologia.pdf
Introdução à Sociologia.pdf
 
AnexoII.pdf
AnexoII.pdfAnexoII.pdf
AnexoII.pdf
 
existencia_liberdade.pdf
existencia_liberdade.pdfexistencia_liberdade.pdf
existencia_liberdade.pdf
 
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdf
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdfCEALE Literatura_leitura_literaria.pdf
CEALE Literatura_leitura_literaria.pdf
 
ana-z-aonde-vai-voce.pdf
ana-z-aonde-vai-voce.pdfana-z-aonde-vai-voce.pdf
ana-z-aonde-vai-voce.pdf
 
Contos de Fadas.pdf
Contos de Fadas.pdfContos de Fadas.pdf
Contos de Fadas.pdf
 
breve-panorama.pdf
breve-panorama.pdfbreve-panorama.pdf
breve-panorama.pdf
 
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdf
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdfAspectos educativos da arte Duarte Jr.pdf
Aspectos educativos da arte Duarte Jr.pdf
 
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdf
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdfPoesia e humor para crianças Léo Cunha.pdf
Poesia e humor para crianças Léo Cunha.pdf
 
Minha bandeira pessoal......
Minha bandeira pessoal......Minha bandeira pessoal......
Minha bandeira pessoal......
 
Minha bandeira pessoal
Minha bandeira pessoalMinha bandeira pessoal
Minha bandeira pessoal
 
A sociologia da educação de pierre bourdieu
A sociologia da educação de pierre bourdieuA sociologia da educação de pierre bourdieu
A sociologia da educação de pierre bourdieu
 

Estudos_classicos_II.pdf

  • 1. II UNESCO | CÁTEDRA UNESCO ARCHAI - UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA | IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA | ANNABLUME C O L E Ç Ã O F I L O S O F I A E T R A D I Ç Ã O H I S T Ó R I A , L I T E R A T U R A E A R Q U E O L O G I A ESTUDOS CLÁSSICOS GABRIELE CORNELLI GILMÁRIO GUERREIRO DA COSTA
  • 3. Esclarecimento A UNESCO mantém, no cerne de suas prioridades, a promoção da igualdade de gênero, em todas as suas atividades e ações. Devido à especificidade da língua portuguesa, adotam-se nesta publicação, os termos no gênero masculino, para facilitar a leitura, considerando as inúmeras menções ao longo do texto. Assim, embora alguns termos sejam grafados no masculino, eles referem-se igualmente ao gênero feminino. Os autores são responsáveis pela escolha e pela apresentação dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organização. As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 2
  • 4. Gabriele Cornelli Gilmário Guerreiro da Costa (Orgs.) Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 3
  • 5. UNESCO Representação no Brasil Ed. CNPq/IBICT/UNESCO, 9º andar 70070-912 – Brasília/DF – Brasil Tel.: (55 61) 2106-3500 Fax: (55 61) 2106-3967 Site: www.unesco.org/brasilia E-mail: brasilia@unesco.org facebook.com/unesconarede twitter: @unescobrasil Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) Rua da Ilha, 1 3000-214 Coimbra, Portugal Cátedra UNESCO Archai Universidade de Brasília Caixa Postal 4497 70904-970 Brasília/DF Publicado pela Cátedra UNESCO Archai e pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) em cooperação com a UNESCO. Esta publicação é fruto de uma parceria entre a Representação da UNESCO no Brasil, a Imprensa da Universidade de Coimbra, a Cátedra UNESCO Archai e a Annablume Editora. © UNESCO 2013.Todos os direitos reservados. Revisão técnica: Setor de Ciências Humanas e Sociais da Representação da UNESCO no Brasil Revisão: Unidade de Publicações da Representação da UNESCO no Brasil e Cátedra UNESCO Archai Projeto gráfico: Unidade de Comunicação Visual da Representação da UNESCO no Brasil Ilustrações: Fábio Vergara Cerqueira, Cora Dukelski e Paulo Faber Estudos clássicos II: história, literatura e arqueologia / organizado por Gabriele Cornelli e Gilmário Guerreiro da Costa. – Brasília: Cátedra UNESCO Archai,Annablume Editora; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013. 190p. – (Coleção filosofia e tradição; 2). Incl. Bibl. ISBN: 978-85-7652-183-9 1. Filosofia 2. Ensino de filosofia 3. Filosofia da história 4. Estudos culturais 5. Civilizações antigas 6. História 7. Literatura 8.Arqueologia 9. Metodologia científica I. Cornelli, Gabriele (Org.) II. Costa, Gilmário Guerreiro da (Org.) III. Cátedra UNESCO Archai IV. Universidade de Coimbra Impresso no Brasil pela Annablume Editora Impresso em Portugal pela Imprensa da Universidade de Coimbra Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 4
  • 6. Coleção filosofia e tradição A coleção “Filosofia e tradição” é um reflexo das atividades da Cátedra UNESCO Archai, que, desde 2001, promove investigações, organiza seminários e elabora publicações com o intuito de estabelecer uma metodologia de trabalho e constituir um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre as origens do pensamento ocidental. O objetivo fundamental consiste em compreender, com base em uma perspectiva cultural, a nossa tradição, isto é, de onde viemos, para que possamos compreender nossos caminhos presentes e desejos futuros. Nesse sentido, visando a uma apreensão rigorosa do processo de formação da filosofia e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, os problemas que orientam as pesquisas da Cátedra UNESCO Archai são de ordem histórica, ética e política. Trata-se de uma reação ao mal-estar experimentado com a forma excessivamente presentista de se contar a história desse processo de formação, forma que pensa a filosofia como um saber estanque, independente das condições históricas que permitiram o surgimento desse tipo de discurso.A proposta de trabalho historiográfico-filosófico da Cátedra procura, portanto, lançar um olhar diferente sobre os primórdios do pensamento ocidental, em busca de novos caminhos de interpretação éticos, políticos, artísticos, culturais e religiosos. Este trabalho dedica-se, em particular, a enraizar o “nascimento da filosofia” na cultura antiga, e se contrapõe às lições de uma historiografia filosófica racionalista que, anacronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma razão instrumental estranha às múltiplas e tolerantes formas do lógos antigo.A questão é politicamente relevante, Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 5
  • 7. em virtude da influência que ainda mantém essa “narrativa” das origens do pensamento sobre a compreensão da atual epistême ocidental. De fato, na tentativa de justificar sua pretensão à verdade absoluta e universal da cultura dos vencedores, a ciência e as culturas ocidentais servem-se de um mito das origens, fundamentado nessa mesma visão presentista e asséptica da filosofia clássica. Esse mito, aliás, utiliza a diversidade da cultura ocidental em contraposição – e não em diálogo – com as outras culturas e visões de mundo que a globalização aproximou de maneira mais forte nos últimos anos. O que esta coleção deseja, portanto, é realizar um olhar sobre o passado, sobre as origens do pensamento ocidental, que se revela extremamente atual e contemporâneo. Gabriele Cornelli Editor da coleção filosofia e tradição Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 6
  • 8. Sumário Apresentação ................................................................................................................9 Parte I: profa. dra. Sandra Lúcia Rocha Literatura grega ..........................................................................................................15 Capítulo I : Representações do amor na literatura grega .........................................17 Capítulo II: Ecos homéricos em representações da morte em Atenas .......................29 Parte II: prof. dr. José Luiz Brandão Literatura romana .......................................................................................................37 Capítulo III:A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial ..........39 Capítulo IV: Os césares segundo Suetônio: elementos dramáticos e novelísticos..........67 Parte III: prof. dr. Fábio V. Cerqueira História grega .............................................................................................................83 Capítulo V: Sentimentos íntimos femininos vistos pela poesia imagética dos pintores de vaso: representação iconográfica do casamento e do amor matrimonial na cerâmica ática (séculos VI e V a.C.) .......................85 Capítulo VI: Efeminação e virilidade, dos modernos aos gregos, dos gregos aos modernos: desnaturalizando noções, diversificando a homo/heterossexualidade ........................................................................119 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 7
  • 9. Parte IV: profa. dra. Renata Garraffoni História romana ........................................................................................................147 Capítulo VII: Pensando conceitos para estudar a história de Roma ........................149 Capítulo VIII: O exército romano: diferentes maneiras de pensar sobre Roma e seus exércitos .....................................................155 Parte V: prof. dr. Pedro Paulo Funari Arqueologia ..............................................................................................................163 Capítulo IX:Arqueologia clássica: os inícios ..........................................................165 Parte VI: prof. dr. Sílvio Marino Metodologia da pesquisa em estudos clássicos ..........................................................173 Capítulo X: Questões introdutórias ......................................................................175 Capítulo XI: Problemas de interpretação dos textos antigos ..................................183 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 8
  • 10. 1. Universidade de Brasília, coordenador da Cátedra UNESCOArchai e Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos. 2. Universidade Católica de Brasília e pós-doutorando na Universidade de Brasília (Cátedra UNESCO Archai). 9 Apresentação Prof. dr. Gabriele Cornelli1 Prof. dr. Gilmário Guerreiro da Costa2 Muitas vezes se indagou sobre os motivos de persistirem os estudos clássicos ao longo da história, em geral, e em nossa época, mais especificamente. De onde proviria seu encanto e sedução?A história da recepção dos textos clássicos antigos notabiliza-se por respostas percucientes a essa questão, dentre as quais vem a propósito destacar a amplitude das pesquisas e os planos múltiplos oferecidos no tratamento dos seus objetos de investigação. Mostra significativa desse movimento pode atestar-se no segundo volume do Curso de Introdução aos Estudos Clássicos que ora oferecemos aos nossos leitores, com trabalhos que articulam história, literatura e arqueologia. No arremate desta publicação, uma seção é dedicada a problemas metodológicos peculiares a essa área de pesquisa. Este volume consta de seis partes. Inicia-se com estudos em torno a aspectos importantes da literatura grega, escritos pela profa. dra. Sandra Lúcia Rocha, da Universidade de Brasília (UnB).Lida com dois temas complementares em sua aparente antítese: as representações do amor e da morte na literatura grega, os quais haveriam de fundar toda uma tradição incessantemente revisitada e reinventada. No que tange ao tema do amor, a autora evidencia a força formadora do tema no Ocidente,não raro motivada por distorções e exageros consideráveis na representação da cultura grega: ora vista enquanto espaço e tempo de costumes dissolutos, ora imaginada na qualidade de nostálgica era de liberdade erótica. Tais extremos respondem a simplificações que obstam uma análise mais acurada do tema. Haveria ainda outras duas dificuldades nesse gênero de estudo: o fato de ser a literatura amorosa grega escrita na maior parte das vezes por homens, e a grande profusão Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 9
