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MITOS
RAIZES
UNIVERSAIS
SILO
ÍNDICE
I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS. Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab). Gilgamesh e a criação de
seu duplo- O Bosque dos Cedros- O Touro Celeste, a morte de Enkidu e a descida aos infernos- O
Dilúvio Universal- O regresso.
II. MITOS ASSÍRIOS-BABILÔNICOS. Enuma Elish (Poema da Criação). O caos original- Os
deuses e Marduk- A guerra dos deuses- A criação do mundo- A criação do ser humano.
III. MITOS EGÍPCIOS. Ptah e a criação- Morte e ressurreição de Osíris- Horus, a vingança divina- O
antimito de Amenófis IV.
IV. MITOS HEBRAICOS. A árvore da ciência e a árvore da vida - Abraão e a obediência- O homem
que lutou contra um Deus- Moisés e a Lei Divina.
V. MITOS CHINESES. O vazio central- O dragão e a Fênix.
VI. MITOS INDIANOS. Fogo, Tormenta e Exaltação- O tempo e os deuses- As formas da beleza e o
horror.
VII. MITOS PERSAS. O clamor de Zarathustra- Luz e NÉVOA TINIEBLA- Os anjos e o Salvador.
Fim do mundo, ressurreição e juízo.
VIII. MITOS GRECO-ROMANOS. A luta das gerações dos imortais- Prometeu e o despertar dos
mortais- Demeter e Persefona. Morte e ressurreição da natureza- Dionísio, a loucura divina.
IX. MITOS NÓRDICOS. Yggdrasil, a árvore do mundo- Thor, as valkirias e a Valhala. O guerreiro e
seu céu- Ragnarök, o destino dos deuses.
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X. MITOS AMERICANOS. Popol Vuh (livro do povo Quiché). A história perdida- As gerações
humanas: o homem animal, o homem de barro, o homem de madeira e o homem de milho- Destruição
do falso Principal Guacamayo nas mãos de Mestre Mago e Bruxinho- O jogo de bola nos infernos:
descida, morte, ressurreição e ascensão de Mestre Mago e Bruxinho.
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INTRODUÇÃO
Há muito tempo existe o afã por definir o mito, a lenda e a fábula; por separar o conto e
o relato pouco provável da descrição verdadeira. Foi realizado um grande trabalho
para demonstrar que os mitos são a roupagem simbólica de verdades fundamentais, ou
melhor, transposições de forças cósmicas a seres com intenção. Foi dito que se trata de
eumerismos nos que personagens vagamente históricos se elevam à categoria de heróis
ou deuses. Chegou-se a teorizar para mostrar as realidades objetivas que contém na
deformação da razão. Foi investigado para descobrir, nessas projeções, o conflito
psicológico profundo. E, assim, essa enorme tarefa resultou útil porque nos ajudou a
compreender, quase em laboratório, como os mitos novos lutam com os antigos para
conquistar seu espaço. Não deve se entender isto que estamos dizendo como um
sarcasmo no que rebaixamos as teorias a nível de mito. Pelo contrário, quando as
teorias se soltam do âmbito científico e começam a voar sem demonstração e, desse
modo são tomadas como a própria verdade que se aceita sem crítica, é porque aquelas
se instalaram a nível de crença social e cobraram a força plástica da imagem tão
importante como referência e tão decisiva para orientar condutas. E nesta nova imagem
que se irrompe podemos ver os avatares de antigos mitos remoçados pela modificação
da paisagem, não somente geográfica, senão social, à qual se deve dar resposta por
exigência dos tempos.
O sistema de tensões vitais ao que está submetido um povo se traduz como imagem,
mas isto não basta para explicá-lo inteiramente, a menos que se pense em termos de
linha simples e resposta. É necessário compreender que em toda cultura, grupo e
indivíduo, existe uma memória, uma acumulação histórica em base à qual se interpreta
o mundo em que se vive. Essa interpretação é o que configura para nós a paisagem que,
percebida como externa, está presa pelas tensões vitais que ocorrem nesse momento
histórico ou que ocorreram há muito tempo e que, residualmente, formam parte do
esquema interpretativo da realidade presente. Quando descobrimos as tensões
históricas básicas de um determinado povo nos aproximamos da compreensão de seus
ideais, apreensões e esperanças que não estão em seus horizontes como frias idéias
senão como imagens dinâmicas que empurram condutas em uma ou outra direção. E,
desde já, determinadas idéias serão aceitas com maior facilidade que outras na medida
em que se relacionem mais estreitamente com a paisagem em questão. Essas idéias
serão experimentadas com todo o sabor de compromisso e verdade que têm o amor e o
ódio, porque seu registro interno é indubitável para quem o padece mesmo quando não
esteja objetivamente justificado.
Exemplificando. Os temores de alguns povos se traduziram em imagens de um futuro
mítico em que tudo vai se acabar: cairão os deuses, os céus, o arco-íris e as
construções; o ar se tornará irrespirável e as águas poluídas; a grande árvore do mundo,
responsável pelo equilíbrio universal morrerá e com ela os animais e os seres humanos.
Em momentos críticos, esses povos traduziram suas tensões por meio de inquietantes
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imagens de contaminação e solapamento. Mas isso mesmo os impulsionou em seus
melhores momentos a 'construir' com solidez em numerosos campos. Outros povos se
formaram no penoso registro da exclusão e do abandono de paraísos perdidos, mas isto
também os empurrou a melhorar e a se conhecer incansavelmente para chegar ao
centro do saber. Alguns povos parecem marcados pela culpa de terem matado seus
deuses e outros se sentem afetados por uma visão polifacética e mutante, mas isto
levou uns a se redimirem pela ação e a outros à busca reflexiva de uma verdade
permanente e transcendente. Com isto não estamos querendo transmitir estereotipias —
porque estas observações fragmentárias não explicam a extraordinária riqueza do
comportamento humano, queremos ampliar mais a visão que habitualmente se tem dos
mitos e da função psicossocial que cumprem.
Mas hoje estão desaparecendo as culturas isoladas e, portanto, seus patrimônios
míticos. Percebem-se modificações profundas nos membros de todas as comunidades
da terra que recebem o impacto não somente da informação e da tecnologia, senão
também de usos, costumes, valores, imagens e condutas sem importar muito o local de
origem. A este fluxo não poderão subtrair-se as angústias, as esperanças e as propostas
de solução que tomando expressão em teoria ou fórmulas mais ou menos científicas,
levam em seu seio mitos antigos e desconhecidos para o cidadão do mundo atual.
Aproximar-se dos grandes mitos foi, para nós, reavaliar os povos desde um ponto de
vista um tanto especial, desde a ótica da compreensão de suas crenças básicas. Não
tocamos neste trabalho nos belos contos e lendas que descrevem os afãs dos
semideuses e dos mortais extraordinários. Nos circunscrevemos aos mitos nos quais o
núcleo é ocupado pelos deuses ainda que a humanidade desempenhe nesta trama um
papel importante. No possível, não misturamos questões de culto, considerando que já
se deixou de confundir a religião prática e cotidiana com as imagens plásticas da
mitologia poética. Por outra parte, procuramos tomar como referência os textos
originais de cada mitologia, pretensão que nos acarretou numerosos problemas. Com
isso, e a modo de menção, digamos que a riqueza mitológica das civilizações Cretense
e Micênica foi reduzida em um genérico capítulo de “Mitos greco-romanos”
precisamente por não podermos contar com textos originais daquelas culturas. Outro
tanto aconteceu com os mitos africanos, oceânicos e, de algum modo, americanos. De
todas as maneiras, os avanços que estão realizando antropólogos e especialistas em
mitos comparados nos faz pensar em um futuro trabalho que tenha por base seus
descobrimentos.
O título deste livro, 'Mitos Raízes Universais', exige algumas aclarações. Consideramos
'raiz' a todo o mito que, passado de povo a povo, conservou uma certa perdularidade
em seu argumento central, ainda quando se tenham produzido modificações através do
tempo nos nomes dos personagens considerados, em seus atributos e na paisagem em
que se insere a ação. O argumento central, aquele que designamos como 'núcleo de
ideação', também experimenta mudanças, mas numa velocidade relativamente mais
lenta que a dos elementos que podemos tomar como acessórios. Desta maneira, ao não
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ter em conta a variação do sistema de representação secundário, tampouco
convertemos em decisiva a localização do mito no momento preciso em que este
surgiu. Uma pretensão oposta à mencionada não poderia ser sustentada já que a origem
do mito não pode filiar-se a um momento exato. Em todo caso, são os documentos e os
distintos vestígios históricos que dão conta da existência do mito e que se encaixam
dentro de um calendário mais ou menos preciso.
Por outra parte, a construção do mito não parece responder a um só autor, senão a
sucessivas gerações de autores e de comentaristas que vão se baseando em um material
por demais instável e dinâmico. As descobertas que atualmente são acrescentadas pela
arqueologia, pela antropologia e pela filosofia —atuando como auxiliares da mitologia
comparada— nos mostram que certos mitos, que considerávamos como originários de
uma certa cultura, na realidade pertencem a culturas anteriores ou a culturas
contemporâneas àquela recebendo assim suas influências.
De acordo ao comentado, não colocamos interesse especial em precisar os mitos em
ordem cronológica e sim em relação à importância que parecem ter adquirido em uma
cultura determinada, ainda quando esta seja posterior a outra, na qual o mesmo núcleo
de idéias já estava atuando. Fica claro, por outra parte, que o presente trabalho não
pretende ser nem uma recompilação, nem uma comparação, nem uma classificação
com base nas categorias prefixadas, senão uma colocação em evidência de núcleos de
idéias perdulares e atuantes em distintas latitudes e momentos históricos. A isto se
poderá objetar que a transformação dos contextos culturais faz variar também as
expressões e os significados que se dão em seu seio. Mas precisamente por isso é que
pegamos mitos que cobraram maior importância em uma cultura e momento, ainda que
tenham existido em outras oportunidades mas sem cumprir com uma função
psicossocial relevante.
Quanto a certos mitos que, aparecendo em pontos aparentemente desconectados
guardam entre si importantes similaridades, se terá que revisar a fundo se tal
desconexão histórica efetivamente ocorreu. Neste campo, os avanços são muito rápidos
e hoje ninguém pode afirmar que, por exemplo, as culturas da América são totalmente
alheias às da Ásia. Poderá se dizer que quando ocorreram as migrações através do
estreito de Bering, há mais de vinte mil anos, os povos da Ásia não contavam com
mitos desenvolvidos e que estes somente tomaram caráter quando as tribos se
assentaram. Mas, em todo caso, a situação pré-mítica foi parecida nos povos que
estamos mencionando e lá talvez se encontrem pautas que mesmo se desenvolvendo
separadamente em suas diversas situações culturais tenham mantido alguns padrões
comuns. Seja como for, esta discussão não está terminada e é prematuro aderir a
qualquer uma das hipóteses hoje em confronto. No que se refere a nós pouco importa a
originalidade do mito e sim, como observamos mais acima, a importância que este tem
em uma determinada cultura.
Colocamos em letra diferente o texto original do texto de nossa autoria para que possa
ser apreciado em toda sua riqueza. Em qualquer obra de reconstrução histórica (e esta,
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de algum modo é), se distingue claramente o original do agregado posteriormente e
acreditamos que o expediente da letra ressaltada cumpre perfeitamente com esta
função. Enquanto que em nosso texto se trata de conservar um certo estilo comum com
o original, em nada perturba a obra, ou melhor, acreditamos que facilita sua
compreensão. A citação de fontes consultadas e as notas que acompanham o texto
servem à mesma idéia.
Mendoza (Argentina) 17/12/90
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Este é o rapto daqueles seres não compreendidos em sua natureza íntima, grandes
poderes que fizeram todo o conhecido e o ainda desconhecido.
Esta é a rapsódia da natureza externa dos deuses, da ação vista e cantada por humanos
que puderam se situar no mirante do luminoso.
Isto é o que apareceu como sinal fixado em tempo eterno capaz de alterar a ordem e as
leis e a pobre candura (CORDURA). Aquilo que os mortais desejaram que os deuses
fizessem; aquilo que os deuses falaram através dos homens.
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I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS
Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab)
Gilgamesh e a criação de seu duplo.
Aquele que tudo soube e que entendeu profundamente coisas. Aquele que tudo viu e que tudo
ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi tua glória. Grande é tua glória divino
Gilgamesh !
Ele construiu os muros de Uruk. Empreendeu uma grande viagem e soube tudo o que ocorreu antes
do Diluvio. Ao regressar gravou todas as suas proezas em um papiro. Porque os grandes deuses o
criaram, dois terços de seu corpo são de deus e um terço de homem.
Depois de ter lutado contra todos os países, regressou a Uruk, sua pátria. Mas os homens
murmuraram com ódio porque Gilgamesh tomava o melhor da juventude para suas façanhas e
governava ferreamente. Por isso, as pessoas foram levar suas queixas aos deuses e os deuses a Anu.
Anu elevou o reclamo a Aruru e disse estas palavras: 1 “Tu Aruru, que criastes a humanidade, cria
agora uma cópia de Gilgamesh: este homem em seu devido tempo o encontrará e enquanto lutem
entre si Uruk viverá em paz”. A deusa Aruru, ao escutar este rogo, imaginou em si mesma uma
imagem do deus Anu, umedeceu suas mãos, amassou um bloco de argila, modelou seus contornos e
formou o valente Enkidu, o herói augusto, o campeão do deus Ninurta. Todo o seu corpo é veludo,
seus cabelos estão penteados como os de uma mulher, são espessos como a trigo dos campos. 2 Está
vestido como o deus Sumuqan e nada sabe dos homens nem das terras. Como as gazelas se nutrem
de ervas, como o gado bebe água nas fontes. Sim, ele gosta de beber com os rebanhos.”
Com o tempo, um caçador encontrou a Enkidu e seu rosto se contraiu de temor. Se dirigiu a seu pai e
lhe contou as proezas que viu este homem selvagem realizar. O velho, então, enviou seu filho a Uruk
para pedir ajuda a Gilgamesh.
Quando Gilgamesh escutou a história da boca do caçador, recomendou a este que buscasse uma bela
servente do templo, uma filha da alegria, e levando-a com ele, a colocasse ao alcance do intruso.
“Deste modo, quando ele vir a moça, ficara aprisionado dela e esquecerá seus animais e seus animais
não o reconhecerão'. Assim que o rei falou, o caçador procedeu segundo as indicações chegando em
três dias ao lugar do encontro. Passaram um dia e mais outro até que os animais chegaram à fonte
para beber água. Atrás deles apareceu o intruso que viu a servente sentada. Mas, quando esta se
levantou e foi rápido até ele, Enkidu ficou encantado por sua beleza. Sete dias esteve com ela, até que
decidiu ir com seu gado porém as gazelas e o rebanho do deserto se separaram dele. Enkidu não pode
correr, mas sua inteligência se abriu, pensamentos de homem pesaram em seu coração.
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Voltou a sentar-se ao lado da mulher e esta lhe disse: 'Por que vives com o gado como um selvagem?
Vem, te guiarei a Uruk ao santuário de Anu e a deusa Ishtar, até Gilgamesh a quem ninguém vence'.
Disto Enkidu gostou porque seu coração procurava um amigo e por isso deixou que a jovem o guiasse
até os férteis pastos onde se encontram os estábulos e os pastores. Mas o leite das bestas selvagens
ele o mamava e eis que aqui que lhe oferecem pão e vinho. Despedaçou o pão, o olhou, o examinou,
mas Enkidu não soube o que fazer com ele... A escrava sagrada tomou as palavra e disse a Enkidu:
'Come pão, oh, Enkidu !, é fonte de vida; bebe o vinho, é o costume do país'. Então, Enkidu comeu o
pão, comeu até saciar-se, bebeu o vinho, bebeu sete vezes... Um barbeiro raspou os pelos de seu
corpo e Enkidu se untou com óleos, como fazem os homens, e vestiu roupas de homem e se mostrou
como um jovem esposo. Tomou sua arma, atacou os leões e assim permitiu que os pastores
repousassem à noite. Mas um homem chegou até Enkidu, abriu a boca e disse: '... Para Gilgamesh,
rei de Uruk a bem cercada, se arrastam as pessoas ao cultivo ! As mulheres impostas pela sorte o
homem fecunda, e depois, a morte! Por vontade dos deuses tal é o decreto: desde o seio materno à
morte é nosso destino”. Enkidu enfurecido prometeu mudar a ordem das coisas.
Mas como Gilgamesh havia visto em sonhos o selvagem e havia compreendido que em combate
haveriam de se entender, quando seu oponente lhe interrompeu o passo, este se jogou com a força do
touro bravo. As pessoas se aglutinaram contemplando a feroz luta e celebraram como Enkidu se
aparentava com o rei. Ante a casa da Assembléia lutaram. As portas converteram em farpas e
demoliram os muros, e quando o rei logrou arrochar Enkidu ao solo este se apaziguou abalando
Gilgamesh. Por isto, ambos se abraçaram selando sua amizade.
O bosque dos cedros.
Gilgamesh teve um sonho e Enkidu disse: “Este é o significado de teu sonho. O pai dos deuses te deu
o cetro, tal é teu destino, mas não a imortalidade. Te deu poder para submeter e para liderar... não
abuses deste poder. Sê justo com teus servidores, sê justo ante Samash'. O rei Gilgamesh pensou
então no país da vida, o rei Gilgamesh recordou o bosque dos Cedros. E disse a Enkidu: 'Não gravei
meu nome nas estrelas, como meu destino decreta, irei portando ao país onde se corta o cedro, me
farei um nome lá onde estão escritos os de homens gloriosos”.
Enkidu entristeceu porque ele, como filho da montanha, conhecia os caminhos que levavam ao
bosque. Pensou: “Dez mil léguas há desde o centro do bosque em qualquer direção de sua entrada. No
coração vive Jumbaba (Cujo nome significa 'Enormidade'). Ele sopra o vento de fogo e seu grito é a
tempestade'. Mas Gilgamesh havia decidido ir ao bosque para acabar com o mal do mundo, o mal de
Jumbaba. E, decidido como estava, Enkidu se preparou para guiá-lo, não sem antes explicar os
perigos. “Um grande guerreiro que nunca dorme - disse - , guarda as entradas. Só os deuses são
imortais e o homem não pode lograr a imortalidade, não pode lutar contra Jumbaba”.
Gilgamesh se encomendou a Samash, ao deus-sol. A ele pediu ajuda na empreitada. E Gilgamesh
recordou os corpos dos homens que havia visto flutuar no rio ao olhar dos muros de Uruk. Os corpos
de inimigos e amigos, de conhecidos e desconhecidos. Então intuiu seu próprio fim e levando ao
templos dos cabritos, um branco sem mancha e outro marronzinho, disse à Samash: “Na cidade o
homem morre, oprimido o coração o homem morre, não pode albergar esperança em seu coração...
Ai ! largas jornadas levam até a mansão de Jumbaba. Se esta empreitada não pode ser levada até o
fim por que, oh Samash, encheste meu coração com o impaciente desejo de realizá-la ?” ... e Samash
aceitou a oferenda de suas lágrimas. Samash, o compassivo, lhe concedeu sua graça. Celebrou para
Gilgamesh fortes alianças com todos os filhos da mesma mãe, que reuniu nas cavernas da montanha.
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E logo os amigos deram ordens aos artesãos para que forjassem suas armas e os mestres trouxeram os
dardos e as espadas, os arcos e os machados. As armas de cada um, pesavam dez vezes trinta shekels
e a armadura outros noventa. Mas os heróis partiram e, em um dia caminharam cinqüenta léguas. Em
três dias caminharam tanto quanto fazem os viajantes em um mês e três semanas. Ainda antes de
chegarem a porta do bosque tiveram que cruzar sete montanhas. Feito o caminho, ali a encontraram,
de setenta cotovelos de altura e quarenta e dois de largura. Assim era a deslumbrante porta que não
destruíram por sua beleza. Foi Enkidu quem avançou empurrando sozinho com suas mãos até abri-la
de par em par. Logo desceram para chegar até o pé da verde montanha.
Imóveis contemplaram a montanha de cedros, mansão dos deuses. Ali os arbustos cobriam a ladeira.
Quarenta horas se extasiaram olhando o bosque e vendo o magnífico caminho, o que Jumbaba
percorria para chegar a sua morada...
Entardeceu e Gilgamesh cavou um poço. Espalhando farinha pediu sonhos benéficos a montanha.
Sentado sobre seus calcanhares, a cabeça sobre seus joelhos, Gilgamesh sonhou e Enkidu interpretou
os sonhos auspiciosos. Na noite seguinte, Gilgamesh pediu sonhos favoráveis para Enkidu, mas os
sonhos que teve na montanha foram omissos. Depois Gilgamesh não despertou e Enkidu com esforço
conseguiu colocá-lo em pé. Coberto com suas armaduras cavalgaram a terra como se levassem leves
vestimentas. Chegaram até o imenso cedro e, então, as mãos de Gilgamesh segurando o machado o
derrubaram ! De longe Jumbaba os viu e gritou enfurecido: “Quem é este que violou meu bosque e
cortou meu cedro?” . Gilgamesh respondeu: “Não voltarei à cidade não, não deixarei o caminho que
me trouxe ao país da vida sem combater com este homem, se pertence a raça humana, sem combater
com este deus, se é um deus... A barca da morte não navegará para mim, não há no mundo tecido do
qual cortar um sudário para mim, nem meu povo conhecerá a desolação, nem meu lar verá arder a
pira fúnebre, nem o fogo queimará minha casa”.
Jumbaba saiu de sua mansão e cravou o olho da morte em Gilgamesh. Mas o deus-sol Samash,
levantou conta Jumbaba terríveis furacões: o ciclone, a turbulência . Os oito ventos tempestuosos se
arrocharam contra Jumbaba de maneira que este não pode avançar nem retroceder enquanto
Gilgamesh e Enkidu cortavam os cedros para entrar em seus domínios. Por isso, Jumbaba apresentou-
se manso e temeroso ante os heróis. Ele prometeu as melhores honras e Gilgamesh estava por
concordar em abandonar suas armas quando Enkidu interrompeu: 'Não lhe dê ouvidos! Não, meu
amigo, o mal fala por sua boca. Deve morrer nas nossas mãos. E graças a advertência de seu amigo,
Gilgamesh se recobrou. Tomando o machado e desembainhando. a espada feriu Jumbaba no pescoço,
enquanto Enkidu fazia outro tanto, até que na terceira vez Jumbaba caiu e morto ficou. Silencioso e
morto. Então lhe separaram a cabeça do pescoço e neste instante se desatou o caos porque aquele que
jazia era guardião do Bosque dos Cedros. Enkidu talhou as árvores do bosque e arrancou as raízes até
as margens do Eufrates E, depois, colocando a cabeça do vencido em um sudário mostrou-a aos
deuses. Quando Enlil, senhor da tormenta viu o corpo sem vida de Jumbaba, enfurecido retirou dos
profanadores o poder e a glória que haviam sido deles, e os deu ao leão, ao bárbaro, ao deserto.
Gilgamesh lavou seu corpo e jogou longe suas vestes ensangüentada, vestindo outras sem mácula.
Quando em sua cabeça brilhou a coroa real, a deusa Ishtar colocou nele seus olhos. Mas Gilgamesh a
rechaçou porque ela havia perdido todos os seus esposos e os havia reduzido a servidão mais radical
por meio do amor. Assim disse Gilgamesh: “És uma ruína que não dá ao homem qualquer abrigo
contra o mau tempo, és uma porta traseira que não resiste a tempestade, és um palácio saqueado
pelos heróis, és uma emboscada que dissimula suas armadilhas, és uma ferida inflamada que queima
a quem a tem, és um pote cheio de água que inunda seu portador, és um pedaço de pedra branda que
desmorona as muralhas, és um amuleto incapaz de proteger em país inimigo, és uma sandália que faz
tropeçar a seu dono no caminho !”.
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O Touro celeste, a morte de Enkidu e a descida aos infernos.
Furiosa a princesa Ishtar se dirigiu a seu pai Anu e ameaçou romper as portas do inferno para fazer
sair dele um exército de mortos mais numeroso que o dos vivos. Assim vociferou: 'Se não atiras sobre
Gilgamesh o Touro Celeste, eu farei isto' Anu concordou com ela, a mudança da fertilidade dos
campos por sete anos. E, de imediato criou o Touro Celeste que caiu sobre a terra. Na primeira
investida, a besta matou trezentos homens. Na segunda outras centenas caíram. Na terceira carregou
contra Enkidu mas este a reteve pelos cornos.
O Touro Celeste espumava pela boca e golpeava Enkidu furiosamente com seu rabo. Então Enkidu
saltou sobre a besta e a derrubou quão larga era, retorcendo-lhe o rabo. E gritou: 'Gilgamesh, meu
amigo, prometemos deixar nomes duradouros. Crava-lhe agora tua espada entre a nuca e os cornos'. E
Gilgamesh cravou sua espada entre a nuca e os cornos do Touro Celeste e o matou... Depois,
arrancaram do Touro Celeste o coração, o oferendaram ao deus Samash... Então, a deusa Ishtar
ascendeu a muralha de Uruk, a bem cercada, subiu ao mais alto da muralha e proferiu uma maldição:
'Maldito seja Gilgamesh, pois me burlou matando o Touro Celeste!' Olhou Enkidu estas palavras de
Ishtar e arrancando as partes do Touro Celeste as atirou ao rosto.
