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Religiões Orientais:
Uma introdução.
Volume 1: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga.
Editora Universitária UFPB
João Pessoa
2010
2
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
reitor
RÔMULO SOARES POLARI
vice-reitora
MARIA YARA CAMPOS MATOS
EDITORA UNIVERSITÁRIA
diretor
JOSÉ LUIZ DA SILVA
vice-diretor
JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO
divisão de produção
ALMIR CORREIA DE VASCONCELOS JUNIOR
3
Maria Lucia Abaurre Gnerre
Religiões Orientais:
Uma introdução.
Volume 1: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga.
Editora Universitária UFPB
João Pessoa
2010
4
Todos os direitos reservados
Revisão: a autora
Apresentação: Fabrício Possebon
Capa: O campo de Batalha do Bhagavadgītā
Imagem disponível em:
http://www.inannareturns.com/gita/images/BGKrishnainstructsArjuna.
______________________________________________________________________
Gnerre, Maria Lucia Abaurre.
Religiões Orientais: Uma introdução. Volume 1: Tradições
da Índia – Do Veda ao Yoga. João Pessoa. Ed. Universitária
UFPB, 2010.
130 p.
ISBN: 978-85-7745-604-8
UFPB/BC CDU: 200
_______________________________________________________________
5
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Fabrício Possebon, pelo incentivo na formação da
área de Religiões Orientais do Departamento de Ciências das
Religiões da UFPB, pelo grande auxilio na publicação desta
obra, e pela apresentação – tão importante para
complementar meu trabalho.
A todos os demais colegas do departamento de Ciências das
Religiões da UFPB, que tanto tem me ajudado desde a minha
chegada. Obrigada!
Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) que financia,
através do Programa de Desenvolvimento Científico Regional
(DCR), minha atual pesquisa sobre História das Religiões
Orientais no Brasil.
A Fundação de Amparo à Pesquisa da Paraíba (FAPESQ), que
também financia minha atual pesquisa através de parceria
com o CNPq.
Ao meu companheiro, Gustavo Cesar O. Baez pelo carinho e
pela companhia nos caminhos teóricos e práticos do Yoga.
A minha mãe, Maria Bernadete Marques Abaurre, que sempre
incentivou meu trabalho e também se interessa pelo mundo
oriental. E, além disso, colaborou nesta obra com seu
conhecimento da língua portuguesa.
A meu pai, Maurizio Gnerre, que com seus relatos de viagens
pela Índia, aumentou ainda mais meu interesse.
Ao professor Horivaldo Gomes, que me apresentou vários
conceitos das Religiões Orientais de forma interativa e
integrada.
Aos amigos Klara Schenkel, Roberto Miranda e Rebecca
Soares Espínola, companheiros de aprendizagem pelos
caminhos do Yoga. Namastê!
6
7
SUMÁRIO
Apresentação: O verbo Criador
09
Introdução:
Os múltiplos olhares sobre o Oriente
13
Capítulo 1
Cultura, Sociedade e Religião da Índia antiga nos textos
védicos
25
Capítulo 2
A tradição dos upaniṣad
43
Capítulo 3
O épico hindu: Bhagavadgītā – A Canção do Venerável
61
Capítulo 4
A linhagem do Sāṁkhya e a dança dos elementos
81
Capítulo 5
O despertar do Yoga
95
Referências Bibliográficas
129
8
Nota sobre a grafia das palavras em Sânscrito:
Procuramos seguir neste livro a grafia das palavras em
sânscrito conforme elas se apresentam nos textos de
referência.
Dos textos que utilizamos, a maior parte se vale do
sistema internacional de transliteração (IAST) dos símbolos do
Devanagari (o alfabeto Sânscrito) para o alfabeto romano.
Este padrão de transliteração foi o aprovado no Congresso
Internacional de Orientalistas realizado em Atenas, em 1912.
Este sistema utiliza as letras do alfabeto romano, com
alguns sinais para representar letras especiais. Para que o
leitor possa compreender a forma correta de pronúncia destas
letras especiais, recomendamos as obras de ZIMMER (1986),
MARTINS (2008) e POSSEBON (2009).
9
O Verbo Criador
Fabricio Possebon
Coordenador da Pós-Graduação
Ciências das Religiões - UFPB
A obra que o leitor tem em mãos é um estudo introdutório
ao mundo da cultura e religião da Índia antiga. Em uma visão
panorâmica, acompanhando as propostas mais aceitas de
periodização, vamos seguindo o desenrolar do pensamento
indiano, desde seus primórdios, pouco elaborados e muito ligados
a uma concepção mítica da realidade, até o desabrochar de idéias
e raciocínios sofisticados e originais, como o yoga. Se buscarmos,
num esforço tremendo e mesmo ousado, um fio condutor desta
longa jornada, o que encontraremos? O que liga as diversas
doutrinas, segundo nossa interpretação, é o poder da Palavra,
 aqui entendida como o Verbo Criador. Em sânscrito,
é a fala, o discurso, a voz, o som e a língua, personificada e
divinizada na mais antiga tradição. Não se limita, portanto, a
veículo de comunicação, numa visão moderna e pragmática.
Verbum, , é uma deusa dos tempos védicos.
Tal qual em outras culturas arcaicas, é a palavra que cria e
mantém o funcionamento do mundo. Assim a vemos em Hesíodo,
na sua Teogonia, v. 75 e seguintes, onde a Musa Calíope, a Bela-
Voz, é tida como superior a todas as suas irmãs. Filha do
soberano Zeus-Poder e da deusa Memória, ela herda de seus pais
a força irresistível da persuasão e a lembrança histórica dos
acontecimentos. Deste modo, alguém só tem sucesso se recebe os
seus favores. De sua boca fluem palavras doces, épea meílikha.
No sentido grego primitivo, épos (de onde os nossos termos épica
e epopéia), mythos e lógos são sinônimos e cobrem o campo
10
semântico acima dito do sânscrito Vemos a força deste
lógos criador também no Evangelho de João, I, 1: en arkhêi ên ho
lógos, no princípio era o Verbo.
Ainda em Hesíodo, agora nos Trabalhos e Dias, v. 760 e
seguintes, conhecemos a deusa Fama, que deve ser evitada pelos
homens, pois ela se ergue facilmente, mas é difícil de ser
carregada e mais ainda de ser deposta. Fama é também um deus,
theós ný tís esti kaì autê, todavia um deus destruidor sobretudo.
Ovídio, nas Metamorfoses, XII, versos 39 e seguintes,
apresenta a Fama habitando um palácio, no centro do mundo,
cercado por terra, céu e mar. Tal palácio possui incontáveis
entradas, para que tudo ali seja ouvido. Inexiste silêncio, são
vozes sussurradas anunciando mil mentiras misturadas com
verdades, milia commenta mixta cum veris. Deste modo, a Fama
se apresenta como a face negativa do Verbum criador, como uma
espécie de excesso de Palavra. É também uma divindade a
Discórdia, éris, responsável pela guerra de Tróia.
Numa tradição arcaica, como a Guarani, a palavra,
nhe’eng, em dados contextos, transforma-se em palavra-alma,
assim nhe’eng-ey é o espírito enviado pelas divindades para se
encarnar em um ser que está prestes a nascer, ou seja, a palavra é
o próprio espírito do homem. Numa visão ampliada, as coisas
passam a existir no momento em que são nomeadas, que recebem
um dado nome. De certa forma, é o que faz Adão, no Gênesis, I,
19 e seguintes, ao dar nome a todos os seres viventes.
Não alcançamos o processo mágico da criação divina, em
que um deus pronuncia o Verbum e suas palavras se transformam
em coisas reais, nem mesmo conseguimos compreender com
precisão a ligação espiritual entre o nome e a forma, o que
permite que tudo tenha sentido para nós. São muitos os mistérios.
Então, diante destas dificuldades, vamos nos limitar a ouvir o que
os sábios, rishis, da antiguidade indiana tinham a dizer sobre a
Palavra criadora, ou melhor, vamos ouvir o que a própria 
diz de si mesma, no hino X, 125, do Rig-Veda:
11
1. Eu caminho pelas Tempestades, pelas Divindades, pelos
filhos da Eterna e por todos os deuses. Eu sustento os deuses
dos sacerdotes, Mitra e Váruna, os deuses dos guerreiros,
Indra e Ágnis, e também os deuses do povo, os gêmeos
Açvins.
2. Eu sustento a bebida sagrada, o Soma, e sustento o Deus-
artesão, e o Charreteiro-do-Sol, e a Fortuna. Eu ofereço
riqueza ao zeloso ofertante, patrocinador do sacrifício, e ao
macerador do Soma.
3. Eu sou a rainha coletora dos tesouros, observadora, primeira
entre os dignos sacrificadores. Os deuses me dividiram de
vários modos. Fui posta em muitos lugares. Fizeram-me
adentrar numerosas moradas.
4. Por mim, é identificado aquele que come arroz, aquele que
vislumbra, aquele que respira, qualquer um que ouve o que é
falado. Eles, sem saber, em mim habitam. Eu te digo o que é
crível, ouve!
5. Eu mesma digo o que é propício aos deuses e também aos
homens. Faço poderoso a quem quero; faço alguém ser
sacerdote; faço outro ser recitador, e outro ser sábio.
6. Eu estico o arco para o Deus da Tempestade, que há de
destruir o ímpio, com sua flecha. Eu trago a discórdia ao
povo. Eu persuadi o Céu e a Terra.
7. Eu gerei o pai, no topo deste mundo. Meu útero está no meio
das águas, no mar. Estendi-me a todos os seres. Toquei o céu
com a ponta da cabeça.
8. Eu sopro como o vento, abarcando todos os seres, além do
céu, além desta terra. Tornei-se de tal grandeza.
Convidamos então os leitores a acompanhar a obra da
Profa. Maria Lucia Abaurre Gnerre, responsável pela área de
Estudos Orientais do curso de Ciências das Religiões - UFPB,
nesta jornada pelo verbo criador.
12
13
Introdução:
Os múltiplos olhares sobre o Oriente
Esta é uma obra introdutória que aborda alguns
aspectos da religiosidade no mundo oriental, especificamente
na Índia. Os temas “orientais” estão cada vez mais em
evidência na sociedade “ocidental” contemporânea. Ano após
ano, temos assistido ao lançamento de filmes e a publicações
de diversos tipos, bem como a chegada de uma grande
variedade de práticas de saúde advindas deste “mundo
oriental”. Parece haver um interesse crescente por tudo que
diz respeito a este universo cultural.
Mas, para estudarmos um conjunto de tradições
religiosas denominadas “orientais”, é importante que se faça
primeiro uma breve análise do próprio conceito de Oriente, e
como ele se constrói em contraposição ao conceito próprio
conceito de Ocidente. Há importantes estudos acadêmicos
sobre este tema, e, dentre eles, destaca-se a obra de Edward
W. Said Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.
Nesta obra, de 1978, Said mostra que o “Oriente” não é
apenas mais uma denominação geográfica entre outras (como
os pontos cardeais do leste, oeste, norte ou sul).
Antes, o “oriente” pode ser considerado uma invenção
cultural e política do próprio “Ocidente” que observa as várias
civilizações que se desenvolveram a leste da Europa como um
conjunto cultural marcado pelo exotismo e pela inferioridade.
Há um processo histórico de formação de um imaginário social
e cultural que concebe o oriente, como sendo o lugar do
outro, da diferença, embora este imaginário do outro, muitas
vezes seja fabricado a partir de ficções (e, por isso mesmo, o
“diferente” se torna muitas vezes interessante e sedutor). A
perspectiva de Said é de profundo interesse para uma análise
inicial do conceito de oriente com o qual trabalhamos nesta
obra, que versa sobre o “extremo oriente” (conceito que
geograficamente pode ser entendido como todas as
sociedades que estão a leste do subcontinente indiano, e
14
também a própria Índia). Há um imaginário acerca deste
oriente distante que também se constrói a partir do olhar de
viajantes provenientes do ocidente, sobretudo da Europa. Tais
viajantes desde tempos remotos têm “descoberto” estas
civilizações distantes, com hábitos culturais e religiosos
“exóticos”, e tem produzido, à partir de suas descobertas,
importantes relatos e narrativas que ajudam a construir este
imaginário dos que ficaram na velha Europa.
Assim, podemos dizer que a Índia também participa
deste construto cultural denominado “oriente”, que foi
essencialmente criado a partir do Ocidente.
A este respeito, Rosa Maria Perez faz importantes
apontamentos:
Índia, como designação de uma região
cultural, é, todavia, eminentemente uma
construção européia. Situada nos limites do
oikoumene, o mundo conhecido, ela foi,
dede muito cedo na história envolta por
todo o imaginário produzido em torno de
um terra no fim do mundo, substantivando,
assim, mais do que qualquer outro país
asiático, o espírito daquilo a que Edward
Said chama de “Orientalismo”.
Falar da história da Índia na História é pois
falar da história de uma longa sedução.
(PEREZ, 1994, p.233)
E, com relação ao imaginário ocidental, particularmente
da cultura luso-brasileira sobre a religiosidade indiana,
podemos notar que ele também se constitui embalado com
esta aura de exotismo e sedução. Hoje, quando falamos em
religiões orientais – particularmente aquelas provenientes da
Índia – talvez as primeiras imagens que venham à mente do
leitor sejam de divindades hindus com inúmeros braços,
segurando objetos ou fazendo gestos incompreensíveis ao
nosso olhar. Associados ao culto destas imagens podemos
imaginar grupos de devotos cantando mantras com belas
roupas coloridas, ou mesmo yogues imersos em estados de
profunda meditação, passando meses sem se alimentar.
15
Podemos também associar esta idéia de “religiões
orientais” às diversas representações do Buda; pensar nas
grandes imagens de pedra no meio das florestas tropicais da
Tailândia, no budismo tibetano com suas cores características,
ou mesmo na tradição brasileira, que com seu sincretismo
característico, incorporou uma imagem do Buda gordo em
diversos lares – como uma espécie de amuleto que traz
abundância. Há várias outras imagens possíveis de serem
relacionadas à idéia de “religiões orientais”. Mas, qualquer que
seja a imagem evocada em nossa mente, ela nos traz de
prontidão um conjunto de mitos, ritos e divindades
profundamente diferentes da matriz religiosa judaico-cristã
que predomina em nossa sociedade. Temos assim, no campo
da religião, mais um conjunto de diferenças, mais uma cisão,
entre as muitas que vem sendo utilizadas para caracterizar os
conceitos de ocidente e oriente.