  • 11. 10 de caminhos experimentados por esses textos. Isso posto, a autora enfrentará tais dificuldades mediante estudo, tanto quanto possível, da escrita de mulheres, e organizará o seu trabalho acerca das representações do amor em três grupos: amor entre homem e mulher, entre mulheres e entre homens. Na literatura grega, a tonalidade erótica no amor entre homem e mulher sobressai antes ou fora do casamento. Neste, tende a esmaecer-se, tornando-se em afeto, o que implica, no enfraquecimento do desejo, perder os traços do amor, por lhe ser agora escassa a visita de Eros. Em acurada análise de passagens dos poemas homéricos, a autora evidencia o quanto o arrebatamento erótico no matrimônio ocorre em situações excepcionais. O amor entre mulheres, por sua vez, pelas evidências de que dispomos no momento, parece ter sido prática menos assente culturalmente, se comparada ao homoerotismo masculino. De qualquer forma, sua elaboração artística encontra forma rica e delicada nos poemas de Safo. Somos conduzidos, assim, da poesia épica para a lírica, apresentados ao quadro rico e variegado da literatura grega. Por fim, no que se refere ao amor entre homens, a autora sublinha tratar-se de prática culturalmente estabelecida na época, o que o atestaria todo um quadro literário e iconográfico. Em uma sociedade ausente de instituições de formação educacional, recorria-se com frequência aos symposia, nos quais os jovens se inseriam em espaço pedagógico mais aprimorado, o que incluía a iniciação erótica. O quadro formativo era amplo, desde a poesia à partilha de valores éticos. No intercurso erótico, evidenciava-se a relação entre um homem maduro e outro mais jovem, que se notabilizava pelo tom afetivo, raiz de uma fidelidade transposta futuramente para a cena política. No âmbito literário, aparece especialmente na prosa do século V a.C., como por exemplo, em Tucídides, a cuja análise a autora dedica considerável espaço. O segundo texto da profa. Sandra ocupa-se do tema da morte, cuja compreensão acha-se intimamente ligada à questão da vingança e da honra, articulada por via diferente no caso da morte individual e da coletiva. No tocante à primeira, intentou- se desde a Lei de Drácon, em 621 a.C., impor limites consistentes à prática do homicídio enquanto resgate da honra. É um horizonte sobremodo fértil para a análise do tema conforme disposto nos poemas homéricos, sobretudo em Aquiles, premido que se sentia, na “Ilíada”, por vingar a morte do amigo, Pátroclo. Promete manter um propósito incoercível de reconquistar para si e para o amigo a honra que o assassínio cometido por Heitor lhes roubara. Em belo diálogo com Vernant, a autora sustenta a necessidade da morte do herói, uma vez que a sua honra, medida da sua vida, não mais se pôde resgatar. A proximidade de som e sentido entre honra (timé) e vingança (timoría) sugere o fato de se buscar reparação, Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 10
  • 12. 11 mediante a vingança, da honra ferida.Amiúde se intentava satisfazê-la no tribunal, recorrendo-se à ação do Estado, que se encarregava de julgar a sua pertinência, seja pelo interesse em proteger a piedade religiosa da cidade, seja pela relevância educativa do evento, passível de evitar a recorrência de comportamentos julgados indesejáveis pelo Estado. Em diversos outros níveis também avulta o liame entre honra e morte, como é o caso da oração fúnebre, objeto de sensível exame no texto. De aspectos da literatura latina ocupa-se a segunda parte deste volume, a cargo do prof. dr. José Luiz Brandão, da Universidade de Coimbra (UC). A princípio, interessa-lhe o estudo da representação da Roma Antiga conforme se lê nos epigramas de Marcial. Aqui se sublinha o caráter vivo do modo de inserir essa cidade na literatura, pois não interessa ao escritor um registro arqueológico, mas artístico e repleno de movimento. Conforma os traços das suas personagens com esse objetivo.A mordacidade de Marcial alia com arte rara o senso espirituoso e a compreensão profunda do sofrimento das vidas a que seus versos oferecem a tessitura. Sua Roma viva lida com a difícil articulação entre ter e ser e com o belo e o horrendo. No primeiro caso, por exemplo, oferece o molde de uma crítica às graves assimetrias sociais em Roma, não com o intuito de palmilhar o caminho da subversão, mas precisamente com o receito de que ela se efetiva. Move-o, portanto, um impulso conservador. Nos tipos inesquecíveis que então dispõe, sobressaem-se os caçadores de heranças; os que parasitam em diversos jantares; os novos-ricos; e profissões, dentre as quais a advocacia,que,segundo o poeta,não oferecem muitos rendimentos, se o seu praticante for honesto... Configura-se assim todo um quadro com o qual o poeta submete aocastigatridendomoresos contornos do ridículo na relação assimétrica entre as classes, desde as que se enchem de orgulho com o trato bajulatório de pessoas despossuídas de bens, até a ginástica exaustiva de muitos ao propugnarem por agradar os superiores na luta pela sobrevivência diária. O segundo texto, um pouco mais breve, mas não menos denso, examina a obra “Vida dos césares”, de Suetônio, a partir de uma questão instigante: os elementos ficcionais em uma narrativa que se pretende histórica. Tome-se o caso de César: move-se no livro muito mais próximo de uma forma teatral do que de uma representação estritamente factual, além do farto e hábil uso de recursos narrativos. Desde o plano tenso do embate entre vício e virtude nas ações de Augusto, ao plano degenerativo da vida de Tibério, urde-se um texto capaz de oferecer tanto inteligibilidade histórica, quanto narrativa, ampliando consideravelmente o quadro hermenêutico de aproximação da vida activa dos imperadores romanos, e por via de consequência, oferta por entre as fímbrias desses homens um olhar sobre Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 11
  • 13. 12 a vida e a sociedade da época. Caracteres teatrais a conformar a figura de Calígula, o uso de expedientes de retardamento narrativo na apresentação de Cláudio, preparatório da katastrophe representada por Nero, são alguns dos muitos recursos literários farta e ricamente urdidos por Suetônio em sua biografia. Por toda a obra, recursos tomados à comédia, ao romance sentimental e à tragédia se disseminam, explicando parte considerável do seu encanto imperecível. O prof. dr. FábioV. Cerqueira, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), encarrega- -se da terceira parte, dedicada à análise de aspectos da história grega antiga. Em um de seus textos, focaliza a representação pictórica da intimidade da vida feminina da mulher ateniense, conforme se veem em vasos áticos. Avultam-se as cenas ligadas ao casamento e os divertimentos no espaço interior da residência, o gineceu. É ao primeiro tipo que se dedica o texto, movido pela investigação da abordagem dos sentimentos femininos nessa série iconográfica, em um caminho diverso do palmilhado por uma historiografia hegemônica, que reputava ser o casamento entre os gregos antigos em tudo infenso ao afeto e ao amor. Certamente o matrimônio entrelaçava-se a um conjunto de práticas econômicas e políticas, seja por facultar aos descendentes os meios de partilha da herança, seja por lhes oferecer os direitos de cidadania pertencentes aos pais. Esse quadro institucional, no entanto,fez com que muitos historiadores negligenciassem o papel dos sentimentos femininos no interior da vida conjugal. Seguindo de perto os resultados dos estudos de Claude Calame, o prof. Fábio articula cuidadosamente uma leitura mais sensível e apropriada do cotidiano desses espaços familiares, julgando assim indevido o hiato entre casamento e desejo, conforme o sustentou, por exemplo, setores de uma investigação de jaez feminista. Estaria longe de significar, portanto, a anulação dos sentimentos da noiva.As narrativas iconográficas analisadas pelo autor ofertariam uma sensível inserção poética no universo dos sentimentos amorosos no casamento grego. Da relação entre homossexualismo e heterossexualismo trata o segundo texto do prof. Fábio, movido pelo intento crítico de desmontagem de aparatos discursivos que buscam naturalizar o tratamento da questão. Com uma fluência agradável, em parte devida a uma apresentação oral da qual se originou, o seu escrito discorre sobre os benefícios do estudo da história de épocas e culturas afastadas no tempo e no espaço, exercício passível de oferecer certo estranhamento com respeito a ideias e procedimentos que se naturalizaram em nossa época. Rompe-se a pretensa atemporalidade dos valores, matriz do esquecimento da sua feição transitória e relativa ao tempo e ao espaço. Tal se lhe afigura vetor necessário à análise da efeminação na Grécia Antiga, reveladora de outras modalidades de leitura da Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 12
  • 14. 13 sexualidade nessa cultura. Em uma passagem especialmente esclarecedora e perspicaz, sublinha o quanto os preconceitos têm de jogo entre as ações permitidas e a transgressão dessas regras – transgressão essa que exibe o caráter de artefato, de jogo, precisamente de tais regras. Ainda no âmbito dos estudos históricos, depara-se-nos a contribuição da profa. dra. Renata Garraffoni, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), na quarta parte deste volume. Roma é seu objeto de estudo, que se inicia com análise preparatória em torno aos conceitos fundadores desse gênero de investigação, atendo-se ao contexto do seu desenvolvimento e ao modo como seriam relidos e reinterpretados em períodos posteriores. Resiste-se dessa maneira a um objetivismo acrítico, com o seu intento de sobrevoar as teias contextuais de produção de significado pelos historiadores. Em vez disso, a autora opta pelo exame de temas importantes na história romana, tal como o dos gladiadores, evidenciando seu contexto de elaboração e sua recepção posterior. Texto e contexto se entrelaçam intimamente nesse tipo de pesquisa. É a esse respeito assaz esclarecedor o artigo que a profa. Renata dedica ao estudo do exército romano. Sublinha o lugar de destaque dessa instituição em diversos setores da vida romana, dado um percurso histórico marcado por conflitos com os mais diversos povos durante as guerras de conquista, a exigir um apuro especial na organização dos seus militares, que permitiria a Roma constituir um império de notável extensão. Tal percurso dá azo a que se reflita sobre as formas de se escrever o passado, mormente devido ao fascínio que exerceria a história romana sobre militares diversos ao longo da história, sobressaindo, no caso, estudos de história militar. E visto que a história se lê a partir de modelos inter-pretativos que os estudiosos colhem da sua época, a autora julga oportuno atentar-se para as críticas pós-coloniais dirigidas precisamente a aspectos da história militar. Se no século XIX, marcado pelo imperialismo europeu, abundavam estudos que preten- diam extrair da história romana lições militares importantes, a partir dos eventos em torno do 11 de Setembro de 2001, o interesse passa a residir nas margens de todo o discurso triunfalista, com a atenção agora residindo no modo como os romanos lidavam com a perda, bem como no sofrimento dos povos conquistados e dos escravos. Tudo isso acena para uma maior diversificação dos estudos, conforme o testemunha o diálogo com a arqueologia, a servir-se de traços da cultura material (por exemplo, ânforas, lápides etc.) capazes de mover as pesquisas para além dos temas ligados à dominação de povos por Roma. Contribuição fundamental a essa discussão é oferecida, na quinta parte, pelo prof. dr. Pedro Paulo Funari, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Esclarece Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 13