Quando chegou o dia, Enkidu teve um sonho. Nele estavam os deuses reunidos em conselho: Anu,
Enlil, Samash e Ea. Eles discutiram pela morte de Jumbaba e do Touro Celeste e decretaram que, dos
dois amigos, Enkidu devia morrer. Logo, do sonho despertou e contou o visto. Voltou então a sonhar e
isto é o que relatou:
' A flauta e a harpa caíram na Grande mansão; Gilgamesh meteu sua mão nela, não pode alcança-las,
meteu seu pé, não pode alcançá-las. Então Gilgamesh se sentou frente ao palácio dos deuses do
mundo subterrâneo, derramou lágrimas e seu rosto ficou amarelo. Oh, minha flauta, oh, minha harpa!
Minha flauta cujo poder era irresistível ! Minha flauta, quem as trará dos infernos ? Seu servidor
Enkidu lhe disse: Meu senhor, por que choras ? Por que teu coração está triste ? Hoje irei buscar tua
flauta nos infernos... Pode Enkidu voltar dos infernos!... (Então) o pai Ea se dirigiu ao valente herói
Nergal: 'Abre já o fosso que comunica com os infernos ! Que o espírito de Enkidu volte dos infernos e
possa falar com seu irmão'... O espírito de Enkidu como um sopro saiu dos infernos e Gilgamesh e
Enkidu falaram. - Diga-me meu amigo, diga-me meu amigo, diga-me a lei do mundo subterrâneo, tu a
conheces... - Aquele que caiu na batalha, o vistes ? - O vi, seu pai e sua mãe lhe mantêm a cabeça alta
e sua esposa o abraça. - Aquele cujo cadáver caiu abandonado no vale, o viste ? - O vi, seu espírito
não tem descanso nos infernos. - Aquele cujo espírito não há ninguém que lhe faça uma oração, o tem
visto ? - O vi, come os restos das panelas e os resíduos dos pratos que se tiram da rua'.(3)
Enkidu adoeceu e morreu. Gilgamesh disse então: 'Sofrer. A vida não tem outro sentido que morrer !
Morrerei eu como Enkidu ? Hei de buscar a Utnapishtim a quem chamam 'O longínquo' para que
explique como é que chegou a imortal. Primeiramente manifestou meu luto, logo vestirei a pele do
leão e, invocando a Sin me porei a caminho'.
Gilgamesh havia percorrido todos os caminhos até chegar as montanhas, até as mesmas portas do sol.
Ali se deteve frente aos homens escorpiões, os terríveis guardiães das portas do sol. Perguntou por
Utnapishtim: 'Desejo interrogá-lo sobre a morte e a vida'. Então os homems-escorpião trataram de
dissuadi-lo da empreitada. 'Ninguém que entre na montanha vê a luz', disseram. Mas Gilgamesh pediu
que lhe abrissem a porta da montanha e assim se fez por fim. Caminhando horas e horas duplas na
profunda obscuridade viu à distância uma claridade a ao chegar a ela, saiu de frente ao Sol. E ali
estava o jardim dos deuses. Seus olhos viram uma árvore e para ela se dirigiu: de seus ramos de
lapislázuli, pendia como espesso fruto o rubi.
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Vestido com a pele de leão e comendo carne de animais, Gilgamesh vagava pelo jardim sem saber em
que direção ir, por isto, quando Samash o viu apiedado lhe disse: 'Quando os deuses engendraram ao
homem, reservaram para si a imortalidade. A vida que busca nunca a encontrarás'(4). Mas Gilgamesh
chegou a praia, até o barqueiro de O Longínquo. Fatos além mar dividiram a terra, mas Utnapishtim
que os viu chegar pediu explicações ao acompanhante de seu barqueiro. Gilgamesh deu seu nome e
explicou o sentido da travessia.
O dilúvio universal.
E disse Utnapishtim: ' Te revelarei um grande segredo. Houve uma cidade antiga chamada Surupak,
as margens do Eufrates. Era rica e soberana. Tudo ali se multiplicava, os bens e os seres humanos
cresciam em abundância. Mas Enlil molestado pelo clamor, disse aos deuses que não era possível
conciliar o sonho e exortou a por fim ao excesso desencadeando o dilúvio. Ea, então, em um sonho
me revelou o desígnio de Enlil. 'Abandona tua casa e salva tua vida, constrói uma barca que terá que
ser telhada e de igual largura que comprimento. Logo, levarás a barca a semente de todo ser vivo. Se
te perguntam por teu trabalho dirás que decidistes viver no golfo. Meus pequenos passavam graxa e
os grandes faziam tudo o que era necessário. No quinto dia terminei a quilha e a armação. Em suas
costelas com firmeza assegurei a entabladura. O piso, quatro vezes por dez áreas tinha por medida,
cada lado do piso, formava um quadrado que media doze vezes dez cotovelos de comprimento, cada
parede, desde o piso até o teto, media doze vezes dez cotovelos de altura. Abaixo ao teto, construi seis
coberturas, com o piso, sete e dividi cada uma em nove partes com delgadas paredes... Trabalho cheio
de dificuldades foi colocá-lo, pesado foi carregar os troncos de cima para baixo, até que rodando
sobre eles, o barco estava submergido em seus dois terços. No sétimo dia o barco estava completo e
carregado com todo o necessário. Minha família, parentes e artesãos carreguei na barca e logo fiz
entrar aos animais domésticos e selvagens. Quando chegou a hora, esta tarde, Enlil enviou ao
Cavaleiro da Tormenta. Entrei na barca e a fechei com graxa e asfalto e como tudo estava pronto dei o
timão ao barqueiro Puzur-Amurri. Negral arrancou as comportas das águas inferiores e trovejando, os
deuses, arrasaram campos e montanhas. Os juizes do inferno, os Anunnaki, lançaram suas teias e se
fez da noite o dia. Dia após dia, aumentava a tempestade e parecia cobrar novo ímpeto de si mesma.
Ao sétimo dia o dilúvio se deteve e o mar ficou calmo. Abri a escotilha e o sol me pegou em cheio.
Em vão, procurei, tudo era mar. Chorei pelos homens e os seres vivos novamente convertidos em
barro. Somente descobri uma montanha distante umas quatorze léguas. E lá, no monte Nisir, a barca
se deteve. O monte Nisir a impediu de mover-se... Quando chegou o sétimo dia soltei uma pomba e a
pomba se distanciou, mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela, voltou. Então soltei
uma andorinha, e a andorinha se distanciou mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela,
voltou. Então soltei um corvo, e o corvo se distanciou, viu que as águas haviam baixado, e comeu,
revoou , grasnou e não regressou. Logo os deuses se reuniram em conselho e recriminaram a Enlil o
castigo tão duro que havia dado as criaturas, assim é, que Enlil veio até a barca e fazendo ajoelhar a
mim e a minha mulher , tocou nossas frentes ao tempo que dizia: 'Nos tempos passados Utnapishtim
era mortal, mas desde agora será um deus como nós e viverá longe, na boca dos rios, e sua mulher
para sempre o acompanhará'. Enquanto a ti Gilgamesh, porque os deuses haviam de outorgar-se a
imortalidade ?'.
O regresso.
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Utnapishtim submeteu Gilgamesh a uma prova. Este devia tratar de não dormir durante seis dias e
sete noites. Mas enquanto o herói se sentou sobre seus calcanhares uma neblina descontrolada da lã
do sono caiu sobre ele. 'Olha-o, olha quem busca a imortalidade !', assim disse O Longínquo a sua
mulher. Despertando, Gilgamesh se queixou amargamente pelo fracasso: 'Onde irei ? A morte está em
todos os meus caminhos'. Utnapishtim, contrariado, ordenou ao barqueiro que regressasse com o
homem mas não sem piedade por ele decretou que suas vestimentas jamais envelheceram, assim
novamente em sua pátria haveria de luzir esplêndido aos olhos mortais. Ao despedir-se O Longínquo
sussurrou: 'Há no fundo das águas uma planta, o lício espinhoso é similar pois fere como os espinhos
de um roseiral, as mãos podes desgarrar: mas se tuas mãos se apoderam dela e a conservam, serás
imortal !'.
Gilgamesh entrou nas águas atando a seus pés pesadas pedras. Se apoderou da planta e empreendeu o
regresso enquanto disse a si mesmo: 'Com ela darei de comer ao meu povo e eu também haverei de
recuperar minha juventude'. Logo, caminhou horas e horas dentro da obscuridade da montanha até
franquear a porta do mundo. Depois destes trabalhos viu uma fonte e se banhou, mas uma serpente
saída das profundezas arrebatou a planta e submergiu-se fora do alcance de Gilgamesh.
Assim voltou o mortal com as mãos vazias, com o coração vazio. Assim voltou a Uruk a bem cercada.
O destino de Gilgamesh, que Enlil decretou, se cumpriu... Pan para Neti o guardião da Porta. Pan para
Ningizzida o deus serpente, senhor da Arvore da Vida. Também para Dumuzi, o jovem pastor que a
terra fertilizara.(5)
Aquele que tudo soube e que entendeu o fundo das coisas. Aquele que tudo o fez ver e tudo o
ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi sua glória !
Ele, que construiu os muros de Uruk, que empreendeu uma grande viagem e que soube tudo o que
ocorreu antes do Dilúvio, ao regressar gravou suas proezas em um rastro de estrela.
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II.MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS
Enuma Elish (Poema da Criação) 1
O caos Original
Quando no alto o céu nome não tinha e no baixo a terra não havia sido mencionada, do Abismo e
da Impetuosidade misturaram-se as águas . Nem os deuses, nem os mangues, nem os juncais existiam.
Nesse caos foram engendradas duas serpentes que por muito tempo cresceram de tamanho dando lugar
aos horizontes marinhos e terrestres. Elas separaram os espaços, elas foram os limites do céu e da terra.
Desses limites nasceram os grandes deuses que foram se agrupando em distintas partes do que era o
mundo. E estas divindades continuaram engendrando e perturbando, assim, os grandes formadores do
caos original.
Então, o abismal Apsu se dirigiu a sua esposa Tiamat, mãe das águas oceânicas e lhe disse: “O
comportamento dos deuses é insuportável, seu folguedo não me deixa dormir, eles se alvoroçam por
conta própria sendo que nós não lhes marcamos nenhum destino”.
Os deuses e Marduk
Assim falou Apsu a Tiamat, a resplandecente. De tal modo isto foi dito que Tiamat, enfurecida,
pôs-se a gritar: “Vamos destruir esses revoltosos, assim poderemos dormir”. E ela estava nervosa e se
agitava em voz alta. Foi desse modo que um dos deuses, Ea, compreendendo o desígnio destrutivo
estendeu sobre as águas um encantamento. E com ele deixou profundamente adormecido Apsu (este era
seu desejo), prendendo-o com correntes. E, finalmente, o matou: desmembrou seu corpo e sobre ele
estabeleceu sua moradia. Ali viveu Ea com sua esposa Damkina até que dessa união nasceu Marduk.
O coração de Ea exultou ao ver a perfeição de seu filho, coroada por sua dupla cabeça divina. A
voz da criança ardia em labaredas enquanto seus quatro olhos e seus quatro ouvidos esquadrinhavam
todas as coisas. Seu corpo enorme e seus membros incompreensíveis eram banhados por um fulgor que
ficava extremamente forte quando os relâmpagos se juntavam sobre ele.
A guerra dos deuses
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Enquanto Marduk crescia e ordenava o mundo, alguns deuses se aproximaram de Tiamat para
recriminá-la pela sua falta de mérito, dizendo-lhe: “Mataram teu consorte e ficaste calada e agora
tampouco nós podemos descansar. Tu te converterás em nossa força vingadora e nós caminharemos
ao seu lado e iremos para o combate”. Assim grunhiam e se amontoavam ao redor de Tiamat até que
ela, matutando sem parar, afinal decidiu moldar armas para seus deuses. Irada, criou os monstros-
serpentes de garras venenosas, os monstros-tempestade, os homens-escorpiões, os leões-demônios, os
centauros e os dragões voadores. Onze monstros insuperáveis criou Tiamat e depois, dentre seus
deuses, promoveu Qingu e o designou chefe de seu exército. 2
Ela exaltou Qingu e o constitui chefe deles para que ele fosse primeiro adiante de seu exército, para
dirigir a tropa, para levar as armas e desencadear o ataque levando a direção suprema no combate.
Ela confiou em suas mãos dele quando o fez sentar na assembléia: “Eu pronunciei o juramento em teu
favor, te exaltando na assembléia dos deuses e te dei todo o poder para dirigir todos os deuses. Tu és
magnífico, meu único esposo és tu! Que os Anunnaki exaltem teu nome acima de todos eles!”
Ela lhe deu as Tábuas do Destino, e colocou-as a seus pés: E quanto a ti, teu mandato não mudará, as
palavras da tua boca permanecerão!” 3
Mas Ea, ao conhecer novamente os perversos desígnios, procurou a ajuda dos outros deuses e
proclamou: “Tiamat, nossa criadora, nos aborrece. Colocou do seu lado, e contra nós, os terríveis
Anunnaki. Está confrontando a metade dos deuses com a outra metade, como poderemos fazê-la
desistir? Peço que os Igigi se reunam em conselho e deliberem”. E, desse modo, as várias gerações de
Igigi se reuniram mas ninguém pôde resolver a questão. Com o passar do tempo, e nem emissários
nem valentes puderam mudar os desígnios de Tiamat, o ancião Anshar se levantou pedindo por
Marduk. Então Ea foi a seu filho e rogou-lhe que ajudasse os deuses. Mas Marduk respondeu que, em
tal situação, tinha de ser elevado a chefe. Marduk falou isso e foi até o conselho.
(Os deuses)...comeram pão festivo e beberam vinho; encheram seus copos com o doce licor. Quando
tomaram a forte bebida seus corpos se empanturraram; começaram a gritar quando seus corações se
exaltaram e a Marduk, o seu vingador, outorgaram o destino.
Preparam para ele um trono principesco; na presença de seus pais, sentou-se para presidir...
“...Oh, Marduk, tu és realmente nosso vingador! A soberania sobre todo o universo te outorgamos.
Quando sentares na assembléia tua palavra será suprema. Tuas armas não fracassarão; esmagará teus
inimigos! Oh senhor, protege a vida dos que confiam em ti; mas deite fora a vida do deus que concebeu o
mal!”
Colocaram no meio deles uma veste e se dirigiram a Marduk, o preferido deles: “Senhor, teu destino é
o primeiro entre os deuses! Decida arruinar ou criar, diga uma palavra e assim será: abra a boca e a
veste desaparecerá, abra de novo e a veste voltará intacta!” (com efeito), falou e a veste desapareceu,
falou de novo e a veste restaurada ficou. Quando os deuses, seus pais, viram a eficácia da sua palavra se
alegraram e renderam-lhe homenagens: “Marduk é rei!”. Entregaram-lhe o cetro, o trono e a flecha; e
deram-lhe a arma sem igual que expulsa os inimigos: “Vai e tira a vida de Tiamat. Que os ventos levem o
sangue dela a lugares secretos!” 4
O senhor fez um arco e o pendurou do lado de seu coldre. Fez uma rede para apanhar Tiamat.
Levantou a maça e colocou na sua frente o relâmpago, ao mesmo tempo em que seu corpo encheu-se de
fogo. Depois deteve os ventos para que nada de Tiamat pudesse escapar, mas criou os furacões e fez a
tormenta diluvial surgir enquanto subiu no carro-tempestade. Nele ungiu a quadriga de nomes terríficos e
como o raio foi de encontro a Tiamat. Este sustinha em sua mão uma planta que jorrava veneno, mas o
Senhor se aproximou para esquadrinhar o seu interior e captar as intenções dos Anunnaki e de Qingu. 5
-Será que és tão importante para que te eleves acima de mim como supremo deus? -Berrou raivosa
Tiamat.
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-Tu te exaltaste grandemente e elevaste Qingu como poder ilegítimo. Tu odeias teus filhos e queres o
mal a eles. Agora levante-se e vamos ao combate! -Respondeu Marduk, ao mesmo tempo que os deuses
afiavam suas armas.
Tiamat exorcizou e recitou suas fórmulas e os deuses saíram para a batalha. Então, o Senhor jogou sua
rede e a terrível Tiamat abriu sua enorme boca. Neste momento, ele soltou os furacões que penetraram
nela e lançou a flecha que atravessou seu ventre. Depois se encarregou de suas obscuras entranhas até
deixá-la sem vida. O horrível exército debandou e na confusão as afiadas armas foram destroçadas. Presos
na rede, os prisioneiro foram arrojados às cavernas dos espaços subterrâneos. O soberbo Qingu foi
despojado das Tábuas do Destino, que não lhe pertenciam, e encarcerado junto com os Anunnaki. Assim,
as onze criaturas que Tiamat havia criado, foram convertidas em estátuas para que nunca fosse esquecido
o triunfo de Marduk.
A criação do mundo
Após reforçar a prisão de seus inimigos e de selar e colocar em seu peito as Tábuas do Destino, o
Senhor voltou ao corpo de Tiamat. Sem piedade esmagou seu crânio com a maça, separou os condutos de
seu sangue, que o furacão levou a regiões secretas e, ao ver a carne monstruosa concebeu idéias artísticas.
Por isso cortou ao longo do cadáver como se ele fosse um peixe, levantando uma de suas partes até o alto
do céu. Prendeu-a lá e colocou um guardião para que impedisse a saída das águas. Depois, atravessando
os espaços, inspecionou as regiões e medindo o abismo estabeleceu sua moradia nele. Assim criou o céu e
a terra e estabeleceu seus limites. Então, construiu casas para os deuses iluminando-as com estrelas.
Depois de criar o ano, determinou que nele houvesse doze meses por meio das figuras 6. A estas
dividiu até definir os dias. Nos lados reforçou os ferrolhos da esquerda e da direita, colocando entre
ambos a zênite. Destacou para Samash 7 a divisão do dia e da noite e colocou a brilhante estrela de seu
arco 8 à vista de todos. Encarregou Nebiru 9 da divisão das duas seções celeste ao norte e ao sul. Em
meio a escuridão encarregou Sin de iluminar, ordenando os dias e as noites.
“Para cada mês, sem cessar, darás a forma de uma coroa. No início do mês, para brilhar sobre o
país, tu mostrarás os cornos para determinar seis dias; no sétimo dia serás meia coroa. No dia quatorze
colocar-te-ás de frente ao sol. No meio do mês, quando o sol te alcançar na base dos céus, diminui tua
coroa e faça minguar a luz. E, quando desapareceres, aproxima-te do curso do sol. No dia vinte e nove tu
te colocarás novamente em oposição ao sol”. 10
Depois, voltando à Tiamat, pegou sua saliva e com ela formou as nuvens. Com sua cabeça produziu os
montes e de seus olhos fez fluir o Tigre e o Eufrates. E, finalmente, de suas tetas criou as grandes
montanhas e perfurou os mananciais para que os poços dessem água.
Por fim, Marduk solidificou o solo levantando sua luxuosa morada e seu templo, oferecendo-os aos
deuses para que lá se alojassem quando participassem das assembléias nas que deviam determinar os
destinos do mundo. Conseqüentemente, a estas construções chamou “Babilônia”, que significa a casa dos
grandes deuses”. 11
A criação do ser humano.
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Ao finalizar sua obra, o Senhor foi exaltado pelos deuses e, então, como reconhecimento a eles, disse:
“Vou amassar meu sangue e formar ossos. Vou fazer com que surja um homem...que se encarregue do
culto dos deuses para que possam se satisfazer! Eu astutamente modificarei os caminhos dos deuses.
Ainda que sejam igualmente reverenciados, se dividirão em dois grupos”. 12
Ea lhe respondeu, dirigindo-lhe uma palavra para contar-lhe um plano que aliviaria os deuses: “que
um de seus irmãos seja entregue; somente ele perecerá para que a humanidade possa ser modelada. Que
os grandes deuses estejam aqui na assembléia; que o culpado seja entregado para que eles possam
permanecer”. 13
Marduk fez com que os prisioneiros Anunnaki fossem trazidos e lhes perguntou, sob juramento, do
culpado pela insurreição prometendo a vida para quem declarasse a verdade. Então os deuses acusaram
Qingu.
“Foi Qingu quem planejou a insurreição e fez com que Tiamat se rebelasse e deu início à batalha”.
Amarraram-no, colocando-o diante de Ea. Cobraram-lhe sua culpa e retiraram seu sangue. Com seu
sangue modelaram a humanidade. Ea obrigou que o culto fosse aceito e deixou os deuses livres. Depois
Ea, o sábio, criou a humanidade; impôs a ela o culto aos deuses. Esta obra foi incompreensível. 14
E assim, o Senhor deixou os deuses livres e os dividiu em trezentos para cima e trezentos para baixo e
os constituiu como guardiões do mundo. Agradecidos, os Anunnaki edificaram um santuário e o elevaram
acima do Esagila e, depois de terem levantado uma torre com escadarias, nela estabeleceram uma nova
morada para Marduk. 15
Quando os grandes deuses se reuniram e exaltaram o destino de Marduk, eles se inclinaram para
baixo e pronunciaram entre eles uma maldição jurando pela água e pelo azeite entregar suas vidas. 16
“...que os ‘cabeças negras’ esperem em seus deuses. Quanto a nós, ainda que se o possa chamar (a
Marduk) de muitos nomes, ele é nosso deus! Proclamemos, pois, seus cinqüenta nomes”. 17
E as estrelas brilharam e todos os seres criados pelos deuses se alegraram. Também a humanidade se
reconheceu no Senhor. Que exista, por isso, memória de tudo o que aconteceu. Que os filhos aprendam de
seus pais este ensinamento. Que os sábios pesquisem cuidadosamente o sentido d’O canto de Marduk
que venceu Tiamat e conseguiu o reinado. 18
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III. MITOS EGÍPCIOS
Ptah e a criação 1
Havia somente um mar infinito, sem vida e em absoluto silêncio. Então chegou Ptah com as formas
dos abismos e as distâncias, das solidões e das forças. Por isso Ptah via e ouvia, olhava e percebia —
em seu coração, a existência. Mas o que percebia tinha idealizado antes em seu interior. Assim, tomou
a forma de Atum e, devorando sua própria semente, pariu o vento e a umidade, os quais expulsou de
sua boca criando Nut, o céu, e Geb, a terra. Atum, o não existente, foi uma manifestação de Ptah.
Assim, inexistentes foram antes de Ptah as nove formas fundamentais e o universo com todos os seres
que Ptah concebeu dentro de si e que, somente com sua palavra, colocou na existência. Depois de ter
criado tudo de sua boca, descansou. Por isto, até o final dos tempos, será invocado: Imenso, imenso
Ptah, espírito fecundador do mundo. 2
As formas dos deuses são formas de Ptah e, somente por conveniência humana, Ptah é adorado com
muitos nomes e seus nomes mudam e são esquecidos; novos deuses substituem os antigos mas Ptah
permanece alheio a isto. Ele criou o céu como condutor e a terra circundou de mar; também criou o
inferno para que os mortos se apaziguassem. Fixou rumo à Rá de horizonte a horizonte nos céus, e fez
com que o homem tivesse seu tempo e seu domínio; assim fez também com o faraó e com cada reino.
Rá, no seu caminho pelos céus, reformou o estabelecido e apaziguou os deuses que estavam
descontentes. Amava a criação e deu amor aos animais para que ficassem felizes, lutando contra o
caos que punha em perigo suas vidas. Deu limites para noite e para o dia e fixou as estações. Colocou
ritmo no Nilo para que regasse o território e depois se recolhesse para que todos pudessem viver do
fruto de suas águas. Ele subjugou as forças da obscuridade. Por ser quem trouxe a luz foi chamado de
Amon-Rá, por quem acreditou que Amon nasceu de um ovo que ao quebrar num estalo deu lugar às
estrelas e outras luminárias.
Mas a genealogia dos deuses começa em Atum que é o pai-mãe dos deuses. Ele engendrou a Shu (o
vento) e Tefnut (a umidade) e de ambos nasceram Nut ( o céu) e Geb (a terra). Estes irmãos se uniram
e procriaram Osíris, Seth, Neftis e Ísis. Esta é a Enéida divina da que deriva tudo.
Morte e ressurreição de Osíris
Os pais de Osíris viram que este era forte e bondoso; por isso o encarregaram de governar os
territórios férteis e cuidar da vida de plantas, animais e seres humanos. A seu irmão Seth deram os
amplos territórios desérticos e estrangeiros. Todo o selvagem e forte, os rebanhos e as feras foram
postos sob seu cuidado. Osíris e Ísis formavam o resplandecente casal do amor. Mas a névoa do
ciúme turvou Seth, por isso este confabulou e com a ajuda de setenta e dois membros de seu séquito
organizou uma festa para aniquilar seu irmão. Nessa noite chegaram os conjurados e Osíris. Seth
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presenteou os convidados com um magnífico sarcófago prometendo dá-lo a quem, ao ocupá-lo,
correspondessem melhor as medidas . Assim, uns e outros entravam e saíam até que chegou a vez de
Osíris fazer sua prova. De imediato baixaram a tampa e a lacraram. Osíris, aprisionado, foi levado até
o Nilo e lançado em suas águas com a intenção de que sumisse nas profundezas. Não obstante, o
sarcófago flutuou e chegando ao mar se afastou do Egito. Muito tempo passou até que um dia a caixa
chegou na Fenícia 3 e as ondas o depositaram ao pé de uma árvore. Esta cresceu até uma altura
gigantesca envolvendo com seu tronco o sarcófago. Admirado com a imponência do exemplar o rei
local fez com que o derrubassem e levou o grande tronco a seu palácio a fim de utilizá-lo como
coluna central. Entretanto, a Ísis foi revelado o ocorrido; por isso se dirigiu à Fenícia e, entrando no
serviço da rainha, pode estar próximo ao corpo de seu marido. Mas a rainha, compreendendo que sua
serva era Ísis entregou-lhe o tronco para que dispusesse dele conforme seu desejo. Ísis, partindo o
invólucro de madeira, extraiu o ataúde e regressou ao Egito com sua carga. Mas Seth já estava
inteirado do ocorrido e, temendo que Ísis reanimasse seu marido, roubou o corpo. Velozmente deu-se
a tarefa de despedaçá-lo em quatorze partes que depois espalhou por todas as terras. Por isso começou
a peregrinação de Ísis recolhendo pedaços do cadáver.