Historicamente, os encontros do mundo ocidental com
as religiões orientais remetem a antiguidade, quando
Alexandre Magno invade a Índia, onde finalmente seu exército
se firma1
. Mas, foi a partir do fim da idade média que se pode
identificar com mais precisão um esforço no sentido de
caracterizar estas religiões do extremo oriente pelo viés de
suas diferenças em relação à religião ocidental cristã. Desde
as Viagens de Marco Pólo (Il Milione) onde temos o relato do
famoso viajante de viagem à China, passando pelo período
das cruzadas, e chegando ao século XVI, período dos
descobrimentos, são muitos os relatos de viajantes sobre as
“curiosidades” que se referem ao mundo oriental.
No caso do mundo lusitano, do qual fazemos parte,
devemos lembrar que após a viagem de Vasco da Gama
(entre 1497 e 1499) temos o processo de construção do
1
Após a conqusta da Grécia e do imperio Persa, Alexandre Magno se
dirige, em 327 a.C. com suas tropas para a Índia, país mítico para
os gregos, onde fundou colônias militares e cidades. No entanto, ao
chegar ao rio Bias, suas tropas, cansadas de tão dura empreitada, se
negaram a continuar. Alexandre decidiu regressar à Pérsia, viagem
na qual foi ferido mortalmente e acometido de febres desconhecidas,
que nenhum de seus médicos soube curar.
16
chamado Estado Português da Índia.2
Ou seja: há uma relação
histórica da cultura lusitana com a Indiana, e há também uma
profusão de relatos do século XVI sobre a religiosidade hindu.
Quando os portugueses dedicam-se em instituir suas bases no
Oriente, os missionários, sobretudo jesuítas, atuam como
aliados nestes processos. E produzem, neste contexto,
importantes relatos sobre as divindades que encontram pelo
caminho. Abre-se, com os missionários uma perspectiva
diferente sobre o pluralismo da religiosidade Indiana, uma
perspectiva que não sublinha as diferenças culturais entre
observador e observado, mas que tenta traduzir os fenômenos
religiosos observados à luz do cristianismo. Neste processo,
procurou-se estabelecer relações diretas entre a multiplicidade
de divindades hindus com a trindade cristã (PEREZ, 1994,
p.233).
Mas, fora este empreendimento missionário que não
busca sublinhar as diferenças, mas sim ignorá-las, temos
também textos portugueses que seguem o padrão proposto
por Said, de caracterizar o oriente à partir de suas
“curiosidades” e diferenças. O texto mais famoso neste
sentido talvez seja Décadas da Ásia do famoso cronista
português Digo do Couto. Segundo Maria Augusta Lima Cruz
(1994) este autor pode ser considerado como um dos
primeiros “orientalistas” europeus. Afinal, nos vários volumes
por ele produzidos ainda no século XVII, temos uma narrativa
inaugural da sociedade e da cultura indiana, onde podemos
observar várias descrições do povo e de sua religiosidade sob
a ótica de um funcionário do estado português.
Justamente em virtude desta sedução que se cria
vinculada a sua diferença, o oriente começa a despertar um
interesse cada vez maior entre acadêmicos e estudiosos. Este
interesse se consolida na Europa principalmente a partir do
século XVIII, no campo de estudos que passa a ser
denominado “Orientalismo”. No fim deste século, o britânico
Willian Jones, fundador da Sociedade Asiática de Calcutá
2
A este respeito, cf. PEREZ, 1994 e CRUZ, 1994.
17
transmite à Europa da época a descoberta do Sânscrito3
, a
língua dos Veda, as escrituras sagradas da Índia. O sânscrito
(como analisaremos no primeiro capítulo de nossa obra) é
uma língua de origem Indo-Européia, e, sendo assim é
parente das línguas “nobres” da Europa, como o Grego e o
Latim. Esta descoberta abre também a possibilidade um olhar
romântico sobre a Índia, inaugurado por autores alemães
como Schlegel “que vê no sânscrito uma estrutura lingüística
perfeita, manifestação de uma antiguidade recuada – paraíso
perdido da língua e da cultura, em longa degenerescência”
(PEREZ, 1994, p. 234)
Assim, com a descoberta do Sânscrito passa a ser
admitida na Europa uma origem elevada da cultura e da
religiosidade indiana. Este lugar de origem, no entanto, teria
se perdido nas brumas do tempo.
Com a chegada do século XIX temos uma geração de
importantes estudiosos, como o Indólogo alemão Max Müller
que também teria considerado a cultura indiana como exótica
e inferior à Greco-romana. No entanto, é ele o autor das
primeiras traduções dos textos dos Veda e dos textos dos
upaniṣad 4
. Em um artigo recente, Mário Ferreira nos chama
atenção para o fato de que o próprio Müller via-se diante da
“espinhosa tarefa de estudo de uma civilização desenvolvida
sob bases distantes das do cristianismo” (FERREIRA, 2010,
p.33). Assim, em sua apresentação do hino do Rig Veda (ou
3
O sânscrito é uma língua de origem indo-européia (escreve-se
Samskrta) e seu nome designa “bem feito”, bem acabado, em
oposição às línguas bárbaras (prakrta) faladas no período védico, que
remete ao segundo milênio antes de cristo. (Cf. GULMINI, 2002).
4
Upaniṣad (cujo significado é “ensinamentos obtidos por
aproximação respeitosa”) são conjuntos de textos vinculados ao final
da literatura dos Vedas, textos que tomam por base os Veda, mas
contêm idéias novas. Idéias provavelmente originárias da civilização
do vale do Indo, sufocada durante o período védico, que começam a
vir a tona nestes textos, como é o caso do Yoga. Vedanta é o nome
da tradição de conhecimento das Upanisads. Seu nome significa
literalmente “final dos Vedas“. Sobre estes textos, faremos uma
análise detalhada no segundo capítulo desta obra.
18
ṛg-veda, “a sabedoria das estrofes recitadas”), o principal texto
dos Veda, Müller escreve a seguinte apresentação:
Não desejo [...] suscitar expectativas
exageradas quanto ao valor desses antigos
hinos do Veda e quanto ao caráter dessa
religião que eles mais sugerem do que
descrevem [...] Boa parte dos hinos védicos
são extremamente infantis: tediosos,
vulgares, triviais. Os deuses são invocados
constantemente para proteger seus
adoradores, para dar-lhes alimento,
rebanhos numerosos, famílias numerosas, e
uma vida longa, por cujos benefícios são
recompensados pelas orações e sacrifícios
oferecidos diariamente ou em certas
estações do ano. Mas, ocultas sob estas
tolices, acham-se também pedras
preciosas. (MÜLLER, APUD FERREIRA,
2010, p.33)
Max Müller descreve esta seqüência de “tolices infantis”
que fazem parte do Veda de uma forma natural; afinal, um
texto tão antigo poderia ser considerado no século XIX como
pertencente a uma infância da humanidade, tomando por base
um conceito de história como progresso contínuo, tão caro aos
estudiosos deste período que antecede duas catastróficas
guerras. O autor continua sua apresentação do texto falando
sobre pedras preciosas que podem ser encontradas ocultas
sob estas tolices, e que podem ser encontradas pelo leitor que
se despoja do politeísmo “repugnante” aos olhos ocidentais, e
que povoa os textos védicos (MÜLLER, APUD FERREIRA, 2010,
p.34).
Mas afinal, quais seriam as pedras preciosas que
poderiam ser encontradas nesses antigos textos indianos?
Uma breve análise do hino “X-129: Criação” do Rig Veda pode
nos dar pistas sobre estas preciosidades:
1. Não havia não-ser, não havia ser,
naquele tempo, não havia éter, nem céu
que está além. O que cobria? Onde? De
19
quem era a proteção? Água? O que havia
impenetrável, profundo?
2. Não havia morte, nem imortalidade,
naquele tempo, não havia indicação de
noite e dia. Esta unidade respirou a
atmosfera sem vento, por moto próprio;
pois nada além disso não havia.
3. Escuridão havia, pela escuridão
coberta, no começo; toda a irreconhecível
água era isso, que existia fechado pelo
vácuo; esta era a unidade poderosamente
nascida do calor.
4. Um desejo, então, no começo, se
moldou, sêmen que era o primeiro da
mente; do ser a conexão do não-ser os
poetas descobriram, buscando no coração,
pela sabedoria.
5. Transversal, estendida, a linha foi
movida; embaixo acaso estava? Em cima
acaso estava? Reprodutores existiam,
poderes existiam; impulso embaixo;
intenção, além.
6. Quem realmente sabe? Quem aqui
anunciou como nasceu esta criação, como?
Depois os deuses com sua criação; então
quem sabe de onde surgiu?
7. Essa criação de onde surgiu, se foi
produzida ou não? Quem é seu observador,
no supremo céu, este por certo sabe ou
não sabe. (RIG VEDA in POSSEBON, 2006)
Este hino fala do momento da criação, apresenta-nos
uma cosmogonia védica, partindo de um começo quase
inconcebível para a nossa mente: um tempo em que não
havia o não-ser, pois não havia o próprio ser. Não havia a
não-existência, pois esta depende da própria existência para
haver. Ou seja, um princípio onde não há dualidade. Há
apenas a escuridão da atmosfera sem vento, que respira a si
mesma por moto próprio. Tudo começa com uma respiração,
que vem do vácuo, do espaço. Esta unidade que respira a si
mesma poderá ser interpretada pela tradição védica posterior
(o Vedanta) como o próprio Brahman.
20
Como vemos no texto acima, já estão presentes nos
Veda importantes conceitos que vão muito além de afazeres
ritualísticos. Justamente estes conceitos passam a ser muito
valorizados por autores que estudam a cultura indiana nas
décadas que sucedem as traduções de Max Müller. Um dos
principais representantes desta nova geração que vai
conceber teorias para análise e interpretação do pensamento
indiano é Henrich Zimmer. Sobre o um dos temas centrais da
religiosidade indiana – a questão do ātman – Zimmer declara
que:
A principal finalidade do pensamento
indiano é desvendar e integrar na
consciência o que as forças da vida
recusaram e ocultaram, não é explorar e
descrever o mundo visível. A suprema e
característica façanha da mentalidade
bramânica (e isto foi decisivo, não apenas
para o desenvolvimento da filosofia indiana,
mas também para a história de sua
civilização) foi a descoberta do Eu (ātman)
como entidade imperecível e independente,
alicerce da personalidade consciente e da
estrutura corporal. Tudo o que
normalmente conhecemos e expressamos
de nós mesmos pertence à esfera da
impermanência, à esfera do tempo e
espaço, mas este Eu (ātman) é imutável
por todo o sempre, além do tempo, além
do espaço e da obnubiladora malha da
causalidade, além de qualquer medida,
além do domínio da visão.’ (ZIMMER, 1986,
p. 20)
Esta meta onipresente no pensamento indiano, de
desvendar, trazer ao plano da consciência o que as forças da
vida recusaram e ocultaram, guia uma série de idéias e
conceitos cujas origens remontam ao período védico, mas seu
desenvolvimento maior ocorre justamente na época das
21
upaniṣad. Assim, a busca do ātman, deste substrato atemporal
que está presente em todas as formas de vida passa a ser
reconhecida como principal característica da filosofia indiana.
Na Índia, o mito e a filosofia não se divorciaram,
como na tradição ocidental, convertendo-se em receptáculo
com os quais os mestres comunicavam suas renovadas
experiências da verdade. Efetua-se, segundo Heinrich
Zimmer, uma maravilhosa amizade entre mitologia e filosofia,
que está no alicerce de toda a estrutura da civilização indiana,
e que a ela confere um profundo significado espiritual.
(ZIMMER, 1986, p. 33)
No universo hindu, o folclore e a mitologia são formas
de levar ensinamentos filosóficos aos grandes contingentes
populacionais. Através deste universo simbólico, as idéias não
são simplificadas, mas transmitidas de uma forma mais
palatável. Mas foi justamente este emaranhado entre a
filosofia, a mitologia e a religião indiana que fez com que
pensadores ocidentais do século XIX, como o alemão F. Hegel,
não reconhecessem o caráter filosófico deste pensamento. E o
próprio termo “filosofia Indiana” foi questionado durante muito
tempo no ocidente, quando a origem da filosofia era datada
especificamente na Grécia – de onde a palavra Filosofia é
originária. (ZIMMER, 1986)
Deixando de lado este preconceito com relação à
filosofia e a religiosidade Oriental que ainda reinava nas
universidades ocidentais, um conjunto de importantes
intelectuais passa a se reunir em 1933 no grupo conhecido
como Círculo de Eranus5
, imbuídos de um desejo de explorar
este manancial de idéias que vinham do leste. Não lhes
interessava mais um estudo das diferenças, mas sim das
conexões entre as “paisagens mentais do Ocidente e Oriente”
5
“O nome Eranus foi dado por Rudolf Otto, autor de 'O Sagrado'. Em
grego, Eranos significa 'comida frugal onde cada um leva a sua
parte'. Nesta refeição compartilhada, cada convidado deveria
mostrar-se digno da hospedagem e do convite, retribuindo com um
presente intelectual: um texto, uma canção, um poema... De acordo
com sua fundadora (Olga Fröbe-Kapteyn ), tais encontros seriam
dedicados a promover a aproximação entre os dois hemisférios da
terra, Ocidente e Oriente” ( MIELE, 2009, p. 42)
22
(MIELE, 2009). O tema do primeiro encontro do grupo foi
justamente Yoga e Meditação no Oriente e no Ocidente.
Seguiu-se o tema da Orientação Espiritual no Oriente e
Ocidente. Carl Gustav Jung é considerado o mentor do círculo,
estudando a psicologia arquetípica e o inconsciente coletivo
que transcende as delimitações do ocidente e o oriente.
A filosofia indiana – que desde períodos muito remotos
já se preocupava com o estudo da psique – passa a servir de
base para elaboração de conceitos da psicologia e da
psicanálise modernas, o que pode ser visto principalmente na
obra de Carl Gustav Jung.6
Mesmo em textos anteriores ao
círculo de Eranus, as fontes e temas indianos já eram
recorrentes em seus textos. Quando estudamos alguns textos
da tradição Indiana, torna-se perfeitamente compreensível o
interesse de Jung, que via em tais textos “prefigurações de
suas idéias, ainda que expressas sob forma e com métodos
muito diversos dos da ciência moderna” (FERREIRA, 2010, p.
36).