  • 15. 14 ter sido a arqueologia clássica pioneira nos estudos de arqueologia. O Iluminismo e a obra de Winckelmann exerceram impulso decisivo nessa direção, mormente no âmbito dos estudos dedicados a Roma, que se desenvolveram com notável celeridade a partir do século XIX, beneficiados pelos novos rumos técnicos e de industrialização. O interesse inicial moveu-se em direção a grandes edifícios, cujas escavações mudariam a feição da cidade, e inscrições, as quais abriram vias férteis de investigação de objetos os mais diversos. Notabiliza-se, assim, o desenvolvimento de uma ciência hoje crucial nos estudos clássicos, de cujo diálogo bem se beneficiam a filosofia, a história e a literatura. O volume não poderia encerrar-se de modo mais oportuno: detém-se em conside- rações metodológicas guiadas com segurança e desvelo pelo prof. dr. Sílvio Marino, da Universidade de São Paulo (USP) e Unicamp.Explorando inicialmente a etimologia do termo método, o autor sublinha tratar-se de um instrumento com vistas a tornar mais efetivos os resultados de uma investigação, cujo arremate é, não obstante, matéria controversa, sobretudo no âmbito das assim chamadas humanidades, para marcar a sua diferença com respeito às ciências exatas. Os textos não são um dado objetivo da natureza, mas uma interpretação inserida no âmbito dos diversos extratos da sua época e cultura. É o movimento de um trabalho marcado pela interpretação de interpretações.Tal assesto poderia facilmente sugerir a defesa de um relativismo irrefreável, mas não é essa uma conclusão necessária. Um bom método ofereceria limites desejáveis a essa operação, precisamente a sorte de esclareci-mento que o prof. Sílvio apresenta. Acima de tudo, cumpre ater-se a um elemento crucial em pesquisas em estudos clássicos: o texto. Para esse fim, é mister conceder-se a devida atenção às línguas em que foram escritos, a uma predisposição ao diálogo interdisciplinar e à análise do contexto histórico no qual se inserem os escritos antigos.São notas efetivamente úteis e passíveis de fomentar bons trabalhos. O segundo texto do autor aprofunda essas questões, desdobrando alguns dos principais problemas na interpretação da obra dos pré-socráticos e de Platão, bem como orientações sobre a peculiaridade da indicação das citações nesses tipos textuais. Sua defesa da atenção à intenção do texto, em vez da intenção autoral, é, sob todos os aspectos, crucial ao entendimento crítico das obras, propensa a fazer avançar efetivamente os estudos consagrados a essa área. Nossa expectativa é a de serem os textos reunidos neste volume um meio valioso de pesquisa e aprimoramento nos estudos clássicos, inspirando, esclarecendo e fortalecendo o ânimo dos seus leitores na dedicação a uma fonte abundante de reflexão e beleza. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 14
  • 16. Profa. dra. Sandra Lúcia Rocha Universidade de Brasília (UnB) Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 15
  • 17. Capítulo I Representações do amor na literatura grega O amor é algo único, como uma tapeçaria que é tecida com fios extremamente diversos, de origens diferentes. Por trás de um único e evidente ‘eu te amo’ há uma multiplicidade de componentes, e é justamente a associação destes componentes inteiramente diversos que faz a coerência do ’eu te amo’. Em uma extremidade há um componente físico e, pela palavra físico, entende-se o componente biológico, que não se reduz ao componente sexual, mas inclui o engajamento do ser corporal. No outro extremo, encontram- se os componentes mitológico e imaginário; incluo-me entre aqueles para quem o mito e o imaginário não representam uma simples superestrutura, e muito menos uma ilusão, mas, sim, uma profunda realidade humana. (Edgar Morin, 2011, p. 26) Como em várias culturas, o amor se manifesta de múltiplas formas na GréciaAntiga, mesmo quando escolhemos um determinado período de tempo para investigá-lo. O amor, como sentimento culturalmente determinado que é, envolve hábitos e atitudes que variam no tempo e de indivíduo para indivíduo durante determinado período e região. Codificações culturais prescrevem essas variações. Dando ênfase à reflexão sobre o amor na literatura grega, veremos como alguns desses códigos funcionam na Grécia Antiga. 17 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 17
  • 18. 3. Edgar Morin fala da “verdadeira disjunção entre o amor vivido como mito e como desejo” (MORIN, 2011, p. 23). 18 Bem observa Simon Goldhill que, quando o Ocidente se inquieta com questões que dizem respeito ao amor e à sexualidade, sobretudo dos homens, a Grécia Antiga emerge ou como um fantasma da depravação ultrajante ou como o paraíso perdido da liberdade sexual (GOLDHILL, 2004, p. 66) – visões obviamente simplificadoras do passado. Assim, ao abordarmos esse assunto, é necessário, em primeiro lugar, adotarmos a perspectiva do antropólogo que se esforça conscientemente para despir-se de seus preconceitos ao estudar determinada cultura. Só assim poderemos entender um pouco da Grécia Antiga quanto a dois aspectos que os gregos consideravam tão fundamentais para a continuidade da vida: amor e sexo. Esse par assim se coloca porque, diferentemente de concepções amorosas que hoje em dia buscam separá-los na experiência humana3 – concepções cujos traços podem também ser rastreados entre os gregos antigos –, amor e sexo constituíam um par inextrincável para a maior parte dos gregos dos PeríodosArcaico e Clássico. A potência divina de Afrodite está em estimular a geração da vida, para a qual a prática do sexo é condição sine qua non no universo humano, enquanto Eros representa as atribulações emocionais que o desejo físico, para a continuação da espécie, pode provocar. Portanto, Afrodite e Eros não existem para representar um amor puramente espiritual. Há que se considerar ainda, à guisa de introdução, que a maioria das evidências literárias das representações do amor são produzidas por homens, poetas ou prosa- dores, fato que, por si só, ilustra a preponderância de uma certa visão masculina sobre o tema. O fato de nos terem chegado representações masculinas não significa, entretanto, que vozes femininas tenham sido de todo caladas no que diz respeito à expressão do amor. Não é somente Safo que nos deixa seu registro excepcional, não menos marcante, na história da literatura grega, mas também Corina, Erina e Nossis, e outras poetisas ainda pouco conhecidas, cujos fragmentos têm sido recentemente estudados (GREENE,2005).Devido à importância e extensão do corpus poético da poetisa de Lesbos, se comparada às outras, nos restringiremos à sua valiosa contribuição quando abordarmos a representação do amor por voz feminina. Para tratar do tema, distinguimos três tipos de representações do amor que se encontram nos textos gregos e que, de resto, são as que mais povoam nosso imaginário e despertam nossa curiosidade sobre o universo cultural da GréciaAntiga quanto a esse aspecto: o amor entre homem e mulher, o amor entre mulheres e o amor entre homens. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 18
  • 19. 4. As traduções da “Ilíada” utilizadas neste texto são de Frederico Lourenço (ver bibliografia). 19 O amor entre homem e mulher Entre os gregos, a relação amorosa entre homem e mulher encontra sua expressão mais erótica antes ou fora do casamento. Quando a moça é virgem e está prestes a casar-se, ou quando ainda é recém-casada, o desejo do marido se manifesta de forma ardente; mas, após o casamento, o amor erótico parece diluir-se em certa afetividade que toma seu lugar (GOLDHILL, 2004, p. 50). Nesse caso, não se trata mais exatamente de amor, pois não há Eros, não há desejo; mas de afeto produzido pelo respeito e por boa dose de convenções sociais e familiares. Quando representado na literatura, o desejo entre cônjuges marcado por Eros normalmente, associa-se à tragédia ou a situações trágicas ou muito excepcionais dentro de determinada narrativa. É assim que, na épica homérica, Zeus é surpreendido pelo desejo súbito que sente pela esposa, Hera, quando a deusa decide interferir junto a ele, para favorecer a reação grega na Guerra de Troia. Após ter recebido de Afrodite uma cinta com todos os encantamentos do amor, Hera aproxima-se de Zeus, de modo dissimulado, informando estar de partida para visitar Oceano eTétis. Tomado de desejo nesse momento, diz-lhe o soberano Olímpio: Hera, para lá também poderás ir mais tarde: voltemo-nos agora para o prazer do amor. Pois dessa maneira nunca o desejo de deusa ou mulher me subjugou ao derramar-se sobre o coração no meu peito, nem quando me apaixonei pela esposa de Ixíon, que deu à luz Pirítoo, igual dos deuses no conselho; nem por Dânae dos belos tornozelos, filha de Acrísio, que deu à luz Perseu, o mais valente dos homens; nem pela filha do famigerado Fênix, que me deu como filhos Minos e o divino Radamanto; nem por Sémele ou Alcmena em Tebas, esta que deu à luz Héracles, seu filho magnânino, ao passo que Sémele deu à luz Dioniso, alegria dos mortais; nem pela soberana Deméter das belas tranças; nem pela gloriosa Leto – e nem mesmo por ti própria me apaixonei como agora te amo, dominado pelo doce desejo. (Ilíada4, XIV, 313-328) A situação é tão incomum, que, ao externar sua estupefação diante do repentino desejo que lhe desperta a deusa esposa, Zeus apresenta uma lista de mulheres, de Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 19
  • 20. 5. Em toda a poesia arcaica, termos que se referem a leito são usados em referências metafóricas ao contato sexual entre amantes (CALAME, 1996, p. 47). 20 relações extraconjugais, todas dignas de menção por lhe terem provocado desejo incomparável até então, das quais nascera uma prole não menos digna de registro. Pois é fora do matrimônio que o Olímpio está habituado a ser tocado por Eros. Com efeito, no presente instante, é graças à cinta especial deAfrodite, que a auxilia, que Hera consegue abalar eroticamente o ímpeto do marido. Nem ela própria, como esposa, havia anteriormente despertado tamanho desejo – diz Zeus –, salvo em seus primeiros encontros. De fato, a situação coloca-se de tal modo em nível de exceção, que o narrador homérico buscará a semelhança desse encontro entre marido e mulher na primeira vez em que Hera e Zeus fizeram amor: Assim que a viu, o amor [eros] envolveu-lhe o espírito robusto, tal como quando primeiro fizeram amor [philoteti], deitados na cama, às ocultas dos seus progenitores. (Ilíada, XIV, 294-297) Por outro lado, o decoro e o respeito que o matrimônio devia manter entre cônjuges, à distância dos arroubos eróticos, manifesta-se na resposta de Hera a Zeus: Se o que tu queres agora é deitar-te em amor nos píncaros do Ida, isso estaria à vista de todos! Como seria se um dos deuses que são para sempre nos visse a dormir e depois fosse contar a todos os deuses? Pela minha parte já não poderia regressar à tua casa, depois de me levantar do leito, pois isso seria uma vergonha. Mas se é essa a tua vontade e se é agradável ao teu coração, tens um tálamo, que te construiu o teu próprio filho, Hefesto, tendo ajustado às ombreiras portas robustas. Vamos então deitar-nos lá, visto que o leito é o teu desejo. (Ilíada, XIV, 330-340) Ao que lhe responde Zeus: Hera, não receies que algum deus ou homem observe o ato, tal é a nuvem dourada com que te esconderei. Nem o próprio Sol nos descortinaria, embora nenhuma luz veja mais agudamente que a dele. (Ilíada, XIV, 342-345) Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 20
  • 21. 21 É preciso que uma nuvem, dourada como Afrodite, envolva o cume do monte Ida para que a esposa possa deitar-se5 em amor com o marido fora do tálamo – aposento onde a conjunção carnal e erótica entre cônjuges é apropriada. Com essa solução, arremata Homero, destacando o estatuto insólito da parceira sexual em tais circunstâncias: Falou; e nos seus braços tomou a esposa [parakoitin] o filho de Crono. (Ilíada, XIV, 346) Com essas considerações, não se quer dizer que o amor entre homem e mulher, porém, se reduzisse a um intercurso sexual de hábito, sem desejo e destituído de afeto. Eros (amor-desejo) e philotes (afeto) aparecem associados, embora essa associação se destaque mais frequentemente na representação das relações homoeróticas masculinas da poesia mélica, em que a confiança entre homens, em relações eróticas, se transfere para a vida política (CALAME, 1996, p. 44-45). É que philotes marca um traço de confiança, de afetuosidade, que pode acompanhar o arrebatamento erótico, embora não lhe seja necessário. Dada a composição coetânea da poesia épica e lírica, não é de nos surpreender que, na citação do narrador homérico acima,em que se descreve o súbito efeito de Hera aos olhos de Zeus, este seja tomado de eros e philotes simultaneamente, termos que o tradutor traduziu por amor em português. Outro exemplo homérico do caráter afetuoso que prepondera no matrimônio, pouco povoado de expressões de desejo erótico entre homem e mulher, é encontrado no último encontro de Heitor e Andrômaca. Diz Andrômaca ao esposo: Heitor, tu para mim és pai e excelsa mãe; és irmão e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito. (Ilíada,VI, 429-430) Uma leve evocação ao amor-desejo se vislumbra em “vigoroso companheiro do meu leito”, pois é, em primeiro lugar, a conjunção de afetos familiares o que define a importância de Heitor na vida deAndrômaca.A menção ao leito constitui, todavia, uma referência indireta ao amor erótico, em linguagem bastante discreta. Da mesma forma, a Heitor preocupa tão somente a condição de escrava a que será submetida Andrômaca, quando ele morrer. Não se lhe aventa a possibilidade de que, também como escrava, seja Andrômaca forçada a ter relações sexuais com seu futuro dono. Outra expressão que o amor entre homem e mulher pode adquirir é a de um desejo não concretizável, impossibilitado. Na poesia dos cantos corais, em que o amor é Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 21