Já fazia tempo que a obscuridade reinava devido a morte de Osíris. Ninguém cuidava dos animais,
nem das plantações, nem dos homens. A disputa e a morte substituíram para sempre a concórdia.
Quando Ísis conseguiu recuperar as distintas partes do corpo, ela as uniu e, juntando-as fortemente
com bandagens realizou seus conjuros. 4 Depois construiu um forno enorme, uma pirâmide sagrada
5, e em suas profundezas colocou a múmia. Abraçada a ela insuflou-lhe seu alento. Fez entrar o ar
como o fole faz para aumentar o calor do fogo da vida...
Ele despertou, ele conheceu o sono mortal, ele quis manter seu verde rosto vegetal. 6 Quis conservar
a coroa branca e sua plumagem para recordar claramente quais eram suas terras do Nilo. 7 Também
recolheu o espanador e o cajado para separar e reconciliar, como fazem os pastores com seu bastão
curvo. 8 Mas, quando Osíris erguido viu a morte ao redor, deixou seu duplo, seu Ka 9, encarregando-
o de custodiar seu corpo para que ninguém voltasse a profaná-lo. Pegou a cruz da vida, a Ankh 10 da
ressurreição, e com ela em seu Ba 11 se dirigiu para salvar e proteger a todos os que sozinhos e
aterrorizados penetram o Amenti. 12 Por isso foi viver no oeste esperando os que, desvalidos, são
exilados do reino da vida. Graças ao seu sacrifício, a natureza ressurge cada vez e os seres humanos
criados pelo fole divino 13 são algo mais que barro animado. Desde então, invoca-se ao deus de
muitas maneiras e também desde então a exalação final é um canto de esperança.
'Bom Osíris! Envia Thot 14 para que nos guie até o sicômoro 15 sagrado, até a árvore da vida, até a
porta da Dama do Ocidente 16; para que nos faça eludir as quatorze mansões rodeadas de estupor e
angústia nas que os perversos sofrem terrífica condenação. Envia Thot, o íbis sábio, o escriba
infalível dos feitos humanos gravados no papiro de memória inapagável. Bom Osíris! Em ti espera a
ressurreição o vitorioso, depois do julgamento em que suas ações são pesadas por Anúbis, o chacal
justo. 17 Bom Osíris! Permite que nosso Ba aborde a barca celeste e separado do Ka deixe este como
custódia dos amuletos 18 em nossa tumba. Assim navegaremos para as regiões do esplendor do novo
dia."
Hórus, a vingança divina 19
Quando Ísis colaborou na ressurreição de Osíris, deu a luz ao filho de ambos. Pegou o recém nascido
e o ocultou nas cavernas do Nilo para protegê-lo da fúria de Seth, de Min 20 e dos atacantes do
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deserto. Ele foi a criança que surgiu radiante na flor de lótus e que, referenciado como falcão, pôs
seus olhos em todos os cantos do mundo. Ele foi, como Hórus Haredontes, o vingador de seu pai
quando chegou o tempo. Ele é Hórus, deus de todas as terras, filho do amor e da ressurreição.
O menino foi crescendo e sua mãe preparou-o para reivindicar os domínios dos que Seth havia se
apoderado porque a este correspondia por direito somente os desertos e os países estrangeiros, e no
entanto, se aventurava pelo Nilo. Osíris, em sua viagem ao oeste, às terras de Amenti que agora
dominava, deixou para Ísis o mandato de recuperar todo o Nilo para seu filho. Por isto, participaram
ante a assembléia da Enéida os disputantes. Hórus disse: "Um indigno fratricida usurpa os direitos
que meu pai deixara, apoiado numa força cega que os deuses não consagram..." Mas o discurso foi
interrompido por Seth que, num grito irado, desprezou o pedido proveniente de uma criança incapaz
de exercer tais demandas. Então, arrojando suas armas, em singular combate acometeram um contra o
outro e em sua luta rodaram montes e as águas espantadas saíram de seus cursos. Oitenta longos anos
durou tal disputa até que Seth arrancou os olhos de Hórus e este pulverizou as partes vitais de seu
adversário. Tanta fúria chegou a seu fim quando ambos desfalecentes caíram pelos solos. Então, Thot
curou as feridas e restabeleceu fragilmente a paz que o mundo, desatendido, reclamava.
Ante os deuses se pediu o veredicto. Ra (sempre ajudado por Seth em sua luta contra a mortal Apófis
21) inclinava a balança contra Hórus, enquanto Ísis com brio a seu filho defendia. Os deuses, afinal,
restabeleceram ao menino seus direitos, mas Ra, murmurando irritado, se afastou da assembléia.
Assim, os deuses foram divididos em número e poder sem que aquela discussão tivesse fim. Ísis,
então, com ardis, fez com que Seth pronunciasse um discurso no qual a razão ficava para aquele que
impedira o estrangeiro de ocupar os tronos, e por esse erro o próprio Seth ficou afastado das terras
que pedia. Então Ra exigiu uma nova prova para que nela se decidisse tudo.
Transformados em fortes hipopótamos recomeçaram a luta, mas Ísis desde a margem das águas
disparou um arpão que por erro foi acertar Hórus. Este, vociferando, se lançou sobre sua mãe, e lhe
arrancou a cabeça. 22 Os deuses deram como substituto uma cabeça de vaca a Ísis e ela, posta em
batalha novamente com seu arpão, deu fim a Seth, que, rugindo, saiu das águas. Assim é que uma
nova prova foi aconselhada., deixando o resto dos deuses alheios ao conflito. Em barcos de pedra
deviam ambos navegar. Seth talhou a sua em pedra e se afundou, mas Hórus somente na aparência
mostrou seu barco, conforme todos haviam concordado, porque em madeira coberta com estuque
apresentou seu engenho. Navegava Hórus reivindicando o triunfo, mas Seth como novo hipopótamo
fê-lo naufragar e, assim, somente na praia a merecida revanche conseguiu Hórus descarregando sua
maça sobre Seth prendendo seus membros. Assim o arrastou ao tribunal onde os deuses esperavam. E
somente ante a ameaça de matar Seth na frente de toda a assembléia, Ra preferiu dar razão a Hórus e
os deuses regozijados coroaram como senhor supremo o menino-falcão enquanto este pisava a
cervical do vencido, o qual, prometendo solene obediência, deu por terminada a contenda, afastando-
se para sempre a seus domínios nos desertos e entre os estrangeiros. Thot, sabiamente organizou as
novas responsabilidades, e Hórus ajudando Ra destruiu a desleal serpente Apófis que até esse
momento havia ameaçado seu radiante barco.
Com o sangue da antiga besta se tingem, às vezes, de vermelho os céus, e Ra, navegando em seu
barco celeste despeja a sucassão de ondas que vão para o ocidente.
O Antimito de Amenófis IV
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Houve um faraó bondoso e sábio que compreendeu a origem de Ptah e a mudança de seus nomes. Ele
restabeleceu o princípio quando viu que os homens oprimiam os homens fazendo com que
acreditassem que eram eles a voz dos deuses. Numa manhã viu como um vassalo era julgado no
templo por não pagar tributos aos sacerdotes, por não pagar aos deuses. Então, saiu de Tebas para On
24 e lá perguntou aos teólogos mais sábios qual era a verdadeira justiça. Esta foi a resposta:
"Amenófis, bom é teu fígado e as intenções que dele partem, e a verdade mais bondosa trará mal para
ti e para nosso povo. Como homem será o mais justo. Como rei será a perdição...mas teu exemplo não
será esquecido e muitos séculos depois de ti será reconhecido o que hoje será visto logo como
loucura." De volta de Tebas olhou para sua mulher como quem esquadrinha o amanhecer, viu sua
formosura e para ela e para seu povo cantou um belo hino. Nefertiti chorou pela piedade do poeta e
soube de sua glória e de seu trágico futuro. Ela, com a voz entrecortada, o aclamou como verdadeiro
filho do Sol. "Aknaton !", disse, e depois se calou. E, nesse momento, lançaram seu destino aceitando
o justo porém impossível. Assim foi a rebelião de Aknaton e o breve respiro dos filhos do Nilo,
quando um mundo com o peso de milênios cambaleou por um instante. Assim se retirou o poder
daqueles que faziam com que os deuses falassem suas próprias intenções.
Amenófis lançou-se na luta contra os funcionários e sacerdotes que dominavam o império. Os
senhores do Alto Nilo se aliaram com os sacerdotes acossados. O povo começou a ocupar posições
antes vedadas e foi resgatando para si o poder que deles fora retirado. Foram abertos os silos e
distribuídos os bens. Mas os inimigos do novo mundo pegaram em armas e fizeram o fantasma da
fome mostrar seu rosto. Morto Aknaton, todos seus feitos se tornaram conhecidos entre todos e se
tentou apagar esta memória para sempre. Não obstante, Áton conservou sua palavra.
Este foi o poema que iniciou o incêndio...25
Toda a terra se entrega ao trabalho...porque cada caminho se abre quando tu surges. Tu, que
procuras o germe fecundo para as mulheres, tu que fazes a semente nos homens, tu que fazes viver o
filho no ventre da mãe, que o acalma para que não chore; tu nutres o que há no ventre, dás o ar para
fazer com que viva tudo o que criaste. Quando rompe o ventre no dia do nascimento, tu lhe abres a
boca para que fale, lhe provê em suas necessidades. Quando o galo está no ovo, tu lhe dás o ar para
que viva. Tu lhe ajudas para que quebre o ovo, e saia e pie e caminhe sobre seus pés logo quando
nascido. Quantas são tuas obras ! Teu rosto é desconhecido, oh, deus único!, além do qual nenhum
existe. Tu criaste a terra com teu desejo quando estavas só; com os homens, as bestas e cada animal
selvagem, e tudo o que existe sobre a terra e caminha sobre seus pés, e tudo o que existe no céu e voa
com suas asas. E os países estrangeiros, Siris, Nubia e a terra do Egito; tu colocaste cada homem em
seu lugar, provieste suas necessidades; cada um com seu pão e é contada a duração de sua vida.
Suas línguas são diferentes em palavras, e também seus caracteres e suas peles; diferenciaste os
povos estrangeiros. E fizeste um Nilo no Duat e o levas onde queres para dar vida às pessoas, assim
como tu as criaste. Tu, senhor de todos eles, tu muito te empenhas por eles, oh, Áton do dia ! Grande
em dignidade ! E todos os países estrangeiros e longínquos, fazes tu que também eles vivam; puseste
um Nilo no céu que desce para eles e que faz ondas sobre os montes como um mar e banha seus
campos e suas comarcas. Que perfeitos são teus conselhos ! Oh, senhor da eternidade ! O Nilo do
Céu é teu dom para os estrangeiros e para todos os animais do deserto que caminham sobre seus
pés. Mas o Nilo vem do Duat para o Egito. E teus raios nutrem todas as plantas; quando tu
resplandeces elas vivem e crescem por ti. Tu fazes as estações para que se desenvolva todo o criado;
o inverno para refrescá-lo, o verão porque te agrada. Tu fizeste o céu afastado para resplandecer
nele e para ver tudo, tu, único, que resplandeces em tua forma de Áton vivo, surgido e luminoso,
distante e vizinho. Tu fazes para ti milhões de formas, tu, único; cidades, povos, campos, caminhos,
rios, cada olho te vê diante de si e tu és Áton do Dia. Quando te vais e cada olho por ti criado dorme
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seu olhar para não te ver só, e não se vê mais aquilo que criaste, tu estás todavia em meu coração...
A terra está em tua mão como tu a criaste. Se tu resplandeces ela vive, se te ocultas ela morre. Tu és
a própria duração da vida, e se vive de ti!
IV-MITOS HEBRAICOS
A árvore da Ciência e a árvore da Vida
E Jeová Deus fez nascer da terra toda árvore deliciosa para os olhos e boa para comer; também a
árvore da vida no meio do bosque, e a árvore da ciência do bem e do mal...E mandou Jeová Deus no
homem, dizendo: de toda árvore do bosque poderás comer; mas da árvore da ciência do bem e do
mal não comerás, porque o dia em que dela comeres, certamente morrerás. 1
E assim, Adão e Eva viviam no Éden, aquele lugar do qual saia um rio que regava todo o bosque.
Essa corrente se dividia em quatro braços. O nome do primeiro, o que rodeava a terra de Havila onde
havia ouro, era Pisão. O do segundo, que rodeava a terra de Cus, era Gihon. O do terceiro, escondido
e sombrio, que ia ao oriente da Assíria, era Hydekel e o quarto, de boas e rumorosas palavras, era o
Eufrates. Mas o Éden era completo em plantas e animais, por isso nossos pais foram ali os
nomeadores de todos os seres viventes. Como dar um nome para a árvore da vida e a da ciência do
bem e do mal sem saber delas, sem se aproximar delas? Por isto, sem temer a ciência, desejaram tê-la
e não souberam como. Assim, Eva, perturbada pela pergunta, dormiu à noite e dormindo sonhou e
sonhando viu a árvore da ciência que resplandecia na escuridão. Deste modo, Eva se aproximou da
árvore e, num instante, se apresentou diante dela uma inquietante figura alada. Seu porte era formoso,
mas na escuridão não conseguia distinguir seu rosto que, talvez, fosse de Adão. De seus cabelos
úmidos de orvalho saia uma fragrância que exaltava ao amor. E Eva queria vê-la. A figura, enquanto
contemplava a árvore, disse: "Ó formosa planta de abundante fruto! Não há quem se digne de aliviar-
te o peso e provar de sua doçura? Tão depreciada é a ciência? Será acaso a inveja ou alguma injusta
reserva o que nos proíbe de tocá-la? Proíba-o quem queira, ninguém me privará mais tempo dos bens
que ofereces; senão, por que estás aqui?". Assim disse, e não se deteve mais; e com mão temerária
arrancou o fruto e o provou. Um horror glacial paralisou Eva em seu sonho por causa da audácia da
figura alada, mas de imediato esta exclamou: "Ó fruto divino, doce por si só, e muito mais doce
colhido deste modo, estando proibido, ao que parece, como que reservado unicamente para os deuses.
E sendo, sem dúvida, capaz de converter em deuses os homens! E por que não haveriam de sê-lo? O
bem aumenta quanto mais se o comunica, e seu autor, longe de perdê-lo, adquirirá mais elogios.
Aproxime-se alegre criatura, bela e angelical Eva; compartilha desse fruto comigo!” 2. Eva despertou
sobressaltada e contou o sonho a seu companheiro. Adão, então, se perguntou: "Não fala Deus pelos
sonhos? Se de dia proíbe e à noite convida, à qual incitação haverei de responder já que não tenho
ciência suficiente? Haveremos de conseguir essa ciência para determinar nossos destinos, já que
Jeová Deus nos criou mas não disse como haveríamos de fazermos a nós mesmos." Então comunicou
a Eva seu plano para apoderar-se da fruta, para correr com ela chegando até a árvore da vida a fim de
ficarem imunes ao veneno da ciência. Depois esperaram que Jeová Deus passasse pelo bosque no ar
do dia e, em sua ausência, foram até a árvore. Então, ao ver uma serpente que entre os galhos
deslizava pelos frutos, pensaram que seu veneno era retirado desse alimento. Por isso duvidaram e, ao
duvidarem o tempo passou e Jeová Deus empreendeu seu regresso. Então acreditaram ouvir que a
serpente lhes sussurrava: "Não morrereis, mas bem sabe Deus que o dia em que comerdes esses
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frutos serão abertos vossos olhos e sereis como Deus conhecendo o bem e o mal". 3 Não mentia a
serpente, mas queria evitar que comessem da outra árvore, da árvore da vida. 4 Sendo já muito tarde,
Adão e Eva provaram do fruto e seus olhos se abriram, mas quando quiseram chegar até a árvore da
imortalidade, Jeová Deus lhes fechou a passagem, impedindo que alcançassem seu objetivo.
E disse Jeová Deus: Eis que aqui então o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; agora,
pois, que não estique sua mão, e também pegue da árvore da vida e coma, e viva para sempre. E o
tirou Jeová do bosque de Éden, para que lavrasse a terra da qual foi retirado. Lançou, então, para
fora o homem, e colocou a oriente do bosque do Éden querubins e uma espada em fogo que se movia
para todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida. 5
Adão e Eva se afastaram do Éden e sempre esteve seu olhar posto na direção do Paraíso do qual só o
esplendor noturno e a fumaça da espada de fogo denunciavam seu rastro. E já não voltaram, já não
puderam voltar, mas começaram a oferecer a Jeová Deus sacrifícios de fogo e fumaça porque
acreditavam que lhe agradava. E muitos povos, com o tempo, pensaram que os deuses gostavam dos
altos montes e dos vulcões porque estes são a ponte entre a terra e os céus. Assim, quando chegou o
momento, Jeová Deus lhes entregou do fogo, do monte, a Lei que os homens procuravam para
determinar seu Destino. 6
Abraão e a obediência
Muitos gerações passaram desde os primeiros pais até o Dilúvio. Depois dele, quando Jeová estendeu
no céu o arco-íris para selar seu pacto com os homens, continuou se reproduzindo toda semente. E
assim, em Ur de caldéia, Taré pegou seu filho Abrão e Sarai sua nora e foram todos ao Egito. Tempos
depois regressaram para Hebron. O ganho e os bens de Abrão cresceram, mas seu coração foi tomado
pela tristeza porque na sua idade não havia conseguido descendência.
Abrão era já velho quando fez com que sua serva Agar concebesse. Mas Agar e Sarai se tornaram
inimigas. Por isso Agar saiu para o deserto e levou com ela sua aflição. Então, um anjo apresentou-se
a ela e lhe disse: "Tens concebido e ao dar a luz chamarás teu filho de Ismael porque Jeová escutou
suas preces. Ismael, portanto, significará "Deus ouve" e sua descendência será numerosa e os povos
dele habitarão os desertos não adorando a Deus porque o olho vê, senão porque o escuta o ouvido.
Assim rogarão a Deus e Deus os ouvirá". Muito depois Sarai concebeu sendo já anciã, mas seus
descendentes e os de Agar mantiveram a disputa que começara entre suas mães mesmo sendo Abrão o
pai de todos e a todos quis ele como seus filhos.
Nesse momento, Deus disse: "Daqui por diante não te chamarás Abrão senão Abraão, porque serás
pai de uma multidão e Sarai será chamada Sara, como princesa de nações. Quanto ao filho teu e de
Sara, o chamarás Isaac."
Aconteceu depois destas coisas, com as que Deus provou Abraão, e lhe disse: Abraão. E ele lhe
respondeu: Eis-me aqui. E disse: Pega agora teu filho Isaac a quem amas, e vá a terra de Moriah e
oferece-o lá em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei. E Abraão levantou-se bem de
manhã. E selou seu asno, e trouxe consigo dois de seus servos e a Issac, seu filho; e cortou lenha
para o holocausto, e se levantou e foi ao lugar que Deus lhe disse. No terceiro dia, levantou Abraão
seus olhos e viu o lugar ao longe. Então Abraão disse a seus servos: Esperem-me aqui com o asno, e
eu e o menino iremos até ali e adoraremos e voltaremos até vocês...E pegou Abraão a lenha do
Holocausto e a colocou sobre Isaac, seu filho, e pegou em suas mãos o fogo e o facão; e foram
ambos juntos. Então falou Isaac a Abraão, seu pai, e disse: Meu pai. E ele respondeu: Eis-me aqui,
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meu filho. E ele lhe disse: Aqui está o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? E
respondeu Abraão: Deus proverá o cordeiro para o holocausto, filho meu. E juntos iam. E quando
chegaram ao lugar que Deus lhe havia dito, edificou ali Abraão um altar, e dispôs a lenha. E
estendeu Abraão sua mão e pegou o facão para degolar seu filho. Então o anjo de Jeová lhes deu
vozes do céu, e disse: Abraão, Abraão. E ele respondeu: eis-me aqui. E disse: não estenda sua mãos
sobre o menino, nem lhe faça nada; porque reconheço que temes a Deus, porquanto não recusaste
teu filho... Então, levantou Abraão seus olhos e olhou, e eis que às suas costas um carneiro estava
preso num arbusto pelos chifres; e Abraão foi e pegou o carneiro, e o ofereceu em holocausto no
lugar de seu filho. E deu Abraão o nome daquele lugar: Jeová proverá. 7
Talvez até sua morte, ficou presente no coração de Abraão a angústia da terrível prova. Por isso às
vezes se diz: "Jeová repudia o sacrifício humano e mais ainda do próprio filho. Se ordena o
holocausto não devo acatá-lo porque seria desobedecer sua proibição. Mas rejeitar o que ele manda é
pecar contra ele. Devo obedecer algo que meu deus repudia? Sim, se ele o exige. Mas minha torpe
razão atormentada luta, ademais, com um coração de um pobre ancião que ama aquele impossível que
Jeová lhe deu tardiamente. Não será esta prova a devolução do riso que contive quando me foi
anunciado que nasceria meu filho? 8 Não será o riso que ocultou Sara quando escutou tal vaticínio? 9
Por algum motivo Jeová indicou o nome de "Isaac” que significa "riso". Eu e minha mulher éramos já
velhos quando nos foi dito que teríamos este filho e não podíamos crer que isto fosse possível. Será
que Jeová brinca com suas criaturas como uma criança com areia? Ou será que, conhecendo sua ira e
seu castigo, não consideramos que ele também nos prove e nos ensine com a brincadeira divina? ".
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O homem que lutou contra um deus 11
E levantou-se naquela noite e pegou suas duas mulheres, e suas duas servas e seus onze filhos, e
passou o expediente de Jacó. Pegou-lhes, então, e colocou a eles e a tudo o que possuía para fora da
casa. Assim ficou Jacó sozinho; e lutou com ele um varão até que raiava a aurora. E quando o varão
viu que não podia com ele, tocou no lugar de encaixe de seu músculo, e desconjuntou o músculo de
Jacó enquanto com ele lutava. E disse: "Deixa-me porque raia a aurora. E Jacó lhe respondeu: Não
te deixarei se não me bendizeres. E o varão lhe disse: Qual é teu nome? E ele respondeu: Jacó. E o
varão lhe disse: Não mais será dito Jacó, senão Israel, 12 porque lutaste com Deus e com os homens
e venceste. Então Jacó lhe perguntou e disse: Declare-me agora teu nome. E o varão respondeu: Por
que me perguntas meu nome? E o bendisse aí. E chamou Jacó o nome daquele lugar de Peniel 13,
porque disse: Vi Deus cara a cara e foi liberta minha alma. E quando havia passado Peniel, saiu o
sol e mancava nas cadeiras. 14 Por isto não comem os filhos de Israel, até os dias de hoje, do seu
tendão que se contraiu, o qual está no encaixe do músculo, porque tocou Jacó esta parte de seu
músculo no tendão que se contraiu. 15
Moisés e a Lei Divina 16
Aconteceu que, passado já muito tempo, os filhos de Israel alojados no Egito foram crescendo em
número e poder. E apoiaram com júbilo as mudanças que introduziu um sábio faraó que quis a
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igualdade para todos os povos. E o bom rei morreu no meio da grande agitação que haviam
promovido seus inimigos. E os israelitas passaram de uma pacífica existência a serem perseguidos e
humilhados. Quando decidiram abandonar essas terras, o novo faraó os impediu. Também nesses anos
sombrios numerosos partidários do rei justo foram assassinados. Outros terminaram no cárcere e nas
pedreiras, condenados a terminar suas vidas ali. E aconteceu que entre esses últimos se encontrava um
jovem que quando criança fora resgatado das águas do Nilo pelas mulheres do bom faraó. Educado na
corte, aprendeu a língua de Israel ainda que sempre a tenha falado com dificuldade.
Moisés, o "resgatado das águas", fugiu das pedreiras e foi se refugiar nos campos, na casa de um
sacerdote de Madiã. E eis então que o sacerdote era dos perseguidos e partidário do rei justo. Por isto,
acolheu Moisés quando veio a ele se refugiar e quando contou sua história do resgate das águas que
tanto se assemelhava às lendas de Osíris e de Sargon (este que foi salvado da Babilônia, segundo
diziam os vindos com Abraão de Ur da Caldéia). E é aqui que Moisés tomou por esposa a filha do
sacerdote. E um dia, pastoreando as ovelhas de seu sogro, chegou até Horeb, monte de Deus.