Assim, contrariando o paradigma inicial que procurava
estabelecer Ocidente e oriente como dois campos
culturalmente opostos e marcados pela diferença, Jung passa
a utilizar elementos da cultura oriental de forma orgânica em
sua obra, sem ressalvas. Na obra de Jung, os textos orientais
servem para fundamentar ou explicitar suas teorias, e não são
analisados de forma reticente ou distanciada. Exemplo disso
temos nas referências ao Taoísmo e ao I-Ching na obra
Sincronicidade. As citações do Tao Te King7
servem para
fundamentar sua teoria a respeito de um estado em que o eu
e o não eu já não se opõem: o Tao. É neste estado que se
caracteriza pela totalidade, pela não diferenciação dos entes
através dos nomes e dos sentidos, que todas as coisas estão
ligadas, e justamente aí nasce a sincronicidade. (Cf. JUNG,
2004 [1950], pp. 55-57)
6
Sobre os estudos de Jung em relação ao mundo oriental, cf.
FERREIRA, 2010, p. 35
7
Ou Dao De Jing na grafia mais recente, proposta pelo sistema
instituído pela república popular da China em 1949.
23
É importante lembrar que o interesse de Jung pela
tradição Indiana é anterior ao círculo de Eranos e à publicação
de muitas obras sobre o tema. No entanto, embora seu
interesse individual sobre a cultura indiana remontasse às
primeiras décadas do século XX, foi principalmente a partir da
formação do círculo que o estudo das tradições orientais
ganhou maior relevância no âmbito acadêmico ocidental.
Além de Jung, faziam parte do grupo o já citado
Heinrich Zimmer, Henry Corbin (importante estudioso do Islã),
Mircea Eliade (importante historiador das Religiões), Joseph
Campbell, que escreve obras consideradas referenciais para o
estudo dos mitos de diversas culturas, e mais tarde Gilbert
Durand. Este último é criador de uma escola de estudos da
antropologia do imaginário que serve de referência para o
Curso de Graduação em Ciências das Religiões da UFPB
(MIELE, 2009). Além destes, muitos outros intelectuais de
peso, também vinculados às chamadas ciências naturais,
freqüentaram as reuniões do círculo, fazendo não só as
conexões ocidente-oriente, mas também as conexões entre as
diversas áreas do saber compartimentalizadas pelas divisões
da ciência cartesiana.
Assim, já na primeira metade do século XX, o
pensamento oriental começa a ser reconhecido não mais como
um conjunto de narrativas mitológicas incompreensíveis, mas
sim, como uma forma de pensamento que poderia trazer
grandes contribuições para temas que tanto interessavam aos
intelectuais do ocidente, como a própria natureza do ser. Da
velha Índia e da velha China, chegavam conceitos novos aos
olhos ocidentais, conceitos que após milênios de dormência,
guardados em línguas enigmáticas, apareciam traduzidos para
complementar idéias que vinham revolucionando o
pensamento ocidental – como a própria idéia de inconsciente8
.
O objetivo inicial dos estudiosos reunidos em Eranos
era promover estudos de mitologia comparada entre as
8
Termo tão caro a Freud e Jung, o inconsciente pode ser visto nos
textos clássicos das doutrinas do sāṁkhya e Yoga, que remetem ao
segundo ou terceiro século depois de Cristo. A este respeito, cf.
capítulos sobre as doutrinas citadas, presentes neste volume.
24
mitologias do Oriente e Ocidente, aproximando estes dois
universos humanos em suas estruturas mitológicas,
arquetípicas e simbólicas. Este estudo comparado serviu de
fundamentação para importantes trabalhos publicados no
período. A partir das reuniões de Eranos surgem importantes
obras publicadas pelos seus membros, que servirão como
fundamentação teórica para o estudo de religiões orientais
que ora apresentamos. Entre estas, podemos destacar a obra
do historiador romeno Mircea Eliade: Yoga: imortalidade e
liberdade; a obra já citada do Indólogo Heinrich Zimmer,
Filosofias da Índia (compilada por Joseph Campbell após a sua
morte); e as obras do mitólogo Joseph Campbell, O Herói de
mil faces e O poder do Mito.
Consideramos os pressupostos teóricos, desenvolvidos
por estes autores nas referidas obras, como chaves
conceituais para a compreensão da cultura e religiosidade
indiana como um patrimônio da humanidade, que não se
restringe a um oriente distante e isolado de nós. Assim, nesta
obra de caráter introdutório, não vamos apresentar questões
ou perspectivas novas ao leitor, mas apenas fazer um breve
esboço de conceitos centrais das religiões da índia, de forma
que se percebam suas idéias fundamentais, para além do
exotismo e das diferenças.
25
Capítulo 1
Cultura, Sociedade e Religião da Índia antiga nos textos
védicos
I. A sociedade védica:
O nome Veda designa um conjunto de textos sagrados,
sobre os quais se fundamentam a sociedade e espiritualidade
indianas. A influência deste cânone védico sobre a cultura
indiana vai desde o segundo milênio antes de Cristo até a
atualidade. Veda é um nome sânscrito que significa “Saber
Revelado”. O sânscrito é uma língua de origem indo-européia
(escreve-se saṁskṛta) e seu nome designa “bem feito”, bem
acabado. Trata-se de uma oposição às línguas populares
(prácritos) faladas no período védico, consideradas bárbaras
pelos povos arianos (GULMINI, 2002, p.13).
Antes de adentrarmos na estrutura literária destas
escrituras, e dos ensinamentos que estão contidos nelas, é
imprescindível falar um pouco do contexto de sua produção: O
momento em que o povo ārya estaria se instalando no
subcontinente Indiano. Os próprios Veda também podem ser
considerados registros históricos que trazem informações
importantes sobre as crenças, desejos, questionamentos e
práticas religiosas e sociais destas populações.
Os ārya são povos indo-europeus, provenientes da
região entre Cáucaso e Carpatos, próximo ao mar negro. São
povos que por volta do III milênio antes de Cristo começam a
se expandir em direção a Ásia e à Europa, levando consigo
esta língua-mãe (o “Indo-Europeu”) de onde deriva o Grego, o
Latim, e o Sânscrito. Embora não se conheça o Indo-europeu,
trata-se de uma teoria amplamente aceita em virtude das
semelhanças etimológicas entre as 3 línguas citadas e outras
línguas da antiguidade ( POSSEBON, 2006).
26
Assim, os ārya, cujo nome signifca “Nobres” são
descendentes deste povo indo-europeu que, por motivos
climáticos/ambientais se vê obrigado a deixar suas terras de
origem, e começa sua expansão em direção a Ásia e
subcontinente Indiano. Justamente o estudo de vocábulos
comuns entre estas línguas antigas permitiu uma reconstrução
histórica do modo de vida destes povos.
Segundo Mircea Eliade (2010 [1976]) os Indo-europeus
praticavam agricultura, mas sua cultura estava centrada no
nomadismo e pastoreio. Criavam animais como o touro, o
boi, o porco, ovelhas, cavalo e cão. Sua economia era
nômade, pastoril e patriarcal, vivendo em aldeias fortificadas
com casa de madeira. Pareciam ser bem preparados para a
guerra, com carros de combate leves e rápidos, levados por
cavalos. Dominavam a tecnologia do Bronze, enquanto outros
povos do período9
dominavam a tecnologia do cobre. Não é
possível definir exatamente um tipo físico indo-europeu e ária,
mas não seriam louros de olhos azuis como quiseram os
nazistas.
II. Os arianos na índia:
Há uma semelhança notável entre o Védico e o
Avéstico (a mais antiga língua do iraniano), o que faz supor
que uma mesma corrente migratória de indo-europeus teria
partido em direção ao Irã e se desmembrado para o sul,
chegando ao norte da Índia por volta de 1800 a.C.,
penetrando pelos desfiladeiros dos Hindus Kushes e Himalaias.
Não teria sido uma invasão em massa, mas entrada gradual
de pequenos grupos (POSSEBON, 2006)
Não se sabe ao certo o que estes arianos encontraram
no norte da Índia, no segundo milênio antes de Cristo. Mas
algumas descobertas arqueológicas do início do século XX
(especificamente do ano de 1921), trouxeram informações
importantes: dois sítios arqueológicos, de Harappa e Mohenjo-
Daro. São duas cidades datadas em cerca de 2.500 a.C.,
9
Tais como os habitantes da civilização Harapiana, ou do vale do
Indo, sobre os quais falaremos mais à diante.
27
altamente desenvolvidas do ponto de vista tecnológico e
localizadas ao longo do vale do Rio Indo. Mohenjo Daro, em
seu ápice, teria contado com uma população de 200.000
pessoas, sendo uma verdadeira metrópole da época. Foram
compilados 400 símbolos de sua escrita, mas ainda não foram
decifrados. Trata-se de uma civilização que teria estabelecido
relações comerciais sobretudo com a Mesopotâmia.
A descoberta destes sítios arqueológicos deu origem a
seguinte teoria: A civilização Harapiana, originária da Índia e
conhecida como Dravídica foi sendo empurrada para o sul com
as invasões . Por isso, as línguas dravídicas (Canária, Telugu,
Malayam, Tâmil, etc...) encontram-se hoje, sobretudo no sul
da Índia. (POSSEBON, 2006). Há ainda uma outra hipótese,
aceita por muitos historiadores, segundo a qual por volta de
1.500 antes de cristo, tenha havido uma mudança radical no
curso dos rios da região, quando o rio Indo teria sido
completamente extinto. Isso teria dado início ao processo de
migração. Esta hipótese não é conflitante com a perspectiva
de uma invasão ariana, pelo contrário: ambos fatores
poderiam ter caminhado juntos para colaborar com a extinção
desta sociedade harapiana.
Além desta civilização altamente evoluída que habitou
o norte da Índia, teria havido ainda outras culturas
autóctones, conhecidas como proto-australóides. Tais
populações seriam os aborígenes indianos, dos quais ainda
restariam exemplos em diversas regiões da Índia.
Muitas teriam sido as condições que facilitaram a
conquista do território indiano pelos ārya, nesta época
Dravídica. Os invasores estariam mais bem equipados para a
guerra, com carros puxados por cavalos e armas de Bronze,
enquanto os Drávidas teriam carros puxados por bois e armas
de cobre. Há também a hipótese de uma crise social desta
civilização do Indo, que já estaria previamente enfraquecida
no momento da chegada dos árias – hipótese esta que se
vincula à questão ambiental, do rio Indo que secou.
Esta hipótese da invasão ārya, embora bem
estruturada recebe algumas críticas, como por exemplo do
historiador britânico G. Feuerstein (2005). Segundo tais
criticas, a invasão ārya seria um conceito cristalizador pelos
28
historiadores ingleses. Sem dúvida alguns conceitos sobre a
história e a pré-história da Índia podem mudar,
acompanhando transformações políticas e culturais dos
próprios historiadores, além das descobertas arqueológicas
mais recentes (como as de 1984, que descobrem carros de
guerra no leito do rio Indo). Mas não seria o caso de substituir
antigas “verdades cristalizadas” por novas verdades (como a
idéia de que não houve tal invasão). Acreditamos que
elementos de ambas as teorias podem ser levados em conta,
e seria possível estabelecer diálogos sobre a complexa história
da Índia Antiga.
De um modo geral, aceita-se a hipótese de que esta
civilização harapiana-dravídica (bem como a proto-
australóide) teria sido, num primeiro momento, sufocada pela
cultura ārya. Mas, com o passar do tempo, seus conceitos e
crenças vão se infiltrando na sociedade ária indo-européia.
Deste modo, alguns elementos de sua tradição são
incorporados nas práticas védicas. Um exemplo disso seria o
Yoga, que mal se apresenta nos textos védicos, mas que
renasce nos textos produzidos em período posterior. Além
desta prática, divindades como śiva, que aparece nos Veda
com o papel secundário de Rudra, ganha muita força na
religiosidade posterior.
Corroborando com esta teoria da origem dravídica de
śiva, temos um Selo de Mohenjo-Daro onde os especialistas
vêem um Proto-śiva, deus iniciador do Yoga e senhor dos
animais selvagens. Assim, através desta simbiose da cultura
ārya-drávida (denominada posteriormente hinduísmo) houve
em paralelo um desenvolvimento da mitologia hindu.
29
(Fig. 1: selo de Pashupati encontrado nas escavações de
Mohenjo-Dharo. Divindade em postura yogue, com elementos da
escrita dravídica ao fundo)
III. Mundo Védico: Mitos e Ritos.
Os Veda são um grande monumento literário, filosófico,
religioso e cultural que serve de inspiração para toda a
tradição Indiana. Na história da Índia, chamamos de período
védico aquele compreendido desde a chegada dos Indo-
Europeus (ārya) no subcontinente Indiano, até a produção dos
últimos textos dos Veda, por volta de 800 a.C. Neste período
de produção dos Veda surge a antiga religião hindu, que está
registrada neste conjunto de escrituras.
Toda a produção do período insere-se numa visão
sacralizada do mundo, com muitos mitos e ritos. Segundo o
historiador das religiões Mircea Eliade, há dois modos de ver o
mundo: um profano e um religioso. Muitos povos ao longo de
sua história percorrem o caminho da dessacralização, e tem
uma visão de mundo destituída de deuses. Outros povos,
ainda hoje preservam este modo religioso, como algumas
comunidades indígenas e africanas. Na antiguidade, a maioria
dos povos vivia de acordo com este modo religioso. E, o que
caracteriza para Eliade este Homo Religiosus é justamente a
30
vivência plena do sagrado. Ele percebe as manifestações da
natureza como superiores à sua experiência quotidiana. Há
uma bela imagem de um pastor da antiguidade que ilustra
isso: - Deitado na grama, o pastor percebe a imensidão da
abóbada celeste...percebe que está vivo graças a esta
potência, percebe sua pequeneza, sente-se motivado à reagir,
e faz um movimento corporal que dá conta de sua submissão
e reconhecimento da grandeza divina do céu. Faz um rito.
(ELIADE, APUD POSSEBON, 2006).
Esta percepção do divino é chamada de Hierofania, e
quando ela ocorre num determinado lugar, este lugar passa a
ser sagrado, e o rito pode ser repetido. Desenvolve-se
também uma narrativa desta história: um mito. E, segundo o
mitólogo Joseph Campbell (1990 [1949]), mito é sempre
verdadeiro, pois não há outra explicação para os tempos
primordiais. Com o tempo, as narrativas míticas vão se
tornando mais elaboradas, e o Homo religiosus que no início
foi tocado pelo encantamento do sol como um Deus, agora já
o descreve como um jovem de grande beleza, com uma
cabeleira radiante, percorrendo o céu...Assim nascem os
deuses, mitos e ritos antigos, como aqueles presentes nos
Veda.