  • 22. 6. Fragmento n. 26 da edição de Page (= P): D.L. Page (ed.) Poetae melici Graeci. Oxford: Clarendon Press, 1962 (FERRATÉ, 2000, p. 172). 7. Tradução minha. 8. É comum na poesia arcaica a associação de Eros com a doçura, muitas vezes evocando mel e abelhas 22 manifestado, em geral, por homens maduros, e dirigido para jovens, moços ou moças, encontra-se, frequentemente, a impossibilidade da realização do desejo. Alcman, poeta de Esparta e autor de partênios, canção entoada por um coro de virgens em festivais cívico-religiosos, celebra o amor sem reciprocidade ou dificultado por alguma condição ou circunstância impeditiva. O fragmento a seguir, em que o sujeito poético dirige-se a mulheres virgens, exemplifica essa temática (fragmento 26 P6 ): Não mais, ó virgens de doce e sagrada voz, as pernas me levar podem.Ah, ah, se eu fosse um alcatraz, que sobre a flor da onda junto com as alcíones voa, e tem valente coração – ave sagrada, púrpura como o mar!7 Eis a voz do homem envelhecido, de condições físicas precárias, diante das virgens de voz adocicada pelo charme de Eros8 . Seu desejo é poder constituir um par amoroso à semelhança do que narra o mito de Alcíone e Ceíce, cuja felicidade os fazia comparar-se a Hera e Zeus, irritando o casal olímpico de tal forma, que os transformou em pássaros, o alcatraz e a alcíone, os quais representam no poema a leveza do enlace repleto de energia e vigor para desfrutar do dulcíssimo amor. É importante lembrar que a virgindade entre os gregos não é vista como sinônimo de castidade, como na tradição judaico-cristã, mas apenas como uma fase de intensa sensualidade das jovens, entre a infância e a idade adulta (RAGUSA, 2010, p. 165). Assim, não há elemento algum de perversão, no sentido mais comum do termo, no desejo do homem mais velho pela virgem. O amor entre mulheres A existência de relações homoeróticas entre mulheres gregas – apesar de contar com alguma tradição interpretativa entre os estudiosos – tem sido mais recentemente objeto de controvérsia, tendo em vista as poucas evidências de fato em que se apoiam os que acreditam que o homoerotismo feminino tenha correspondido a uma prática culturalmente bem estabelecida como a da homossexualidade masculina (RAGUSA, 2005, p. 68 e ss.). No entanto, não vemos problema em refletir sobre a representação do homoerotismo feminino, por tratar- -se de uma possibilidade de interpretação que não deve ser descartada, quando os Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 22
  • 23. 9. Tradução (e notações) de Joaquim Brasil Fontes (ver bibliografia). 23 textos a permitem, e que tampouco precisa estar associada de imediato a um discurso excessivamente marcado por questões de gênero. Além disso, apesar de poucos, há poemas de Safo que favorecem sobremaneira tal interpretação. É o caso do seguinte fragmento: ] que morta, sim, eu estivesse: ela me deixava, entre lágrimas _ _ _ _ _ _ e lágrimas, dizendo: [ ‘Ah, o nosso amargo destino, minha Psappha: eu me vou contra a vontade’. _ _ _ _ _ _ Esta resposta eu lhe dei: ‘Adeus, alegra-te! De mim, guarda a lembrança. Sabes o que nos prendia a ti _ _ _ _ _ _ – se não, quero trazer de novo à tua memória [ ] ... [ ] as lindas horas que vivemos _ _ _ _ _ _ ] de violetas, de rosas e aça[flor] ... [ ] nós duas lado a lado _ _ _ _ _ _ [ ] tecendo grinaldas [ ] teu delicioso colo ] flores [ _ _ _ _ _ _ [ ] e perfumes [ ] ] feitos para rainhas; _ _ _ _ _ _ ungias com óleos, num leito [ delicioso [ e o desejo da ausente [ nem ] grutas ] danças ] ou sons9 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 23
  • 24. 10. Segundo West, com relação ao grupo de Safo, a visão mais aceita atualmente é a de que jovens mulheres fossem confiadas a seu grupo para instrução em música e talvez em leitura e escrita (WEST, 1994, p. xiii). 24 O poema apresenta a expressão do amor impedido, nesse caso pela partida de uma das envolvidas na relação amorosa. Não há dúvida de que são duas vozes femininas cujo discurso direto se reproduz no poema, e, apesar do vocativo Safo, não tem relevância a discussão biografista quanto a se tratar de expressão de experiência pessoal da própria poetisa ou de sua persona poética. Nisso, são acertadas, no geral, as considerações de Ragusa (2005, p. 303). Por outro lado, o poema descreve a dor da ausência da mulher amada sentida por outra mulher, que a recorda a partir de experiências compartilhadas, descritas por uma linguagem povoada de imagens eróticas. Gentilli oferece uma interessante interpretação da existência de relações homoeróticas em Lesbos, que poderia acomodar uma possível leitura do poema acima no quadro do homoerotismo feminino. Havia em Lesbos, assim como em Esparta, grupos de mulheres que partilhavam de rituais religiosos comuns e relações pessoais, marcadas por fortes identidades, afetos e rivalidades; no interior desses grupos, as relações entre mulheres eram variáveis, podendo ter o caráter oficial de vínculo afetivo de compromisso ou ainda compreender um breve período de iniciação de jovens à vida adulta, anterior ao casamento com homens (GENTILI, 1990, p. 72 e ss.)10 .Talvez o poema acima represente uma situação desse tipo, em que a jovem amada se despede da outra com a qual compartilhara momentos de intimidade no grupo (“Sabe o que nos prendia a ti”), encaminhando-se agora para o matrimônio (“eu me vou contra a vontade”). Se, por um lado, os poemas de Safo impõem certa cautela a leituras que neles privilegiem somente o homoerotismo feminino (RAGUSA, 2005), por outro lado tais conjecturas, quando possíveis, como no caso do poema acima, não devem ser ignoradas, tendo em vista alguns testemunhos antigos e a pesquisa de tantos outros sérios estudiosos do assunto nas últimas décadas. O amor entre homens Ao contrário das relações eróticas entre mulheres, o relacionamento homoerótico entre homens, amplamente atestado na iconografia e descrito em textos de prosa e poesia da Grécia Antiga, é tema de consenso entre os estudiosos. Não surpreende o fato de que, em uma cultura que se desenvolve sob o controle dos homens, também sobre o homossexualismo masculino nos tenham chegado mais evidências. Na Grécia Arcaica, as relações erótico-afetivas entre homens desenvol- Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 24
  • 25. 25 veram-se provavelmente no interior dos sumposia, encontros masculinos de entretenimento e discussões, regados a vinho, que ofereciam também a oportunidade de os jovens se iniciarem à vida social. Segundo Calame, a iniciação à vida adulta – e que inclui experiências eróticas – que se dá no sumposium corresponde ao espaço destinado à educação em uma sociedade, como a grega, em que não há instituição estabelecida para a formação educacional (CALAME, 1996, p. 120 e ss.). Esse espaço, que se fundamenta em laços de afeto entre os convivas, compreende não só a recitação de poemas como também a exaltação de valores éticos que devem ser transmitidos aos jovens. Portanto, o amor erótico que se manifesta nesses contextos tende a ocorrer especificamente entre um homem maduro e um jovem rapaz, e normalmente vem acompanhado de afetuosidade (philotes), que será a base igualmente de ligações e fidelidades políticas, posteriormente, entre eles, quando o jovem já tiver se transformado em homem adulto e atuante politicamente na cidade (CALAME, 1996, p. 126-127). Goldhill salienta que o desejo, nesse caso, se distribui entre papel ativo e passivo, cabendo ao homem adulto (o amante) o ativo tanto na expressão e no sentimento do desejo erótico quanto na transmissão de valores e ensinamentos, não sendo ele bem visto socialmente caso se coloque na posição de amado (GOLDHILL, 2004, p. 52). A prosa do século V a.C. tem inúmeros exemplos de representação do amor entre homens e das repercussões sociais de suas relações. Um dos mais notáveis é apresentado porTucídides, em sua versão da história da sucessão de poder durante a tirania dos pisistrátidas. O relato sobre a relação amorosa surge a propósito de uma referência à tirania de Pisístrato, que teria sido lembrada pelo povo ateniense quando os cidadãos associaram a mutilação das estatuetas de Hermes emAtenas, em 415 a.C., cuja responsabilidade estava sendo investigada, a uma tentativa de tomada de poder de tipo tirânico. O objetivo primeiro da menção ao Pisistrátidas é corrigir informação histórica que Tucídides julga estar equivocada entre os atenienses e os demais gregos. Diz Tucídides que quem sucedeu no poder, quando Pisístrato morreu, foi seu filho Hípias, e não Hiparco, como acreditava a maioria dos atenienses. É nesse contexto que se insere o episódio que aqui nos interessa: A ação ousada de Aristógiton e Harmódio foi levada a cabo por causa de um incidente de natureza amorosa [di’ erotiken xuntuchian], por meio do qual, após eu relatá-lo de forma mais demorada, vou demonstrar que nem os outros Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 25
  • 26. 26 [gregos], nem os atenienses nada dizem de exato tanto acerca de seus próprios tiranos quanto acerca deste fato ocorrido. [...] Quando Harmódio estava no auge de sua brilhante juventude, Aristógito, um homem da cidade, cidadão de posição social mediana, o tinha como amante. E Harmódio, ao ser cortejado por Hiparco, o filho de Pisístrato, embora por ele não tivesse sido seduzido, denuncia o caso a Aristógiton. Este, sofrendo por amor [erotikos perialgesas] e com medo do poder de Hiparco, de que este pudesse aproximar-se de Harmódio à força, planejou tão logo quanto possível, a partir da posição social que detinha, a dissolução da tirania. E, nesse ínterim, Hiparco,como,apesar de novamente ter cortejado Harmódio, não o seduzisse de modo algum, e não querendo tomar nenhuma atitude violenta, como se não fosse por isso, de uma maneira encoberta preparava-se para insultá-lo (Tucídides,VI, 54,1-4). A empresa ousada fora o assassinato do filho do tirano Pisístrato, Hiparco, que o casal, juntamente com outros companheiros políticos, cometem por ocasião da festa panatenaica – o que Tucídides narra nos capítulos seguintes. No entanto, o que interessa na representação da relação amorosa na narrativa tucidideana é exatamente seu caráter subordinado a questões políticas, pois isso revela um pouco da complexidade dos relacionamentos homoeróticos entre homens gregos. Tucídides apresenta a situação destacando especificamente o que é relevante para se compreender como tais relações funcionavam. Harmódio está no “auge de sua brilhante juventude”, e Aristógito é um homem adulto, já estabelecido socialmente. Hornblower salienta que a expressão grega aqui traduzida como “de posição social mediana” significa, na prática, “de classe média”, e é indicativa da influência política que Aristógito podia ter em Atenas, a tal ponto que já sinalizaria para a existência do grupo de companheiros com as mesmas convicções políticas que apoiará o casal no assassinato (Tucídides, VI, 56-57) (HORNBLOWER, 2008, p. 442). A narrativa também mostra como o jovem amado é subordinado e ligado ao amante por laços de confiança, já que, tão logo é cortejado pelo filho do tirano, denuncia o caso a Aristógito. A reação deste é ciumenta e passional, descreve Tucídides (“sofrendo por amor”), mas é provocada também por uma consciência do poder político do rival (“com medo do poder de Hiparco”). Ora, a relação entre homens, nesse caso, está intrinsecamente ligada a Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 26