E apareceu-lhe o Anjo de Jeová numa chama de fogo no meio de um arbusto; e ele olhou e viu que o
arbusto ardia em fogo, e que o arbusto não se consumia. Então Moisés disse: Irei eu agora e verei
esta grande visão, por que motivo o arbusto não se consome. Vendo Jeová que ele o ia ver, o chamou
Deus do meio do arbusto e disse: Moisés, Moisés! E ele respondeu: Eis-me aqui. E disse: Não te
aproximes; tira o calçado de teus pés, porque o lugar onde tu estás, terra santa é. E disse: Eu sou o
Deus de teu pai. Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó. Então Moisés cobriu seu rosto,
porque teve medo de olhar Deus. Disse então Jeová: Bem tenho visto a aflição de meu povo que está
no Egito, e tenho escutado seu clamor por causa de seus exatores; pois tenho conhecimento de suas
angústias, e desci para livrá-los da mão dos egípcios, e tirar-lhes daquela terra para uma terra boa e
ampla, a terra onde flui leite e mel...Disse Moisés a Deus: Eis aqui que chego eu aos filhos de Israel
e lhe digo: O Deus de vossos pais me enviou a vós. Se eles me perguntarem: Qual é teu nome?, o que
lhes responderei? E respondeu Deus a Moisés: EU SOU AQUELE QUE SOU. E disse: Assim dirá
aos filhos de Israel: EU SOU me envia a vós. Além disto, disse Deus a Moisés: Assim dirá aos filhos
de Israel: Jeová, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, me enviou
a vós. Este é meu nome para sempre; com ele serei recordado por todos os séculos. 17
Assim que Moisés regressava para o Egito, foi ao seu encontro Aarão da tribo sacerdotal de Levi e
que havia tido sonhos nos quais Moisés recebia a missão divina. Então Aarão ajudou Moisés a usar a
palavra entre os israelitas e, chegando até o faraó, o ameaçou dizendo: "Deixa que meu povo saia do
Egito". Mas como o Faraó era indolente, Aarão , que era sacerdote, fez com seu bastão grandes
prodígios aos olhos de todos. Mas chamou o Faraó seus sábios e sacerdotes que também
demonstraram seu poder, e o Faraó endureceu seu coração. Então, Jeová por meio de Moisés e Aarão
converteu a água do rio em vermelho sangue e os peixes morreram e também as rãs saíram dali
invadindo tudo. Mas Faraó não deu valor a esses sinais. Por isto, pragas de piolhos e de moscas,
pragas de gado e praga de úlceras, praga de granizo e de caranguejos caíram sobre os homens e as
bestas. Mas Faraó não quis libertar os filhos de Israel, dizendo que a corrente do rio que havia
transbordado arrastando limo vermelho do alto Nilo, provocava periodicamente esses desastres. Mas
uma grande escuridão baixou e se manteve por três dias. E os sábios do Faraó também explicaram
como as nuvens de água que se elevavam do rio escureciam o céu...
Então Jeová mandou Moisés advertir o Faraó da morte dos primogênitos dos egípcios se não deixasse
em liberdade o povo de Israel. E o Faraó não deu ouvidos e os filhos dos egípcios foram mortos nessa
noite por um anjo do Senhor. E a partir daí esse mês foi o primeiro dos meses do ano, porque o sinal
do sangue do cordeiro pascal com que os israelitas marcaram suas portas, os protegeu do anjo da
morte. E Faraó permitiu a saída da povo de Israel e de todos os egípcios perseguidos. Partiram os
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filhos de Israel de Ramsés a Sucot, em torno de seiscentos mil homens a pé, sem contar as crianças.
Também subiu com eles uma multidão de toda a classe de pessoas. 18
O povo cruzou o leito seco do Mar Vermelho, porque à direita e à esquerda estavam contidas as
águas, nessa zona que havia mandado canalizar Amenófis. Mas eis que então o Faraó despachou seus
soldados para destruir os que fugiam e, então, foram derrubadas as pesadas carruagens e o exército
caiu. E sobre eles veio a água matando os perseguidores. E, mais uma vez, Jeová salvou Moisés das
águas e com ele salvou a multidão que se afastava do Egito. 19
E as águas amargas 20 foram adocicadas pela árvore que Moisés nelas colocou. E Jeová ao povo deu
o-que-é-isto 21 para comer e com isto o povo se sustentou e não morreu no deserto e assim chegou
ao sagrado monte Sinai.
O monte inteiro do Sinai fumegava porque Jeová em fogo havia descido nele; e a fumaça subia como
a fumaça de um forno e o monte inteiro tremia em grandes proporções. O som da corneta ia
aumentando ao máximo; Moisés falava, e Deus lhe respondia com voz de trovão. E desceu Jeová no
monte Sinai, no cume do monte, e Moisés subiu. 22
Todo o povo observava o estrondo e os relâmpagos, e o som da corneta e o monte que fumegava; e
vendo isto o povo, tremeram e se afastaram para longe. 23
E então Jeová Deus entregou aos homens a Lei que procuravam desde seus primeiros pais. Em duas
tábuas de pedra gravou Deus os dez Mandamentos que os homens deviam seguir para se
aproximarem dele. E também lhes deu leis que serviram para formá-los em sua História. Assim
conduziu Moisés a Israel até a terra prometida pelo senhor. E subiu desde o monte de Moab ao monte
Nebo, no cume do Pisga que está em frente de Jericó. Então Moisés viu. E lhe disse Jeová: Esta é a
terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacó, dizendo: Para tua descendência a darei. Permiti a ti
vê-la com teus olhos, mas não chegarás até lá. E morreu ali Moisés, servo de Jeová, na terra de
Moab, conforme disse Jeová. E o enterrou no vale, na terra de Moab, em frente de Bet-Peor; e
ninguém conhece o lugar de sua sepultura até hoje. 24
E nunca mais surgiu um profeta em Israel igual a Moisés, que tinha conhecido Jeová frente a frente;
ninguém como ele em todos os sinais e prodígios que Jeová lhe enviou para que os fizesse na terra
do Egito, ao Faraó e a todos os seus servos e a toda a sua terra, e no grande poder e nos feitos
grandiosos e terríveis que Moisés fez diante dos olhos de todos. 25
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V - MITOS CHINESES
O vazio central 1
O Tao é um recipiente oco, difícil de encher. Mesmo sendo freqüentemente usado ele nunca se enche.
É tão profundo e insondável que parece anterior a todas as coisas. Não se sabe de quem é filho.
Parece anterior aos deuses. 2
Trinta raios convergem até o centro de uma roda, mas é o vazio do centro que torna útil a roda. 3
Com argila se molda um recipiente, mas é o espaço que não contém argila que usamos como
recipiente. Abrimos portas e janelas em uma casa, mas é por seus espaços vazios que podemos utilizá-
la. Assim, da existência provém as coisas e da não-existência sua utilidade.
Tudo era vazio e Pangu dormia no interior do que estava unido, por isto que foi chamado "infinita
profundidade". 4 Então despertou. De imediato, rompeu com seu machado o ovo que o envolvia. E
ele rapidamente se dividiu em milhares de pedaços. As coisas mais leves e as mais pesadas foram em
diferentes direções. Para evitar que novamente se juntassem, Pangu colocou-se no centro vazio
solidificando o céu e a terra. Ele foi como uma coluna que deu equilíbrio à criação. Depois descansou
e dormiu novamente até que seu corpo deu lugar a numerosos seres. 5 De um olho saiu o sol e do
outro a lua. Com seu sangue formaram-se os rios e os lagos. Os animais saíram de sua pele. O cabelo
se transformou em ervas e seus ossos em minerais.
Nestes primeiros tempos viviam na terra deuses, gigantes e monstros. A deusa mãe Nuwa, era na sua
metade superior muito formosa e em sua metade inferior se assemelhava a um dragão. Percorria e
visitava todos os lugares, mas finalmente descobriu que faltavam seres mais perfeitos e inteligentes
que os gigantes.
Então, foi até o rio Amarelo e modelou com argila os primitivos seres humanos. E os fez parecidos a
ela, mas em lugar de rabo de dragão colocou pernas para que caminhassem erguidos. Vendo-os
graciosos, decidiu fazer muitos. Para isto, tomou um junco (embarcação oriental) e foi lançando gotas
de barro sobre a terra. Estas —ao cair sobre ela— se converteram em mulheres e homens. Deste
modo, quando eles começaram a se reproduzir por si só, a mãe celestial se dedicou à criação de outros
seres.
Fushi, companheiro da deusa, viu que os homens aprendiam e então ocupou-se em ensiná-los a fazer
fogo esfregando madeiras. Logo deu-lhes cordas e mostrou a eles como se protegeriam da fome e da
intempérie. Finalmente, os outorgou a arte dos hexagramas ao que chamou I Ching. Com o tempo
este foi conhecido como o livro das transformações e da adivinhação.
Chegou o dia em que os imortais discutiram e, entrando em guerra, puseram em perigo o Universo.
Dilúvios e catástrofes assolaram a terra. Até que, por último, o Deus do fogo prevaleceu sobre as
águas. Todavia os gigantes quiseram disputar o poder com os eternos, mas os deuses em indizível
cólera cortaram suas cabeças, fazendo-as rolar até o fundo dos abismos obscuros.
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O Dragão e o Fênix 6
Quando ainda as águas não estavam controladas e os rios transbordavam arrasando os campos, a
deusa mãe procriou bons descendentes que terminaram ordenado este caos diluvial. Trabalhando no
controle dos rios, dos lagos, do mar e das nuvens, os dragões cintilantes navegaram pelas águas e pelo
céu. Com unhas de tigre e garras de águia, rasgavam as cortinas do alto com um tremendo estrondo
que, ao faiscar ante o embate descomunal, deixavam as chuvas em liberdade. Eles deram leito aos
rios, contenção aos lagos e profundidade aos mares. Fizeram as cavernas das que brotavam a água por
dutos subterrâneos que levaram muito longe para que surgisse em seguida, sem que o assalto
abrasador do sol as detivesse. Traçaram as linhas que se vê nas montanhas para que a energia da terra
fluísse, equilibrando a saúde deste corpo gigantesco. Freqüentemente, tiveram que lutar com os
bloqueios que provocavam os deuses e os homens ocupados em seus trabalhos irresponsáveis. De
suas gargantas brotava como fumaça a neve, vivificante e úmida, criadora de mundos irreais. Com
seus escamosos corpos serpentinos cortavam as tempestades e dividiam os furacões. Com seus
poderosos chifres e com seus dentes afiados, nenhum obstáculo era suficiente, nenhum ardil podia
permanecer. E gostavam de aparecer aos mortais. Às vezes nos sonhos, às vezes nas grutas, às vezes
na borda dos lagos porque nestes podiam ter moradas de cristal escondidas nas quais belos jardins
eram decorados com frutos brilhantes e com as pedras mais preciosas.
O Long imortal, o dragão celeste, sempre colocou sua atividade (seu Yang) a serviço do Tao e o Tao o
reconheceu permitindo que estivesse em todos as coisas, desde o maior até o menor, desde o universo
até a partícula insignificante. Tudo viveu graças ao Long. Nada permaneceu imutável salvo o Tao
inominável, porque ainda o Tao nominável mudou e se transforma graças a atividade do Long. E nem
mesmo os que crêem no Céu e no Inferno podem assegurar sua permanência. 7
Mas o Long ama o Feng, a ave Fênix que concentra o germe das coisas, que contrai aquilo que o
Long expande. E quando o Long e o Feng se equilibram o Tao resplandece como uma pérola banhada
na luz mais pura. O Long não luta com o Feng porque se amam e se buscam fazendo resplandecer a
pérola. Por isto, o sábio regula sua vida conforme o equilíbrio entre o Dragão e o Fênix que são as
imagens dos princípios sagrados do Yang e o Yin. O sábio se refugia num lugar vazio buscando o
equilíbrio. O sábio compreende que a noção gera a ação e a ação gera a não ação. Que o coração dos
viventes, que as águas do mar, que o dia e a noite, que o inverno e verão, se sucedem em um ritmo
que para eles marca o Tao.
No final desta idade, quando o universo tenha chegado a sua grande expansão ele voltará a se contrair
como pedra que cai. Tudo —até o tempo, se inverterá voltando ao princípio. O Dragão e o Fênix se
reencontrarão. O Yang e o Yin se compenetrarão, e será tão grande a atração que absorverá todo o
germe vazio do Tao. O céu é alto, a terra é baixa; com isto estão determinados o criativo e o
receptivo... com isto se revelam as mudanças e as transformações. 8
Mas ninguém pode saber realmente como eram nem como serão as coisas; se alguém o soubesse não
poderia explicar.
O que sabe que não sabe é o maior; o que pensa que sabe mas não sabe, tem a mente doente. O que
reconhece a mente doente como estando doente, não tem a mente doente. O sábio não tem a mente
doente porque reconhece a mente doente como a mente doente. 9
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VI. MITOS HINDUS
Fogo, Fomenta e Exaltação 1.
Aqui estão os primeiros, os que logo tomaram outras formas —tantas que não as
posso reconhecer. Aqui estão o Fogo 2 e a Tormenta 3 que dirigem a criação. O Fogo
não é nada mais que fogo e a Tormenta é somente vento, água e trovão, sem a Exaltação
4 do poeta em quem habita a palavra.
1. - Agni, merecidamente louvado pelos cantores antigos e digno de o ser pelos
atuais, que reuna ele aqui os deuses 5. Tu, oh Agni, primeiro. Angiras por excelência,
poeta, dos deuses circunda as ações, onipresente a toda criatura, sábio, filho de duas
mães, que te apresenta de várias formas ao homem 6. Ereto, defendendo-nos do perigo
com teu sinal luminoso; queima todo demônio. Coloca-nos eretos para correr, para
viver; outorga-nos a honra entre os deuses. Dispersando-os em todas as direções com
uma arma mortífera, mata os inimigos, oh deus de mandíbula abrasadora. O nosso
inimigo, o homem que afia sua espada durante a noite, que este inimigo não consiga se
apoderar de nós... Protege-nos do ofensor, daquele que deseja nos matar, oh deus
brilhante, oh o mais jovem dos deuses 7. Um novo hino de louvor que saiu de nosso
interior, de nós mesmos, alcance a Agni de língua de mel, uma vez nascido 8... A ti
elogia com seu canto Gotama, desejoso de riqueza 9... Quando me ponderaram a
enorme força do deus devorador de madeira, ele manifestou sua cor como o fez para os
Usij: este Agni brilha alegremente com luz resplandecente, como quem tendo
envelhecido, de repente se faz jovem. Agni, que ilumina os bosques como se estivesse
sedento, que ressoa em seu caminho como a água, como as rodas de um carro. Agni de
negro caminho, ardente, brincalhão, brilha como o céu sorrindo entre as nuvens. Agni,
que se estendeu abrasando ao longo da terra ampla, caminha como um animal livre,
sem pastor; Agni, inflamado, abrasando os matagais, deus de rosto enegrecido que
saboreou a terra 10.
2. - Quero, pois, proclamar as façanhas de Indra, as que fez em primeiro lugar
o deus do raio; ele matou a serpente, atravessou a grandeza das águas, abriu o ventre
das montanhas. Matou a serpente que havia se fixado na montanha; Tvastar havia
modelado para ele o raio que ecoa. Como as vacas que mugindo se dispersam, as
águas desceram diretas ao oceano. Cuidadosíssimo elegeu o Soma; bebeu do Soma
preso nos três cântaros; deus generoso, tomou a arma temida; matou esta serpente, a
primeira nascida das serpentes. Quando tu mataste, Indra, a primeira serpente nascida
das serpentes, aniquilastes as arteiras ações dos demônios arteiros; então, gerando o
sol, o céu, a aurora, em verdade já não encontraste mais inimigos... Como um mau
guerreiro embriagado por nefasta bebedeira, Vrtra desafiou o grande lutador, deus que
rejeita com poder, bebedor de Soma; não pôde resistir ao choque das armas mortíferas
de Indra; foi aniquilado ficando sem rosto Urtra, que tinha a Indra por inimigo. Sem
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pés, sem mãos, havia combatido contra Indra e este o golpeou com o raio em suas
costas. Boi que pretendia ser a réplica do touro, Vrtra dispersou-se em mil lugares.
Como jazia de tal maneira, tal qual boi despedaçado, as águas avançaram sobre ele se
espalhando em direção ao homem. As que
Vrtra havia assediado com força aos pés delas a serpente ficou desde então pendurada.
Acabou a força daquela a que Vrtra era filho. Indra descarregou sobre ela sua arma
mortífera; acima estava sua mãe, abaixo estava o filho; o demônio-fêmea jazia como
uma vaca com seu bezerro. Em meio das correntes de águas que nunca cessam, o corpo
de Vrta jazia oculto; as águas circulavam através do esconderijo de Vrtra; em
duradoura treva jazia aquele cujo inimigo foi Indra. As águas que tinham por dono o
aborígene, que tinham por guardiã a serpente, haviam ficado imóveis, bloqueadas,
como as vacas encurraladas. O orifício das águas, que havia sido obstruído, Indra o
descobriu quando matou Vrtra 11... Quando tu nasceste, neste dia bebeste com desejo
deste Soma, o suco da planta do Soma, que reside na montanha; tua mãe, a jovem
geradora, o derramou, em primeiro lugar, na casa do grande pai. Aproximando de sua
mãe pediu alimento; olhou até o Soma concentrado como em direção a uma úbere; o
deus rapidamente correu afugentando os outros; fez grandes coisas este deus de
múltiplos rostos. Poderoso, vencedor dos fortes, de força suprema, este deus fez para si
um corpo de acordo a seu próprio desejo; Indra, tendo superado por sua natureza a
Tvastar, arrebatando-o, bebeu o Soma nos cálices. Invoquemos a Indra, o magnânimo,
para prosperar neste combate, o mais viril, para a obtenção do despojo, deus que
escuta, terrível, para a ajuda nos combates, destruidor dos inimigos, ganhador dos
despojos 12.
3- Para ti caminhamos; tu és nossa meta dia à dia; oh suco de Soma, em ti estão
postas nossas esperanças. A filha do sol purifica o Soma que flui ao redor mediante o
filtro de pelos de ovelha, ininterruptamente. As dez ternas mulheres o tomam (com os
dedos), na assembléia ritual, as dez irmãs no ponto extremo do céu. Essas virgens o
fazem fluir, fazem soar, soprando, a gaita. Fazem sair o licor triplamente protetor. As
vacas, as vacas produtoras de leite mediante a mescla de leite deixam no ponto esta
criatura, o Soma, para que Indra o beba. Indra golpeia todos os inimigos na
embriaguez deste Soma, e este herói distribui sua generosidade ...13 A teu deus
rosado, nós te adoçamos misturando com leite das vacas para a embriaguez. Abra-nos
as portas para a riqueza. O Soma ultrapassou o filtro como o cavalo vencedor
ultrapassa o sinal na corrida. O suco do Soma é o senhor entre os deuses. Os amigos
têm cantado junto ao Soma que pula na vasilha de madeira através do filtro de pelos de
ovelha. As preces dirigiram gritos de alegria ao Soma... 14 A águia de vôo seguro te
traiu. Para que todo ser humano possa ver o sol, a este Soma, bem comum, que
atravessa o espaço, guardião da ordem, a ave o traiu. Quando foi enviado para cá,
obteve o poder supremo de Indra, o Soma que proporciona auxílio, o muito ativo... 15
Tuas forças, oh Soma, surgem como o bramido da onda do rio... 16 Tuas correntes de
incomparável abundância avançam com as chuvas do céu para conseguir um despojo
que vale mil. Contemplando todas as amadas obras poéticas, o Soma se derrama, o
corcel, agita as armas. Purificado intensamente pelos Ayus, como um rei com vassalos,
zeloso protetor da lei, se assentou, como uma ave de presa, nas vasilhas de madeira.
Todos os bens do céu e da terra, uma vez purificado, oh suco de Soma, confere-os a
nós. 17
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O tempo e os deuses.
Então não havia o existente e o não existente; não havia o reino do céu e do ar.
O que havia dentro e onde? O que protegia? Acaso havia água nesta insondável
profundidade? Não havia a morte, não havia algo imortal, não havia divisão entre o
dia e a noite. Este algo, sem alento, respirava por sua própria natureza; aparte deste
algo não havia nada... Quem o sabe verdadeiramente, quem pode afirmar onde nasceu
e de onde veio a criação? Os deuses são posteriores à criação do mundo. Quem sabe,
então, de onde o mundo procedeu? A origem da criação talvez tenha formado tudo, ou
talvez não. Quem cujos olhos controlam o mundo, ele verdadeiramente o sabe, ou
talvez não 18.
Mas os deuses e os homens foram criados e têm seu tempo. Sim, têm seu tempo.
Um dia dos deuses é igual a um ano dos mortais. Portanto, um ano dos deuses é
o mesmo que 360 anos mortais. Existem quatro Eras (Yugas) que formam uma grande
Era (Mahayuga) de 12 mil anos divinos, correspondente a 4.320.000.000 anos
ordinários ou um dia de Brahma. Mas, ao terminar seu dia, o deus descansa e, então,
ocorre um colapso no Universo. Enquanto Brahma dorme sobre sua grande serpente
tudo começa ser absorvido por ele. Os mundos desabitados se chocam entre si; a terra
toda se liqüefaz, todo líquido se evapora, todo vapor se converte em energia e esta
energia cai dentro do poder da noite de Brahma. E quando o deus desperta se abre uma
grande lótus; a luz escapa e começa um novo dia. Neste dia se sucedem 14 ritmos
(Manvantaras) nos quais são criados os deuses e os mundos; os peixes; as aves; os
insetos; os animais e os homens. Cerca de 71 séries de Grandes Eras se sucedem para
cada um dos 14 ritmos. Cada ritmo, então, compreende 852.000 anos divinos ou
306.790.000 anos mortais nos que a energia divina vai se distanciando de seu centro.
Assim, a história da presente humanidade se encontra num ritmo e dentro deste numa
das 71 séries de Grandes Eras. Como cada grande era está dividida em 4 Eras desiguais,
na primeira (Krita Yuga) transcorrem 4.800 anos divinos ou 1.728.000 anos ordinários;
na segunda (Treta Yuga) 3.600 ou 1.296.000; na terceira (Dvapara Yuga) 2.400 ou
864.000, e na quarta (Kali Yuga) 1.200 ou 432.000. Por conseguinte, o ser humano tem
que estar em todo este ciclo, 4.320.000 anos. Mas, como já se encontram na quarta Era,
desde sua criação transcorreram pelo menos 3.888.000 de seus anos.
Distanciando-se da criação original todos os seres decaem e, certamente,
também o ser humano segue essa tendência. A Krita é esta Era na que a justiça é eterna.
Nesta Era, a melhor das Yugas, tudo foi (Krita) e nada fica por fazer. Os deveres não se
descuidam nem declina a moral. Depois, com o passar do tempo, esta Yuga cai num
estado inferior. Nesta Era não havia deuses; não havia compras nem vendas, não se
tinha que fazer esforço.
O fruto da terra se obtinha pelo mero desejo e prevaleciam a justiça e o desapego
do mundo. Não existiam enfermidades, nem involuções dos órgãos do sentido com o
passar dos anos; não existiam a malícia, o pranto, o orgulho nem o engano; nem
tampouco disputas, ódio, crueldade, medo, aflição, ciúmes ou inveja. De tal forma que o
supremo Brahma era o recurso transcendente destes seres perfeitos. Nesta época todos
os humanos eram semelhantes no objeto de sua fé e no seu conhecimento. Somente se
usava uma fórmula (mantra) e um ritual. Somente havia um Veda. Mas na Era seguinte,
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Treta Yuga, começaram os sacrifícios. A justiça decresceu em um quarto. Os homens
aderiram à verdade e estavam dedicados a uma justa dependência das cerimônias.
Prevaleceram os sacrifícios, juntamente com as artes sagradas e uma grande variedade
de ritos. Se começou a atuar com fins tangíveis, buscando recompensa pelos rituais e
doações e já não se preocupavam com a austeridade e a simples generosidade. Mais
adiante, na Dvapara Yuga, a justiça diminuiu duas quartas partes. O Veda se
quadruplicou. Alguns estudaram quatro Vedas, outros três, outros dois e outros
absolutamente nenhum. Dividindo-se deste modo as escrituras, as cerimônias eram
celebradas de forma muito diversa. As pessoas ocupadas na prática de austeridade e
donativos encheram-se de paixão. Devido à ignorância do único Veda, os Vedas se
multiplicaram. E com o declínio do bem, somente uns poucos permaneceram fiéis à
verdade. Quando o homem se separou do bem, na sua queda se viu atacado por muitas
enfermidades, desejos e calamidades causadas pelo destino, sofrendo muitas aflições, e
foram motivados a praticar austeridade. Outros perseguiram os gozos, a dita celestial e
ofereceram sacrifícios. Assim, o homem desistiu por sua iniqüidade. E no Kali Yuga, a
justiça conservou-se somente em uma quarta parte. Nesta era de obscuridade cessaram
os rituais e os sacrifícios. Prevaleceram diversas calamidades, enfermidades, fadigas e
pecados como a ira. Propagou-se a miséria, a ansiedade, a fome e o medo. As práticas
geradas pela degradação dos Yugas frustaram os propósitos do homem. Assim é o Kali
Yuga que vem existindo a alguns séculos 19.
Mas a pequenez da história do homem não teria sentido se nele não existisse o
Brahma. Porque, o que são as 71 séries de Mahayugas nas que se cria e se destrói o
homem se não um só dos 14 Manvantaras, e o que são estes se não um Kalpa, um só dia
de Brahma. Em incontáveis reencarnações, a essência humana irá se purificando.
Retrocedendo e avançando de acordo às suas ações, irá preparando suas vidas seguintes
respondendo à lei universal do Karma. Mas dentro de cada ser humano, na profundidade
mais profunda está seu Atman. Assim, quando o homem chega ao Atman se encontra
com o que nele é Brahma. Entretanto, esta equivalência desconcertante somente será
clara no dia em que se renunciando a feliz contemplação chegue aos homens a
compaixão do ser vivente e liberado, conhecido pelos séculos como o Iluminado 20.
Glória à Brahma, que é chamado pela palavra mística (Om) 21 associada
eternamente com o universo tríplice (terra, céu e paraíso) e que é único com os quatro
Vedas. Glória ao Brahma que é considerado como a causa maior e misteriosa do
princípio intelectual, sem limites de espaço ou tempo e isento de diminuição ou queda...