Para o Indólogo alemão Heinrich Zimmer o Panteão
Védico representava originalmente todo o universo, onde se
projetavam as idéias e experiências dos homens. Nascimento,
crescimento e morte eram projetados sobre os eventos
cósmicos. As estrelas, as nuvens, o vento, as tempestades, a
terra, o sol...todos esses elementos eram associados à
divindades específicas que por sua vez refletiam aspectos das
experiências humanas. Estes Deuses eram super-homens
dotados de poderes cósmicos, mas, ao mesmo tempo,
poderiam ser chamados a participar de uma festa por meio de
oblações e rituais védicos. Os mitos são narrados em forma de
cânticos que têm uma entoação certa para que se obtenha os
poderes rituais. Isso é um pressuposto importante para a
compreensão dos textos dos vedas: são textos para serem
entoados junto dos rituais.
Segundo Zimmer, esta etapa da religião védica
equivale ao período homérico na Grécia (Teogonia). Na
31
Grécia, este período homérico foi seguido por um crepúsculo
dos Deuses e mitos, e esteve relacionado à própria decadência
das cidades estados e a invasão de Alexandre o Grande. Na
cultura indiana, com o fim do período védico não vai ocorrer
este crepúsculo dos deuses, mas sim uma transformação da
religiosidade hindu. As deidades védicas não serão depostas,
mas incorporadas à uma visão mais ampla e profunda – como
senhores que fazem parte do império de um rei mais poderoso
– o poder sagrado representado pelo Brahman, cuja presença
pode ser experimentada em todos os seres através do ātman.
(cf. ZIMMER, 1986 [1951], pp 244-49),
Assim, os textos dos Veda descrevem todo um universo
mítico-ritual do período ariano. Fazem parte da sabedoria
revelada (Śruti). São ensinamentos ouvidos, intuídos,
revelados e catalogados pelos sábios nos quatro livros
principais do hinduísmo:
 Rig-Veda (ou ṛg-veda): O nome deste livro significa
“Sabedoria das estrofes recitadas”. São 1028 hinos,
divididos em dez livros (Mandalas). Acredita-se que
tenham sido compilados entre 1500 e 1000 a.C., mas
os ensinamentos orais seriam muito anteriores. No Rig-
veda estão reunidos elemento míticos que serviram de
matéria prima para lendas e contos épicos da Índia,
narrativas da criação do mundo, encantamentos
mágicos para a cura ou obtenção de desejos, regras de
comportamento social, etc... Por isso, histórica e
literariamente o Rig-Veda é considerado o mais
importante dos quatro livros. Nele encontramos um
retrato do momento inicial de mixagem entre as
culturas ārya e Drávida, com predominância da
primeira. Neste Veda estão as sementes de várias
concepções filosóficas que floresceram em solo indiano.
Ele contém as perguntas que os indivíduos deste
momento fizeram em relação à criação da vida, à
natureza do universo e a sua própria função
existencial.
 Sāma-Veda: Sabedoria das estrofes cantadas (1549
hinos). O Sāma-Veda compõe-se de melodias cantadas
32
durante as oferendas sacrificiais, pelos sacerdotes da
classe udgātṛ. É composto de duas partes: a primeira
contém 585 cantos, independentes uns dos outros, e
classificados segundo seu ritmo ou os deuses aos quais
se referem. A segunda parte é composta de 400 cantos
de três estrofes, agrupados segundo a ordem dos
principais sacrifícios. Muitas estrofes do Sāma-Veda
são semelhantes às do Rig-Veda.
 Yajur-Veda: Coletânea que contém as fórmulas a
serem murmuradas pelos sacerdotes da classe
adhvaryu no decorrer dos ritos sacrificiais. Há duas
versões deste Veda: O Yajur-Veda Negro é Versão mais
antiga, tem esta denominação por suas fórmulas serem
consideradas obscuras. Já o Yajur-Veda Branco
contém fórmulas claras e mais sistematicamente
ordenadas.
 Atharva-Veda: Conhecimento de Atharvan. Coleção que
contém os mais diversos temas, mas principalmente
ensina magia e medicina popular. Contém cerca de
6.000 fórmulas mágicas, divididas em 730 hinos. Além
de hinos de teor medicinal, contém charadas filosóficas
e passagens metafísicas que segundo G. Feuerstein
(2005) antecipam idéias e práticas da tradição do
Yoga, como o controle da respiração. É o Veda dos
sacerdotes das classes Atharvan – Os sacerdotes do
Fogo.
Nestes livros estão as instruções para a realização dos
cultos na tradição védica. Conforme ELIADE (2010 [1976]), o
culto védico não conhecia santuários; os ritos realizavam-se
na casa do sacrificante, ou num terreno limítrofe, atapetado
de relva, no qual se instalavam 3 fogos. As oferendas eram
leite, manteiga, cereais e bolos, mas havia também o
sacrifício de animais como a cabra, a vaca o touro, o carneiro,
e o mais importante de todos: o cavalo. O sacrifício do cavalo
(asva-medha) estava presente em outras sociedades indo-
européias, que teriam sido as primeiras a domesticar o
animal.
33
No sacrifício védico, o cavalo era identificado ao
cosmos (ou ao deus Prajapati) ou ao próprio homem
primordial Puruṣa (mito que será discutido mais à diante).
Através do sacrifício do cavalo, os sacerdotes recriavam o
início da ordem cósmica, e colaboravam para sua
manutenção, podendo realizar vontades. Os sacrifícios podiam
ter diferentes finalidades. Sacrifícios simples, de ordem
doméstica (como para o nascimento o concepção de uma
criança) poderiam ser realizados pelo próprio chefe da família,
mas sacrifícios mais elaborados deveriam ser realizados com a
presença dos sacerdotes. Um dos sacrifícios mais importantes
era o ritual de entrega de um jovem rapaz ao Brâmane que
seria seu preceptor. (ELIADE, 2010 [1976], pp.212-15).
IV. As estrofes do Rig-Veda:
Conforme dissemos anteriormente, o Rig-Veda é
considerado o mais importante dentre os hinários védicos.
Esta coleção de 1028 hinos trata essencialmente de assuntos
religiosos, da ação e origem dos deuses e de todo o universo.
Para compreender o uso do Rig-Veda, devemos imaginar a
seguinte cena:
Um rito está sendo realizado em local sagrado, pelos
sacerdotes que podem fazê-lo. Enquanto realiza-se o rito, os
versos são recitados, invocando a presença divina e narrando
os mitos primordiais. Nas estrofes, o poder mágico das
palavras está sempre presente. Há uma maneira correta de
pronunciá-las, para que se garanta a eficácia do canto. Esta
entoação das palavras mágicas é conhecida como Mantra
(POSSEBON, 2006).
Dentre os hinos do Rig Veda que tivemos acesso com
tradução direta do sânscrito para o português (pelo Prof. Dr.
Fabrício Possebon) optamos por selecionar dois hinos que
trazem indícios importantes sobre a organização social, os
Deuses, a cultura religiosa e os preceitos filosóficos do período
védico.
Segundo ELIADE (2010 [1976]), quatro tipos de
cosmogonias se fazem presentes nos textos védicos: 1)
Criação pela fecundação das águas originais, 2) Criação pelo
34
despedaçamento de um gigante, 3) Criação a partir de uma
unidade-totalidade (ser e não ser) 4) Criação pela separação
do Céu e da terra. Apenas nestes dois hinos que
apresentaremos a seguir, veremos todas estas cosmogonias
explícitas ou implícitas.
- X-90: Homem primordial
1. De mil cabeças é o Homem, de mil olhos,
de mil pés; ele, a terra toda cobrindo
ultrapassa além dez dedos.
2. O Homem de fato é isso tudo, tanto o ser,
quanto o vir-a-ser; assim, mestre da
imortalidade, pelo alimento, muito se
excede.
3. Assim é sua grandeza, e entre os maiores
imenso é o Homem; sua quarta parte são
todos os seres; três quartas é sua
imortalidade no céu.
4. Com três quartos, para cima, moveu-se o
Homem; a quarta parte aqui esteve de
novo; logo em todas direções correu, ao
que come e ao que não come.
5. Dele Virāj nasceu, de Virāj veio o Homem;
este, nascido, excedeu a terra, para trás e
então para frente.
6. Quando os deuses realizaram o sacrifício
com o Homem, como oferenda, a
primavera foi sua manteiga; o verão a
lenha; o outono a oblação.
7. Na grama consagraram este sacrifício, o
homem logo nascido; por ele, os deuses
sacrificaram, e os Sādhyás e os que são
sábios.
8. Deste sacrifício tudo é oferecido, reunida a
manteiga, estes animais fez, feras que
vivem no vento e os que são domesticados.
9. Deste sacrifício tudo é oferecido; as
estrofes e os cantos nasceram, os hinos
encantatórios nasceram deste, o
encantamento surgiu deste.
10. Dele os cavalos nasceram e os que tem
dentes em ambas as queixadas, as vacas
35
também nasceram dele, dele as ovelhas e
as cabras.
11. Quando dividiram o homem? Em quantas
partes arranjaram? Sua boca, ambos os
braços, ambas as coxas e pés, a que se
chama?
12. O sacerdote foi sua boca, ambos os braços
foi o Guerreiro feito; ambas as suas coxas,
isto que é o povo; de ambos os pés os
Servos nasceram.
13. A lua da mente foi gerada; do olho o sol
nasceu; da boca Indra e Ágnis; e do alento
Vāyú nasceu.
14. Do umbigo foi a atmosfera; da cabeça o
céu foi moldado; de ambos os pés a, terra;
os pontos cardeais do ouvido; assim
arranjaram os mundos.
15. Sete foram seus ramos, três vezes sete as
lenhas preparadas, quando os deuses,
fazendo o sacrifício, ataram o Homem,
animal sacrificial.
16. Pelo sacrifício, os deuses sacrificaram o
sacrifício; estas leis foram as primeiras;
logo estes poderes atingiram o céu, lá onde
moram os Sādhyás, deuses antigos.
(POSSEBON, 2006, p. 41)
O Hino do Homem primordial descreve um sacrifício
mitológico, no qual o próprio homem é a oferenda. Puruṣa, o
homem primordial, nasceu de Virāj, e Virāj nasceu de Purusa.
Virāj é um termo que pode ser interpretado como o oposto
feminino de Puruṣa – o gigante cuja dimensão excede a terra.
Do seu sacrifício todas as coisas seriam criadas. No seu rito
sacrificial, todos os elementos estão presentes: a primavera
foi sua manteiga; o verão a lenha; o outono a oblação. O
sacrifício é feito na grama, pelos Deuses, sábios e pelos
Sādhyás (que são os deuses antigos ou semi-deuses), numa
estrutura que reproduz a própria arena sacrificial védica. Mas,
conforme este hino teria sido a partir do sacrifício do homem
que todos os hinários védicos surgiram: 9. Deste sacrifício
tudo é oferecido; as estrofes e os cantos nasceram, os hinos
36
encantatórios nasceram deste, o encantamento surgiu deste.
(POSSEBON, 2006, p. 41)
Nesta passagem, segundo o tradutor do texto, há uma
clara alusão aos outros hinários védicos: as estrofes seria o
próprio Rig-Veda (sabedoria das estrofes recitadas), os cantos
o Sāma-veda (sabedoria das estrofes cantadas) e o Yajur-
Veda (sabedoria das fórmulas ritualísticas) estaria
representado na menção aos hinos encantatórios. Isso que
denota que este hino teria sido escrito num momento em que
os três hinos citados já existiam. Não por acaso, o homem
primordial está no décimo livro (Mandala) do Rig-Veda,
considerado de produção posterior.
Um dos elementos mais importantes com relação a
este sacrifício de Puruṣa, é que, a partir do desmembramento
de seu corpo surgem as castas da Índia: Da boca, surge o
sacerdote (Brâmane) – aquele que detém o poder da palavra,
das fórmulas sacrificiais, dos mantras secretos e sagrados. Os
brâmanes são a classe que ocupa o topo da pirâmide nesta
organização social. Segundo ELIADE, aos sacerdotes
corresponde a divindade védica Váruna, que é o Samrāj, ou
rei universal. É a divindade que ocupa o lugar do par
primordial Céu/Terra. Váruna faz o sol caminhar pelo dia, e a
lua pela noite, é o regulador das águas e das nuvens. Com mil
olhos, ele vê todas as coisas inclusive verdades e mentiras dos
homens. É o rei do ṛta a ordem cósmica, litúrgica e moral. Ao
mesmo tempo, esta ordem universal está baseada em Váruna.
Assim governa tanto o universo quanto os rituais e a vida
moral humana. Por isso, Váruna é senhor dos homens, e
alguns hinos mencionam os grilhões que nos prenderiam a
ele. O próprio Váruna, no entanto, também instrui os homens
(especificamente os sacerdotes) sobre como se libertar,
através dos rituais sacrificiais. Se Váruna é o governante, o rei
universal, por vezes aparece junto do Deus Mitra, o legislador
benevolente, uma divindade que muitas vezes intervém a
favor dos homens, também associada aos Brâmanes.
Dos braços de Puruṣa, ou seja, de sua força, foi feito o
guerreiro, que representa a classe dos Xátrias. Os guerreiros
estão logo abaixo dos sacerdotes nesta hierarquia social
védica, estão relacionados ao deus Indra. Este é o Deus mais
37
citado no Rig-Veda, e, assim como Váruna, dispõe de um hino
próprio no livro IV-19:
1. E a ti, ó Indra, animado de raios, aqui
todos os deuses invocados, auxiliadores,
elegêmo-lo grande, glorificador de ambos os
mundos, augusto, único pela morte do
Dragão.
2. Como os velhos deuses declinaram, és da
terra o supremo rei, ó Indra, portador da
verdade; mataste a serpente que cercava as
águas; abriste os cursos que saciam as
vacas. (POSSEBON, 2006, p. 33)
Indra ora é apresentado como filho do Céu (Dyaus) ora
como filho de Tvastr (o artífice dos deuses). É irmão de Agnis
(o Deus fogo) e Indrani (sua forma feminina). Os ventos
(Maruts) compõe seu séquito. É o deus bebedor de Soma e
sua arma é o raio. Ao contrário de Váruna, que muitas vezes é
representado de forma pacífica, Indra é vigoroso e violento, e
é o protagonista do principal mito do Rig-Veda: O combate
com o dragão Vrtrá (ou vṛtra), também traduzido como
serpente. Ao matar Vrtrá com seu raio, Indra liberta as águas
que estavam prisioneiras, separa o céu e a terra, e estabelece
uma nova ordem cósmica. É a vitória da vida contra a morte,
e as águas correm em direção ao oceano (as águas por vezes
são chamadas de vacas no Veda). Este processo de criação
pela separação do céu e da terra é um dos quatro tipos de
cosmogonia presentes no Rig-Veda, aos quais ELIADE faz
referência. E o mito da vitória sobre o dragão tem sido
utilizado para interpretar a chegada dos Indo-Europeus à
Índia, vencendo as populações autóctones. Nele, Indra é o
arquétipo do Guerreiro, o Deus no qual os Xátrias, feitos dos
braços de, devem se espelhar.