  • 27. 27 um contexto de formação do cidadão jovem para sua posterior atuação política, estabelecendo um elo que vai além do simplesmente amoroso-sexual. Tucídides fecha o excurso resumindo que a conspiração ocorrera “por causa de ressentimento amoroso” (di’ erotiken lupen) e que, após o assassinato, a atuação dos tiranos recrudesceu, gerando insatisfações entre os atenienses, que acabaram por derrubar a tirania posteriormente. O período a que se reporta o relato de Tucídides é o do século VI a.C., entretanto, nos séculosV e IV a.C. abundam referências a tais relações, algumas famosas, como a de Sócrates e Alcibíades. Do Período Arcaico ao Período Clássico, portanto, encontram-se várias evidências desse tipo de relação homoerótica entre homens, em contexto de educação e formação do indivíduo jovem para a vida adulta em sociedade – o que permite afirmar que esse é um traço cultural relativamente estável da GréciaAntiga, ao longo de alguns séculos. O amor, nesses casos, não se restringe a um encontro afetivo e erótico, mas se desenvolve no seio de grupos masculinos com afinidades diversas, de natureza intelectual a política, como se viu no trecho acima. Eis, portanto, alguns casos de representação do amor na literatura grega antiga. Como se pode ver, algumas práticas amorosas dos gregos que aparentemente ainda se mantêm na vida ocidental são, todavia, hoje destituídas dos caracteres culturais específicos que as determinavam no contexto grego, como as relações homoeróticas entre mulheres e entre homens, que emergiam, em geral, de uma necessidade social de introdução e iniciação de jovens em práticas sociais do mundo adulto. Cabe ainda frisar que as evidências literárias podem fornecer uma visão bastante limitada da vida grega quanto a esse aspecto, tendo em vista o forte caráter oral da Grécia durante toda a Antiguidade. A literatura, porém, ainda é uma fonte fértil que continua atraindo pesquisadores a explorar esse mundo ainda tão desconhecido para nós que é o dos antigos, em geral, e o dos gregos, em particular. Muito provavelmente, como na maioria das sociedades, a manifestação do desejo erótico seria muito mais variada e complexa do que os materiais objeto de pesquisa restantes do mundo grego antigo podem indicar. Ainda assim, a precaução investigativa, no âmbito de fontes textuais, requer que as interpretações se atenham àquilo que temos de mais objetivo, os textos – o que constituiu nossa diretriz principal ao longo das reflexões feitas aqui. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 27
  • 28. 28 Bibliografia CALAME, C. L’Éros dans la Grèce Antique. Paris: Belin, 1996. FERRATÉ, J. Líricos griegos arcaicos. Barcelona: El Acantilado, 2000. GENTILI, B. Poetry and its public in Ancient Greece: from Homer to the fifth century. Baltimore:The Johns Hopkins University Press, 1988. GOLDHILL, S. Love, sex & tragedy: how the Ancient World shapes our lives. London: John Murray Publishers, 2004. GREENE, E. (Ed.). Women poets in Ancient Greece and Rome. Norman (OK): University of Oklahoma Press, 2005. GRIMAL, P. Dicionário da mitologia grega e romana.Trad.Victor Jabouille. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. HOMERO. Ilíada. Trad. de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2005. HORNBLOWER, S. A commentary on Thucydides, v. 3: Books 5.25-8.109. Oxford: Oxford University Press, 2008. HORNBLOWER, S.; SPAWFORTH, A. The Oxford classical dictionary. Oxford: Oxford University Press, 2003. KERENYI, K. Os deuses gregos.Trad. Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1998. MORIN, E. Amor, poesia, sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011. RAGUSA, G. Fragmentos de uma deusa: a representação de Afrodite na lírica de Safo. Campinas: Editora Unicamp, 2005. RAGUSA, G. Lira, mito e erotismo:Afrodite na poesia mélica grega arcaica. Campinas: Editora Unicamp, 2010. SAFO DE LESBOS. Poemas e fragmentos. Trad. Joaquim Brasil Fontes. São Paulo: Iluminuras, 2003. THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford University Press, [s.d.]. (Oxford classical text). VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1996. WEST, M. L. (Ed.). Greek lyric poetry. Oxford: Oxford University Press, 1993. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 28
  • 29. 29 Capítulo II Ecos homéricos em representações da morte em Atenas A vingança também é agradável; pois, se é doloroso não alcançar uma coisa, é agradável alcançá-la; e os iracundos afligem-se em demasia quando não gozam vingar-se, mas regozijam-se quando esperam fazê-lo. [...] A honra e a boa reputação contam-se entre as coisas mais agradá-veis, porque cada um imagina que possui as qualidades de um homem virtuoso, e sobretudo quando o afirmam pessoas que ele considera dizerem a verdade. Contam-se entre eles os vizinhos mais do que os que se encontram afastados, os familiares e os concidadãos mais do que os estranhos, os contemporâneos mais do que os vindouros, os sensatos mais do que os insensatos, e a maioria mais do que a minoria; pois é mais provável que digam a verdade os que acabamos de mencionar do que os contrários [...] (Aristóteles, Retórica, p. 1370b, 1371a) A vingança e a honra, dois conceitos que Aristóteles elenca entre aqueles funda- mentais para que o orador entenda como o prazer deve ser considerado como Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 29
  • 30. 30 11. Cf. Lísias, Oração fúnebre, 17-23; Ésquines, Contra Timarco, I.5. 12. A Lei de Drácon dispõe sobre homicídio intencional e não intencional. O conhecimento que se tem dos termos da lei remete à sua republicação pelos atenienses em 408/9 a.C., em que aparecem disposições somente sobre o homicício não intencional, que deve ser punido com exílio ou recompensa monetária. Há várias conjecturas sobre o tratamento dado, na Lei de Drácon, ao homicídio intencional, sobretudo em vista de a lei punir com morte outros crimes, como o roubo e traição; entretanto, a inscrição com a republicação da lei não traz os termos referentes ao homicídio intencional. 13. Na “Ilíada”, 18.497-508, no novo escudo de Aquiles feito por Hefesto há uma narrativa visual que menciona um julgamento que refere compensação monetária por homicídio.Alguns estudiosos têm assumido isso como evidência de tipo de punição de homicídio na Grécia Arcaica (GAGARIN, 1981). matéria da oratória judicial, são também dois aspectos essenciais da representação da morte entre os gregos, desde Homero. Nos espaços institucionais de Atenas, no Período Clássico, eles figuram frequentemente associados à morte individual ou coletiva, e incorporados a práticas bem estabelecidas, de natureza religiosa e social. No caso da morte do indivíduo, é interessante analisar como a honra aparece travestida em necessidade de vingança nas representações do homicídio levado a julgamento. No que diz respeito à morte coletiva dos guerreiros-cidadãos que morrem combatendo em nome da cidade, a honra transfere-se da morte do indivíduo para a vida da coletividade, revelando como a ideologia ateniense consolida a fusão entre o valor individual e a glória da pólis em uma ocasião simultaneamente religiosa e político-educativa: a da oração fúnebre proferida por ocasião dos ritos funerários aos mortos de guerra.Tanto no tratamento do homicídio quanto na louvação coletiva aos mortos, percebe-se a exaltação desse importante aspecto da representação da morte do herói homérico:a relação entre morte e honra. Em uma cidade que se proclama, entre as demais da Grécia Antiga, a mais “civilizada”11 , é natural que, desde o início de sua constituição, a pólis ateniense tenha normatizado, pela lei ou pelo costume, o ato brutal de tirar a vida alheia. Em 621 a.C., a Lei de Drácon dispõe sobre o crime de homicídio, pressupondo uma certa tradição de procedimentos convencionais – anteriores à lei, portanto – relativos ao homícidio. Uma das questões centrais da Lei de Drácon é limitar a vingança individual: a lei estabelece que os casos de homicídio devem ir a julga- mento12 , do que se tem inferido que buscava impedir “justiça com as próprias mãos”, provavelmente uma prática costumeira até então (COHEN, 2005). Percebe- -se que a tradição que atravessa os termos da Lei de Drácon – e chega ao Período Clássico – mantém um aspecto fundamental da justiça do herói homérico com relação ao homicídio13 : a vingança como resgate da honra. Na Grécia Arcaica, Aquiles encarna não só o herói que se lança conscientemente para a morte em troca de renome, mas também o vingador por excelência. Logo após saber da morte de Pátroclo, diz ele à mãe, Tétis, que não viverá enquanto Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 30
  • 31. 14. Em trabalho de iniciação científica por mim orientado, Luiz Eudásio Barroso Capelo Silva (2009) mostra que, em Antifonte e em Tucídides, o conceito de τιμωρία não compreende somente o resgate da honra ultrajada, mas também o reguardo, a proteção da honra que pode vir a ser ofendida. Nesse sentido, o verbo τιμωρέω é muitas vezes traduzido para o português como “proteger”, pois ocorre em contextos em que se procurar proteger a honra de uma possível ofensa a ser ainda sofrida. 15. Ilíada, XVIII, 79-81: “Mas que satisfação tenho eu nisso, se morreu meu companheiro amado, Pátroclo, a quem eu honrava acima de todos os outros, como a mim próprio?” 31 “Heitor não perder a vida pela minha lança e pagar a espoliação de Pátroclo” (Ilíada, XVIII, 93). Aqui se refere Aquiles às armas de Pátroclo, de que Heitor se apossara. Entretanto, logo em seguida ele explicita com mais ênfase seu desejo: “E agora irei ao encontro de quem a cabeça amada me matou: Heitor” (Ilíada, XVIII, 114-115). Eis o real motivo que movimenta o herói de volta às hostes dos aqueus – vingar o amigo morto, matando o assassino e mais alguns troianos: Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo da terra, não te sepultarei, antes que para aqui eu tenha trazido as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti, magnânimo. E na tua pira funerária cortarei as gargantas a doze gloriosos filhos dos Troianos, irado porque foste chacinado. (Ilíada, XVIII, 333-337). Como bem salienta Vernant, o herói morre porque sua honra não pode ser empenhada; sua honra é a medida de sua vida, em um plano metafísico, não social, razão pela qual o prestígio social, que pode ser gozado e adquirido no plano de sua existência mortal, não lhe interessa (VERNANT, 1989, p. 47). Por estar em outro plano de valores, a honra do herói é o que o faz trocar a vida mortal pela imortalidade na memória coletiva, pela lembrança reiterativa do canto. Ora, a vingança (τιμωρία), que, na GréciaArcaica, pode permitir que uma morte se pague com outra morte, não é nada mais do que o ato de resguardar a honra ultrajada, o que bem mostra a relação entre os termos honra (τιμή) e vingança (τιμωρία), que partilham de um mesmo radical (τιμ-). McHardy, em seu estudo sobre a vingança na cultura grega, mostra que o vocábulo τιμωρία resulta da composição entre os radicais do substantivo τιμή (honra) e do verbo ὄρομαι (resguardar) (McHARDY, 2008, p. 3)14 . No caso de Aquiles em relação a Pátroclo, a honra que o pelida busca resgatar, ao lançar-se sobre Heitor para vingar Pátroclo, é como se fosse a sua própria15 . Nesse contexto, é fundamental a Aquiles recuperar o corpo do amigo, pois deixar Pátroclo insepulto é não concretizar a passagem do amigo ao mundo dos mortos, como que o deixando no vácuo entre a vida e a morte, já não mais vivo, mas ainda não exatamente na condição de morto, que é a do Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 31
