1. Umwelt e Sobrevivência
Últimos 550 milhões de anos englobam a questão mais importante: o desenvolvimento da vida
humana
Por Jorge de Albuquerque Vieira
A palavra Umwelt pode ser traduzida como “mundo a volta”, “ mundo entorno”,
ou “ mundo particular”. O termo foi proposto por um biólogo estoniano, Jakob von
Uexkull, na primeira metade do século 20, para designar a forma como uma
determinada espécie viva interage com o seu meio ambiente. A Umwelt seria, assim,
uma espécie de interface entre o sistema vivo e a realidade; interface esta que
caracteriza a espécie, função de sua particular história evolutiva.
Uma metáfora esclarecedora seria imaginar um determinado sistema vivo como
preso em uma bolha, que não seria completamente ou perfeitamente transparente, mas
que funcionaria como um sistema de filtros. É claro que a base biológica da Umwelt é
fortemente associada aos canais de percepção do ser vivo. Mas além dos sistemas
perceptuais, essa “bolha” envolve processos de elaboração interna de informação nos
sistemas nervosos envolvidos. Admitindo-se a hipótese ontológica de que a realidade é
complexa, cada “bolha” seleciona características, representações, perspectivas dessa
realidade, de forma particular para cada sistema cognitivo, tal que haja a possibilidade
de espécies diferentes ocuparem o mesmo ambiente e, muitas vezes, nem tomarem
conhecimento umas das outras, vivendo como que isoladas.
Essa forma de dependência à Umwelt embasa, biologicamente, o fenômeno
kantiano, e com ele a visão fenomenológica desenvolvida posteriormente pelo filósofo
matemático e astrônomo Charles Peirce, o que resultou em sua tentativa de expandir a
lógica e na emergência de sua semiótica. Como uma Umwelt seleciona e filtra
informações provindas do ambiente e as internaliza de forma codificada, todo o material
que um sistema vivo dispõe para construir conhecimento é constituído de “algos” que
representam um “algo externo” para um “algo” particular, que é o sistema cognitivo.
Essa conceituação, triádica, envolvendo os três “algos” é o que Peirce chamou de signo.
O conceito proposto por Uexkull é a base biológica da teoria dos signos ou
semiótica, no sentido peirceano_ o biólogo estoniano é reconhecido hoje em dia como
pai da biosemiótica. Resumidamente, para sobreviver, um sistema vivo precisa lidar
eficientemente com a realidade. Para isso necessita ser sensível a características dessa
realidade que lhe são importantes. Mas a realidade não pode ser “mapeada”
diretamente como tal, no interior do sistema vivo. É necessário que este, a partir de sua
sensibilidade, codifique adequadamente as variações das propriedades dos itens
ambientais, sendo que do ponto de vista do objetivismo realista crítico, tais variações,
constituem o que chamamos informações. A internalização do fluxo de informações e
2. sua consequente elaboração à Umwelt, é que embasa os mecanismo de cognição. É
claro que conhecimento é função vital para sistemas vivos, a garantia que estes têm de
sobrevivência a partir da adequada e eficiente elaboração da realidade na forma de
representações coerentes.
Como a Umwelt é a interface entre a realidade objetiva e o mundo
representacional de um sistema cognitivo, vimos que o conceito não pode ser visto
como puramente objetivo ou subjetivo. O fato dessa interface permitir que o mundo
seja codificado no interior do sistema vivo, o condiciona a lidar apenas com signos que
representam algo, nunca o algo em si mesmo. Na concepção de Uexkull, as únicas leis
que conseguimos acessar são as leis dos signos, o semioticamente real.
Há um ponto fundamental para a espécie humana, que já foi observada por
vários filósofos contemporâneos. Nossa Umwelt já deixou de ser meramente biológica.
A complexidade humana, principalmente manifestada pela extrasomatização de nosso
cérebro, constitui as esferas do psicológico, do piscos-social, do social e do cultural.
Segundo Richard Dawkins, além de propagarmos no tempo nossos genes como signos
biológicos, já produzimos também seu equivalente mental, que o autor batizou memes.
Signos que se replicam, se reproduzem, se propagam e evoluem.
Esta concepção coincide com a proposta anterior do que Peirce chamou
semiose, a ação do signo. Vivemos, hoje em dia na Umwelt humana, mergulhados em
uma realidade sígnica que ocupa vários níveis de complexidade. A psicologia e a
psicanálise, a sociologia, a psicobiologia, a sociobiologia, são áreas de conhecimento que
emergem como representativas do estudo dessas dimensões sígnicas. Entre as várias
consequências evolutivas, essa evolução da Umwelt humana é a geradora da capacidade
dos criadores, em ciência e arte, conseguirem propor sistemas de signos como teorias e
modelos que consigam falar daquilo que se encontra além da Umwelt biológica, como
fazemos na elaboração, por exemplo, da cosmologia e toda a física teórica.
Jorge de Albuquerque Vieira é professor do programa de Pós-graduação em comunicação e
semiótica da PUCSP. Suas áreas de interesse são: Teoria do conhecimento, Semiótica Peirciana e Teoria
geral dos sistemas segundo enfoque ontológico.