Voltando para a 12ª estrofe do hino, lemos que das
coxas do gigante Puruṣa nasceu o povo, ou seja, a classe dos
produtores (Vaixiás) que estão na base da pirâmide. A eles
correspondem os deuses gêmeos Nasatya (ou açvins). São
gêmeos da cor de ouro, que percorrem os campos a cavalo
assinalando a aurora (Ushas) e a noite (ratri) os caminhos que
devem seguir. Os açvins são deuses humildes de nascimento,
38
estão relacionados ao ato de curar e ajudar os enfermos e
carentes.
Dos pés do gigante nascem os servos, isto é, os
Xudras – os não arianos, escravos, que não têm sua divindade
correspondente no panteão védico. Trata-se do modelo social
das antigas castas indo-européias que fica explicito e
justificado nos Veda. Neste hino, o Veda se converte também
em documento histórico, que permite observar esta ordem
social vigente há 4.000 mil anos, e que permanece na
sociedade indiana atual, embora constitucionalmente proibida
desde 1947.
Por fim, é importante ressaltar a presença de outras
divindades védicas que nascem do sacrifício de Puruṣa: A lua
(Cāndrā) nasce da testa. A lua, associada aos ciclos da terra e
ao elemento feminino, nasce da testa, região onde estaria
localizado o ājñā-cakra10
, um dos principais centros
energéticos do corpo sutil, responsável pela intuição. Do olho
nasce o sol (Surya), representando a clareza da visão. Da
boca, além dos Brâmanes, também surgem Indra (já referido)
e Ágnis, a divindade do fogo. Ao fogo está dedicado o primeiro
hino do Rig-Veda: Ágnis perde em importância no Rig-Veda
apenas para Indra. No Rig-Veda, Ágnis é o primeiro fogo
sacrifical. Apresenta-se com os epítetos ligados à claridade e
calor. “Cabelo de chamas”, “brilho do céu”, etc...Ágnis é
concebido também como o próprio sol, mas desce à terra
como um relâmpago, chegando a ser “embrião das águas” ou
filho das águas. Ágnis é o arquétipo do sacerdote – no
primeiro hino ele faz o papel de sacerdote. Ele é chamado de
“mensageiro” pois é o intermediário entre os Deuses e os
homens já que o fogo consome as oferendas e as leva aos
10
Desenvolve-se na Índia desde os períodos mais remotos, uma
elaborada anatomia do corpo sutil, composta por Cackras – que são
rodas ou centros de energia, e nadis, os canais por onde circula esta
energia, também denominada prāṇa . Durante a idade média da Índia,
quando se desenvolve o tantrismo, este estudo da anatomia sutil com
seus diversos elementos será intensificado, principalmente com o
surgimento do Hatha-Yoga.
39
céus na forma de fumaça. Da cabeça e dos pés surgem o par
céu e terra, que também possuem vários hinos no Rig-Veda.
São as divindades primordiais indo-européias, diretamente
associadas aos elementos da natureza. Estes deuses, no
entanto, estão se distanciando dos homens, e cedem seu
lugar no panteão védico a outros Deuses celestes mais
personalizados, como Varuna, Indra, etc...Dos ouvidos do
gigante surgem os pontos cardeais – o que denota o
conhecimento dos sentido de localização do corpo humano,
associado ao labirinto na região dos ouvidos. Assim, são
muitas as associações com elementos da cultura védica que
podem ser feitas a partir deste hino.
A concepção dos Deuses equivale ao processo mítico
descrito por Eliade. No Rig-Veda os deuses já estão em grande
parte humanizados. Mas ainda ocorrem os deuses diretamente
relacionados à natureza, como o Deus que é o próprio Céu –
Dyaus. Sûrya é o sol. Também são consideradas divindades a
aurora – Usas, a noite – Râtari, os ventos – Maruts, a Terra
(Parthivi), as águas (Apa, também conhecidas como vacas por
sua fertilidade)
O Soma é outro deus importante do Rig-Veda, a ele
são dedicados 120 hinos, sendo o terceiro mais citado no
panteão védico (perde para Indra e Varuna, dos quais
falaremos a seguir). Como se sabe, o Soma era também a
bebida sagrada dos rituais, e é muito difícil separar o Deus
Soma da própria Bebida: ele era a divindade que está
incorporada na bebida. Ao beber o soma, os praticantes do
ritual sentiam sua própria imortalidade, tinham revelações de
uma existência plena e beatífica, em comunhão com os
deuses. Esse referencial da experiência divina com o soma vai
nortear o caminho de buscas espirituais posteriores, mesmo
para aqueles que não bebiam mais o soma.
Há outras divindades que aparecem no Rig-Veda ainda
sem grande importância mas que se tornarão extremamente
importantes em períodos posteriores. São eles: Rudra e
Vishnu. Este aparece como uma divindade benevolente, amigo
e aliado de Indra, a quem ajuda em seu combate a Vrtra.
Vishnu atravessou o espaço em três passadas, alcançando a
morada dos Deuses, e representa a energia benéfica
40
onipresente que escora o mundo. Já Rudra (que mais tarde
será conhecido como Śiva ou Xiva) representa o aspecto
oposto: não possui amigos entre os deuses, mora no
isolamento das montanhas entre os animais selvagens, e tem
seres demoníacos como aliados. Mais tarde, será conhecido
como Śiva, o destruidor, patrono dos ascetas e daqueles que
se mantém afastados da sociedade bramânica.
E, por fim, um dos hinos mais profundos do Rig Veda, é
o hino X-129: Criação:
8. Não havia não-ser, não havia ser,
naquele tempo, não havia éter, nem céu
que está além. O que cobria? Onde ? De
quem era a proteção? Água? O que havia
impenetrável, profundo?
9. Não havia morte, nem imortalidade,
naquele tempo, não havia indício de noite e
dia. Esta unidade respirou a atmosfera sem
vento, por moto próprio; pois nada além
disso não havia.
10. Escuridão havia, pela escuridão
coberta, no começo; toda a irreconhecível
água era isso, que existia fechado pelo
vácuo; esta era a unidade poderosamente
nascida do calor.
11. Um desejo, então, no começo, se
moldou, sêmen que era o primeiro da
mente; do ser a conexão do não-ser os
poetas descobriram, buscando no coração,
pela sabedoria.
12. Transversal, estendida, a linha foi
movida; embaixo acaso estava? Em cima
acaso estava? Reprodutores existiam,
poderes existiam; impulso embaixo;
intenção, além.
13. Quem realmente sabe? Quem aqui
anunciou como nasceu esta criação, como?
Depois os deuses com sua criação; então
quem sabe de onde surgiu?
14. Essa criação de onde surgiu, se foi
produzida ou não? Quem é seu observador,
no supremo céu, este por certo sabe ou
não sabe. (POSSEBON, 2006, p. 49)
41
Este hino fala do momento da criação, quando não
havia o não ser, pois não havia o próprio ser. Não havia a não
existência, pois esta depende da própria existência para
haver. Ou seja, no principio não há dualidade. Há apenas a
escuridão da atmosfera sem vento, que respira a si mesma
por moto próprio. Tudo começa com uma respiração, o próprio
respirar da criação. A respiração é também o primeiro e o
último ato da vida humana, e o elemento central de várias
escolas tântricas, do Yoga (pois através do exercício
respiratório, ou prāṇāyāma, ativam-se os estados superiores
da meditação). A respiração aqui vem do vácuo, do espaço.
Na mitologia hindu posterior, todo o tempo cabe em uma
respiração de Brahman.
A água também se faz presente neste momento inicial da
criação. Ás águas, segundo ELIADE “desintegram, extinguem
as formas...seu destino é preceder a criação e re-absorvê-la,
não se manifestando em forma” ( cf. ELIADE, 2010 [1976], p.
218) Tudo que é forma se manifesta acima das águas. Assim,
neste momento em que não havia nada já havia a água, pois
a água é a própria existência de tudo em potencial.
42
(Fig. 2: Representação do Deus Varuna, montado em seu animal
aquático.
43
A tradição dos upaniṣad
Maria Lucia Abaurre Gnerre
Os upaniṣad são um conjunto de textos sagrados
desenvolvidos na Índia no período Bramânico, entre 1.000 e
400 a.C. Assim, segundo a periodização tradicional da
literatura indiana, são textos produzidos num período
posterior ao védico.
Temos, neste período bramânico, três tendências
distintas. Primeiro, duas tendências de caráter ortodoxo, ou
seja, que aceitam os ensinamentos dos Veda:
a) Os bhāhmanas: uma grande coleção de textos redigidos
em prosa (ao contrário dos Veda, que eram em versos)
nos quais são expostos raciocínios explicativos sobre
questões védicas. Tais textos apresentam uma
continuidade da tradição védica, com exegeses e
desenvolvimentos agora escritos em prosa, formando
uma grande coleção. Os bhāhmanas seguem
valorizando os ritos sacrificiais védicos bem como a
função dos próprios sacerdotes. No entanto, uma nova
divindade – Prajapati – torna-se mais importante
nestes sacrifícios do que as divindades védicas
anteriores.
b) Um desvio dos Veda, apresentando questionamentos e
idéias novas. Estes questionamentos se fazem
presentes nas coleções dos āranyaka (textos das
florestas, produzidos pelos ascetas que se retiram para
a floresta em busca da jornada interior, sem os ritos
bramânicos) e a coleção das upaniṣads (cujo significado
é “ensinamentos obtidos por aproximação respeitosa”).
Ambos os conjuntos de textos tomam por base os
Veda, mas contêm idéias que parecem estranhas ao
mundo indo-europeu. Idéias advindas provavelmente
da civilização dravídica, sufocada pelos invasores árias,
começam a vir à tona nestes textos, como é o caso do
Yoga.
44
E temos por fim as tendências consideradas heterodoxas,
ou seja, que fogem do cânone bramânico dos Veda. São elas:
c) Budismo e Jainismo. Uma oposição completa ao Veda,
que fica exposta principalmente nas crenças e
ensinamentos do Buda aos seus discípulos, que
dispensam qualquer conhecimento védico para
alcançar o fim do sofrimento.
(POSSEBON, 2006).
Assim, os upaniṣads são produzidos neste contexto de
transição de uma cultura ārya – védica, para uma cultura que
incorpora elementos das tradições autóctones aos conceitos
védicos. A grande maioria dos upaniṣads foi criada fora dos
círculos sacerdotais bramânicos, e por isso teriam dado esta
oportunidade de emergência de novas formas de pensamento
não advindas da cultura ariana.
Por isso, os upaniṣads participam do caminho do
conhecimento (jñānamārga), que neste período começa a
substituir o caminho da atividade ritualística (karmamārga).
Ou seja, a filosofia abstrata dos upaniṣads vai se
desvinculando dos rituais mágicos, que passam a ser
relegados a segundo plano (ocorre um processo de des-
xamanização do bramanismo). Esta mudança tem lugar entre
os próprios teólogos védicos, nos círculos dedicados às
meditações e iniciações exotéricas – nos quais estes textos,
também conhecidos como vedanta11
, eram produzidos
(ZIMMER, 1986 [1951]).
Segundo Mircea Eliade (2010 [1976]), o surgimento do
conceito de Karman é um dos elementos fundamentais para
esta desvalorização do ritual sacrificial (como o sacrifício de
animais) em favor do sacrifício interior, na forma de ascese
(ou tapas). Uma vez reconhecida a lei da causalidade
universal no Karman (expressão que toma força a partir dos
aranyakas), desfazia-se a certeza fundamentada dos efeitos
salutares dos sacrifícios. Torna-se muito mais importante o
conjunto das ações em vida do que os rituais para agradar às
divindades, e a meta não era mais viver cem anos, como
queriam os primeiros povos védicos, mas sim transcender a
11
O nome Vedanta significa justamente “o fim dos Veda”.
45
roda do saṁsāra – dos vários nascimentos e mortes – e
atingir Moksha, a libertação. Esta nova meta, que se configura
como a própria fusão eterna do eu individual (ātman) com o
divino universal (brahman), era muito diferente dos objetivos
védicos.
Embora tragam muitos conceitos novos e divergentes
com relação ao conjunto dos textos védicos, os textos dos
upaniṣads são também considerados como ponto alto das
especulações sobre os Veda. Segundo H. Zimmer (1986
[1951]), os fecundos filósofos deste período, ao examinarem a
questão do ātman, teriam sido os primeiros intelectuais e
livre-pensadores de seu tempo. Foram, por isso, muito além
da concepção tradicional dos sacerdotes a respeito do cosmos,
mas o fizeram sem entrar em choque frontal com estas
concepções do período védico – afinal, a esfera que
investigavam não era a mesma que os sacerdotes.
Estes filósofos teriam virado as costas para o universo
externo (domínio dos mitos e controlado pelos rituais
sacrificiais) porque encontravam coisas muito mais
interessantes no seu interior. “Haviam se deparado com o
mundo interior, o universo interno do próprio homem, e
inserido neste o mistério do EU”. (ZIMMER, 1986 [1951],
p.258).
Essa nova postura os distanciava das várias divindades
do panteão védico, sem, no entanto, entrar em choque com
elas. É um processo diferente daquele que ocorre na Grécia,
quando Demócrito, Anaxágoras e outros filósofos-cientistas
gregos que levam suas interpretações sobre corpos celestes a
conflitar com as interpretações dos sacerdotes. Para os
filósofos gregos, o sol não poderia ser ao mesmo tempo um
ente divino antropomórfico – Hélios – e uma esfera de matéria
incandescente no céu. Esse conflito não ocorreu na Índia, pois
o Deus Surya continuava sendo objeto de devoção sacerdotal
e popular enquanto os filósofos se preocupavam com o
mistério primordial que pairava muito acima dos deuses
antropomórficos. A fonte do poder misteriosa e anônima que
precede todas as coisas, mesmo os deuses: Essa é a questão
central das upaniṣads. Não há uma negação dos deuses
védicos, mas nestas escrituras os sábios vão à fonte dos
46
próprios deuses. E vão até os confins das palavras, em busca
de definições desta fonte.