  • 32. 16. Gernet (2004) traz uma interessante discussão sobre diversas penas de morte utilizadas até o século IV a.C. em Atenas: ἀποτυμπανισμός (morte em que a vítima é amarrada nua a um poste de madeira para “morrer viva” – pena que lembra a crucificação); o envenenamento por cicuta, que tão bem conhecemos pelo caso de Sócrates; e o βάραθρον (lançamento de vítimas em abismo – se vivas ou já mortas, há controvérsias entre os estudiosos). À pena de morte podia somar-se também a pena de privação do sepultamento da vítima. 17. Além de “Contra a madrasta”, ver “Tetralogia” I, 9. 32 indivíduo cujo corpo, finda a vida, passa pelos ritos fúnebres de limpeza e purificação para chegar ao Hades (VERNANT, 1989, p. 70-73). O ideal da honra preservada, se necessário, pela vingança de morte deve ter influenciado o imaginário dos atenienses por muito tempo, a julgar pelas evidências de alguns textos do Período Clássico. Apesar de o homicídio ter sido regrado pela Lei de Drácon, que aparentemente não sofreu grandes modificações ao longo do tempo (Antifonte, Acerca do Coreuta, 2; Demóstenes, Contra Aristócrates, 51), muito embora os termos relativos ao homicídio intencional não nos tenham chegado, é possível que uma série de disposições tenham sido acrescentadas à lei original para regulamentar, por exemplo, a execução de pessoas julgadas por homicídio intencional e consideradas culpadas16 . Mais frequentemente, a pena capital era a contrapartida para o descumprimento da pena de exílio.Apesar de, em princípio, o sistema legal ateniense pressupor que cabe à pólis julgar e processar os casos de homicídio em geral, existe no Período Clássico uma retórica bem articulada e empenhada em afastar, dos casos levados a júri, o desejo de vingança pessoal como motivo desencadeador da ação penal. Tal retórica, argumenta Cohen, pode muito bem indicar que, na realidade, o valor corrente entre os atenienses era buscar o tribunal – no caso de homicídios, o Areópago – para obter a vingança pessoal (COHEN, 2005b, p. 219 e ss.). Alguns discursos de Antifonte obliteram claramente a distinção entre vingança pessoal e punição do Estado. Em “Contra a madrasta”, o litigante, filho do pai assassinado pela madrasta, interpela o júri a assumir seu papel de “vingadores do morto” (21: τῷ τεθνεῶτι τιμωρούς)17 , vingando simultaneamente as leis de Atenas – ou, para lembrarmos o sentido de τιμωρία, resgatando a honra do morto e resguardando a honra das leis atenienses. Para os atenienses, o homicídio, ressalte-se, é um crime que, mesmo perpetrado na esfera privada, tem repercussão direta sobre a vida da pólis, certamente porque contém um aspecto diretamente relacionado à vida religiosa da cidade. Os homicidas eram proibidos de entrar nos espaços públicos e julgados somente pelo Areópago. Em “Contra a madrasta”, o filho dirige-se aos juízes, dizendo-lhes que o morto Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 32
  • 33. 18. Não se pense que execuções sumárias, sem julgamento, não fossem permitidas por lei. Sobressai como peculiar – e figura no discurso de Lísias, “Sobre o assassinato de Eratosthenes” – o caso do homicídio lícito, permitido quando um homem surpreende outro com sua mulher, mãe, filha, irmã ou concubina que mantenha para procriar filhos livres (cf. também Demóstenes, Contra Aristócrates, 53). 33 é digno de receber de vossa parte compaixão, auxílio e vingança [τιμωρίας], ele, que teve de abandonar a vida antes do que lhe fora destinado,de modo inglório [ἀκλεῶς], contrariamente ao divino [ἀθέως], pelas mãos dos mais miseráveis (Contra a madrasta, 21). A vingança restitui, assim, o estado de piedade divina que merece o morto, mas também parece ter certo efeito educativo, como o de castigar comportamento que deve ser evitado, funcionando também, portanto, como meio de justiça educativa (COHEN, 2005a). Esse tipo de interpelação dos juízes, como observa Cohen a propósito de outra peça de oratória (Licurgo, Contra Leócrates, 141-6), tende a mesclar a distinção entre vingança e punição que o exercício da lei e o julgamento público deveriam, idealmente, preservar em Atenas (COHEN, 2005b, p. 225). Em “Contra a madrasta”, o julgamento e a declaração de culpabilidade atenderiam ao pedido do pai do impetrante da ação, que, antes de morrer, em vista de ter ficado vinte dias padecendo de doença decorrente do envenenamento, conseguira pedir ao filho que buscasse a vingança (Contra a madrasta, 30). As vítimas de homicídio premeditado, diz o filho, se “ainda conseguem reagir antes de morrer, chamam seus amigos e os parentes ligados por necessidade, dizem por que mãos pereceram e recomendam a vingança daqueles que sofreram injustiça” (Contra a madrasta, 29). Em Atenas, o homicídio intencional, apesar de ser crime de efeito sobre a vida dos cidadãos de um modo geral, só podia ser objeto de ação penal por algum membro da família do morto.Aparece aqui a morte representada e regulamentada no âmbito das instituições, mas ainda assim suscitando o desejo de vingança pessoal, assumida, porém, ou, de certa forma, facultada, pelo encaminhamento de uma acusação para julgamento, de modo que o corpo coletivo da cidade – que o corpo de juízes representa – se torne o vingador da vítima18 . O valor da honra do morto,segundoVernant,também se manifesta pelo seu contrário, pela sua desvalorização com a profanação do cadáver impedido de sepultamento. Na epopeia, obstruir a recolha do cadáver é privar o inimigo de ter fixada sua memória de forma estável, em ato correlato ao canto, por meio do memorial que constitui, no fim dos ritos funerários, a edificação do túmulo com a stele, estável, imperecível, como marca da vida concluída ou da morte acabada, enquanto processo de passagem para o mundo dos mortos (VERNANT, 1989, p. 70-1). Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 33
  • 34. 19. Péricles refere-se a desfrutar de sua riqueza, no caso dos combatentes ricos, ou escapar da pobreza e tornar-se rico, no caso dos pobres – caso visassem somente à sobrevivência. 20. Tradução minha. 34 A isso dedicam-se com empenho, respectivamente, Heitor e os troianos, com o cadáver de Pátroclo, e, depois, Aquiles, com o de Heitor, ainda de modo mais extremo. O resgate e consequente sepultamento do corpo do morto é, portanto, desde sempre, um valor caro aos gregos em geral – com frequência ignorado por inimigos, voluntariamente, em contextos de guerra. Entre os atenienses, vinculada ao sepultamento de combatentes mortos em guerra em nome da pólis está a oração fúnebre, que, entre outras funções, tem a função retórica de disseminar em prosa a glória dos mortos, à semelhança do que faz o canto em relação à bela morte do herói. Entretanto, na oração fúnebre o herói não é mais indivíduo, mas faz parte de um grupo amorfo e inominado de cadáveres que promovem, na realidade e acima de tudo, a glória da pólis; são “heróis” sem nome, a serviço do renome da cidade.A famosa oração fúnebre de Péricles revela algumas características, na apresentação do ethos coletivo dos mortos, que evocam, por analogia e diferença, alguns aspectos da tradição da bela morte do herói homérico: Considerando que a vingança contra seus inimigos era mais desejável do que essas coisas19 e julgando que este era o mais nobre dos riscos, decidiram vivenciá-lo e vingar- se daqueles e abandonar aquelas. Deixaram à esperança a imprevisibilidade do acerto e, quanto à ação que para eles já era visível, julgaram-se dignos de vivê-la. E preferiram o ato de defender-se e padecer a salvar-se entregando-se: de um lado, escaparam do opróbrio da palavra; de outro, enfrentaram a ação com o corpo e, no breve momento do acaso, no auge da glória, não do medo, eles nos deixaram (Tucídides, II, 42.4).20 Assim comoAquiles ou Heitor, os primeiros mortos da Guerra do Peloponeso perdem sua vida vingando-se de seus inimigos, isto é, resguardando ou resgatando a honra, em combate. Porém, diferentemente do herói homérico por excelência, seus destinos não estão previamente selados, mas resultam do “breve momento do acaso”. Tampouco é o vigor físico ou a juventude – qualidades do corpo do herói que sucumbe à morte (VERNANT, 1989, p. 56-57) – o que se destaca quando se mencionam a coragem e o enfrentamento com o corpo na ação fatal de guerra, mas, sim, a δόξα – a fama, a glória advinda da opinião alheia.A linguagem poética Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 34
  • 35. 35 de Tucídides aqui visa a sensibilizar, não para o lamento, mas para a exaltação, a fictícia audiência interna da história tucidideana, ou seja, os demais atenienses vivos que ouvem as palavras de Péricles (LORAUX, 1986, p. 48). Nesse sentido, ressalta- -se mais uma distinção entre a oração fúnebre ateniense e a tradição épica: nada na oração de Péricles relembra o lamento de Troia inteira a ver Príamo chegar com o corpo de Heitor (Ilíada, XXIV, 720-776). A oração fúnebre ateniense inscreve-se em um contexto didático em que os vivos são convocados a identificar-se com os belos feitos dos mortos de forma imediata, excluindo-se o distanciamento que favorece o lamento, pois a glória da cidade, mantida por aqueles que em deter- minado momento entregaram sua vida bravamente e que merecem então ser honrados, depende da continuidade da bravura nos cidadãos vivos.A oração fúnebre é uma lição de moralidade cívica endereçada aos vivos, acrescenta Loraux (1986, p. 98). A morte transfigura-se assim em um destino resultante do acaso que deve ser aceito pelos sobreviventes em nome da glória da cidade, que celebra seus cidadãos somente porque estão mortos, uma forma igualmente de apelar aos vivos que não desistam em combate e morram pela cidade, para tornar-se objeto de tal celebração. Tanto na representação do homicídio levado a julgamento quanto no elogio dos mortos de guerra de Atenas, a honra é característica marcante da abordagem dos vivos em relação aos mortos, tal qual já cantava Homero. Em um caso, ela conecta-se com a vingança; em outro, com a glória.Todavia, na oração fúnebre, os mortos não têm mais nome, e, no julgamento do homicídio, os juízes são convocados a vingar não só o morto, mas também as leis da cidade. No âmbito das instituições e ritos atenienses, a morte é representada como uma experiência que se incorpora e se ressignifica no discurso da pólis e do cidadão, subestimando-se seu caráter individual. Bibliografia ANTIFONTE. Testemunhos, fragmentos, discursos. São Paulo: Edições Loyola, 2008. ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 2005. COHEN, D.Theories of punishment. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge companion to Ancient Greek law. New York: Cambridge University Press, 2005a. COHEN, D. Crime, punishment, and the rule of law in Classical Athens. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge companion to Ancient Greek law. New Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 35
  • 36. York: Cambridge University Press, 2005b. DEMÓSTENES. Discursos políticos III. Madrid: Editorial gredos, 2008. GAGARIN, M. Drakon and early Athenian homicide law. New Haven: Yale University Press, 1981. GAGARIN, M. The unity of Greek law. In: GAGARIN, M.; COHEN, D. (Ed.). The Cambridge companion to Ancient Greek law. New York: Cambridge University Press, 2005. GERNET, L. Capital punishment. In: RHODES, P. J. (Ed.). Athenian democracy. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2004. HOMERO. Ilíada. [Trad. de Frederico Lourenço]. Lisboa: Livros Cotovia, 2005. LISIAS. Discursos. Madrid: Editorial Gredos, 1988. LORAUX, N. The invention of Athens: the funeral oration in the classical city. Cambridge: Harvard University Press, 1986. McHARDY, F. Revenge in Athenian culture. Washington: Duckworth, 2008. THUCYDIDES HISTORIAE. Oxonii e Typographeo Clarendoniano. Oxford: Oxford University Press, [s.d.]. (Oxford classical text). VERNANT, J.-P. L’individu, la mort, l’amour. Paris: Gallimard, 1989. 36 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 36
  • 37. Prof. dr. José Luiz Brandão Universidade de Coimbra (UC) Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 37
  • 38. 21. Foi usado neste trabalho, embora com uma organização diversa, grande parte do material publicado em Brandão (2012, p. 135-161). 39 Capítulo III A representação da Roma viva por meio dos epigramas de Marcial21 O poeta Marcial deixa-nos um retrato da Roma do século I. E quando nos fala das ruas da urbe, dos edifícios, dos espaços de convívio públicos e privados, não faz uma descrição arqueológica, do gênero de um catálogo de museu, mas dá-nos um testemunho vivo das gentes que povoavam tais espaços, desde o rico, ou novo-rico, ao mais miserável dos arruinados; desde o mais poderoso patrono ao último dos clientes, desde o romano da mais pura gema aos mais extravagantes provincianos, desde as mais nobres matronas às mais repelentes rameiras. Por isso, Marcial é considerado il poeta di Roma vivente – como dirá Enrico Paoli. Reflete a Roma imperial, com a sua sociedade piramidal e a monumentalidade de cariz totalitário, acumulada sobretudo durante o período dos Júlio-Cláudios e dos Flávios. Roma é o cenário privilegiado dos epigramas. No prólogo do Livro XII, Marcial refere com saudade os espaços por onde costumava passear (12.21). É a Roma engrandecida pelos Flávios e motivo de adulação por parte do poeta, é o local de atuação dos tipos sociais que vai referindo, são os espaços da vida literária (vendas dos livreiros, percursos dos livros para saudar um patrono) e são os trajetos das deambulações e canseiras do poeta, que descreve as impressões dos meandros urbanos. Embora Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 39