Brahma é invisível e imorredouro, variável na forma, invariável na substância; o
princípio primário, criado por si mesmo, de quem se diz que ilumina as cavernas do
coração e que é indivisível, radiante, não decadente e multiforme. Que sempre se adore
este Supremo Brahma! 22
As formas da beleza e o horror. 23
Por que os deuses haveriam de conceder seus dons à súplica dos insignificantes
mortais? Por que tão grandiosos seres iriam se interessar por assuntos banais, pelas rixas
e penas, esperanças e devoções? Por que será que tão grandes poderes estão designados
a uma pequena região do Universo insondável? ; Será porque em cada ponto em que
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  • 1. MITOS RAIZES UNIVERSAIS SILO ÍNDICE I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS. Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab). Gilgamesh e a criação de seu duplo- O Bosque dos Cedros- O Touro Celeste, a morte de Enkidu e a descida aos infernos- O Dilúvio Universal- O regresso. II. MITOS ASSÍRIOS-BABILÔNICOS. Enuma Elish (Poema da Criação). O caos original- Os deuses e Marduk- A guerra dos deuses- A criação do mundo- A criação do ser humano. III. MITOS EGÍPCIOS. Ptah e a criação- Morte e ressurreição de Osíris- Horus, a vingança divina- O antimito de Amenófis IV. IV. MITOS HEBRAICOS. A árvore da ciência e a árvore da vida - Abraão e a obediência- O homem que lutou contra um Deus- Moisés e a Lei Divina. V. MITOS CHINESES. O vazio central- O dragão e a Fênix. VI. MITOS INDIANOS. Fogo, Tormenta e Exaltação- O tempo e os deuses- As formas da beleza e o horror. VII. MITOS PERSAS. O clamor de Zarathustra- Luz e NÉVOA TINIEBLA- Os anjos e o Salvador. Fim do mundo, ressurreição e juízo. VIII. MITOS GRECO-ROMANOS. A luta das gerações dos imortais- Prometeu e o despertar dos mortais- Demeter e Persefona. Morte e ressurreição da natureza- Dionísio, a loucura divina. IX. MITOS NÓRDICOS. Yggdrasil, a árvore do mundo- Thor, as valkirias e a Valhala. O guerreiro e seu céu- Ragnarök, o destino dos deuses. 1 5 10 15 20 25 30
  • 2. X. MITOS AMERICANOS. Popol Vuh (livro do povo Quiché). A história perdida- As gerações humanas: o homem animal, o homem de barro, o homem de madeira e o homem de milho- Destruição do falso Principal Guacamayo nas mãos de Mestre Mago e Bruxinho- O jogo de bola nos infernos: descida, morte, ressurreição e ascensão de Mestre Mago e Bruxinho. 2 5
  • 3. INTRODUÇÃO Há muito tempo existe o afã por definir o mito, a lenda e a fábula; por separar o conto e o relato pouco provável da descrição verdadeira. Foi realizado um grande trabalho para demonstrar que os mitos são a roupagem simbólica de verdades fundamentais, ou melhor, transposições de forças cósmicas a seres com intenção. Foi dito que se trata de eumerismos nos que personagens vagamente históricos se elevam à categoria de heróis ou deuses. Chegou-se a teorizar para mostrar as realidades objetivas que contém na deformação da razão. Foi investigado para descobrir, nessas projeções, o conflito psicológico profundo. E, assim, essa enorme tarefa resultou útil porque nos ajudou a compreender, quase em laboratório, como os mitos novos lutam com os antigos para conquistar seu espaço. Não deve se entender isto que estamos dizendo como um sarcasmo no que rebaixamos as teorias a nível de mito. Pelo contrário, quando as teorias se soltam do âmbito científico e começam a voar sem demonstração e, desse modo são tomadas como a própria verdade que se aceita sem crítica, é porque aquelas se instalaram a nível de crença social e cobraram a força plástica da imagem tão importante como referência e tão decisiva para orientar condutas. E nesta nova imagem que se irrompe podemos ver os avatares de antigos mitos remoçados pela modificação da paisagem, não somente geográfica, senão social, à qual se deve dar resposta por exigência dos tempos. O sistema de tensões vitais ao que está submetido um povo se traduz como imagem, mas isto não basta para explicá-lo inteiramente, a menos que se pense em termos de linha simples e resposta. É necessário compreender que em toda cultura, grupo e indivíduo, existe uma memória, uma acumulação histórica em base à qual se interpreta o mundo em que se vive. Essa interpretação é o que configura para nós a paisagem que, percebida como externa, está presa pelas tensões vitais que ocorrem nesse momento histórico ou que ocorreram há muito tempo e que, residualmente, formam parte do esquema interpretativo da realidade presente. Quando descobrimos as tensões históricas básicas de um determinado povo nos aproximamos da compreensão de seus ideais, apreensões e esperanças que não estão em seus horizontes como frias idéias senão como imagens dinâmicas que empurram condutas em uma ou outra direção. E, desde já, determinadas idéias serão aceitas com maior facilidade que outras na medida em que se relacionem mais estreitamente com a paisagem em questão. Essas idéias serão experimentadas com todo o sabor de compromisso e verdade que têm o amor e o ódio, porque seu registro interno é indubitável para quem o padece mesmo quando não esteja objetivamente justificado. Exemplificando. Os temores de alguns povos se traduziram em imagens de um futuro mítico em que tudo vai se acabar: cairão os deuses, os céus, o arco-íris e as construções; o ar se tornará irrespirável e as águas poluídas; a grande árvore do mundo, responsável pelo equilíbrio universal morrerá e com ela os animais e os seres humanos. Em momentos críticos, esses povos traduziram suas tensões por meio de inquietantes 3 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 4. imagens de contaminação e solapamento. Mas isso mesmo os impulsionou em seus melhores momentos a 'construir' com solidez em numerosos campos. Outros povos se formaram no penoso registro da exclusão e do abandono de paraísos perdidos, mas isto também os empurrou a melhorar e a se conhecer incansavelmente para chegar ao centro do saber. Alguns povos parecem marcados pela culpa de terem matado seus deuses e outros se sentem afetados por uma visão polifacética e mutante, mas isto levou uns a se redimirem pela ação e a outros à busca reflexiva de uma verdade permanente e transcendente. Com isto não estamos querendo transmitir estereotipias — porque estas observações fragmentárias não explicam a extraordinária riqueza do comportamento humano, queremos ampliar mais a visão que habitualmente se tem dos mitos e da função psicossocial que cumprem. Mas hoje estão desaparecendo as culturas isoladas e, portanto, seus patrimônios míticos. Percebem-se modificações profundas nos membros de todas as comunidades da terra que recebem o impacto não somente da informação e da tecnologia, senão também de usos, costumes, valores, imagens e condutas sem importar muito o local de origem. A este fluxo não poderão subtrair-se as angústias, as esperanças e as propostas de solução que tomando expressão em teoria ou fórmulas mais ou menos científicas, levam em seu seio mitos antigos e desconhecidos para o cidadão do mundo atual. Aproximar-se dos grandes mitos foi, para nós, reavaliar os povos desde um ponto de vista um tanto especial, desde a ótica da compreensão de suas crenças básicas. Não tocamos neste trabalho nos belos contos e lendas que descrevem os afãs dos semideuses e dos mortais extraordinários. Nos circunscrevemos aos mitos nos quais o núcleo é ocupado pelos deuses ainda que a humanidade desempenhe nesta trama um papel importante. No possível, não misturamos questões de culto, considerando que já se deixou de confundir a religião prática e cotidiana com as imagens plásticas da mitologia poética. Por outra parte, procuramos tomar como referência os textos originais de cada mitologia, pretensão que nos acarretou numerosos problemas. Com isso, e a modo de menção, digamos que a riqueza mitológica das civilizações Cretense e Micênica foi reduzida em um genérico capítulo de “Mitos greco-romanos” precisamente por não podermos contar com textos originais daquelas culturas. Outro tanto aconteceu com os mitos africanos, oceânicos e, de algum modo, americanos. De todas as maneiras, os avanços que estão realizando antropólogos e especialistas em mitos comparados nos faz pensar em um futuro trabalho que tenha por base seus descobrimentos. O título deste livro, 'Mitos Raízes Universais', exige algumas aclarações. Consideramos 'raiz' a todo o mito que, passado de povo a povo, conservou uma certa perdularidade em seu argumento central, ainda quando se tenham produzido modificações através do tempo nos nomes dos personagens considerados, em seus atributos e na paisagem em que se insere a ação. O argumento central, aquele que designamos como 'núcleo de ideação', também experimenta mudanças, mas numa velocidade relativamente mais lenta que a dos elementos que podemos tomar como acessórios. Desta maneira, ao não 4 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 5. ter em conta a variação do sistema de representação secundário, tampouco convertemos em decisiva a localização do mito no momento preciso em que este surgiu. Uma pretensão oposta à mencionada não poderia ser sustentada já que a origem do mito não pode filiar-se a um momento exato. Em todo caso, são os documentos e os distintos vestígios históricos que dão conta da existência do mito e que se encaixam dentro de um calendário mais ou menos preciso. Por outra parte, a construção do mito não parece responder a um só autor, senão a sucessivas gerações de autores e de comentaristas que vão se baseando em um material por demais instável e dinâmico. As descobertas que atualmente são acrescentadas pela arqueologia, pela antropologia e pela filosofia —atuando como auxiliares da mitologia comparada— nos mostram que certos mitos, que considerávamos como originários de uma certa cultura, na realidade pertencem a culturas anteriores ou a culturas contemporâneas àquela recebendo assim suas influências. De acordo ao comentado, não colocamos interesse especial em precisar os mitos em ordem cronológica e sim em relação à importância que parecem ter adquirido em uma cultura determinada, ainda quando esta seja posterior a outra, na qual o mesmo núcleo de idéias já estava atuando. Fica claro, por outra parte, que o presente trabalho não pretende ser nem uma recompilação, nem uma comparação, nem uma classificação com base nas categorias prefixadas, senão uma colocação em evidência de núcleos de idéias perdulares e atuantes em distintas latitudes e momentos históricos. A isto se poderá objetar que a transformação dos contextos culturais faz variar também as expressões e os significados que se dão em seu seio. Mas precisamente por isso é que pegamos mitos que cobraram maior importância em uma cultura e momento, ainda que tenham existido em outras oportunidades mas sem cumprir com uma função psicossocial relevante. Quanto a certos mitos que, aparecendo em pontos aparentemente desconectados guardam entre si importantes similaridades, se terá que revisar a fundo se tal desconexão histórica efetivamente ocorreu. Neste campo, os avanços são muito rápidos e hoje ninguém pode afirmar que, por exemplo, as culturas da América são totalmente alheias às da Ásia. Poderá se dizer que quando ocorreram as migrações através do estreito de Bering, há mais de vinte mil anos, os povos da Ásia não contavam com mitos desenvolvidos e que estes somente tomaram caráter quando as tribos se assentaram. Mas, em todo caso, a situação pré-mítica foi parecida nos povos que estamos mencionando e lá talvez se encontrem pautas que mesmo se desenvolvendo separadamente em suas diversas situações culturais tenham mantido alguns padrões comuns. Seja como for, esta discussão não está terminada e é prematuro aderir a qualquer uma das hipóteses hoje em confronto. No que se refere a nós pouco importa a originalidade do mito e sim, como observamos mais acima, a importância que este tem em uma determinada cultura. Colocamos em letra diferente o texto original do texto de nossa autoria para que possa ser apreciado em toda sua riqueza. Em qualquer obra de reconstrução histórica (e esta, 5 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 6. de algum modo é), se distingue claramente o original do agregado posteriormente e acreditamos que o expediente da letra ressaltada cumpre perfeitamente com esta função. Enquanto que em nosso texto se trata de conservar um certo estilo comum com o original, em nada perturba a obra, ou melhor, acreditamos que facilita sua compreensão. A citação de fontes consultadas e as notas que acompanham o texto servem à mesma idéia. Mendoza (Argentina) 17/12/90 6 5
  • 7. Este é o rapto daqueles seres não compreendidos em sua natureza íntima, grandes poderes que fizeram todo o conhecido e o ainda desconhecido. Esta é a rapsódia da natureza externa dos deuses, da ação vista e cantada por humanos que puderam se situar no mirante do luminoso. Isto é o que apareceu como sinal fixado em tempo eterno capaz de alterar a ordem e as leis e a pobre candura (CORDURA). Aquilo que os mortais desejaram que os deuses fizessem; aquilo que os deuses falaram através dos homens. 5
  • 8. I. MITOS SUMÉRIO-AQUEUS Gilgamesh (Poema do senhor de Kullab) Gilgamesh e a criação de seu duplo. Aquele que tudo soube e que entendeu profundamente coisas. Aquele que tudo viu e que tudo ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi tua glória. Grande é tua glória divino Gilgamesh ! Ele construiu os muros de Uruk. Empreendeu uma grande viagem e soube tudo o que ocorreu antes do Diluvio. Ao regressar gravou todas as suas proezas em um papiro. Porque os grandes deuses o criaram, dois terços de seu corpo são de deus e um terço de homem. Depois de ter lutado contra todos os países, regressou a Uruk, sua pátria. Mas os homens murmuraram com ódio porque Gilgamesh tomava o melhor da juventude para suas façanhas e governava ferreamente. Por isso, as pessoas foram levar suas queixas aos deuses e os deuses a Anu. Anu elevou o reclamo a Aruru e disse estas palavras: 1 “Tu Aruru, que criastes a humanidade, cria agora uma cópia de Gilgamesh: este homem em seu devido tempo o encontrará e enquanto lutem entre si Uruk viverá em paz”. A deusa Aruru, ao escutar este rogo, imaginou em si mesma uma imagem do deus Anu, umedeceu suas mãos, amassou um bloco de argila, modelou seus contornos e formou o valente Enkidu, o herói augusto, o campeão do deus Ninurta. Todo o seu corpo é veludo, seus cabelos estão penteados como os de uma mulher, são espessos como a trigo dos campos. 2 Está vestido como o deus Sumuqan e nada sabe dos homens nem das terras. Como as gazelas se nutrem de ervas, como o gado bebe água nas fontes. Sim, ele gosta de beber com os rebanhos.” Com o tempo, um caçador encontrou a Enkidu e seu rosto se contraiu de temor. Se dirigiu a seu pai e lhe contou as proezas que viu este homem selvagem realizar. O velho, então, enviou seu filho a Uruk para pedir ajuda a Gilgamesh. Quando Gilgamesh escutou a história da boca do caçador, recomendou a este que buscasse uma bela servente do templo, uma filha da alegria, e levando-a com ele, a colocasse ao alcance do intruso. “Deste modo, quando ele vir a moça, ficara aprisionado dela e esquecerá seus animais e seus animais não o reconhecerão'. Assim que o rei falou, o caçador procedeu segundo as indicações chegando em três dias ao lugar do encontro. Passaram um dia e mais outro até que os animais chegaram à fonte para beber água. Atrás deles apareceu o intruso que viu a servente sentada. Mas, quando esta se levantou e foi rápido até ele, Enkidu ficou encantado por sua beleza. Sete dias esteve com ela, até que decidiu ir com seu gado porém as gazelas e o rebanho do deserto se separaram dele. Enkidu não pode correr, mas sua inteligência se abriu, pensamentos de homem pesaram em seu coração. 5 10 15 20 25 30 35
  • 9. Voltou a sentar-se ao lado da mulher e esta lhe disse: 'Por que vives com o gado como um selvagem? Vem, te guiarei a Uruk ao santuário de Anu e a deusa Ishtar, até Gilgamesh a quem ninguém vence'. Disto Enkidu gostou porque seu coração procurava um amigo e por isso deixou que a jovem o guiasse até os férteis pastos onde se encontram os estábulos e os pastores. Mas o leite das bestas selvagens ele o mamava e eis que aqui que lhe oferecem pão e vinho. Despedaçou o pão, o olhou, o examinou, mas Enkidu não soube o que fazer com ele... A escrava sagrada tomou as palavra e disse a Enkidu: 'Come pão, oh, Enkidu !, é fonte de vida; bebe o vinho, é o costume do país'. Então, Enkidu comeu o pão, comeu até saciar-se, bebeu o vinho, bebeu sete vezes... Um barbeiro raspou os pelos de seu corpo e Enkidu se untou com óleos, como fazem os homens, e vestiu roupas de homem e se mostrou como um jovem esposo. Tomou sua arma, atacou os leões e assim permitiu que os pastores repousassem à noite. Mas um homem chegou até Enkidu, abriu a boca e disse: '... Para Gilgamesh, rei de Uruk a bem cercada, se arrastam as pessoas ao cultivo ! As mulheres impostas pela sorte o homem fecunda, e depois, a morte! Por vontade dos deuses tal é o decreto: desde o seio materno à morte é nosso destino”. Enkidu enfurecido prometeu mudar a ordem das coisas. Mas como Gilgamesh havia visto em sonhos o selvagem e havia compreendido que em combate haveriam de se entender, quando seu oponente lhe interrompeu o passo, este se jogou com a força do touro bravo. As pessoas se aglutinaram contemplando a feroz luta e celebraram como Enkidu se aparentava com o rei. Ante a casa da Assembléia lutaram. As portas converteram em farpas e demoliram os muros, e quando o rei logrou arrochar Enkidu ao solo este se apaziguou abalando Gilgamesh. Por isto, ambos se abraçaram selando sua amizade. O bosque dos cedros. Gilgamesh teve um sonho e Enkidu disse: “Este é o significado de teu sonho. O pai dos deuses te deu o cetro, tal é teu destino, mas não a imortalidade. Te deu poder para submeter e para liderar... não abuses deste poder. Sê justo com teus servidores, sê justo ante Samash'. O rei Gilgamesh pensou então no país da vida, o rei Gilgamesh recordou o bosque dos Cedros. E disse a Enkidu: 'Não gravei meu nome nas estrelas, como meu destino decreta, irei portando ao país onde se corta o cedro, me farei um nome lá onde estão escritos os de homens gloriosos”. Enkidu entristeceu porque ele, como filho da montanha, conhecia os caminhos que levavam ao bosque. Pensou: “Dez mil léguas há desde o centro do bosque em qualquer direção de sua entrada. No coração vive Jumbaba (Cujo nome significa 'Enormidade'). Ele sopra o vento de fogo e seu grito é a tempestade'. Mas Gilgamesh havia decidido ir ao bosque para acabar com o mal do mundo, o mal de Jumbaba. E, decidido como estava, Enkidu se preparou para guiá-lo, não sem antes explicar os perigos. “Um grande guerreiro que nunca dorme - disse - , guarda as entradas. Só os deuses são imortais e o homem não pode lograr a imortalidade, não pode lutar contra Jumbaba”. Gilgamesh se encomendou a Samash, ao deus-sol. A ele pediu ajuda na empreitada. E Gilgamesh recordou os corpos dos homens que havia visto flutuar no rio ao olhar dos muros de Uruk. Os corpos de inimigos e amigos, de conhecidos e desconhecidos. Então intuiu seu próprio fim e levando ao templos dos cabritos, um branco sem mancha e outro marronzinho, disse à Samash: “Na cidade o homem morre, oprimido o coração o homem morre, não pode albergar esperança em seu coração... Ai ! largas jornadas levam até a mansão de Jumbaba. Se esta empreitada não pode ser levada até o fim por que, oh Samash, encheste meu coração com o impaciente desejo de realizá-la ?” ... e Samash aceitou a oferenda de suas lágrimas. Samash, o compassivo, lhe concedeu sua graça. Celebrou para Gilgamesh fortes alianças com todos os filhos da mesma mãe, que reuniu nas cavernas da montanha. 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 10. E logo os amigos deram ordens aos artesãos para que forjassem suas armas e os mestres trouxeram os dardos e as espadas, os arcos e os machados. As armas de cada um, pesavam dez vezes trinta shekels e a armadura outros noventa. Mas os heróis partiram e, em um dia caminharam cinqüenta léguas. Em três dias caminharam tanto quanto fazem os viajantes em um mês e três semanas. Ainda antes de chegarem a porta do bosque tiveram que cruzar sete montanhas. Feito o caminho, ali a encontraram, de setenta cotovelos de altura e quarenta e dois de largura. Assim era a deslumbrante porta que não destruíram por sua beleza. Foi Enkidu quem avançou empurrando sozinho com suas mãos até abri-la de par em par. Logo desceram para chegar até o pé da verde montanha. Imóveis contemplaram a montanha de cedros, mansão dos deuses. Ali os arbustos cobriam a ladeira. Quarenta horas se extasiaram olhando o bosque e vendo o magnífico caminho, o que Jumbaba percorria para chegar a sua morada... Entardeceu e Gilgamesh cavou um poço. Espalhando farinha pediu sonhos benéficos a montanha. Sentado sobre seus calcanhares, a cabeça sobre seus joelhos, Gilgamesh sonhou e Enkidu interpretou os sonhos auspiciosos. Na noite seguinte, Gilgamesh pediu sonhos favoráveis para Enkidu, mas os sonhos que teve na montanha foram omissos. Depois Gilgamesh não despertou e Enkidu com esforço conseguiu colocá-lo em pé. Coberto com suas armaduras cavalgaram a terra como se levassem leves vestimentas. Chegaram até o imenso cedro e, então, as mãos de Gilgamesh segurando o machado o derrubaram ! De longe Jumbaba os viu e gritou enfurecido: “Quem é este que violou meu bosque e cortou meu cedro?” . Gilgamesh respondeu: “Não voltarei à cidade não, não deixarei o caminho que me trouxe ao país da vida sem combater com este homem, se pertence a raça humana, sem combater com este deus, se é um deus... A barca da morte não navegará para mim, não há no mundo tecido do qual cortar um sudário para mim, nem meu povo conhecerá a desolação, nem meu lar verá arder a pira fúnebre, nem o fogo queimará minha casa”. Jumbaba saiu de sua mansão e cravou o olho da morte em Gilgamesh. Mas o deus-sol Samash, levantou conta Jumbaba terríveis furacões: o ciclone, a turbulência . Os oito ventos tempestuosos se arrocharam contra Jumbaba de maneira que este não pode avançar nem retroceder enquanto Gilgamesh e Enkidu cortavam os cedros para entrar em seus domínios. Por isso, Jumbaba apresentou- se manso e temeroso ante os heróis. Ele prometeu as melhores honras e Gilgamesh estava por concordar em abandonar suas armas quando Enkidu interrompeu: 'Não lhe dê ouvidos! Não, meu amigo, o mal fala por sua boca. Deve morrer nas nossas mãos. E graças a advertência de seu amigo, Gilgamesh se recobrou. Tomando o machado e desembainhando. a espada feriu Jumbaba no pescoço, enquanto Enkidu fazia outro tanto, até que na terceira vez Jumbaba caiu e morto ficou. Silencioso e morto. Então lhe separaram a cabeça do pescoço e neste instante se desatou o caos porque aquele que jazia era guardião do Bosque dos Cedros. Enkidu talhou as árvores do bosque e arrancou as raízes até as margens do Eufrates E, depois, colocando a cabeça do vencido em um sudário mostrou-a aos deuses. Quando Enlil, senhor da tormenta viu o corpo sem vida de Jumbaba, enfurecido retirou dos profanadores o poder e a glória que haviam sido deles, e os deu ao leão, ao bárbaro, ao deserto. Gilgamesh lavou seu corpo e jogou longe suas vestes ensangüentada, vestindo outras sem mácula. Quando em sua cabeça brilhou a coroa real, a deusa Ishtar colocou nele seus olhos. Mas Gilgamesh a rechaçou porque ela havia perdido todos os seus esposos e os havia reduzido a servidão mais radical por meio do amor. Assim disse Gilgamesh: “És uma ruína que não dá ao homem qualquer abrigo contra o mau tempo, és uma porta traseira que não resiste a tempestade, és um palácio saqueado pelos heróis, és uma emboscada que dissimula suas armadilhas, és uma ferida inflamada que queima a quem a tem, és um pote cheio de água que inunda seu portador, és um pedaço de pedra branda que desmorona as muralhas, és um amuleto incapaz de proteger em país inimigo, és uma sandália que faz tropeçar a seu dono no caminho !”. 5 10 15 20 25 30 35 40 45