Mas, mesmo sem buscar um conflito, esta nova
orientação de pensamento intelectual provocou uma
desvalorização da teologia ritualista dos Veda e do próprio
universo material-visível. Afinal, ao invés de dar atenção aos
deuses e ao mundo exterior, esta nova geração focalizava o
princípio sobrenatural que a tudo transcende e do qual todas
as coisas procedem. E estes livres pensadores (sábios
anônimos conhecidos como Rishis ou Ṛṣi) conseguiam acessar
este princípio a partir de si mesmos. Assim, a energia
intelectual que no período Védico havia sido empregada no
estudo e desenvolvimento de mecanismos – como sacrifícios e
encantamentos – para dominar as forças do cosmos, estava
agora sendo dirigida para dentro, para o “eu interior”, onde
também podiam entrar em contato com a força vital suprema.
Neste contexto, passam a ser mais importantes os caminhos
certos através dos quais poder-se-ia canalizar a energia de
forma adequada para o interior, não para as vicissitudes do
mundo exterior.
Para a professora Lilian Gulmini (2002), o conteúdo
básico das upaniṣads pode ser resumido da seguinte forma:
1. O homem comum é dotado de uma
ignorância “original”; desconhece sua
identidade com o Brahman, ou seja, que
sua essência (ātman) é feita da mesma
natureza de Brahman, o absoluto. Esta
ignorância prende o homem à roda de
nascimentos e mortes condicionados. Mas a
vontade inerente ao ser humano de buscar
o saber, leva-o a especular o Brahman, a
“realidade última das coisas”.
2. Para alcançar o Brahman, o homem
precisa passar por uma evolução cognitiva
e vivencial. Precisa libertar-se dos
dualismos e relativismos do pensamento
comum e vivenciar sua identidade com o
Brahman através de práticas introspectivas
como o Yoga. (GULMINI, 2002, p. 30-31)
47
Para empreender este processo de interiorização, além
da dedicação, era considerada como elemento fundamental a
figura de um bom mestre, um ser que já experimentou este
ātman interno, e poderia, assim, compartilhar sua experiência
e seu caminho. Segundo o Swami Prabhavananda –
responsável por uma das traduções dos upaniṣads para o
Inglês, feita com o auxilio do Dr. Frederick Manchester – o
significado literal da palavra upaniṣads é “sentado perto
devotamente”. (PRABHAVANANDA, 1991, p.13)
Este significado faz referência à figura do discípulo,
sentado próximo do mestre, aprendendo seus ensinamentos.
A figura do bom mestre no hinduísmo é importantíssima. Ele
naturalmente explica as escrituras para o discípulo, mas acima
de tudo ele passa os ensinamentos através de sua própria
vida. O simples fato de estar próximo dele, de servi-lo e
obedecer-lhe humildemente significa acelerar o espírito e
enriquecer a alma.
Um destes grandes mestres dos quais muitos discípulos
tiveram a graça de aprender ensinamentos profundos teria
sido o sábio Shankara, que no século XVII tornou-se um
grande comentador das upaniṣads. Segundo ele, o significado
profundo deste termo é “o conhecimento de Brahman, o
conhecimento que destrói os laços da ignorância e leva à meta
suprema da liberdade”. (PRABHAVANANDA, 1991, p.13)
Não se sabe ao certo quantos upaniṣads já existiram.
Cento e oito foram preservados. Alguns são em prosa, outros
são em verso, outros em verso e prosa, e sua extensão é
variada, mas não costumam ser textos muito longos. Variam
também o estilo e a forma dos upaniṣads: alguns são simples
e concretamente narrativos, outros são abstratos e
descritivos, assumindo muitas vezes a forma de diálogos.
Também não se sabe ao certo quem os escreveu, nem
exatamente quando (apenas um período aproximado). Os Ṛṣi,
sábios videntes a quem se atribuem os textos, permanecem
totalmente nos bastidores das palavras, fiéis ao ensinamento
central de seus textos: a dissolução do eu individual em meio
ao Eu universal.
Dos cento e oito upaniṣads que foram conservados,
dezesseis foram reconhecidos por Shankara como autênticos e
48
oficiais. Ele escreveu elaborados comentários sobre dez deles,
e estes vieram a ser encarados como os principais textos:
Isha, Kena, Kaṭha, Prasna, Muṇḍaka, Māṇḍukya, Taittirīya,
Aitareya, Chāndogya e Brihandāranyaka-upaniṣad. Juntos,
estes textos constituem provavelmente o principal objeto de
atenção dos estudiosos da religião hindu.
Uma das características dos upaniṣads é a sua
homogeneidade. Cada um destes textos poderá enfatizar
determinadas idéias ou conceitos, mas as diferenças são
superficiais. Todos os textos tratam do tema do ātman, das
suas manifestações, e dos caminhos para a transcendência
deste emaranhado de formas múltiplas que se resumem ao Eu
essencial.
Estes textos resultam do trabalho de sábios e profetas,
que estavam preocupados em relatar as suas experiências:
trata-se de um conhecimento intuitivo, que chegou até eles
através de pensamentos ou visões. Não se preocupam
necessariamente em tornar este conhecimento coerente, em
formar sistemas de pensamento bem acabados. Assim,
também sua forma não costuma ser perfeitamente acabada.
Muitas vezes as narrativas e diálogos começam sem uma
lógica ou final coerente, e o leitor é introduzido abruptamente
numa determinada cena, onde começa um diálogo profundo.
Deste universo de 16 upaniṣad principais, selecionamos
passagens de dois deles – Muṇḍaka e kaṭha upaniṣad – para
uma análise detalhada de como estas questões se
apresentam. Vamos começar com a análise do texto do
Muṇḍaka upaniṣad12
, um dos textos mais conhecidos e citados
desta tradição. Selecionamos para nosso trabalho passagens
de uma tradução feita diretamente do sânscrito para o
português pelo professor Roberto de A. Martins. Nesta
tradução, se encontram preservadas várias expressões
12
Segundo MARTINS (2008) existem diversas explicações sobre o
significado do nome deste texto. O nome deriva da raiz sânscrita
Muṇḍ, que significa “raspar” ou barbear. Daí tem-se que seu nome pode ser
interpretado por sua virtude de “raspar” ou “limpar” o erro, a ignorância. Mas
uma segunda interpretação que parece mais plausível para o tradutor é que
este seria o upaniṣad dos homens que raspam a cabeça. (cf. MARTINS,
2008, p.12)
49
fundamentais em sânscrito, que procuraremos analisar como
parte de um trabalho de compreensão conceitual.
Neste texto, o sábio Aṅgiras (que é herdeiro de um
conhecimento transmitido numa linhagem direta do Brahman)
desenvolve um diálogo com um chefe de família – Śaunaka.
Este diálogo tem início quando este último faz a seguinte
pergunta:
MU I.1.3 Śaunaka, o grande chefe de
família, aproximando-se respeitosamente
de Aṅgiras, perguntou: “ Venerável senhor,
o que é que, ao ser conhecido, faz com que
tudo isto seja conhecido ?”
MU I.1.4 Ele [Aṅgiras] lhe disse: Devem-se
conhecer dois conhecimentos, o superior e
o inferior. Isto é o que dizem os
conhecedores de Brahman.
MU I.1.5 Destes, o inferior é: Ṛg-veda,
Yajur-Veda, Sāma-Veda, Atharva-Veda,
Śikṣa [fonética], Kalpa [ritualística],
Vyākarana [gramática], Nirukta
[etimologia], Chanda [métrica], Jyotiṣa
[astronomia]; e o superior é aquele que se
aprende o Akśaram. (Muṇḍaka Upaniṣad.
In:MARTINS, 2008, pp.17- 18)
Ou seja, segundo o texto existiriam dois tipos de
conhecimento. Um conhecimento inferior, que pode ser visto
nos Veda, nos cerimoniais, na gramática, e em tudo que diz
respeito às emanações, às manifestações da fonte suprema. É
o conhecimento das coisas e das relações entre elas. E existe
um conhecimento superior, que é o conhecimento do
Akśaram. Este conceito pode ser compreendido como a
própria realidade imutável que paira acima de todas as coisas
finitas e mutáveis. Na passagem seguinte há um
aprofundamento das características de Akśaram:
MU I.1.6 Aquilo que não pode ser visto, que
não tem família, que não tem casta, sem
olhos nem ouvidos, sem mãos nem pés,
eterno, onipresente, que penetra tudo,
impalpável – este é o imutável que é
50
contemplado pelos sábios como a fonte dos
seres
(Muṇḍaka Upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p.
21)
Através deste conhecimento da realidade imutável que
transcende os sentidos, as formas, os conceitos, e o próprio
universo das causas e efeitos, os sábios contemplam a fonte
de todos os seres. Tal fonte é o próprio Brahman:
MU I. 1.7. Assim como a aranha emite e
reabsorve [seu fio], assim como as ervas
nascem da terra, e como os pelos crescem
na cabeça e no corpo de um homem vivo,
do mesmo modo tudo que existe surge
deste Akśaram.
MU I. 1.8 Brahman cresce pelo Tapas. Daí
provém o alimento [Anna]. Do alimento, o
alento da vida [Prāṇa], a mente [manas], a
verdade [satya], os mundos; e dos atos
[karma] a imortalidade [amṛta ] (Muṇḍaka
Upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 23-5)
O Akśaram é descrito nesta estrofe I.1.7 como se fosse
o princípio material do universo. Afinal, como a erva nasce da
terra, tudo o que existe nasce dele. Mas como nos lembra
MARTIS (2008), Akśaram não é matéria propriamente dita. Ele é a
fonte das coisas, mas está além delas, situado num outro plano. No
plano do próprio Brahman.
Na estrofe I.1.8 vemos o primeiro trecho traduzido
como “Brahman cresce pelo Tapas”, mas o próprio tradutor diz que
também poderíamos traduzir por “Brahman se manifesta pelo Tapas”
(MARTINS, 2008, p. 26). Através desta segunda tradução,
poderíamos compreender mais facilmente o sentido de Tapas, uma
expressão muito importante na cultura indiana deste período,
e que significa ascetismo, ou austeridade. Esta expressão
pode estar vinculada a sacrifícios físicos (jejum e privações de
todo tipo), mas também pode ter outro significado: Tapas
pode ser entendido como disciplina, concentração, ou mesmo
meditação. Voltando ao texto, nele está dito que através de
51
Tapas, o Brahman se manifesta. Disso temos duas
interpretações: uma primeira seria que um praticante da
austeridade, do ascetismo ou da meditação pode, através de
sua disciplina, acessar este princípio absoluto. Já uma
segunda interpretação possível seria que o próprio Brahman
pratica a concentração ou a meditação, e através de sua
prática provém o alimento [Anna], o alento da vida [Prāṇa]. É
importante notar que o alimento aqui significa o néctar que
vivifica todas as formas de vida, não apenas o alimento
humano na forma do pão, por exemplo. É o alimento
essencial do qual derivam todas as coisas, chegando até aos
próprios atos e à imortalidade.
Segundo este texto extraído da Muṇḍaka upaniṣad, as
demais coisas são derivadas de Manas, a mente primordial,
que por sua vez é derivada da energia primordial que deriva
diretamente do Brahman. Ou seja, há uma escala de
derivações do Brahman, e nos últimos graus desta escala,
distanciando-se da fonte bramânica – está o Karman, a cadeia
da causa e efeito que deriva das ações realizadas pelos seres
nos diversos mundos. Mas, do cumprimento desta cadeia de
causalidades que se estende por muitas vidas, também deriva
a própria imortalidade.
Segundo os conceitos filosóficos deste período, embora
a lei do Karman esteja diretamente vinculada a esta ordem
divina universal, ela não é diretamente operada pelo
Brahman. Ele é a inteligência cósmica suprema, da qual tudo
emana, mas Ele mesmo não se enreda nas teias de ações e muito
menos no karman que delas deriva. E é esta a inteligência que o
sábio deve buscar, não o conhecimento ou os benefícios
advindo dos rituais sacrificiais que o próprio texto condena:
MU I.2.9 Eles vivem de muitas formas na
ignorância, como crianças pensando
“Atingimos nosso objetivo”. Como os que
realizam os rituais não conhecem o futuro,
por causa dos seus desejos, eles recaem e
sofrem quando seus mundos se esgotam.
MU I.2.10 Iludidos, pensando que os rituais
e obras meritórias são o melhor, eles não
conhecem um bem mais elevado. Tendo
52
desfrutado do Fruto de suas ações no mais
alto lugar do céu, eles entram novamente
neste mundo ou em um inferior. (Muṇḍaka
upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 45)
Aqui está uma referência à religiosidade védica
tradicional do período. Para os sábios das upaniṣad, não
interessa mais apenas o conhecimento das palavras mágicas,
o conhecimento dos hinos a serem recitados nas ocasiões
apropriadas. Interessa o conhecimento do Brahman, que
transcende as próprias palavras. Não interessam mais ações
que levem ao “mais alto lugar do céu”, pois este lugar
também é uma manifestação transitória do Brahman, assim
como são todas as suas manifestações. Interessa, sim, o
conhecimento do absoluto, daquele que não tem forma, e está
além do mais alto céu.
MU 1.2.13 Àquele que se aproxima
respeitosamente, com a mente livre de
desejos, tendo atingido a paz, o sábio
ensina as bases do conhecimento de
Brahman, através do qual se conhece o
Puruṣa eterno e autêntico. (Muṇḍaka
upaniṣad. In:MARTINS, 2008, p. 51)
Aqui temos uma síntese do objetivo supremos das
upaniṣad: atingir o Puruṣa “eterno e autêntico”. E temos
também uma síntese das qualidades essenciais que devem ser
cultivadas: o respeito, a mente livre de desejos, em paz. Mas,
além destes elementos, para conhecer o Puruṣa, um outro
elemento também é fundamental: “aproximar-se
respeitosamente” de um Guru, dedicado a Brahman e que
conheça bem as escrituras.
Para este discípulo que cultiva as qualidades certas e
dispõe de um Guru habilitado (através da experiência), o
Brahman, mais cedo ou mais tarde, será apresentado (ou
experimentado).
53
E, a partir deste ponto, o texto da Muṇḍaka upaniṣad
segue dando uma série de definições sobre o Brahman, o
Akśara e sobre sua existência intrínseca à existência de todos
os seres:
MU II.1.1 Esta é a verdade [Satya]. Assim
como de um fogo que queima vivamente
brotam milhares de fagulhas semelhantes a
ele; da mesma forma, meu amigo, muitos
tipos de seres brotam do Akśara e
retornam também a ele.
MU II.1.3 Dele brotam o Prāṇa, a mente
[manas] e todos os órgãos; éter [kham],
vento, luz, água e terra – o suporte de tudo
(Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p.
56)
É importante notar que, nesta genealogia, a mente e
os órgãos dos sentidos nascem antes dos elementos da
matéria (éter, vento, a luz ou fogo, a água e a terra). Os
sentidos precedem a matéria, pois são necessários para a
própria existência destes entes, já que, na concepção indiana,
o universo é mental. E dos elementos essenciais, deriva tudo
mais.