  • 39. 22. Vide SULLIVAN, 1991, p. 147 e ss.; ROMAN, 2010, p. 99 e ss.; COLEMAN, 2006, p. 15. 23. Cf. Suetônio, Aug. 28.3: “Vrbem neque pro maiestate imperii ornatam et inundationibus incendiisque obnoxiam excoluit adeo, ut iure sit gloriatus ‘marmoream se relinquere, quam latericiam accepisset’. Tutam uero, quantum prouideri humana ratione potuit, etiam in posterum praestitit”. 24. Suetônio, Ves. 8.1: “Ac per totum inperii tempus nihil habuit antiquius quam prope afflictam nutan-temque rem p. stabilire primo, deinde et ornare”. 25. Vide PAILLER, 1981, p. 79-87; ROMAN, 2010, p. 111. 40 deseje o otium fora da urbe, Marcial vive esta contradição de necessitar do espaço urbano para a sua criação poética. A representação topográfica da urbe é, pois, uma estratégia literária associada ao gênero que o nosso poeta cultiva; para mais, em um período em que as estruturas da urbe sublinham a afirmação do poder de uma nova dinastia. Muitos dos epigramas integram-se no consagrado gênero da laus urbis22 . A Roma dos epigramas é um espaço em metamorfose. Augusto dissera que encontrara uma Roma de tijolo e a deixara de mármore. Como outrora Augusto23 ,Vespasiano e os filhos procuraram restaurar e ornamentar moral e fisicamente a cidade depois da sumptuosidade de Nero e das consequências do conflito civil de 68-69 d.C. na disciplina e nos edifícios24 . O “Liber spectaculorum”, cuja publicação celebra a inauguração do anfiteatro Flávio em 80 d.C. No segundo epigrama desse livro, Marcial estabelece o contraste entre passado e presente por meio do louvor das construções que se elevaram no lugar da Domus Aurea, o extravagante palácio de Nero, construído no centro da urbe na sequência do incêndio de 64 d.C. Agora, reddita Roma sibi est (“Roma foi restituída a si mesma”) (Sp. 2.11).A oposição entre passado e presente corresponde à metamorfose de espaço fechado em espaços abertos de deslocamento, de convívio e de espetáculo; à transformação dos deleites do tirano (dominus) em deleites do populus (Sp. 2.12)25 . A imagem da Fênix é associada a Roma, que por obra de Domiciano renasce das cinzas, provavelmente depois do incêndio de 80 d.C. (5.7). Uma alusão a Domiciano enquanto restaurador e construtor de templos é feita de forma espirituosa em 9.3: ao colocar o imperador como credor do pai dos deuses, Marcial sublinha o aspecto religioso da política de construções, em continuidade com a herança augustana (8.80). Roma permite um cruzamento de percursos poéticos e interpoéticos. Marcial refere-se diversas vezes a percursos da cidade feitos pelas personagens dos epigramas, por si próprio ou pelo livro que envia como seu embaixador. É o caso do roteiro de Sélio, que circula pelo o Campo de Marte na ânsia de conseguir um convite para jantar (2.14). Outro itinerário destacado é o que faz o poeta até aos seus protetores (1.70; Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 40
  • 40. 26. Cf. Ovídio, Trist. 1.1; 3.7; Pont. 4.5. 27. Um poema que, pelo local e pelas referências, recorda também o “Ibam forte Via Sacra”, de Horácio (Sat. 1.9). Descreve uma subida desde o Fórum, centro de Roma, até ao Palatino, com menção dos locais que se vão encontrando. 28. Vide ROMAN, 2010, p. 103-105. 41 1.108; 1.117; 2.5; 5.22; 10.20.4-5; 10.56; 10.82). A relação entre o autor e os espaços da urbe opera-se também por meio do livro, usado muitas vezes como metonímia do poeta. O motivo ovidiano de enviar o livro do exílio26 é transferido por Marcial para o contexto das obrigações de cliente, como forma de evitar a perda de tempo de ir pessoalmente cumprir a salutatio (1.108). Encontra, assim, pretexto para introduzir passo a passo alusões topográficas e arquitetônicas na descrição de um percurso: é o caso do trajeto do livro que envia ao amigo Próculo (1.70)27 , ou do livro que envia a Plínio (10.20)28 . Contudo, há também os percursos descritos no sentido de levar os leitores até ao lugar dos epigramas, com indicações do nome dos livreiros e dos locais onde se podem encontrar os epigramas à venda (1.2; 1.117; 4.72). Nesses itinerários, a criação literária recorre a relações intertextuais e interpoéticas, pela interseção com a arquitetura, a pintura, a vida cultural e social. 1. Roma viva Atento ao mundo em que vive na busca de inspiração para a sua obra, Marcial capta a realidade e representa-a por meio do olhar de poeta epigramático. E nos quadros representados figuram caracteres, virtudes e vícios, tipos sociais, grupos, profissões. O leitor depara-se com alguns dramas humanos, transmitidos algumas vezes de forma crua e irônica, outras vezes, empática, e a maior parte das vezes espirituosa, como manda o gênero: o epigrama, pela sua tradição. É a escolha adequada para descrições concisas, argutas e contundentes. Marcial deixa-nos, por isso, um retrato ao mesmo tempo realista e divertido da vida social da Roma dos Flávios. É uma poesia que, apesar da caricatura, mantém o sabor humano, como salienta o poeta (10.4.10). A mordacidade e a sátira vão alternando com a sensibilidade e a empatia com o sofrimento. 1.1. Sobreviver em Roma: entre o ter e o ser Um dos problemas que mais preocupa a humanidade é o da procura dos meios da sobrevivência. Marcial parece obcecado com o problema da distribuição da riqueza e da pobreza na sociedade; não como um paladino da luta pela igualdade social dos tempos modernos, mas como um cavaleiro conservador, preocupado com o perigo da subversão da ordem na sociedade romana. Em Roma, o poder político e Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 41
  • 41. 29. Vide MARACHE, 1961b, p. 12-13. 30. Cf. Petrônio, Satyr. 76. 31. O topos foi aparecendo em Horácio (Sat. 2.5), Petrônio (117), Pérsio (5.73), Juvenal (por ex. 1.37-41).Vide SULLIVAN, 1991, p. 159 e ss. 42 social estava tradicionalmente associado à riqueza. Desde tempos antigos, que nos comitia centuriata votavam em primeiro lugar os mais ricos, os da primeira classe. Nos tempos do poeta, o status de senador e cavaleiro estava dependente da posse de um determinado valor patrimonial, um milhão de sestércios para o primeiro e 400 mil para o último. A ordem senatorial tem o seu estatuto e patrimônio tradicionalmente ligados à posse da terra. Para um cavaleiro, a indústria e o grande comércio são recomendados29 , mas um naufrágio, por exemplo, pode arruinar um homem rico30 . As atividades assalariadas e laborais são consideradas desonrosas para um homem ilustre. Por vezes, os imperadores tinham de subsidiar indivíduos dessas classes para que não perdessem o estatuto. Marcial zurze, com voz moralizante, as situações que subvertem a realidade social. 1.1.1. Heranças e dotes Um dos principais alvos de Marcial são os caçadores de heranças.A caça à herança ou ao dote é um fenômeno comum em Roma por causa das disposições testamen- tárias que garantiam a propriedade privada e a defesa do direito de cada um dispor dos bens a seu desejo. A captatio tornou-se topos dos poetas satíricos31 . Os alvos são mulheres ricas ou velhos sem herdeiros. É bastante conhecido e repetido, como paradigmático do gênero cultivado por Marcial, o epigrama sobre as núpcias de Maronila, que se torna atraente por estar tísica, e, por isso, perto da morte (1.10); ou o caso de Névia que, para atrair um pretendente, usa de publicidade enganosa: tosse de forma exagerada (2.26) – situações caricatas que refletem a realidade dos expedientes a que se podia recorrer para sobreviver na urbe. Dada a proteção de que gozava a propriedade da mulher romana, surge a suspeita de que certos homens vendessem os seus favores sexuais em troca do dinheiro das mulheres – é o que se deduz da censura feita a Basso, por gastar a sua potência sexual com rapazinhos, subtraindo à esposa o vigor que ela tinha pago com o dote (12.97); da ventura de Gélio, que casou com uma velha rica (9.80); ou da desgraça de Matão, que para sobreviver tem comércio carnal com mulheres, contra os seus hábitos (6.33). E, dadas as disposições legais sobre o adultério – a restauração por parte de Domiciano da lex Iulia de adulteriis coercendis promulgada por Augusto –, certas mulheres optam por casar com sucessivos amantes (6.7; 6.22). Na Roma Antiga, Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 42
  • 42. 32. Vide SULLIVAN, 1991, p. 161. 33. Outros exemplos de caçadores de heranças: 2.76; 4.56; 4.70; 6.62; 6.63; 7.66; 8.44; 9.48; 9.82; 9.88; 11.55; 11.83 34. Etão considera como maldição ter de jantar em casa três dias seguidos (12.77). 43 o homem tinha só direito ao uso do dote enquanto durava o casamento, e tinha de o devolver em caso de divórcio32 . Por isso, Proculeia descobre que é mais lucrativo abandonar o marido por causa da despesa com a brilhante carreira dele (10.41). Por outro lado, a morte de esposas ricas é uma fonte de rendimento (2.65; 5.37; 10.43), pelo que estas podem tornar-se vítimas de envenenamentos (4.69.3; 12.91). Os velhos sem herdeiros são também vítimas naturais. Os caçadores de heranças enchem-nos de presentes na esperança de verem o seu nome no testamento (8.27; 9.8; 11.44; 11.67). É a síndrome de Eumolpo do romance de Petrônio (Sat. 116- 141), que, ao saber que, em Crotona, só existiam heredipetae, se faz passar por velho rico para conseguir benesses. O próprio Marcial se inclui no grupo: troça do seu próprio desejo frustrado de ser incluído em um testamento (5.39; 9.48; 10.98; 12.73)33 , ou de receber uma herança (10.97). 1.1.2. Espórtula e jantares Outro tópico fértil são os convites para jantar e o parasitismo que existia nesse contexto, como no caso de Sélio (2.11; 2.14; 2.27), de Vacerra (11.77) ou Menógenes (12.82), que procuram por todos os meios receber um convite. Era sinal de certo êxito social ter muitos convites34 , pelo que alguns fingem ser bastante requestados (5.47; 12.19). No entanto, também ficaria bem socialmente não mostrar demasiado entusiasmo ou até certa contrariedade em jantar fora, como sugere a denúncia por parte do poeta de atitudes desdenhosas que soam a hipocrisia (2.69; 6.51). A verdade é que ser convidado para jantar era uma forma de subsistência, como demonstra o caso de Filão: jurava que nunca jantava em casa, porque, quando não tinha convite, não jantava (5.47).Alguns aproveitam para fazer provisões, roubando comida nos banquetes (3.23; 7.20). Esse topos está, pois, relacionado com as obrigações padronizadas entre patrono e cliente.A provisão de comida é uma das formas primitivas de suporte dos dependentes, que depois se transforma em dádiva de dinheiro: a sportula.A “clientela” era uma verdadeira instituição em Roma e, ao mesmo tempo, uma forma socialmente digna de um poeta pobre ganhar a vida. Uma vez que o trabalho remunerado era considerado pouco acima de compor- tamento servil, quem não tivesse meios de subsistência e quisesse manter o status Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 43
  • 43. 35. Vide MARACHE, 1961, p. 38-53; MOHLER, 1967, p. 241;AUGELLO, 1968-1969, p. 259-260, e n. 156. 36. Vide ROBERT, 2004a, 48 e ss. 37. Sob tal designação se podem incluir os presentes oferecidos durante o jantar, como sugere Plínio (Ep. 2.14.4), e nesse caso é comparável com os xenia ou apophoreta; ou pode ser dada durante os banhos (Marcial 8.42), ou durante a salutatio (Juvenal 1.95-102; 120-122;127-128): vide MOHLER, 1967, p. 251 e ss. 38. Cf. 1.80: “Cano morreu depois de receber a sportula: foi esta que o matou... porque foi só uma”. 39. VideAUGELLO, 1968-1969, p. 263. 40. A abolição temporária da sportula é um dos temas recorrentes nesse livro: 3.7, 3.14, 3.30, 3.60.Vide SULLIVAN, 1991, p. 31. 44 tinha de optar pelo recurso à “caridade” de um patrono poderoso. E Marcial envereda relutantemente por esta prática, que juridicamente tem uma origem servil35 . É que o papel do cliente sofreu transformações desde a República: nessa fase, o vínculo entre patronus e cliens consistia em uma relação moral bilateral baseada na fides; o cliente encontrava proteção no patrono e este precisava do cliente, inclusive para apoio armado. Com o advento do Império, a ligação moral deixa de existir, porque o imperador é politicamente o único verdadeiro patrono, pelo que resta só a ligação econômica36 . Como o patrono nada tem a esperar dos seus clientes, a relação paternalista torna-se uma espécie de vassalagem para garantir a sobrevivência e ritualiza-se. Há dois momentos fortes do dia em que se efetua o encontro ritual entre os patronos e os clientes: a salutatio matinal e a cena, se o cliente tiver a sorte de ser convidado. Em troca, o cliente recebe a tal quantia que lhe permite sobreviver na urbe (3.30), sem que isso constitua um estigma social. Entretanto, à exceção dos dias especiais, como o aniversário do patrono, em que a quantia pode aumentar consideravelmente (10.27), o valor da sportula37 é escasso (3.7; 6.88; 8.42); pelo que o estafado cliente se vê obrigado a correr, para saudar vários patronos.38 Domiciano, na sua tentativa de apagar de Roma os traços neronianos39 , emitiu legislação para transformar a sportula, cuja tarifa remontava a Nero (um cesto de comida ou dinheiro), na dádiva de um jantar. Contudo, a nova disposição não agradava nem aos patronos, que ficavam vinculados a ter à mesa os seus dependentes, nem aos clientes, que necessitavam de dinheiro vivo.Tal circunstância é repetidamente tratada no Livro III dos “Epigramas”.Afastado de Roma, em Forum Cornelii (Ímola), com a justificativa de não poder suportar mais o aborrecimento da toga (3.4.6), o poeta dá voz ao descontentamento gerado pela abolição da sportula40 . Em vez de um jantar, o poeta sugere a atribuição de um salário (3.7). No entanto, a disposição de Domiciano acaba por ser esquecida e a anterior prática retomada, como mostra o fato de o poeta continuar a referir a espórtula nos livros seguintes. Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 44