  • 11. O Touro celeste, a morte de Enkidu e a descida aos infernos. Furiosa a princesa Ishtar se dirigiu a seu pai Anu e ameaçou romper as portas do inferno para fazer sair dele um exército de mortos mais numeroso que o dos vivos. Assim vociferou: 'Se não atiras sobre Gilgamesh o Touro Celeste, eu farei isto' Anu concordou com ela, a mudança da fertilidade dos campos por sete anos. E, de imediato criou o Touro Celeste que caiu sobre a terra. Na primeira investida, a besta matou trezentos homens. Na segunda outras centenas caíram. Na terceira carregou contra Enkidu mas este a reteve pelos cornos. O Touro Celeste espumava pela boca e golpeava Enkidu furiosamente com seu rabo. Então Enkidu saltou sobre a besta e a derrubou quão larga era, retorcendo-lhe o rabo. E gritou: 'Gilgamesh, meu amigo, prometemos deixar nomes duradouros. Crava-lhe agora tua espada entre a nuca e os cornos'. E Gilgamesh cravou sua espada entre a nuca e os cornos do Touro Celeste e o matou... Depois, arrancaram do Touro Celeste o coração, o oferendaram ao deus Samash... Então, a deusa Ishtar ascendeu a muralha de Uruk, a bem cercada, subiu ao mais alto da muralha e proferiu uma maldição: 'Maldito seja Gilgamesh, pois me burlou matando o Touro Celeste!' Olhou Enkidu estas palavras de Ishtar e arrancando as partes do Touro Celeste as atirou ao rosto. Quando chegou o dia, Enkidu teve um sonho. Nele estavam os deuses reunidos em conselho: Anu, Enlil, Samash e Ea. Eles discutiram pela morte de Jumbaba e do Touro Celeste e decretaram que, dos dois amigos, Enkidu devia morrer. Logo, do sonho despertou e contou o visto. Voltou então a sonhar e isto é o que relatou: ' A flauta e a harpa caíram na Grande mansão; Gilgamesh meteu sua mão nela, não pode alcança-las, meteu seu pé, não pode alcançá-las. Então Gilgamesh se sentou frente ao palácio dos deuses do mundo subterrâneo, derramou lágrimas e seu rosto ficou amarelo. Oh, minha flauta, oh, minha harpa! Minha flauta cujo poder era irresistível ! Minha flauta, quem as trará dos infernos ? Seu servidor Enkidu lhe disse: Meu senhor, por que choras ? Por que teu coração está triste ? Hoje irei buscar tua flauta nos infernos... Pode Enkidu voltar dos infernos!... (Então) o pai Ea se dirigiu ao valente herói Nergal: 'Abre já o fosso que comunica com os infernos ! Que o espírito de Enkidu volte dos infernos e possa falar com seu irmão'... O espírito de Enkidu como um sopro saiu dos infernos e Gilgamesh e Enkidu falaram. - Diga-me meu amigo, diga-me meu amigo, diga-me a lei do mundo subterrâneo, tu a conheces... - Aquele que caiu na batalha, o vistes ? - O vi, seu pai e sua mãe lhe mantêm a cabeça alta e sua esposa o abraça. - Aquele cujo cadáver caiu abandonado no vale, o viste ? - O vi, seu espírito não tem descanso nos infernos. - Aquele cujo espírito não há ninguém que lhe faça uma oração, o tem visto ? - O vi, come os restos das panelas e os resíduos dos pratos que se tiram da rua'.(3) Enkidu adoeceu e morreu. Gilgamesh disse então: 'Sofrer. A vida não tem outro sentido que morrer ! Morrerei eu como Enkidu ? Hei de buscar a Utnapishtim a quem chamam 'O longínquo' para que explique como é que chegou a imortal. Primeiramente manifestou meu luto, logo vestirei a pele do leão e, invocando a Sin me porei a caminho'. Gilgamesh havia percorrido todos os caminhos até chegar as montanhas, até as mesmas portas do sol. Ali se deteve frente aos homens escorpiões, os terríveis guardiães das portas do sol. Perguntou por Utnapishtim: 'Desejo interrogá-lo sobre a morte e a vida'. Então os homems-escorpião trataram de dissuadi-lo da empreitada. 'Ninguém que entre na montanha vê a luz', disseram. Mas Gilgamesh pediu que lhe abrissem a porta da montanha e assim se fez por fim. Caminhando horas e horas duplas na profunda obscuridade viu à distância uma claridade a ao chegar a ela, saiu de frente ao Sol. E ali estava o jardim dos deuses. Seus olhos viram uma árvore e para ela se dirigiu: de seus ramos de lapislázuli, pendia como espesso fruto o rubi. 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 12. Vestido com a pele de leão e comendo carne de animais, Gilgamesh vagava pelo jardim sem saber em que direção ir, por isto, quando Samash o viu apiedado lhe disse: 'Quando os deuses engendraram ao homem, reservaram para si a imortalidade. A vida que busca nunca a encontrarás'(4). Mas Gilgamesh chegou a praia, até o barqueiro de O Longínquo. Fatos além mar dividiram a terra, mas Utnapishtim que os viu chegar pediu explicações ao acompanhante de seu barqueiro. Gilgamesh deu seu nome e explicou o sentido da travessia. O dilúvio universal. E disse Utnapishtim: ' Te revelarei um grande segredo. Houve uma cidade antiga chamada Surupak, as margens do Eufrates. Era rica e soberana. Tudo ali se multiplicava, os bens e os seres humanos cresciam em abundância. Mas Enlil molestado pelo clamor, disse aos deuses que não era possível conciliar o sonho e exortou a por fim ao excesso desencadeando o dilúvio. Ea, então, em um sonho me revelou o desígnio de Enlil. 'Abandona tua casa e salva tua vida, constrói uma barca que terá que ser telhada e de igual largura que comprimento. Logo, levarás a barca a semente de todo ser vivo. Se te perguntam por teu trabalho dirás que decidistes viver no golfo. Meus pequenos passavam graxa e os grandes faziam tudo o que era necessário. No quinto dia terminei a quilha e a armação. Em suas costelas com firmeza assegurei a entabladura. O piso, quatro vezes por dez áreas tinha por medida, cada lado do piso, formava um quadrado que media doze vezes dez cotovelos de comprimento, cada parede, desde o piso até o teto, media doze vezes dez cotovelos de altura. Abaixo ao teto, construi seis coberturas, com o piso, sete e dividi cada uma em nove partes com delgadas paredes... Trabalho cheio de dificuldades foi colocá-lo, pesado foi carregar os troncos de cima para baixo, até que rodando sobre eles, o barco estava submergido em seus dois terços. No sétimo dia o barco estava completo e carregado com todo o necessário. Minha família, parentes e artesãos carreguei na barca e logo fiz entrar aos animais domésticos e selvagens. Quando chegou a hora, esta tarde, Enlil enviou ao Cavaleiro da Tormenta. Entrei na barca e a fechei com graxa e asfalto e como tudo estava pronto dei o timão ao barqueiro Puzur-Amurri. Negral arrancou as comportas das águas inferiores e trovejando, os deuses, arrasaram campos e montanhas. Os juizes do inferno, os Anunnaki, lançaram suas teias e se fez da noite o dia. Dia após dia, aumentava a tempestade e parecia cobrar novo ímpeto de si mesma. Ao sétimo dia o dilúvio se deteve e o mar ficou calmo. Abri a escotilha e o sol me pegou em cheio. Em vão, procurei, tudo era mar. Chorei pelos homens e os seres vivos novamente convertidos em barro. Somente descobri uma montanha distante umas quatorze léguas. E lá, no monte Nisir, a barca se deteve. O monte Nisir a impediu de mover-se... Quando chegou o sétimo dia soltei uma pomba e a pomba se distanciou, mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela, voltou. Então soltei uma andorinha, e a andorinha se distanciou mas regressou, como não havia lugar de repouso para ela, voltou. Então soltei um corvo, e o corvo se distanciou, viu que as águas haviam baixado, e comeu, revoou , grasnou e não regressou. Logo os deuses se reuniram em conselho e recriminaram a Enlil o castigo tão duro que havia dado as criaturas, assim é, que Enlil veio até a barca e fazendo ajoelhar a mim e a minha mulher , tocou nossas frentes ao tempo que dizia: 'Nos tempos passados Utnapishtim era mortal, mas desde agora será um deus como nós e viverá longe, na boca dos rios, e sua mulher para sempre o acompanhará'. Enquanto a ti Gilgamesh, porque os deuses haviam de outorgar-se a imortalidade ?'. O regresso. 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 13. Utnapishtim submeteu Gilgamesh a uma prova. Este devia tratar de não dormir durante seis dias e sete noites. Mas enquanto o herói se sentou sobre seus calcanhares uma neblina descontrolada da lã do sono caiu sobre ele. 'Olha-o, olha quem busca a imortalidade !', assim disse O Longínquo a sua mulher. Despertando, Gilgamesh se queixou amargamente pelo fracasso: 'Onde irei ? A morte está em todos os meus caminhos'. Utnapishtim, contrariado, ordenou ao barqueiro que regressasse com o homem mas não sem piedade por ele decretou que suas vestimentas jamais envelheceram, assim novamente em sua pátria haveria de luzir esplêndido aos olhos mortais. Ao despedir-se O Longínquo sussurrou: 'Há no fundo das águas uma planta, o lício espinhoso é similar pois fere como os espinhos de um roseiral, as mãos podes desgarrar: mas se tuas mãos se apoderam dela e a conservam, serás imortal !'. Gilgamesh entrou nas águas atando a seus pés pesadas pedras. Se apoderou da planta e empreendeu o regresso enquanto disse a si mesmo: 'Com ela darei de comer ao meu povo e eu também haverei de recuperar minha juventude'. Logo, caminhou horas e horas dentro da obscuridade da montanha até franquear a porta do mundo. Depois destes trabalhos viu uma fonte e se banhou, mas uma serpente saída das profundezas arrebatou a planta e submergiu-se fora do alcance de Gilgamesh. Assim voltou o mortal com as mãos vazias, com o coração vazio. Assim voltou a Uruk a bem cercada. O destino de Gilgamesh, que Enlil decretou, se cumpriu... Pan para Neti o guardião da Porta. Pan para Ningizzida o deus serpente, senhor da Arvore da Vida. Também para Dumuzi, o jovem pastor que a terra fertilizara.(5) Aquele que tudo soube e que entendeu o fundo das coisas. Aquele que tudo o fez ver e tudo o ensinou. Que conheceu os países do mundo... Grande foi sua glória ! Ele, que construiu os muros de Uruk, que empreendeu uma grande viagem e que soube tudo o que ocorreu antes do Dilúvio, ao regressar gravou suas proezas em um rastro de estrela. 5 10 15 20
  • 14. II.MITOS ASSÍRIO-BABILÔNICOS Enuma Elish (Poema da Criação) 1 O caos Original Quando no alto o céu nome não tinha e no baixo a terra não havia sido mencionada, do Abismo e da Impetuosidade misturaram-se as águas . Nem os deuses, nem os mangues, nem os juncais existiam. Nesse caos foram engendradas duas serpentes que por muito tempo cresceram de tamanho dando lugar aos horizontes marinhos e terrestres. Elas separaram os espaços, elas foram os limites do céu e da terra. Desses limites nasceram os grandes deuses que foram se agrupando em distintas partes do que era o mundo. E estas divindades continuaram engendrando e perturbando, assim, os grandes formadores do caos original. Então, o abismal Apsu se dirigiu a sua esposa Tiamat, mãe das águas oceânicas e lhe disse: “O comportamento dos deuses é insuportável, seu folguedo não me deixa dormir, eles se alvoroçam por conta própria sendo que nós não lhes marcamos nenhum destino”. Os deuses e Marduk Assim falou Apsu a Tiamat, a resplandecente. De tal modo isto foi dito que Tiamat, enfurecida, pôs-se a gritar: “Vamos destruir esses revoltosos, assim poderemos dormir”. E ela estava nervosa e se agitava em voz alta. Foi desse modo que um dos deuses, Ea, compreendendo o desígnio destrutivo estendeu sobre as águas um encantamento. E com ele deixou profundamente adormecido Apsu (este era seu desejo), prendendo-o com correntes. E, finalmente, o matou: desmembrou seu corpo e sobre ele estabeleceu sua moradia. Ali viveu Ea com sua esposa Damkina até que dessa união nasceu Marduk. O coração de Ea exultou ao ver a perfeição de seu filho, coroada por sua dupla cabeça divina. A voz da criança ardia em labaredas enquanto seus quatro olhos e seus quatro ouvidos esquadrinhavam todas as coisas. Seu corpo enorme e seus membros incompreensíveis eram banhados por um fulgor que ficava extremamente forte quando os relâmpagos se juntavam sobre ele. A guerra dos deuses 5 10 15 20 25
  • 15. Enquanto Marduk crescia e ordenava o mundo, alguns deuses se aproximaram de Tiamat para recriminá-la pela sua falta de mérito, dizendo-lhe: “Mataram teu consorte e ficaste calada e agora tampouco nós podemos descansar. Tu te converterás em nossa força vingadora e nós caminharemos ao seu lado e iremos para o combate”. Assim grunhiam e se amontoavam ao redor de Tiamat até que ela, matutando sem parar, afinal decidiu moldar armas para seus deuses. Irada, criou os monstros- serpentes de garras venenosas, os monstros-tempestade, os homens-escorpiões, os leões-demônios, os centauros e os dragões voadores. Onze monstros insuperáveis criou Tiamat e depois, dentre seus deuses, promoveu Qingu e o designou chefe de seu exército. 2 Ela exaltou Qingu e o constitui chefe deles para que ele fosse primeiro adiante de seu exército, para dirigir a tropa, para levar as armas e desencadear o ataque levando a direção suprema no combate. Ela confiou em suas mãos dele quando o fez sentar na assembléia: “Eu pronunciei o juramento em teu favor, te exaltando na assembléia dos deuses e te dei todo o poder para dirigir todos os deuses. Tu és magnífico, meu único esposo és tu! Que os Anunnaki exaltem teu nome acima de todos eles!” Ela lhe deu as Tábuas do Destino, e colocou-as a seus pés: E quanto a ti, teu mandato não mudará, as palavras da tua boca permanecerão!” 3 Mas Ea, ao conhecer novamente os perversos desígnios, procurou a ajuda dos outros deuses e proclamou: “Tiamat, nossa criadora, nos aborrece. Colocou do seu lado, e contra nós, os terríveis Anunnaki. Está confrontando a metade dos deuses com a outra metade, como poderemos fazê-la desistir? Peço que os Igigi se reunam em conselho e deliberem”. E, desse modo, as várias gerações de Igigi se reuniram mas ninguém pôde resolver a questão. Com o passar do tempo, e nem emissários nem valentes puderam mudar os desígnios de Tiamat, o ancião Anshar se levantou pedindo por Marduk. Então Ea foi a seu filho e rogou-lhe que ajudasse os deuses. Mas Marduk respondeu que, em tal situação, tinha de ser elevado a chefe. Marduk falou isso e foi até o conselho. (Os deuses)...comeram pão festivo e beberam vinho; encheram seus copos com o doce licor. Quando tomaram a forte bebida seus corpos se empanturraram; começaram a gritar quando seus corações se exaltaram e a Marduk, o seu vingador, outorgaram o destino. Preparam para ele um trono principesco; na presença de seus pais, sentou-se para presidir... “...Oh, Marduk, tu és realmente nosso vingador! A soberania sobre todo o universo te outorgamos. Quando sentares na assembléia tua palavra será suprema. Tuas armas não fracassarão; esmagará teus inimigos! Oh senhor, protege a vida dos que confiam em ti; mas deite fora a vida do deus que concebeu o mal!” Colocaram no meio deles uma veste e se dirigiram a Marduk, o preferido deles: “Senhor, teu destino é o primeiro entre os deuses! Decida arruinar ou criar, diga uma palavra e assim será: abra a boca e a veste desaparecerá, abra de novo e a veste voltará intacta!” (com efeito), falou e a veste desapareceu, falou de novo e a veste restaurada ficou. Quando os deuses, seus pais, viram a eficácia da sua palavra se alegraram e renderam-lhe homenagens: “Marduk é rei!”. Entregaram-lhe o cetro, o trono e a flecha; e deram-lhe a arma sem igual que expulsa os inimigos: “Vai e tira a vida de Tiamat. Que os ventos levem o sangue dela a lugares secretos!” 4 O senhor fez um arco e o pendurou do lado de seu coldre. Fez uma rede para apanhar Tiamat. Levantou a maça e colocou na sua frente o relâmpago, ao mesmo tempo em que seu corpo encheu-se de fogo. Depois deteve os ventos para que nada de Tiamat pudesse escapar, mas criou os furacões e fez a tormenta diluvial surgir enquanto subiu no carro-tempestade. Nele ungiu a quadriga de nomes terríficos e como o raio foi de encontro a Tiamat. Este sustinha em sua mão uma planta que jorrava veneno, mas o Senhor se aproximou para esquadrinhar o seu interior e captar as intenções dos Anunnaki e de Qingu. 5 -Será que és tão importante para que te eleves acima de mim como supremo deus? -Berrou raivosa Tiamat. 5 10 15 20 25 30 35 40 45
  • 16. -Tu te exaltaste grandemente e elevaste Qingu como poder ilegítimo. Tu odeias teus filhos e queres o mal a eles. Agora levante-se e vamos ao combate! -Respondeu Marduk, ao mesmo tempo que os deuses afiavam suas armas. Tiamat exorcizou e recitou suas fórmulas e os deuses saíram para a batalha. Então, o Senhor jogou sua rede e a terrível Tiamat abriu sua enorme boca. Neste momento, ele soltou os furacões que penetraram nela e lançou a flecha que atravessou seu ventre. Depois se encarregou de suas obscuras entranhas até deixá-la sem vida. O horrível exército debandou e na confusão as afiadas armas foram destroçadas. Presos na rede, os prisioneiro foram arrojados às cavernas dos espaços subterrâneos. O soberbo Qingu foi despojado das Tábuas do Destino, que não lhe pertenciam, e encarcerado junto com os Anunnaki. Assim, as onze criaturas que Tiamat havia criado, foram convertidas em estátuas para que nunca fosse esquecido o triunfo de Marduk. A criação do mundo Após reforçar a prisão de seus inimigos e de selar e colocar em seu peito as Tábuas do Destino, o Senhor voltou ao corpo de Tiamat. Sem piedade esmagou seu crânio com a maça, separou os condutos de seu sangue, que o furacão levou a regiões secretas e, ao ver a carne monstruosa concebeu idéias artísticas. Por isso cortou ao longo do cadáver como se ele fosse um peixe, levantando uma de suas partes até o alto do céu. Prendeu-a lá e colocou um guardião para que impedisse a saída das águas. Depois, atravessando os espaços, inspecionou as regiões e medindo o abismo estabeleceu sua moradia nele. Assim criou o céu e a terra e estabeleceu seus limites. Então, construiu casas para os deuses iluminando-as com estrelas. Depois de criar o ano, determinou que nele houvesse doze meses por meio das figuras 6. A estas dividiu até definir os dias. Nos lados reforçou os ferrolhos da esquerda e da direita, colocando entre ambos a zênite. Destacou para Samash 7 a divisão do dia e da noite e colocou a brilhante estrela de seu arco 8 à vista de todos. Encarregou Nebiru 9 da divisão das duas seções celeste ao norte e ao sul. Em meio a escuridão encarregou Sin de iluminar, ordenando os dias e as noites. “Para cada mês, sem cessar, darás a forma de uma coroa. No início do mês, para brilhar sobre o país, tu mostrarás os cornos para determinar seis dias; no sétimo dia serás meia coroa. No dia quatorze colocar-te-ás de frente ao sol. No meio do mês, quando o sol te alcançar na base dos céus, diminui tua coroa e faça minguar a luz. E, quando desapareceres, aproxima-te do curso do sol. No dia vinte e nove tu te colocarás novamente em oposição ao sol”. 10 Depois, voltando à Tiamat, pegou sua saliva e com ela formou as nuvens. Com sua cabeça produziu os montes e de seus olhos fez fluir o Tigre e o Eufrates. E, finalmente, de suas tetas criou as grandes montanhas e perfurou os mananciais para que os poços dessem água. Por fim, Marduk solidificou o solo levantando sua luxuosa morada e seu templo, oferecendo-os aos deuses para que lá se alojassem quando participassem das assembléias nas que deviam determinar os destinos do mundo. Conseqüentemente, a estas construções chamou “Babilônia”, que significa a casa dos grandes deuses”. 11 A criação do ser humano. 5 10 15 20 25 30 35
  • 17. Ao finalizar sua obra, o Senhor foi exaltado pelos deuses e, então, como reconhecimento a eles, disse: “Vou amassar meu sangue e formar ossos. Vou fazer com que surja um homem...que se encarregue do culto dos deuses para que possam se satisfazer! Eu astutamente modificarei os caminhos dos deuses. Ainda que sejam igualmente reverenciados, se dividirão em dois grupos”. 12 Ea lhe respondeu, dirigindo-lhe uma palavra para contar-lhe um plano que aliviaria os deuses: “que um de seus irmãos seja entregue; somente ele perecerá para que a humanidade possa ser modelada. Que os grandes deuses estejam aqui na assembléia; que o culpado seja entregado para que eles possam permanecer”. 13 Marduk fez com que os prisioneiros Anunnaki fossem trazidos e lhes perguntou, sob juramento, do culpado pela insurreição prometendo a vida para quem declarasse a verdade. Então os deuses acusaram Qingu. “Foi Qingu quem planejou a insurreição e fez com que Tiamat se rebelasse e deu início à batalha”. Amarraram-no, colocando-o diante de Ea. Cobraram-lhe sua culpa e retiraram seu sangue. Com seu sangue modelaram a humanidade. Ea obrigou que o culto fosse aceito e deixou os deuses livres. Depois Ea, o sábio, criou a humanidade; impôs a ela o culto aos deuses. Esta obra foi incompreensível. 14 E assim, o Senhor deixou os deuses livres e os dividiu em trezentos para cima e trezentos para baixo e os constituiu como guardiões do mundo. Agradecidos, os Anunnaki edificaram um santuário e o elevaram acima do Esagila e, depois de terem levantado uma torre com escadarias, nela estabeleceram uma nova morada para Marduk. 15 Quando os grandes deuses se reuniram e exaltaram o destino de Marduk, eles se inclinaram para baixo e pronunciaram entre eles uma maldição jurando pela água e pelo azeite entregar suas vidas. 16 “...que os ‘cabeças negras’ esperem em seus deuses. Quanto a nós, ainda que se o possa chamar (a Marduk) de muitos nomes, ele é nosso deus! Proclamemos, pois, seus cinqüenta nomes”. 17 E as estrelas brilharam e todos os seres criados pelos deuses se alegraram. Também a humanidade se reconheceu no Senhor. Que exista, por isso, memória de tudo o que aconteceu. Que os filhos aprendam de seus pais este ensinamento. Que os sábios pesquisem cuidadosamente o sentido d’O canto de Marduk que venceu Tiamat e conseguiu o reinado. 18 5 10 15 20 25
  • 18. III. MITOS EGÍPCIOS Ptah e a criação 1 Havia somente um mar infinito, sem vida e em absoluto silêncio. Então chegou Ptah com as formas dos abismos e as distâncias, das solidões e das forças. Por isso Ptah via e ouvia, olhava e percebia — em seu coração, a existência. Mas o que percebia tinha idealizado antes em seu interior. Assim, tomou a forma de Atum e, devorando sua própria semente, pariu o vento e a umidade, os quais expulsou de sua boca criando Nut, o céu, e Geb, a terra. Atum, o não existente, foi uma manifestação de Ptah. Assim, inexistentes foram antes de Ptah as nove formas fundamentais e o universo com todos os seres que Ptah concebeu dentro de si e que, somente com sua palavra, colocou na existência. Depois de ter criado tudo de sua boca, descansou. Por isto, até o final dos tempos, será invocado: Imenso, imenso Ptah, espírito fecundador do mundo. 2 As formas dos deuses são formas de Ptah e, somente por conveniência humana, Ptah é adorado com muitos nomes e seus nomes mudam e são esquecidos; novos deuses substituem os antigos mas Ptah permanece alheio a isto. Ele criou o céu como condutor e a terra circundou de mar; também criou o inferno para que os mortos se apaziguassem. Fixou rumo à Rá de horizonte a horizonte nos céus, e fez com que o homem tivesse seu tempo e seu domínio; assim fez também com o faraó e com cada reino. Rá, no seu caminho pelos céus, reformou o estabelecido e apaziguou os deuses que estavam descontentes. Amava a criação e deu amor aos animais para que ficassem felizes, lutando contra o caos que punha em perigo suas vidas. Deu limites para noite e para o dia e fixou as estações. Colocou ritmo no Nilo para que regasse o território e depois se recolhesse para que todos pudessem viver do fruto de suas águas. Ele subjugou as forças da obscuridade. Por ser quem trouxe a luz foi chamado de Amon-Rá, por quem acreditou que Amon nasceu de um ovo que ao quebrar num estalo deu lugar às estrelas e outras luminárias. Mas a genealogia dos deuses começa em Atum que é o pai-mãe dos deuses. Ele engendrou a Shu (o vento) e Tefnut (a umidade) e de ambos nasceram Nut ( o céu) e Geb (a terra). Estes irmãos se uniram e procriaram Osíris, Seth, Neftis e Ísis. Esta é a Enéida divina da que deriva tudo. Morte e ressurreição de Osíris Os pais de Osíris viram que este era forte e bondoso; por isso o encarregaram de governar os territórios férteis e cuidar da vida de plantas, animais e seres humanos. A seu irmão Seth deram os amplos territórios desérticos e estrangeiros. Todo o selvagem e forte, os rebanhos e as feras foram postos sob seu cuidado. Osíris e Ísis formavam o resplandecente casal do amor. Mas a névoa do ciúme turvou Seth, por isso este confabulou e com a ajuda de setenta e dois membros de seu séquito organizou uma festa para aniquilar seu irmão. Nessa noite chegaram os conjurados e Osíris. Seth 5 10 15 20 25 30 35