E o Brahman, do qual emanam todas as coisas,
precede também os Deuses, pois dele emanam os demais
Deuses:
MU II 1.5 Dele vem Agni, cujo combustível
é o sol [Sūrya]; da Lua [Soma] a chuva [
parjanya ], da terra as ervas; o macho
derrama na fêmea seu sêmen, e assim as
criaturas são produzidas de Puruṣa.
MU II 1.9 E dele [provêm] todos os mares e
montanhas, dele fluem todos os tipos de
rios, todas as ervas, e as paixões que
fazem com que o ātman interior se prenda
aos seres.
MU II 2.2 Este que é luminoso, que é
menor que um átomo, em que estão
centrados todos os mundos e seus
habitantes, este é aquele Brahman
imutável, este é Prāṇa, a palavra [vác], a
54
mente, ele é a realidade [satyam], a
imortalidade, ele é aquilo que deve ser
penetrado. Penetre nele, ó amigo.
(Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008,
pp. 58 - 70)
O Brahman luminoso é menor do que um átomo, mas
nele cabem todos os mundos, todos os seres. É a centelha
imutável do universo, e justamente esta centelha deve ser
penetrada. Na tradição hindu de estudo da anatomia dos
corpos energéticos que se inaugura neste período dos
upaniṣad, e que vai se enriquecer muito durante o tantrismo
medieval13
, esta centelha pode ser penetrada a partir do lótus
do coração. Lótus pode ser entendido na anatomia dos corpos
sutis como um Cakra – um centro energético circular,
tradicionalmente representado na iconografia da Índia como
lótus com diversos números de pétalas. É a partir deste lótus
do coração (ou anāhata cakra) que se pode conhecer
Brahman, quando se desata o nó da ignorância, ou seja, os
sentimentos egóicos que separam o eu individual do Eu
universal. Brahman pode ser conhecido no próprio coração –
órgão tradicionalmente relacionado aos sentimentos, ao amor
– pois ele é a própria bondade suprema. Afinal, seu maior ato
de amor é a própria criação. Se não fosse seu grande amor
pela existência, tudo poderia não existir.
Num determinado ponto do texto, o autor explicita ao
seu leitor a necessidade de atingir o Brahman, pois ele é o
princípio da vida, e a única meta a ser atingida:
MU II 2.3 Tomando como arco a grande
arma das upaniṣad, deve-se aí colocar a
seta aguçada pela devoção [upāsāna ].
Deve-se esticá-lo com o pensamento
[cetas] totalmente consagrado àquilo. O
único imutável é o alvo. Penetre nele, ó
amigo.
MU II 2.4 Praṇava é o arco, a seta é você
mesmo, brahman é seu alvo, assim se
ensina. É preciso atingi-lo sem desviar-se,
13
A respeito da tradição do tantrismo, consultar o capítulo sobre
Yoga presente nesta obra.
55
e unir-se a ele como uma seta [ao alvo].
(Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p.
73)
Temos aqui um chamado explícito para que o leitor
junte-se aos upaniṣad, e uma linda metáfora sobre esta
sabedoria como arco e flecha. Na verdade, alguns elementos
específicos do conhecimento dos upaniṣad compõem este
conjunto incomparável de arco e flecha. Nesta metáfora,
Praṇava é o próprio arco. E, segundo o tradutor do texto, este
termo nitidamente derivado de prāṇa, pode ser traduzido como
“essência do prāṇa”. Como vimos em fragmentos anteriores da
Muṇḍaka upaniṣad, a essência do prāṇa é o próprio Brahman.
Por outro lado, o Praṇava também é o nome que se dá à sílaba
sagrada OM, a sílaba sagrada por excelência. (MARTINS,
2008, p.74) Assim, podemos interpretar esta passagem da
seguinte forma: o mantra OM é a vibração capaz de
arremessar o ser individual (a flecha) diretamente no alvo
que é o Brahman. Esse arremesso se dá quando a vibração do
OM dissolve a consciência individual, os pensamentos, e esta
consciência é arremessada na consciência maior, funde-se ao
EU universal, o alvo supremo. E, neste momento em que o
alvo e a seta tornam-se um só, deixam de existir
separadamente, pois o eu individual retira seu véu, sai da
ilusão de maia, e deixa de se ver enquanto ente separado.
Tudo passa a ser UM SÓ.
Para aquele ser que atinge o estado de fusão do seu
ātman com o Brahman, todas as amarras do coração são
desfeitas, e todas as dúvidas eliminadas:
MU II 2.7a Aquele que tudo conhece, que
tudo sabe, a quem pertence toda a
grandeza da terra; este ātman reside no
firmamento, na cidade celeste de brahman.
MU II 2.8 As amarras co coração são
desfeitas, todas as dúvidas são eliminadas
e seu karma é apagado quando se
contempla aquele que é o mais elevado e o
56
inferior (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS,
2008, pp. 84 - 91)
Para explicar este conceito citado no final do trecho
anterior, de um “eu” ao mesmo tempo mais elevado e inferior,
esta upaniṣad apresenta a famosa metáfora dos pássaros.
Para analisar esta metáfora, optamos pela tradução que
Heinrich Zimmer faz deste trecho da mesma Muṇḍaka
upaniṣad:
Dois pássaros, com formosa
plumagem, amigos e companheiros
íntimos, residiam em estreita camaradagem
na mesma árvore. Um deles come o fruto
doce da árvore; o outro sem comer
observa. (Muṇḍaka upaniṣad In:
ZIMMER, 1986 p. 267)
Este mesmo pássaro que come o fruto doce também
come frutos amargos. A árvore com a dupla de pássaros (a
árvore da vida ou da personalidade humana) é um motivo
muito conhecido nas tapeçarias orientais. Nos versos
seguintes, temos o desfecho da metáfora:
A mônada vital individual (Puruṣa),
enganada, lamenta-se deprimida por uma
sensação de desamparo (anisaya [de não
ser um senhor soberano]); mas quando vê
o outro na mesma árvore, o senhor que faz
regozijar os devotos, e compreende sua
grandeza, desaparece seu pesar.
(Muṇḍaka upaniṣad In: ZIMMER, 1986
p. 267)
Quando a mônada individual, o pássaro que come os
frutos doces e amargos da árvore do bem e do mal, vê o
senhor fulgurante, o Eu universal, ele se dá conta de sua
verdadeira natureza, e transcende as qualidades, os
sofrimentos, e toda identidade egóica que o separa do Eu mais
elevado, impessoal e imortal.
No estado de clareza que advém da meditação é
possível perceber o Eu sutil dentro do corpo que vive e
57
respira. O corpo continua respirando e vivendo, mas o Eu
torna-se um observador das funções, e mesmo habitando o
corpo já não se identifica totalmente com ele. Sabe que o
corpo é emanação da mente, que é emanação de Brahman, e
este Eu interior já se posicionou junto do próprio Brahman.
Continuemos com a análise da Muṇḍaka upaniṣad na tradução
de Roberto de A. Martins, num trecho do texto em que
podemos observar uma indicação precisa sobre quem são as
pessoas que podem atingir este estado, e como podem fazê-
lo:
MU III 2.4 Este ātman não é atingido sem
esforço, sem dedicação, ou por ascetismo
sem direção. Mas aquele que se esforça por
esses meios, se ele for um sábio, seu
ātman penetrará na morada de brahman.
(Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, p.125)
Assim, temos aqui uma informação valiosa: através do
esforço, da dedicação e ascese praticada de forma correta, o
ātman do sábio pode atingir a morada de Brahman. E esta
fusão é a própria chave da libertação (Moksa). Para
exemplificar esta união final do eu individual com o Eu
universal na hora da morte, a Muṇḍaka upaniṣad nos
apresenta uma última e bela metáfora:
MU III 2.8 Assim como os rios que correm
desaparecem no oceano perdendo nome e
aparência, da mesma forma o conhecedor
[vidvam] liberto de nome e aparência,
atinge o divino Puruṣa, mais alto do que o
mais alto (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS,
p.130)
As metáforas das águas são comuns na cultura hindu.
O rio que deságua no mar e volta para o oceano, a onda que
quebra na praia e volta a se integrar ao mar. Na verdade,
todas as águas sempre voltam para o mar, assim como todos
58
os homens sempre voltam para o Eu. Mas os sábios, os bem
sucedidos na meditação, poderiam permanecer neste oceano
de bem aventurança, sem voltar a ser onda (ou “eu
individualizado”).
As metáforas são um elemento central das upaniṣad, já
que estes textos alcançam esferas da compreensão humana
que ultrapassam as próprias palavras. Somente através das
metáforas e analogias é possível tocar em certos conceitos. As
metáforas se multiplicam, envolvendo como uma grinalda o
mistério do Eu. Não por acaso, Joseph Campbell ressalta que
o Mito é uma metáfora (CAMPBEL, 1991).
Em outra upaniṣad, conhecida como kaṭha, temos uma
grande metáfora que também é fundamental para esta cultura
hinduísta do controle da mente e dos sentidos como forma de
libertação: a metáfora da carruagem.
Sabei que o Eu é o cavaleiro, e que o
corpo é a carruagem; que o intelecto é o
cocheiro, e que a mente são as rédeas.
Os sentidos, dizem os sábios, são os
cavalos; os objetos dos sentidos seus
caminhos. Os sábios consideram o Eu
como aquele que se deleita quando está
unido ao corpo, aos sentidos e à mente.
Quando um homem não possui
discernimento e sua mente está
desgovernada, seus sentidos são
incontroláveis, como os cavalos rebeldes de
um cocheiro. Porém, quando um homem
possui discernimento e sua mente está
controlada, seus sentidos, como os cavalos
bem domados de um cocheiro, obedecem
alegremente às rédeas. (kaṭha upaniṣad.
In: PRABHAVANANDA, 1991, p. 64).
Assim, para que a carruagem seja bem conduzida, é
preciso existir a harmonia entre o cavaleiro, o cocheiro, suas
as rédeas, e os cavalos. Quando isso não ocorre, os cavalos
mandam no destino da carruagem, os sentidos governam a
mente. Mas quando a mente governa os cavalos dos sentidos,
59
tudo flui em direção ao ātman. Este é o primeiro passo para a
libertação.
60
(Fig. 3 Meditador - representação artística)
61
Capítulo 3
O épico hindu: Bhagavadgītā – A Canção do Venerável
I. Introdução ao texto
O Bhagavadgītā (ou “canção do venerável”14
em
português) é um dos textos mais importante do hinduísmo.
Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, o gītā
“representa não apenas o marco da espiritualidade indiana
ecumênica, mas também uma vasta tentativa de síntese”15
dessa mesma espiritualidade. Trata-se de um conjunto de 700
versos que remontam a uma tradição oral do século X a.C.,
mas que, segundo Carlos Alberto Fonseca (autor de uma
tradução direta do sânscrito para o Português), teriam sido
transcritos e consolidados na versão que conhecemos hoje por
volta do século II d.C.
O texto do Bhagavadgītā é um extrato do longo poema
épico Mahābhārata (o grande bhārata), épico que narra a
fundação da Índia (terra dos bhārata), a partir da guerra entre
os clãs Pandavas e Kauravas, e os fatos que conduzem a
batalha mítica de Kurukṣetra16
. A obra teria sido escrita pelo
sábio Vyasa (também um autor mítico) e tem como um de
seus principais personagens o próprio Deus Kṛṣṇa, que auxilia
Arjuna, o herói dos Pandavas. Este épico contem 110.000
slokas (estrofes), distribuídas em 100 capítulos. Segundo
Heinrich Zimmer, trata-se de uma epopéia oito vezes maior
14
A tradução proposta por Carlos Alberto Fonseca poderia ser
compreendida da seguinte forma: Bhagavat – “aquele que possui
Bhaga”, isto é, felicidade, generosidade, e por isso é venerável – e
gītā que significa canção ou poema sagrado, doutrina religiosa
apresentada na forma de versos. (Cf. FONSECA, 2009, p. 21)
15
Cf. ELIADE, 1996, p. 135.
16
O termo significa “campo dos Kuru”. Kuru é sinônimo de Kaurava.
Pensa-se que o campo fosse situado entre os rios Yamuna e
Sarasvati, na antiga Hastinapura – a cidade do Elegante -, a moderna
Delhi.
62
que a Odisséia e Ilíada de Homero juntas (CF. ZIMMER,
1986).
O Bhagavadgītā está situado no livro III, sexagésimo
terceiro capítulo da obra, em um momento crítico da epopéia
– a iminência do conflito entre Pandavas e Kauravas. Neste
momento, Kṛṣṇa, um Deus encarnado, se oferece como
condutor da carruagem de Arjuna. É importante lembrar que a
imagem da carruagem foi citada no texto da kaṭha upaniṣad, e
constituía uma importante metáfora: conduzir a carruagem
era a alegoria da própria condução dos sentidos (cavalos) do
corpo (a carruagem) através da razão (as rédeas). Mas, em
última instância, o condutor da carruagem (a mente) deveria
sempre estar em sintonia com o proprietário desta (o próprio
ātman). Assim, com todo este referencial simbólico associado
à carruagem na cultura indiana do período, Kṛṣṇa torna-se o
condutor (auriga) de Arjuna. A condução da biga (carruagem)
então pode ser entendida como uma alegoria da própria
condição de Kṛṣṇa, amigo e mestre de Arjuna, que se revela o
condutor do espírito humano, simbolizado pelo próprio Arjuna.
Mas, mesmo tendo o auxílio desta divindade, no
momento em que deveria começar a batalha, Arjuna recusa-
se a lutar, paralisado pelo dilema de enfrentar amigos,
mestres e parentes do outro lado do campo Kuru. Trata-se de
um confronto fratricida. Por isso, o herói não toca o búzio e o
confronto encontra-se paralisado no momento em que se
inicia a narrativa do Bhagavadgītā. Para a resolução do dilema
de Arjuna, Kṛṣṇa resolve ensinar-lhe a doutrina suprema
(chamada Dharma), que dissipa a ignorância e a ilusão.
Esta doutrina é desvelada em diversas disciplinas
(Yoga) que Arjuna deve aprender a praticar, para sair do
estado de paralisia. E, neste percurso de aprendizagem, Kṛṣṇa
se revela para Arjuna na forma de uma teofania da ordem
cósmica: numa visão sublime, mostra-se como síntese de
várias manifestações divinas, heróicas e humanas. Nesta
revelação, Kṛṣṇa mostra a Arjuna que a destruição é parte da
essência divina, da ordem cósmica universal. E, após seu
percurso de aprendizado, Arjuna supera a paralisia e toma a
ação necessária, dando início ao conflito.