  • 44. 41. 10.56; 10.82. 42. Vide PIMENTEL, 1993, p. 249-261; BRANDÃO, 1998, p. 151-172. 43. Vide HARRIS, 2011, p. 27-54. 45 O poeta acusa repetidamente a humilhação e o cansaço resultante dessa veneração – o termo que usa é colere em 2.55 – dos patronos. Queixa-se do fato de o cliente, ao romper da aurora, ter de se dirigir aos átrios dos patronos para a salutatio matutina, a tremer (9.92.5); da obrigação de ir vestido a rigor, isto é, de toga, peça sobre a qual Marcial faz passar uma ideia de desconforto (3.4.6; 12.18.6.); da humilhação de ter de saudar o patrono como dominus et rex, títulos tirânicos que o poeta se mostra renitente em usar (1.112; 2.68.2; 10.10.5), mas o tratamento pelo nome próprio em vez de por dominus pode implicar a perda da espórtula (6.88). Nessa pirâmide social cujo vértice é o imperador, os patronos do poeta são, por sua vez, clientes de outros mais poderosos, situação a qual Marcial não deixa de ironizar (2.18; 2.32). E no Livro X confessa-se exausto41 ; o que deseja é levar uma vida frugal e simples, longe do afã citadino (10.47), e dormir sossegado (10.74). Irá encontrar essa paz, pelo menos inicialmente, com o regresso a Bílbilis, a sua terra natal42 . Em suma, sob o disfarce da caricatura, a abordagem é moral e pessimista. Homens, provavelmente arruinados, que, com os seus bens, perderam todo o amor próprio: Sélio desfaz-se em bajulações e, esgotado, corre a todos os locais em busca de quem o convide, para, ao fim da tarde, deambular só por um pórtico vazio (2.14; 2.11); Menógenes suja-se de pó ao devolver a bola a um poderoso, para receber um convite para jantar (12.82); Tuca come avidamente e até já se mostra feliz quando lhe chamam alarve (12.41); Ceciliano não se inibe de roubar comida no banquete, porque a antecipação da fome de amanhã já lhe é mais dolorosa que a vergonha de hoje (2.37; 3.23); Santra chega ao quarto cansado com toda a comida que conseguiu palmar, para no dia seguinte a ir vender (7.20); Filão, mais orgulhoso, não admite, mas passa fome quando não o convidam (5.47); Cota, com a desculpa de furtos, vem descalço e traz um séquito que é só um escravo (12.87); Etão necessita tanto de um convite para jantar, que a sua falta é uma maldição dos deuses (12.77). É degradante à vista o cortejo de trastes de Vacerra, que está a mudar de casa com a mãe e a irmã (12.32). De qualquer modo, é preciso ter em conta que se trata de tradição literária: certos retratos de indigência extrema (como 1.92) podem ser mais uma forma de glosar o mote do que expressão da realidade43 . A crueldade da troça em alguns dos quadros sugere que a pobreza é resultado de culpa. Pode-se descortinar o topos da retórica contra a suntuosidade, presente na Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 45
  • 45. 44. Cf. 3.62; 7.98; 11.66. 45. O nome aparece em vários epigramas desde o início da carreira de Marcial: 2.16; 2.19; 2.42; 2.58; 2.81; 3.29; 3.82; 4.77; 5.79; 6.91; 11.12; 11.30; 11.37; 11.54; 11.85; 11.92. Marcial ter-se-á inspirado em um crítico homérico do século IV a.C., alcunhado de Homeromástix, odiado pela sua maledicência. Para o estudo das influências literárias e históricas sofridas por Marcial na criação desta personagem, vide KAY, 1985, p. 92-93. 46. 3.82. cf. Petrônio, 32-78.Vide LEÃO, 2004, p. 191-208. 47. Cf. 3.29: possui os anéis distintivos desta classe. 48. Cf. 2.81; Filipe (6.84) e Afro (6.77) têm uma atitude semelhante de ostentação. crítica aos esbanjadores44 e em vocabulário relacionado com luxuria. Porém, intensifica-se a censura quando se trata de mostrar o que não se é. Com efeito, em Marcial está patente o empobrecimento de um grupo em especial: uma classe nobre com a qual o poeta convive e na qual se inclui. São pessoas de gostos requintados e, por isso, dispendiosos.Assim, nesse século I d.C., ao lado de libertos riquíssimos, surge uma ordem equestre arruinada. Entre os cavaleiros, há quem, apesar do aparato, tenha mesmo de empenhar o anel distintivo da sua classe (2.57). São pessoas que, habituadas a privar com a nata da nobreza romana, continuam a cultivar o bom gosto. Contudo, para um homem de gostos requintados e empo- brecido, como Mamurra, uma visita às montras transforma-se em um verdadeiro suplício (9.59; 10.80). Quem se habituou a viver com sumptuosidade, dificilmente se habituará a uma vida simples, como demonstra a referida anedota sobre a morte de Apício. Em contraste, o liberto Sirisco herdou uma fortuna do patrono, mas desperdiça-a com gostos plebeus (5.70). 1.1.3. Novo-riquismo Como seria de esperar, em uma sociedade que tem escravos, os libertos e novos- -ricos são bastante atacados pelo poeta, sobretudo aqueles que procuram ostentar insolentemente as riquezas ou disfarçar os sinais da antiga escravatura (2.29). Zoilo é quem melhor encarna o liberto e novo-rico sumptuoso, luxurioso, cultor de falsas aparências, imbuído de mau-caráter e de mau gosto45 . As suas extravagâncias durante o jantar recordam as deTrimalquião no “Satyricon” de Petrônio46 . Usurpou o status de cavaleiro47 , e a ostentação frívola que marca a sua vida evidencia-se pelo tamanho do anel (11.37), pela excessiva mudança de roupa durante a cena (5.79), pelo esplendor das colchas do leito (2.16), pela envergadura da liteira48 . Contudo, afinal, tudo assenta em bases falsas. Marcial diz que ele é ladrão e escravo fugitivo (11.54) e um filho de ninguém, dada a sua origem servil, jogando com o fato de, à face da lei romana, um escravo não ter pais nem filhos (11.12). Marcial mostra-se preocupado com o status das ordens sociais e as tentativas de usurpação 46 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 46
  • 46. 49. Cf. 5.8; 5.25; 5.35; 5.38; 5.41.Vide MOURITSEN, 2011, p. 91, 106 e n. 190. por parte dos libertos, como denotam os reiterados ataques contra os que violavam a lex Roscia theatralis, que impunha uma distribuição dos lugares no teatro de acordo com a posição e a hierarquia social49 . Os libertos imperiais são exceção à regra, porque se trata da intocável majestade do imperador, cujos mores eles espelham (9.79); mas também porque eles estão na sua correta posição social: ao serviço do seu patrono, com as funções que este neles delega. Por outro lado, Augusto usara escravos e libertos da sua casa para desempenhar tarefas administrativas no Império, por não achar apropriado empregar cidadãos livres em tais serviços. No entanto, com Cláudio os libertos atingiram um poder invejável à frente dos gabinetes da administração imperial. Na crise de 68-69, tanto Otão como Vitélio empregaram cavaleiros nestas funções; e Domiciano distribuiu-as entre cavaleiros e libertos (Suet. Dom. 7.2), apesar de, na “Historia augusta”, se dizer que Adriano foi o primeiro a substituir os libertos por cavaleiros nas secretarias de ab epistolis e a libellis. O biógrafo Suetônio, membro da classe equestre, desempenhou esses cargos nos principados de Trajano e Adriano. 1.1.4. Profissões com saída Objeto da atenção do poeta são as profissões, ou o modo como são desem- penhadas. Segundo Marcial, a advocacia era uma profissão rentável: recebiam muitos presentes, sobretudo pela festa das Saturnais (4.46). E auferiam pagamento (2.13; 8.16; 8.17). Já naquela época os litígios se arrastavam (7.65). É uma alternativa respeitável que os amigos aconselham ao poeta, e que este declina: usar os dotes retóricos para ganhar a vida como patronus ou causidicus. Entre os nomes provavelmente fictícios desses conselheiros (1.17; 2.30; 5.16), figura um aparente- mente real: o do célebre retórico Quintiliano (2.90). No entanto, em 3.38, Marcial apresenta a advocacia – a par da poesia – como geradora de fracos rendimentos, sobretudo se o praticante é um homem honesto. O poeta ataca tanto os advogados que se calam (1.97; 8.7), como os palavrosos, que se apoiam em vãos floreados retóricos: é bem conhecido o epigrama sobre o causídico que disserta sobre momentos dramáticos e grandes heróis da história romana, quando em causa está o simples furto de três cabrinhas (6.19). A Ceciliano, que pedira o tempo de sete clepsidras para falar, como tem muita sede, o poeta aconselha-o a beber da clepsidra (6.35). Há ainda aqueles que mudam de profissão, como Cípero, um antigo padeiro 47 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 47
  • 47. 50. Vide HOWELL, 2009, p. 74-75; HANSON, 2010, p. 492-496. A referência aos Romanos como bárbaros reproduz o ponto de vista grego, recorrente por exemplo em Plauto (Asin. 11; Poen. 598; Tin. 19). 51. Marcial, jogando com o sentido do cínico, diz que um determinado seguidor dessa escola, de tão sórdido que está, parece um verdadeiro cão (4.53). que agora defende causas (8.16), ou um advogado que se tornou agricultor e empobreceu (12.72). Outra profissão ligada ao uso da voz e que envolvia muito dinheiro era a dos leiloeiros: Marcial aconselha-a como forma de singrar na vida, e, surpreenden- temente, associa-a à de arquiteto no rendimento (5.56); constata que, quando se trata de casamento, um leiloeiro é melhor partido que pretores, tribunos, advogados ou poetas (6.8). Por outro lado, expõe a falta de senso de alguns que, por causa de tiradas infelizes no uso do seu proverbial espírito, acabam por prejudicar a venda (1.85; 6.66). A crítica aos médicos é comum na comédia, no epigrama satírico e mesmo em epitáfios. Em Roma, os médicos eram sobretudo gregos, e abundava a incompe- tência e falta de controle sobre a atividade. Plínio, oVelho, na sua “História natural” (29.1-29), produz uma longa diatribe contra os médicos, apontando a sua avidez por dinheiro, adultérios, assassínios por más práticas. Segundo esse autor, Catão, o Antigo advertira o filho de que os gregos teriam jurado matar todos os “bárbaros” por meio da medicina e de que cobravam pagamento para se tornarem mais convincentes (Nat. 29.14)50 .A troça centra-se, pois, nos médicos cujo desempenho tem o efeito contrário do esperado, com resultados muitas vezes fatais – um certo indivíduo antes era médico, agora é cangalheiro; mas o que faz como cangalheiro, já o fazia como médico (1.47 e 1.30, ver 8.74); ou com o agravamento dos sintomas – um dia o poeta estava adoentado, veio um médico com os seus cem discípulos e o poeta foi apalpado por cem mãos gélidas do Aquilão: se antes não tinha febre, agora tem (5.9.).A hipérbole no tratamento do tema leva o poeta a sugerir que se pode morrer por ter sonhado com o médico (6.53). No entanto, há a ideia de que os clínicos podem matar deliberadamente por razões passionais (6.31) ou incapacitar permanentemente (11.74), e que seduzem as pacientes (11.71). Outro motivo comum é de que aproveitam para roubar os doentes (9.96). O hábito de fazer a barba existiu em Roma sobretudo desde o século III a.C.Adriano (117-138 d.C.) restaurou a moda de usar barba, pelo que muitos o imitaram.Antes esse costume era típico dos filósofos51 . Era comum os romanos ricos terem barbeiros entre os seus escravos. Marcial compôs um belo epitáfio do seu escravo barbeiro 48 Coleção_tradições_II:Layout 1 29/10/13 11:04 Page 48