  • 19. presenteou os convidados com um magnífico sarcófago prometendo dá-lo a quem, ao ocupá-lo, correspondessem melhor as medidas . Assim, uns e outros entravam e saíam até que chegou a vez de Osíris fazer sua prova. De imediato baixaram a tampa e a lacraram. Osíris, aprisionado, foi levado até o Nilo e lançado em suas águas com a intenção de que sumisse nas profundezas. Não obstante, o sarcófago flutuou e chegando ao mar se afastou do Egito. Muito tempo passou até que um dia a caixa chegou na Fenícia 3 e as ondas o depositaram ao pé de uma árvore. Esta cresceu até uma altura gigantesca envolvendo com seu tronco o sarcófago. Admirado com a imponência do exemplar o rei local fez com que o derrubassem e levou o grande tronco a seu palácio a fim de utilizá-lo como coluna central. Entretanto, a Ísis foi revelado o ocorrido; por isso se dirigiu à Fenícia e, entrando no serviço da rainha, pode estar próximo ao corpo de seu marido. Mas a rainha, compreendendo que sua serva era Ísis entregou-lhe o tronco para que dispusesse dele conforme seu desejo. Ísis, partindo o invólucro de madeira, extraiu o ataúde e regressou ao Egito com sua carga. Mas Seth já estava inteirado do ocorrido e, temendo que Ísis reanimasse seu marido, roubou o corpo. Velozmente deu-se a tarefa de despedaçá-lo em quatorze partes que depois espalhou por todas as terras. Por isso começou a peregrinação de Ísis recolhendo pedaços do cadáver. Já fazia tempo que a obscuridade reinava devido a morte de Osíris. Ninguém cuidava dos animais, nem das plantações, nem dos homens. A disputa e a morte substituíram para sempre a concórdia. Quando Ísis conseguiu recuperar as distintas partes do corpo, ela as uniu e, juntando-as fortemente com bandagens realizou seus conjuros. 4 Depois construiu um forno enorme, uma pirâmide sagrada 5, e em suas profundezas colocou a múmia. Abraçada a ela insuflou-lhe seu alento. Fez entrar o ar como o fole faz para aumentar o calor do fogo da vida... Ele despertou, ele conheceu o sono mortal, ele quis manter seu verde rosto vegetal. 6 Quis conservar a coroa branca e sua plumagem para recordar claramente quais eram suas terras do Nilo. 7 Também recolheu o espanador e o cajado para separar e reconciliar, como fazem os pastores com seu bastão curvo. 8 Mas, quando Osíris erguido viu a morte ao redor, deixou seu duplo, seu Ka 9, encarregando- o de custodiar seu corpo para que ninguém voltasse a profaná-lo. Pegou a cruz da vida, a Ankh 10 da ressurreição, e com ela em seu Ba 11 se dirigiu para salvar e proteger a todos os que sozinhos e aterrorizados penetram o Amenti. 12 Por isso foi viver no oeste esperando os que, desvalidos, são exilados do reino da vida. Graças ao seu sacrifício, a natureza ressurge cada vez e os seres humanos criados pelo fole divino 13 são algo mais que barro animado. Desde então, invoca-se ao deus de muitas maneiras e também desde então a exalação final é um canto de esperança. 'Bom Osíris! Envia Thot 14 para que nos guie até o sicômoro 15 sagrado, até a árvore da vida, até a porta da Dama do Ocidente 16; para que nos faça eludir as quatorze mansões rodeadas de estupor e angústia nas que os perversos sofrem terrífica condenação. Envia Thot, o íbis sábio, o escriba infalível dos feitos humanos gravados no papiro de memória inapagável. Bom Osíris! Em ti espera a ressurreição o vitorioso, depois do julgamento em que suas ações são pesadas por Anúbis, o chacal justo. 17 Bom Osíris! Permite que nosso Ba aborde a barca celeste e separado do Ka deixe este como custódia dos amuletos 18 em nossa tumba. Assim navegaremos para as regiões do esplendor do novo dia." Hórus, a vingança divina 19 Quando Ísis colaborou na ressurreição de Osíris, deu a luz ao filho de ambos. Pegou o recém nascido e o ocultou nas cavernas do Nilo para protegê-lo da fúria de Seth, de Min 20 e dos atacantes do 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 20. deserto. Ele foi a criança que surgiu radiante na flor de lótus e que, referenciado como falcão, pôs seus olhos em todos os cantos do mundo. Ele foi, como Hórus Haredontes, o vingador de seu pai quando chegou o tempo. Ele é Hórus, deus de todas as terras, filho do amor e da ressurreição. O menino foi crescendo e sua mãe preparou-o para reivindicar os domínios dos que Seth havia se apoderado porque a este correspondia por direito somente os desertos e os países estrangeiros, e no entanto, se aventurava pelo Nilo. Osíris, em sua viagem ao oeste, às terras de Amenti que agora dominava, deixou para Ísis o mandato de recuperar todo o Nilo para seu filho. Por isto, participaram ante a assembléia da Enéida os disputantes. Hórus disse: "Um indigno fratricida usurpa os direitos que meu pai deixara, apoiado numa força cega que os deuses não consagram..." Mas o discurso foi interrompido por Seth que, num grito irado, desprezou o pedido proveniente de uma criança incapaz de exercer tais demandas. Então, arrojando suas armas, em singular combate acometeram um contra o outro e em sua luta rodaram montes e as águas espantadas saíram de seus cursos. Oitenta longos anos durou tal disputa até que Seth arrancou os olhos de Hórus e este pulverizou as partes vitais de seu adversário. Tanta fúria chegou a seu fim quando ambos desfalecentes caíram pelos solos. Então, Thot curou as feridas e restabeleceu fragilmente a paz que o mundo, desatendido, reclamava. Ante os deuses se pediu o veredicto. Ra (sempre ajudado por Seth em sua luta contra a mortal Apófis 21) inclinava a balança contra Hórus, enquanto Ísis com brio a seu filho defendia. Os deuses, afinal, restabeleceram ao menino seus direitos, mas Ra, murmurando irritado, se afastou da assembléia. Assim, os deuses foram divididos em número e poder sem que aquela discussão tivesse fim. Ísis, então, com ardis, fez com que Seth pronunciasse um discurso no qual a razão ficava para aquele que impedira o estrangeiro de ocupar os tronos, e por esse erro o próprio Seth ficou afastado das terras que pedia. Então Ra exigiu uma nova prova para que nela se decidisse tudo. Transformados em fortes hipopótamos recomeçaram a luta, mas Ísis desde a margem das águas disparou um arpão que por erro foi acertar Hórus. Este, vociferando, se lançou sobre sua mãe, e lhe arrancou a cabeça. 22 Os deuses deram como substituto uma cabeça de vaca a Ísis e ela, posta em batalha novamente com seu arpão, deu fim a Seth, que, rugindo, saiu das águas. Assim é que uma nova prova foi aconselhada., deixando o resto dos deuses alheios ao conflito. Em barcos de pedra deviam ambos navegar. Seth talhou a sua em pedra e se afundou, mas Hórus somente na aparência mostrou seu barco, conforme todos haviam concordado, porque em madeira coberta com estuque apresentou seu engenho. Navegava Hórus reivindicando o triunfo, mas Seth como novo hipopótamo fê-lo naufragar e, assim, somente na praia a merecida revanche conseguiu Hórus descarregando sua maça sobre Seth prendendo seus membros. Assim o arrastou ao tribunal onde os deuses esperavam. E somente ante a ameaça de matar Seth na frente de toda a assembléia, Ra preferiu dar razão a Hórus e os deuses regozijados coroaram como senhor supremo o menino-falcão enquanto este pisava a cervical do vencido, o qual, prometendo solene obediência, deu por terminada a contenda, afastando- se para sempre a seus domínios nos desertos e entre os estrangeiros. Thot, sabiamente organizou as novas responsabilidades, e Hórus ajudando Ra destruiu a desleal serpente Apófis que até esse momento havia ameaçado seu radiante barco. Com o sangue da antiga besta se tingem, às vezes, de vermelho os céus, e Ra, navegando em seu barco celeste despeja a sucassão de ondas que vão para o ocidente. O Antimito de Amenófis IV 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 21. Houve um faraó bondoso e sábio que compreendeu a origem de Ptah e a mudança de seus nomes. Ele restabeleceu o princípio quando viu que os homens oprimiam os homens fazendo com que acreditassem que eram eles a voz dos deuses. Numa manhã viu como um vassalo era julgado no templo por não pagar tributos aos sacerdotes, por não pagar aos deuses. Então, saiu de Tebas para On 24 e lá perguntou aos teólogos mais sábios qual era a verdadeira justiça. Esta foi a resposta: "Amenófis, bom é teu fígado e as intenções que dele partem, e a verdade mais bondosa trará mal para ti e para nosso povo. Como homem será o mais justo. Como rei será a perdição...mas teu exemplo não será esquecido e muitos séculos depois de ti será reconhecido o que hoje será visto logo como loucura." De volta de Tebas olhou para sua mulher como quem esquadrinha o amanhecer, viu sua formosura e para ela e para seu povo cantou um belo hino. Nefertiti chorou pela piedade do poeta e soube de sua glória e de seu trágico futuro. Ela, com a voz entrecortada, o aclamou como verdadeiro filho do Sol. "Aknaton !", disse, e depois se calou. E, nesse momento, lançaram seu destino aceitando o justo porém impossível. Assim foi a rebelião de Aknaton e o breve respiro dos filhos do Nilo, quando um mundo com o peso de milênios cambaleou por um instante. Assim se retirou o poder daqueles que faziam com que os deuses falassem suas próprias intenções. Amenófis lançou-se na luta contra os funcionários e sacerdotes que dominavam o império. Os senhores do Alto Nilo se aliaram com os sacerdotes acossados. O povo começou a ocupar posições antes vedadas e foi resgatando para si o poder que deles fora retirado. Foram abertos os silos e distribuídos os bens. Mas os inimigos do novo mundo pegaram em armas e fizeram o fantasma da fome mostrar seu rosto. Morto Aknaton, todos seus feitos se tornaram conhecidos entre todos e se tentou apagar esta memória para sempre. Não obstante, Áton conservou sua palavra. Este foi o poema que iniciou o incêndio...25 Toda a terra se entrega ao trabalho...porque cada caminho se abre quando tu surges. Tu, que procuras o germe fecundo para as mulheres, tu que fazes a semente nos homens, tu que fazes viver o filho no ventre da mãe, que o acalma para que não chore; tu nutres o que há no ventre, dás o ar para fazer com que viva tudo o que criaste. Quando rompe o ventre no dia do nascimento, tu lhe abres a boca para que fale, lhe provê em suas necessidades. Quando o galo está no ovo, tu lhe dás o ar para que viva. Tu lhe ajudas para que quebre o ovo, e saia e pie e caminhe sobre seus pés logo quando nascido. Quantas são tuas obras ! Teu rosto é desconhecido, oh, deus único!, além do qual nenhum existe. Tu criaste a terra com teu desejo quando estavas só; com os homens, as bestas e cada animal selvagem, e tudo o que existe sobre a terra e caminha sobre seus pés, e tudo o que existe no céu e voa com suas asas. E os países estrangeiros, Siris, Nubia e a terra do Egito; tu colocaste cada homem em seu lugar, provieste suas necessidades; cada um com seu pão e é contada a duração de sua vida. Suas línguas são diferentes em palavras, e também seus caracteres e suas peles; diferenciaste os povos estrangeiros. E fizeste um Nilo no Duat e o levas onde queres para dar vida às pessoas, assim como tu as criaste. Tu, senhor de todos eles, tu muito te empenhas por eles, oh, Áton do dia ! Grande em dignidade ! E todos os países estrangeiros e longínquos, fazes tu que também eles vivam; puseste um Nilo no céu que desce para eles e que faz ondas sobre os montes como um mar e banha seus campos e suas comarcas. Que perfeitos são teus conselhos ! Oh, senhor da eternidade ! O Nilo do Céu é teu dom para os estrangeiros e para todos os animais do deserto que caminham sobre seus pés. Mas o Nilo vem do Duat para o Egito. E teus raios nutrem todas as plantas; quando tu resplandeces elas vivem e crescem por ti. Tu fazes as estações para que se desenvolva todo o criado; o inverno para refrescá-lo, o verão porque te agrada. Tu fizeste o céu afastado para resplandecer nele e para ver tudo, tu, único, que resplandeces em tua forma de Áton vivo, surgido e luminoso, distante e vizinho. Tu fazes para ti milhões de formas, tu, único; cidades, povos, campos, caminhos, rios, cada olho te vê diante de si e tu és Áton do Dia. Quando te vais e cada olho por ti criado dorme 5 10 15 20 25 30 35 40 45
  • 22. seu olhar para não te ver só, e não se vê mais aquilo que criaste, tu estás todavia em meu coração... A terra está em tua mão como tu a criaste. Se tu resplandeces ela vive, se te ocultas ela morre. Tu és a própria duração da vida, e se vive de ti!
  • 23. IV-MITOS HEBRAICOS A árvore da Ciência e a árvore da Vida E Jeová Deus fez nascer da terra toda árvore deliciosa para os olhos e boa para comer; também a árvore da vida no meio do bosque, e a árvore da ciência do bem e do mal...E mandou Jeová Deus no homem, dizendo: de toda árvore do bosque poderás comer; mas da árvore da ciência do bem e do mal não comerás, porque o dia em que dela comeres, certamente morrerás. 1 E assim, Adão e Eva viviam no Éden, aquele lugar do qual saia um rio que regava todo o bosque. Essa corrente se dividia em quatro braços. O nome do primeiro, o que rodeava a terra de Havila onde havia ouro, era Pisão. O do segundo, que rodeava a terra de Cus, era Gihon. O do terceiro, escondido e sombrio, que ia ao oriente da Assíria, era Hydekel e o quarto, de boas e rumorosas palavras, era o Eufrates. Mas o Éden era completo em plantas e animais, por isso nossos pais foram ali os nomeadores de todos os seres viventes. Como dar um nome para a árvore da vida e a da ciência do bem e do mal sem saber delas, sem se aproximar delas? Por isto, sem temer a ciência, desejaram tê-la e não souberam como. Assim, Eva, perturbada pela pergunta, dormiu à noite e dormindo sonhou e sonhando viu a árvore da ciência que resplandecia na escuridão. Deste modo, Eva se aproximou da árvore e, num instante, se apresentou diante dela uma inquietante figura alada. Seu porte era formoso, mas na escuridão não conseguia distinguir seu rosto que, talvez, fosse de Adão. De seus cabelos úmidos de orvalho saia uma fragrância que exaltava ao amor. E Eva queria vê-la. A figura, enquanto contemplava a árvore, disse: "Ó formosa planta de abundante fruto! Não há quem se digne de aliviar- te o peso e provar de sua doçura? Tão depreciada é a ciência? Será acaso a inveja ou alguma injusta reserva o que nos proíbe de tocá-la? Proíba-o quem queira, ninguém me privará mais tempo dos bens que ofereces; senão, por que estás aqui?". Assim disse, e não se deteve mais; e com mão temerária arrancou o fruto e o provou. Um horror glacial paralisou Eva em seu sonho por causa da audácia da figura alada, mas de imediato esta exclamou: "Ó fruto divino, doce por si só, e muito mais doce colhido deste modo, estando proibido, ao que parece, como que reservado unicamente para os deuses. E sendo, sem dúvida, capaz de converter em deuses os homens! E por que não haveriam de sê-lo? O bem aumenta quanto mais se o comunica, e seu autor, longe de perdê-lo, adquirirá mais elogios. Aproxime-se alegre criatura, bela e angelical Eva; compartilha desse fruto comigo!” 2. Eva despertou sobressaltada e contou o sonho a seu companheiro. Adão, então, se perguntou: "Não fala Deus pelos sonhos? Se de dia proíbe e à noite convida, à qual incitação haverei de responder já que não tenho ciência suficiente? Haveremos de conseguir essa ciência para determinar nossos destinos, já que Jeová Deus nos criou mas não disse como haveríamos de fazermos a nós mesmos." Então comunicou a Eva seu plano para apoderar-se da fruta, para correr com ela chegando até a árvore da vida a fim de ficarem imunes ao veneno da ciência. Depois esperaram que Jeová Deus passasse pelo bosque no ar do dia e, em sua ausência, foram até a árvore. Então, ao ver uma serpente que entre os galhos deslizava pelos frutos, pensaram que seu veneno era retirado desse alimento. Por isso duvidaram e, ao duvidarem o tempo passou e Jeová Deus empreendeu seu regresso. Então acreditaram ouvir que a serpente lhes sussurrava: "Não morrereis, mas bem sabe Deus que o dia em que comerdes esses 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 24. frutos serão abertos vossos olhos e sereis como Deus conhecendo o bem e o mal". 3 Não mentia a serpente, mas queria evitar que comessem da outra árvore, da árvore da vida. 4 Sendo já muito tarde, Adão e Eva provaram do fruto e seus olhos se abriram, mas quando quiseram chegar até a árvore da imortalidade, Jeová Deus lhes fechou a passagem, impedindo que alcançassem seu objetivo. E disse Jeová Deus: Eis que aqui então o homem é como um de nós, sabendo o bem e o mal; agora, pois, que não estique sua mão, e também pegue da árvore da vida e coma, e viva para sempre. E o tirou Jeová do bosque de Éden, para que lavrasse a terra da qual foi retirado. Lançou, então, para fora o homem, e colocou a oriente do bosque do Éden querubins e uma espada em fogo que se movia para todos os lados, para guardar o caminho da árvore da vida. 5 Adão e Eva se afastaram do Éden e sempre esteve seu olhar posto na direção do Paraíso do qual só o esplendor noturno e a fumaça da espada de fogo denunciavam seu rastro. E já não voltaram, já não puderam voltar, mas começaram a oferecer a Jeová Deus sacrifícios de fogo e fumaça porque acreditavam que lhe agradava. E muitos povos, com o tempo, pensaram que os deuses gostavam dos altos montes e dos vulcões porque estes são a ponte entre a terra e os céus. Assim, quando chegou o momento, Jeová Deus lhes entregou do fogo, do monte, a Lei que os homens procuravam para determinar seu Destino. 6 Abraão e a obediência Muitos gerações passaram desde os primeiros pais até o Dilúvio. Depois dele, quando Jeová estendeu no céu o arco-íris para selar seu pacto com os homens, continuou se reproduzindo toda semente. E assim, em Ur de caldéia, Taré pegou seu filho Abrão e Sarai sua nora e foram todos ao Egito. Tempos depois regressaram para Hebron. O ganho e os bens de Abrão cresceram, mas seu coração foi tomado pela tristeza porque na sua idade não havia conseguido descendência. Abrão era já velho quando fez com que sua serva Agar concebesse. Mas Agar e Sarai se tornaram inimigas. Por isso Agar saiu para o deserto e levou com ela sua aflição. Então, um anjo apresentou-se a ela e lhe disse: "Tens concebido e ao dar a luz chamarás teu filho de Ismael porque Jeová escutou suas preces. Ismael, portanto, significará "Deus ouve" e sua descendência será numerosa e os povos dele habitarão os desertos não adorando a Deus porque o olho vê, senão porque o escuta o ouvido. Assim rogarão a Deus e Deus os ouvirá". Muito depois Sarai concebeu sendo já anciã, mas seus descendentes e os de Agar mantiveram a disputa que começara entre suas mães mesmo sendo Abrão o pai de todos e a todos quis ele como seus filhos. Nesse momento, Deus disse: "Daqui por diante não te chamarás Abrão senão Abraão, porque serás pai de uma multidão e Sarai será chamada Sara, como princesa de nações. Quanto ao filho teu e de Sara, o chamarás Isaac." Aconteceu depois destas coisas, com as que Deus provou Abraão, e lhe disse: Abraão. E ele lhe respondeu: Eis-me aqui. E disse: Pega agora teu filho Isaac a quem amas, e vá a terra de Moriah e oferece-o lá em holocausto sobre um dos montes que eu te indicarei. E Abraão levantou-se bem de manhã. E selou seu asno, e trouxe consigo dois de seus servos e a Issac, seu filho; e cortou lenha para o holocausto, e se levantou e foi ao lugar que Deus lhe disse. No terceiro dia, levantou Abraão seus olhos e viu o lugar ao longe. Então Abraão disse a seus servos: Esperem-me aqui com o asno, e eu e o menino iremos até ali e adoraremos e voltaremos até vocês...E pegou Abraão a lenha do Holocausto e a colocou sobre Isaac, seu filho, e pegou em suas mãos o fogo e o facão; e foram ambos juntos. Então falou Isaac a Abraão, seu pai, e disse: Meu pai. E ele respondeu: Eis-me aqui, 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 25. meu filho. E ele lhe disse: Aqui está o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto? E respondeu Abraão: Deus proverá o cordeiro para o holocausto, filho meu. E juntos iam. E quando chegaram ao lugar que Deus lhe havia dito, edificou ali Abraão um altar, e dispôs a lenha. E estendeu Abraão sua mão e pegou o facão para degolar seu filho. Então o anjo de Jeová lhes deu vozes do céu, e disse: Abraão, Abraão. E ele respondeu: eis-me aqui. E disse: não estenda sua mãos sobre o menino, nem lhe faça nada; porque reconheço que temes a Deus, porquanto não recusaste teu filho... Então, levantou Abraão seus olhos e olhou, e eis que às suas costas um carneiro estava preso num arbusto pelos chifres; e Abraão foi e pegou o carneiro, e o ofereceu em holocausto no lugar de seu filho. E deu Abraão o nome daquele lugar: Jeová proverá. 7 Talvez até sua morte, ficou presente no coração de Abraão a angústia da terrível prova. Por isso às vezes se diz: "Jeová repudia o sacrifício humano e mais ainda do próprio filho. Se ordena o holocausto não devo acatá-lo porque seria desobedecer sua proibição. Mas rejeitar o que ele manda é pecar contra ele. Devo obedecer algo que meu deus repudia? Sim, se ele o exige. Mas minha torpe razão atormentada luta, ademais, com um coração de um pobre ancião que ama aquele impossível que Jeová lhe deu tardiamente. Não será esta prova a devolução do riso que contive quando me foi anunciado que nasceria meu filho? 8 Não será o riso que ocultou Sara quando escutou tal vaticínio? 9 Por algum motivo Jeová indicou o nome de "Isaac” que significa "riso". Eu e minha mulher éramos já velhos quando nos foi dito que teríamos este filho e não podíamos crer que isto fosse possível. Será que Jeová brinca com suas criaturas como uma criança com areia? Ou será que, conhecendo sua ira e seu castigo, não consideramos que ele também nos prove e nos ensine com a brincadeira divina? ". 10 O homem que lutou contra um deus 11 E levantou-se naquela noite e pegou suas duas mulheres, e suas duas servas e seus onze filhos, e passou o expediente de Jacó. Pegou-lhes, então, e colocou a eles e a tudo o que possuía para fora da casa. Assim ficou Jacó sozinho; e lutou com ele um varão até que raiava a aurora. E quando o varão viu que não podia com ele, tocou no lugar de encaixe de seu músculo, e desconjuntou o músculo de Jacó enquanto com ele lutava. E disse: "Deixa-me porque raia a aurora. E Jacó lhe respondeu: Não te deixarei se não me bendizeres. E o varão lhe disse: Qual é teu nome? E ele respondeu: Jacó. E o varão lhe disse: Não mais será dito Jacó, senão Israel, 12 porque lutaste com Deus e com os homens e venceste. Então Jacó lhe perguntou e disse: Declare-me agora teu nome. E o varão respondeu: Por que me perguntas meu nome? E o bendisse aí. E chamou Jacó o nome daquele lugar de Peniel 13, porque disse: Vi Deus cara a cara e foi liberta minha alma. E quando havia passado Peniel, saiu o sol e mancava nas cadeiras. 14 Por isto não comem os filhos de Israel, até os dias de hoje, do seu tendão que se contraiu, o qual está no encaixe do músculo, porque tocou Jacó esta parte de seu músculo no tendão que se contraiu. 15 Moisés e a Lei Divina 16 Aconteceu que, passado já muito tempo, os filhos de Israel alojados no Egito foram crescendo em número e poder. E apoiaram com júbilo as mudanças que introduziu um sábio faraó que quis a 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 26. igualdade para todos os povos. E o bom rei morreu no meio da grande agitação que haviam promovido seus inimigos. E os israelitas passaram de uma pacífica existência a serem perseguidos e humilhados. Quando decidiram abandonar essas terras, o novo faraó os impediu. Também nesses anos sombrios numerosos partidários do rei justo foram assassinados. Outros terminaram no cárcere e nas pedreiras, condenados a terminar suas vidas ali. E aconteceu que entre esses últimos se encontrava um jovem que quando criança fora resgatado das águas do Nilo pelas mulheres do bom faraó. Educado na corte, aprendeu a língua de Israel ainda que sempre a tenha falado com dificuldade. Moisés, o "resgatado das águas", fugiu das pedreiras e foi se refugiar nos campos, na casa de um sacerdote de Madiã. E eis então que o sacerdote era dos perseguidos e partidário do rei justo. Por isto, acolheu Moisés quando veio a ele se refugiar e quando contou sua história do resgate das águas que tanto se assemelhava às lendas de Osíris e de Sargon (este que foi salvado da Babilônia, segundo diziam os vindos com Abraão de Ur da Caldéia). E é aqui que Moisés tomou por esposa a filha do sacerdote. E um dia, pastoreando as ovelhas de seu sogro, chegou até Horeb, monte de Deus. E apareceu-lhe o Anjo de Jeová numa chama de fogo no meio de um arbusto; e ele olhou e viu que o arbusto ardia em fogo, e que o arbusto não se consumia. Então Moisés disse: Irei eu agora e verei esta grande visão, por que motivo o arbusto não se consome. Vendo Jeová que ele o ia ver, o chamou Deus do meio do arbusto e disse: Moisés, Moisés! E ele respondeu: Eis-me aqui. E disse: Não te aproximes; tira o calçado de teus pés, porque o lugar onde tu estás, terra santa é. E disse: Eu sou o Deus de teu pai. Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó. Então Moisés cobriu seu rosto, porque teve medo de olhar Deus. Disse então Jeová: Bem tenho visto a aflição de meu povo que está no Egito, e tenho escutado seu clamor por causa de seus exatores; pois tenho conhecimento de suas angústias, e desci para livrá-los da mão dos egípcios, e tirar-lhes daquela terra para uma terra boa e ampla, a terra onde flui leite e mel...Disse Moisés a Deus: Eis aqui que chego eu aos filhos de Israel e lhe digo: O Deus de vossos pais me enviou a vós. Se eles me perguntarem: Qual é teu nome?, o que lhes responderei? E respondeu Deus a Moisés: EU SOU AQUELE QUE SOU. E disse: Assim dirá aos filhos de Israel: EU SOU me envia a vós. Além disto, disse Deus a Moisés: Assim dirá aos filhos de Israel: Jeová, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, me enviou a vós. Este é meu nome para sempre; com ele serei recordado por todos os séculos. 17 Assim que Moisés regressava para o Egito, foi ao seu encontro Aarão da tribo sacerdotal de Levi e que havia tido sonhos nos quais Moisés recebia a missão divina. Então Aarão ajudou Moisés a usar a palavra entre os israelitas e, chegando até o faraó, o ameaçou dizendo: "Deixa que meu povo saia do Egito". Mas como o Faraó era indolente, Aarão , que era sacerdote, fez com seu bastão grandes prodígios aos olhos de todos. Mas chamou o Faraó seus sábios e sacerdotes que também demonstraram seu poder, e o Faraó endureceu seu coração. Então, Jeová por meio de Moisés e Aarão converteu a água do rio em vermelho sangue e os peixes morreram e também as rãs saíram dali invadindo tudo. Mas Faraó não deu valor a esses sinais. Por isto, pragas de piolhos e de moscas, pragas de gado e praga de úlceras, praga de granizo e de caranguejos caíram sobre os homens e as bestas. Mas Faraó não quis libertar os filhos de Israel, dizendo que a corrente do rio que havia transbordado arrastando limo vermelho do alto Nilo, provocava periodicamente esses desastres. Mas uma grande escuridão baixou e se manteve por três dias. E os sábios do Faraó também explicaram como as nuvens de água que se elevavam do rio escureciam o céu... Então Jeová mandou Moisés advertir o Faraó da morte dos primogênitos dos egípcios se não deixasse em liberdade o povo de Israel. E o Faraó não deu ouvidos e os filhos dos egípcios foram mortos nessa noite por um anjo do Senhor. E a partir daí esse mês foi o primeiro dos meses do ano, porque o sinal do sangue do cordeiro pascal com que os israelitas marcaram suas portas, os protegeu do anjo da morte. E Faraó permitiu a saída da povo de Israel e de todos os egípcios perseguidos. Partiram os 5 10 15 20 25 30 35 40 45
  • 27. filhos de Israel de Ramsés a Sucot, em torno de seiscentos mil homens a pé, sem contar as crianças. Também subiu com eles uma multidão de toda a classe de pessoas. 18 O povo cruzou o leito seco do Mar Vermelho, porque à direita e à esquerda estavam contidas as águas, nessa zona que havia mandado canalizar Amenófis. Mas eis que então o Faraó despachou seus soldados para destruir os que fugiam e, então, foram derrubadas as pesadas carruagens e o exército caiu. E sobre eles veio a água matando os perseguidores. E, mais uma vez, Jeová salvou Moisés das águas e com ele salvou a multidão que se afastava do Egito. 19 E as águas amargas 20 foram adocicadas pela árvore que Moisés nelas colocou. E Jeová ao povo deu o-que-é-isto 21 para comer e com isto o povo se sustentou e não morreu no deserto e assim chegou ao sagrado monte Sinai. O monte inteiro do Sinai fumegava porque Jeová em fogo havia descido nele; e a fumaça subia como a fumaça de um forno e o monte inteiro tremia em grandes proporções. O som da corneta ia aumentando ao máximo; Moisés falava, e Deus lhe respondia com voz de trovão. E desceu Jeová no monte Sinai, no cume do monte, e Moisés subiu. 22 Todo o povo observava o estrondo e os relâmpagos, e o som da corneta e o monte que fumegava; e vendo isto o povo, tremeram e se afastaram para longe. 23 E então Jeová Deus entregou aos homens a Lei que procuravam desde seus primeiros pais. Em duas tábuas de pedra gravou Deus os dez Mandamentos que os homens deviam seguir para se aproximarem dele. E também lhes deu leis que serviram para formá-los em sua História. Assim conduziu Moisés a Israel até a terra prometida pelo senhor. E subiu desde o monte de Moab ao monte Nebo, no cume do Pisga que está em frente de Jericó. Então Moisés viu. E lhe disse Jeová: Esta é a terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacó, dizendo: Para tua descendência a darei. Permiti a ti vê-la com teus olhos, mas não chegarás até lá. E morreu ali Moisés, servo de Jeová, na terra de Moab, conforme disse Jeová. E o enterrou no vale, na terra de Moab, em frente de Bet-Peor; e ninguém conhece o lugar de sua sepultura até hoje. 24 E nunca mais surgiu um profeta em Israel igual a Moisés, que tinha conhecido Jeová frente a frente; ninguém como ele em todos os sinais e prodígios que Jeová lhe enviou para que os fizesse na terra do Egito, ao Faraó e a todos os seus servos e a toda a sua terra, e no grande poder e nos feitos grandiosos e terríveis que Moisés fez diante dos olhos de todos. 25 5 10 15 20 25
  • 28. V - MITOS CHINESES O vazio central 1 O Tao é um recipiente oco, difícil de encher. Mesmo sendo freqüentemente usado ele nunca se enche. É tão profundo e insondável que parece anterior a todas as coisas. Não se sabe de quem é filho. Parece anterior aos deuses. 2 Trinta raios convergem até o centro de uma roda, mas é o vazio do centro que torna útil a roda. 3 Com argila se molda um recipiente, mas é o espaço que não contém argila que usamos como recipiente. Abrimos portas e janelas em uma casa, mas é por seus espaços vazios que podemos utilizá- la. Assim, da existência provém as coisas e da não-existência sua utilidade. Tudo era vazio e Pangu dormia no interior do que estava unido, por isto que foi chamado "infinita profundidade". 4 Então despertou. De imediato, rompeu com seu machado o ovo que o envolvia. E ele rapidamente se dividiu em milhares de pedaços. As coisas mais leves e as mais pesadas foram em diferentes direções. Para evitar que novamente se juntassem, Pangu colocou-se no centro vazio solidificando o céu e a terra. Ele foi como uma coluna que deu equilíbrio à criação. Depois descansou e dormiu novamente até que seu corpo deu lugar a numerosos seres. 5 De um olho saiu o sol e do outro a lua. Com seu sangue formaram-se os rios e os lagos. Os animais saíram de sua pele. O cabelo se transformou em ervas e seus ossos em minerais. Nestes primeiros tempos viviam na terra deuses, gigantes e monstros. A deusa mãe Nuwa, era na sua metade superior muito formosa e em sua metade inferior se assemelhava a um dragão. Percorria e visitava todos os lugares, mas finalmente descobriu que faltavam seres mais perfeitos e inteligentes que os gigantes. Então, foi até o rio Amarelo e modelou com argila os primitivos seres humanos. E os fez parecidos a ela, mas em lugar de rabo de dragão colocou pernas para que caminhassem erguidos. Vendo-os graciosos, decidiu fazer muitos. Para isto, tomou um junco (embarcação oriental) e foi lançando gotas de barro sobre a terra. Estas —ao cair sobre ela— se converteram em mulheres e homens. Deste modo, quando eles começaram a se reproduzir por si só, a mãe celestial se dedicou à criação de outros seres. Fushi, companheiro da deusa, viu que os homens aprendiam e então ocupou-se em ensiná-los a fazer fogo esfregando madeiras. Logo deu-lhes cordas e mostrou a eles como se protegeriam da fome e da intempérie. Finalmente, os outorgou a arte dos hexagramas ao que chamou I Ching. Com o tempo este foi conhecido como o livro das transformações e da adivinhação. Chegou o dia em que os imortais discutiram e, entrando em guerra, puseram em perigo o Universo. Dilúvios e catástrofes assolaram a terra. Até que, por último, o Deus do fogo prevaleceu sobre as águas. Todavia os gigantes quiseram disputar o poder com os eternos, mas os deuses em indizível cólera cortaram suas cabeças, fazendo-as rolar até o fundo dos abismos obscuros. 5 10 15 20 25 30 35
  • 29. O Dragão e o Fênix 6 Quando ainda as águas não estavam controladas e os rios transbordavam arrasando os campos, a deusa mãe procriou bons descendentes que terminaram ordenado este caos diluvial. Trabalhando no controle dos rios, dos lagos, do mar e das nuvens, os dragões cintilantes navegaram pelas águas e pelo céu. Com unhas de tigre e garras de águia, rasgavam as cortinas do alto com um tremendo estrondo que, ao faiscar ante o embate descomunal, deixavam as chuvas em liberdade. Eles deram leito aos rios, contenção aos lagos e profundidade aos mares. Fizeram as cavernas das que brotavam a água por dutos subterrâneos que levaram muito longe para que surgisse em seguida, sem que o assalto abrasador do sol as detivesse. Traçaram as linhas que se vê nas montanhas para que a energia da terra fluísse, equilibrando a saúde deste corpo gigantesco. Freqüentemente, tiveram que lutar com os bloqueios que provocavam os deuses e os homens ocupados em seus trabalhos irresponsáveis. De suas gargantas brotava como fumaça a neve, vivificante e úmida, criadora de mundos irreais. Com seus escamosos corpos serpentinos cortavam as tempestades e dividiam os furacões. Com seus poderosos chifres e com seus dentes afiados, nenhum obstáculo era suficiente, nenhum ardil podia permanecer. E gostavam de aparecer aos mortais. Às vezes nos sonhos, às vezes nas grutas, às vezes na borda dos lagos porque nestes podiam ter moradas de cristal escondidas nas quais belos jardins eram decorados com frutos brilhantes e com as pedras mais preciosas. O Long imortal, o dragão celeste, sempre colocou sua atividade (seu Yang) a serviço do Tao e o Tao o reconheceu permitindo que estivesse em todos as coisas, desde o maior até o menor, desde o universo até a partícula insignificante. Tudo viveu graças ao Long. Nada permaneceu imutável salvo o Tao inominável, porque ainda o Tao nominável mudou e se transforma graças a atividade do Long. E nem mesmo os que crêem no Céu e no Inferno podem assegurar sua permanência. 7 Mas o Long ama o Feng, a ave Fênix que concentra o germe das coisas, que contrai aquilo que o Long expande. E quando o Long e o Feng se equilibram o Tao resplandece como uma pérola banhada na luz mais pura. O Long não luta com o Feng porque se amam e se buscam fazendo resplandecer a pérola. Por isto, o sábio regula sua vida conforme o equilíbrio entre o Dragão e o Fênix que são as imagens dos princípios sagrados do Yang e o Yin. O sábio se refugia num lugar vazio buscando o equilíbrio. O sábio compreende que a noção gera a ação e a ação gera a não ação. Que o coração dos viventes, que as águas do mar, que o dia e a noite, que o inverno e verão, se sucedem em um ritmo que para eles marca o Tao. No final desta idade, quando o universo tenha chegado a sua grande expansão ele voltará a se contrair como pedra que cai. Tudo —até o tempo, se inverterá voltando ao princípio. O Dragão e o Fênix se reencontrarão. O Yang e o Yin se compenetrarão, e será tão grande a atração que absorverá todo o germe vazio do Tao. O céu é alto, a terra é baixa; com isto estão determinados o criativo e o receptivo... com isto se revelam as mudanças e as transformações. 8 Mas ninguém pode saber realmente como eram nem como serão as coisas; se alguém o soubesse não poderia explicar. O que sabe que não sabe é o maior; o que pensa que sabe mas não sabe, tem a mente doente. O que reconhece a mente doente como estando doente, não tem a mente doente. O sábio não tem a mente doente porque reconhece a mente doente como a mente doente. 9 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 30. VI. MITOS HINDUS Fogo, Fomenta e Exaltação 1. Aqui estão os primeiros, os que logo tomaram outras formas —tantas que não as posso reconhecer. Aqui estão o Fogo 2 e a Tormenta 3 que dirigem a criação. O Fogo não é nada mais que fogo e a Tormenta é somente vento, água e trovão, sem a Exaltação 4 do poeta em quem habita a palavra. 1. - Agni, merecidamente louvado pelos cantores antigos e digno de o ser pelos atuais, que reuna ele aqui os deuses 5. Tu, oh Agni, primeiro. Angiras por excelência, poeta, dos deuses circunda as ações, onipresente a toda criatura, sábio, filho de duas mães, que te apresenta de várias formas ao homem 6. Ereto, defendendo-nos do perigo com teu sinal luminoso; queima todo demônio. Coloca-nos eretos para correr, para viver; outorga-nos a honra entre os deuses. Dispersando-os em todas as direções com uma arma mortífera, mata os inimigos, oh deus de mandíbula abrasadora. O nosso inimigo, o homem que afia sua espada durante a noite, que este inimigo não consiga se apoderar de nós... Protege-nos do ofensor, daquele que deseja nos matar, oh deus brilhante, oh o mais jovem dos deuses 7. Um novo hino de louvor que saiu de nosso interior, de nós mesmos, alcance a Agni de língua de mel, uma vez nascido 8... A ti elogia com seu canto Gotama, desejoso de riqueza 9... Quando me ponderaram a enorme força do deus devorador de madeira, ele manifestou sua cor como o fez para os Usij: este Agni brilha alegremente com luz resplandecente, como quem tendo envelhecido, de repente se faz jovem. Agni, que ilumina os bosques como se estivesse sedento, que ressoa em seu caminho como a água, como as rodas de um carro. Agni de negro caminho, ardente, brincalhão, brilha como o céu sorrindo entre as nuvens. Agni, que se estendeu abrasando ao longo da terra ampla, caminha como um animal livre, sem pastor; Agni, inflamado, abrasando os matagais, deus de rosto enegrecido que saboreou a terra 10. 2. - Quero, pois, proclamar as façanhas de Indra, as que fez em primeiro lugar o deus do raio; ele matou a serpente, atravessou a grandeza das águas, abriu o ventre das montanhas. Matou a serpente que havia se fixado na montanha; Tvastar havia modelado para ele o raio que ecoa. Como as vacas que mugindo se dispersam, as águas desceram diretas ao oceano. Cuidadosíssimo elegeu o Soma; bebeu do Soma preso nos três cântaros; deus generoso, tomou a arma temida; matou esta serpente, a primeira nascida das serpentes. Quando tu mataste, Indra, a primeira serpente nascida das serpentes, aniquilastes as arteiras ações dos demônios arteiros; então, gerando o sol, o céu, a aurora, em verdade já não encontraste mais inimigos... Como um mau guerreiro embriagado por nefasta bebedeira, Vrtra desafiou o grande lutador, deus que rejeita com poder, bebedor de Soma; não pôde resistir ao choque das armas mortíferas de Indra; foi aniquilado ficando sem rosto Urtra, que tinha a Indra por inimigo. Sem 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 31. pés, sem mãos, havia combatido contra Indra e este o golpeou com o raio em suas costas. Boi que pretendia ser a réplica do touro, Vrtra dispersou-se em mil lugares. Como jazia de tal maneira, tal qual boi despedaçado, as águas avançaram sobre ele se espalhando em direção ao homem. As que Vrtra havia assediado com força aos pés delas a serpente ficou desde então pendurada. Acabou a força daquela a que Vrtra era filho. Indra descarregou sobre ela sua arma mortífera; acima estava sua mãe, abaixo estava o filho; o demônio-fêmea jazia como uma vaca com seu bezerro. Em meio das correntes de águas que nunca cessam, o corpo de Vrta jazia oculto; as águas circulavam através do esconderijo de Vrtra; em duradoura treva jazia aquele cujo inimigo foi Indra. As águas que tinham por dono o aborígene, que tinham por guardiã a serpente, haviam ficado imóveis, bloqueadas, como as vacas encurraladas. O orifício das águas, que havia sido obstruído, Indra o descobriu quando matou Vrtra 11... Quando tu nasceste, neste dia bebeste com desejo deste Soma, o suco da planta do Soma, que reside na montanha; tua mãe, a jovem geradora, o derramou, em primeiro lugar, na casa do grande pai. Aproximando de sua mãe pediu alimento; olhou até o Soma concentrado como em direção a uma úbere; o deus rapidamente correu afugentando os outros; fez grandes coisas este deus de múltiplos rostos. Poderoso, vencedor dos fortes, de força suprema, este deus fez para si um corpo de acordo a seu próprio desejo; Indra, tendo superado por sua natureza a Tvastar, arrebatando-o, bebeu o Soma nos cálices. Invoquemos a Indra, o magnânimo, para prosperar neste combate, o mais viril, para a obtenção do despojo, deus que escuta, terrível, para a ajuda nos combates, destruidor dos inimigos, ganhador dos despojos 12. 3- Para ti caminhamos; tu és nossa meta dia à dia; oh suco de Soma, em ti estão postas nossas esperanças. A filha do sol purifica o Soma que flui ao redor mediante o filtro de pelos de ovelha, ininterruptamente. As dez ternas mulheres o tomam (com os dedos), na assembléia ritual, as dez irmãs no ponto extremo do céu. Essas virgens o fazem fluir, fazem soar, soprando, a gaita. Fazem sair o licor triplamente protetor. As vacas, as vacas produtoras de leite mediante a mescla de leite deixam no ponto esta criatura, o Soma, para que Indra o beba. Indra golpeia todos os inimigos na embriaguez deste Soma, e este herói distribui sua generosidade ...13 A teu deus rosado, nós te adoçamos misturando com leite das vacas para a embriaguez. Abra-nos as portas para a riqueza. O Soma ultrapassou o filtro como o cavalo vencedor ultrapassa o sinal na corrida. O suco do Soma é o senhor entre os deuses. Os amigos têm cantado junto ao Soma que pula na vasilha de madeira através do filtro de pelos de ovelha. As preces dirigiram gritos de alegria ao Soma... 14 A águia de vôo seguro te traiu. Para que todo ser humano possa ver o sol, a este Soma, bem comum, que atravessa o espaço, guardião da ordem, a ave o traiu. Quando foi enviado para cá, obteve o poder supremo de Indra, o Soma que proporciona auxílio, o muito ativo... 15 Tuas forças, oh Soma, surgem como o bramido da onda do rio... 16 Tuas correntes de incomparável abundância avançam com as chuvas do céu para conseguir um despojo que vale mil. Contemplando todas as amadas obras poéticas, o Soma se derrama, o corcel, agita as armas. Purificado intensamente pelos Ayus, como um rei com vassalos, zeloso protetor da lei, se assentou, como uma ave de presa, nas vasilhas de madeira. Todos os bens do céu e da terra, uma vez purificado, oh suco de Soma, confere-os a nós. 17 5 10 15 20 25 30 35 40 45
  • 32. O tempo e os deuses. Então não havia o existente e o não existente; não havia o reino do céu e do ar. O que havia dentro e onde? O que protegia? Acaso havia água nesta insondável profundidade? Não havia a morte, não havia algo imortal, não havia divisão entre o dia e a noite. Este algo, sem alento, respirava por sua própria natureza; aparte deste algo não havia nada... Quem o sabe verdadeiramente, quem pode afirmar onde nasceu e de onde veio a criação? Os deuses são posteriores à criação do mundo. Quem sabe, então, de onde o mundo procedeu? A origem da criação talvez tenha formado tudo, ou talvez não. Quem cujos olhos controlam o mundo, ele verdadeiramente o sabe, ou talvez não 18. Mas os deuses e os homens foram criados e têm seu tempo. Sim, têm seu tempo. Um dia dos deuses é igual a um ano dos mortais. Portanto, um ano dos deuses é o mesmo que 360 anos mortais. Existem quatro Eras (Yugas) que formam uma grande Era (Mahayuga) de 12 mil anos divinos, correspondente a 4.320.000.000 anos ordinários ou um dia de Brahma. Mas, ao terminar seu dia, o deus descansa e, então, ocorre um colapso no Universo. Enquanto Brahma dorme sobre sua grande serpente tudo começa ser absorvido por ele. Os mundos desabitados se chocam entre si; a terra toda se liqüefaz, todo líquido se evapora, todo vapor se converte em energia e esta energia cai dentro do poder da noite de Brahma. E quando o deus desperta se abre uma grande lótus; a luz escapa e começa um novo dia. Neste dia se sucedem 14 ritmos (Manvantaras) nos quais são criados os deuses e os mundos; os peixes; as aves; os insetos; os animais e os homens. Cerca de 71 séries de Grandes Eras se sucedem para cada um dos 14 ritmos. Cada ritmo, então, compreende 852.000 anos divinos ou 306.790.000 anos mortais nos que a energia divina vai se distanciando de seu centro. Assim, a história da presente humanidade se encontra num ritmo e dentro deste numa das 71 séries de Grandes Eras. Como cada grande era está dividida em 4 Eras desiguais, na primeira (Krita Yuga) transcorrem 4.800 anos divinos ou 1.728.000 anos ordinários; na segunda (Treta Yuga) 3.600 ou 1.296.000; na terceira (Dvapara Yuga) 2.400 ou 864.000, e na quarta (Kali Yuga) 1.200 ou 432.000. Por conseguinte, o ser humano tem que estar em todo este ciclo, 4.320.000 anos. Mas, como já se encontram na quarta Era, desde sua criação transcorreram pelo menos 3.888.000 de seus anos. Distanciando-se da criação original todos os seres decaem e, certamente, também o ser humano segue essa tendência. A Krita é esta Era na que a justiça é eterna. Nesta Era, a melhor das Yugas, tudo foi (Krita) e nada fica por fazer. Os deveres não se descuidam nem declina a moral. Depois, com o passar do tempo, esta Yuga cai num estado inferior. Nesta Era não havia deuses; não havia compras nem vendas, não se tinha que fazer esforço. O fruto da terra se obtinha pelo mero desejo e prevaleciam a justiça e o desapego do mundo. Não existiam enfermidades, nem involuções dos órgãos do sentido com o passar dos anos; não existiam a malícia, o pranto, o orgulho nem o engano; nem tampouco disputas, ódio, crueldade, medo, aflição, ciúmes ou inveja. De tal forma que o supremo Brahma era o recurso transcendente destes seres perfeitos. Nesta época todos os humanos eram semelhantes no objeto de sua fé e no seu conhecimento. Somente se usava uma fórmula (mantra) e um ritual. Somente havia um Veda. Mas na Era seguinte, 5 10 15 20 25 30 35 40
  • 33. Treta Yuga, começaram os sacrifícios. A justiça decresceu em um quarto. Os homens aderiram à verdade e estavam dedicados a uma justa dependência das cerimônias. Prevaleceram os sacrifícios, juntamente com as artes sagradas e uma grande variedade de ritos. Se começou a atuar com fins tangíveis, buscando recompensa pelos rituais e doações e já não se preocupavam com a austeridade e a simples generosidade. Mais adiante, na Dvapara Yuga, a justiça diminuiu duas quartas partes. O Veda se quadruplicou. Alguns estudaram quatro Vedas, outros três, outros dois e outros absolutamente nenhum. Dividindo-se deste modo as escrituras, as cerimônias eram celebradas de forma muito diversa. As pessoas ocupadas na prática de austeridade e donativos encheram-se de paixão. Devido à ignorância do único Veda, os Vedas se multiplicaram. E com o declínio do bem, somente uns poucos permaneceram fiéis à verdade. Quando o homem se separou do bem, na sua queda se viu atacado por muitas enfermidades, desejos e calamidades causadas pelo destino, sofrendo muitas aflições, e foram motivados a praticar austeridade. Outros perseguiram os gozos, a dita celestial e ofereceram sacrifícios. Assim, o homem desistiu por sua iniqüidade. E no Kali Yuga, a justiça conservou-se somente em uma quarta parte. Nesta era de obscuridade cessaram os rituais e os sacrifícios. Prevaleceram diversas calamidades, enfermidades, fadigas e pecados como a ira. Propagou-se a miséria, a ansiedade, a fome e o medo. As práticas geradas pela degradação dos Yugas frustaram os propósitos do homem. Assim é o Kali Yuga que vem existindo a alguns séculos 19. Mas a pequenez da história do homem não teria sentido se nele não existisse o Brahma. Porque, o que são as 71 séries de Mahayugas nas que se cria e se destrói o homem se não um só dos 14 Manvantaras, e o que são estes se não um Kalpa, um só dia de Brahma. Em incontáveis reencarnações, a essência humana irá se purificando. Retrocedendo e avançando de acordo às suas ações, irá preparando suas vidas seguintes respondendo à lei universal do Karma. Mas dentro de cada ser humano, na profundidade mais profunda está seu Atman. Assim, quando o homem chega ao Atman se encontra com o que nele é Brahma. Entretanto, esta equivalência desconcertante somente será clara no dia em que se renunciando a feliz contemplação chegue aos homens a compaixão do ser vivente e liberado, conhecido pelos séculos como o Iluminado 20. Glória à Brahma, que é chamado pela palavra mística (Om) 21 associada eternamente com o universo tríplice (terra, céu e paraíso) e que é único com os quatro Vedas. Glória ao Brahma que é considerado como a causa maior e misteriosa do princípio intelectual, sem limites de espaço ou tempo e isento de diminuição ou queda... Brahma é invisível e imorredouro, variável na forma, invariável na substância; o princípio primário, criado por si mesmo, de quem se diz que ilumina as cavernas do coração e que é indivisível, radiante, não decadente e multiforme. Que sempre se adore este Supremo Brahma! 22 As formas da beleza e o horror. 23 Por que os deuses haveriam de conceder seus dons à súplica dos insignificantes mortais? Por que tão grandiosos seres iriam se interessar por assuntos banais, pelas rixas e penas, esperanças e devoções? Por que será que tão grandes poderes estão designados a uma pequena região do Universo insondável? ; Será porque em cada ponto em que 5 10 15 20 25 30 35 40