Religiões da Índia antiga: do Veda ao Yoga
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  • 1. Religiões Orientais: Uma introdução. Volume 1: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. Editora Universitária UFPB João Pessoa 2010
  • 2. 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA reitor RÔMULO SOARES POLARI vice-reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS EDITORA UNIVERSITÁRIA diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA vice-diretor JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO divisão de produção ALMIR CORREIA DE VASCONCELOS JUNIOR
  • 3. 3 Maria Lucia Abaurre Gnerre Religiões Orientais: Uma introdução. Volume 1: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. Editora Universitária UFPB João Pessoa 2010
  • 4. 4 Todos os direitos reservados Revisão: a autora Apresentação: Fabrício Possebon Capa: O campo de Batalha do Bhagavadgītā Imagem disponível em: http://www.inannareturns.com/gita/images/BGKrishnainstructsArjuna. ______________________________________________________________________ Gnerre, Maria Lucia Abaurre. Religiões Orientais: Uma introdução. Volume 1: Tradições da Índia – Do Veda ao Yoga. João Pessoa. Ed. Universitária UFPB, 2010. 130 p. ISBN: 978-85-7745-604-8 UFPB/BC CDU: 200 _______________________________________________________________
  • 5. 5 AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Fabrício Possebon, pelo incentivo na formação da área de Religiões Orientais do Departamento de Ciências das Religiões da UFPB, pelo grande auxilio na publicação desta obra, e pela apresentação – tão importante para complementar meu trabalho. A todos os demais colegas do departamento de Ciências das Religiões da UFPB, que tanto tem me ajudado desde a minha chegada. Obrigada! Ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) que financia, através do Programa de Desenvolvimento Científico Regional (DCR), minha atual pesquisa sobre História das Religiões Orientais no Brasil. A Fundação de Amparo à Pesquisa da Paraíba (FAPESQ), que também financia minha atual pesquisa através de parceria com o CNPq. Ao meu companheiro, Gustavo Cesar O. Baez pelo carinho e pela companhia nos caminhos teóricos e práticos do Yoga. A minha mãe, Maria Bernadete Marques Abaurre, que sempre incentivou meu trabalho e também se interessa pelo mundo oriental. E, além disso, colaborou nesta obra com seu conhecimento da língua portuguesa. A meu pai, Maurizio Gnerre, que com seus relatos de viagens pela Índia, aumentou ainda mais meu interesse. Ao professor Horivaldo Gomes, que me apresentou vários conceitos das Religiões Orientais de forma interativa e integrada. Aos amigos Klara Schenkel, Roberto Miranda e Rebecca Soares Espínola, companheiros de aprendizagem pelos caminhos do Yoga. Namastê!
  • 6. 6
  • 7. 7 SUMÁRIO Apresentação: O verbo Criador 09 Introdução: Os múltiplos olhares sobre o Oriente 13 Capítulo 1 Cultura, Sociedade e Religião da Índia antiga nos textos védicos 25 Capítulo 2 A tradição dos upaniṣad 43 Capítulo 3 O épico hindu: Bhagavadgītā – A Canção do Venerável 61 Capítulo 4 A linhagem do Sāṁkhya e a dança dos elementos 81 Capítulo 5 O despertar do Yoga 95 Referências Bibliográficas 129
  • 8. 8 Nota sobre a grafia das palavras em Sânscrito: Procuramos seguir neste livro a grafia das palavras em sânscrito conforme elas se apresentam nos textos de referência. Dos textos que utilizamos, a maior parte se vale do sistema internacional de transliteração (IAST) dos símbolos do Devanagari (o alfabeto Sânscrito) para o alfabeto romano. Este padrão de transliteração foi o aprovado no Congresso Internacional de Orientalistas realizado em Atenas, em 1912. Este sistema utiliza as letras do alfabeto romano, com alguns sinais para representar letras especiais. Para que o leitor possa compreender a forma correta de pronúncia destas letras especiais, recomendamos as obras de ZIMMER (1986), MARTINS (2008) e POSSEBON (2009).
  • 9. 9 O Verbo Criador Fabricio Possebon Coordenador da Pós-Graduação Ciências das Religiões - UFPB A obra que o leitor tem em mãos é um estudo introdutório ao mundo da cultura e religião da Índia antiga. Em uma visão panorâmica, acompanhando as propostas mais aceitas de periodização, vamos seguindo o desenrolar do pensamento indiano, desde seus primórdios, pouco elaborados e muito ligados a uma concepção mítica da realidade, até o desabrochar de idéias e raciocínios sofisticados e originais, como o yoga. Se buscarmos, num esforço tremendo e mesmo ousado, um fio condutor desta longa jornada, o que encontraremos? O que liga as diversas doutrinas, segundo nossa interpretação, é o poder da Palavra,  aqui entendida como o Verbo Criador. Em sânscrito, é a fala, o discurso, a voz, o som e a língua, personificada e divinizada na mais antiga tradição. Não se limita, portanto, a veículo de comunicação, numa visão moderna e pragmática. Verbum, , é uma deusa dos tempos védicos. Tal qual em outras culturas arcaicas, é a palavra que cria e mantém o funcionamento do mundo. Assim a vemos em Hesíodo, na sua Teogonia, v. 75 e seguintes, onde a Musa Calíope, a Bela- Voz, é tida como superior a todas as suas irmãs. Filha do soberano Zeus-Poder e da deusa Memória, ela herda de seus pais a força irresistível da persuasão e a lembrança histórica dos acontecimentos. Deste modo, alguém só tem sucesso se recebe os seus favores. De sua boca fluem palavras doces, épea meílikha. No sentido grego primitivo, épos (de onde os nossos termos épica e epopéia), mythos e lógos são sinônimos e cobrem o campo
  • 10. 10 semântico acima dito do sânscrito Vemos a força deste lógos criador também no Evangelho de João, I, 1: en arkhêi ên ho lógos, no princípio era o Verbo. Ainda em Hesíodo, agora nos Trabalhos e Dias, v. 760 e seguintes, conhecemos a deusa Fama, que deve ser evitada pelos homens, pois ela se ergue facilmente, mas é difícil de ser carregada e mais ainda de ser deposta. Fama é também um deus, theós ný tís esti kaì autê, todavia um deus destruidor sobretudo. Ovídio, nas Metamorfoses, XII, versos 39 e seguintes, apresenta a Fama habitando um palácio, no centro do mundo, cercado por terra, céu e mar. Tal palácio possui incontáveis entradas, para que tudo ali seja ouvido. Inexiste silêncio, são vozes sussurradas anunciando mil mentiras misturadas com verdades, milia commenta mixta cum veris. Deste modo, a Fama se apresenta como a face negativa do Verbum criador, como uma espécie de excesso de Palavra. É também uma divindade a Discórdia, éris, responsável pela guerra de Tróia. Numa tradição arcaica, como a Guarani, a palavra, nhe’eng, em dados contextos, transforma-se em palavra-alma, assim nhe’eng-ey é o espírito enviado pelas divindades para se encarnar em um ser que está prestes a nascer, ou seja, a palavra é o próprio espírito do homem. Numa visão ampliada, as coisas passam a existir no momento em que são nomeadas, que recebem um dado nome. De certa forma, é o que faz Adão, no Gênesis, I, 19 e seguintes, ao dar nome a todos os seres viventes. Não alcançamos o processo mágico da criação divina, em que um deus pronuncia o Verbum e suas palavras se transformam em coisas reais, nem mesmo conseguimos compreender com precisão a ligação espiritual entre o nome e a forma, o que permite que tudo tenha sentido para nós. São muitos os mistérios. Então, diante destas dificuldades, vamos nos limitar a ouvir o que os sábios, rishis, da antiguidade indiana tinham a dizer sobre a Palavra criadora, ou melhor, vamos ouvir o que a própria  diz de si mesma, no hino X, 125, do Rig-Veda:
  • 11. 11 1. Eu caminho pelas Tempestades, pelas Divindades, pelos filhos da Eterna e por todos os deuses. Eu sustento os deuses dos sacerdotes, Mitra e Váruna, os deuses dos guerreiros, Indra e Ágnis, e também os deuses do povo, os gêmeos Açvins. 2. Eu sustento a bebida sagrada, o Soma, e sustento o Deus- artesão, e o Charreteiro-do-Sol, e a Fortuna. Eu ofereço riqueza ao zeloso ofertante, patrocinador do sacrifício, e ao macerador do Soma. 3. Eu sou a rainha coletora dos tesouros, observadora, primeira entre os dignos sacrificadores. Os deuses me dividiram de vários modos. Fui posta em muitos lugares. Fizeram-me adentrar numerosas moradas. 4. Por mim, é identificado aquele que come arroz, aquele que vislumbra, aquele que respira, qualquer um que ouve o que é falado. Eles, sem saber, em mim habitam. Eu te digo o que é crível, ouve! 5. Eu mesma digo o que é propício aos deuses e também aos homens. Faço poderoso a quem quero; faço alguém ser sacerdote; faço outro ser recitador, e outro ser sábio. 6. Eu estico o arco para o Deus da Tempestade, que há de destruir o ímpio, com sua flecha. Eu trago a discórdia ao povo. Eu persuadi o Céu e a Terra. 7. Eu gerei o pai, no topo deste mundo. Meu útero está no meio das águas, no mar. Estendi-me a todos os seres. Toquei o céu com a ponta da cabeça. 8. Eu sopro como o vento, abarcando todos os seres, além do céu, além desta terra. Tornei-se de tal grandeza. Convidamos então os leitores a acompanhar a obra da Profa. Maria Lucia Abaurre Gnerre, responsável pela área de Estudos Orientais do curso de Ciências das Religiões - UFPB, nesta jornada pelo verbo criador.
  • 12. 12
  • 13. 13 Introdução: Os múltiplos olhares sobre o Oriente Esta é uma obra introdutória que aborda alguns aspectos da religiosidade no mundo oriental, especificamente na Índia. Os temas “orientais” estão cada vez mais em evidência na sociedade “ocidental” contemporânea. Ano após ano, temos assistido ao lançamento de filmes e a publicações de diversos tipos, bem como a chegada de uma grande variedade de práticas de saúde advindas deste “mundo oriental”. Parece haver um interesse crescente por tudo que diz respeito a este universo cultural. Mas, para estudarmos um conjunto de tradições religiosas denominadas “orientais”, é importante que se faça primeiro uma breve análise do próprio conceito de Oriente, e como ele se constrói em contraposição ao conceito próprio conceito de Ocidente. Há importantes estudos acadêmicos sobre este tema, e, dentre eles, destaca-se a obra de Edward W. Said Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Nesta obra, de 1978, Said mostra que o “Oriente” não é apenas mais uma denominação geográfica entre outras (como os pontos cardeais do leste, oeste, norte ou sul). Antes, o “oriente” pode ser considerado uma invenção cultural e política do próprio “Ocidente” que observa as várias civilizações que se desenvolveram a leste da Europa como um conjunto cultural marcado pelo exotismo e pela inferioridade. Há um processo histórico de formação de um imaginário social e cultural que concebe o oriente, como sendo o lugar do outro, da diferença, embora este imaginário do outro, muitas vezes seja fabricado a partir de ficções (e, por isso mesmo, o “diferente” se torna muitas vezes interessante e sedutor). A perspectiva de Said é de profundo interesse para uma análise inicial do conceito de oriente com o qual trabalhamos nesta obra, que versa sobre o “extremo oriente” (conceito que geograficamente pode ser entendido como todas as sociedades que estão a leste do subcontinente indiano, e
  • 14. 14 também a própria Índia). Há um imaginário acerca deste oriente distante que também se constrói a partir do olhar de viajantes provenientes do ocidente, sobretudo da Europa. Tais viajantes desde tempos remotos têm “descoberto” estas civilizações distantes, com hábitos culturais e religiosos “exóticos”, e tem produzido, à partir de suas descobertas, importantes relatos e narrativas que ajudam a construir este imaginário dos que ficaram na velha Europa. Assim, podemos dizer que a Índia também participa deste construto cultural denominado “oriente”, que foi essencialmente criado a partir do Ocidente. A este respeito, Rosa Maria Perez faz importantes apontamentos: Índia, como designação de uma região cultural, é, todavia, eminentemente uma construção européia. Situada nos limites do oikoumene, o mundo conhecido, ela foi, dede muito cedo na história envolta por todo o imaginário produzido em torno de um terra no fim do mundo, substantivando, assim, mais do que qualquer outro país asiático, o espírito daquilo a que Edward Said chama de “Orientalismo”. Falar da história da Índia na História é pois falar da história de uma longa sedução. (PEREZ, 1994, p.233) E, com relação ao imaginário ocidental, particularmente da cultura luso-brasileira sobre a religiosidade indiana, podemos notar que ele também se constitui embalado com esta aura de exotismo e sedução. Hoje, quando falamos em religiões orientais – particularmente aquelas provenientes da Índia – talvez as primeiras imagens que venham à mente do leitor sejam de divindades hindus com inúmeros braços, segurando objetos ou fazendo gestos incompreensíveis ao nosso olhar. Associados ao culto destas imagens podemos imaginar grupos de devotos cantando mantras com belas roupas coloridas, ou mesmo yogues imersos em estados de profunda meditação, passando meses sem se alimentar.
  • 15. 15 Podemos também associar esta idéia de “religiões orientais” às diversas representações do Buda; pensar nas grandes imagens de pedra no meio das florestas tropicais da Tailândia, no budismo tibetano com suas cores características, ou mesmo na tradição brasileira, que com seu sincretismo característico, incorporou uma imagem do Buda gordo em diversos lares – como uma espécie de amuleto que traz abundância. Há várias outras imagens possíveis de serem relacionadas à idéia de “religiões orientais”. Mas, qualquer que seja a imagem evocada em nossa mente, ela nos traz de prontidão um conjunto de mitos, ritos e divindades profundamente diferentes da matriz religiosa judaico-cristã que predomina em nossa sociedade. Temos assim, no campo da religião, mais um conjunto de diferenças, mais uma cisão, entre as muitas que vem sendo utilizadas para caracterizar os conceitos de ocidente e oriente. Historicamente, os encontros do mundo ocidental com as religiões orientais remetem a antiguidade, quando Alexandre Magno invade a Índia, onde finalmente seu exército se firma1 . Mas, foi a partir do fim da idade média que se pode identificar com mais precisão um esforço no sentido de caracterizar estas religiões do extremo oriente pelo viés de suas diferenças em relação à religião ocidental cristã. Desde as Viagens de Marco Pólo (Il Milione) onde temos o relato do famoso viajante de viagem à China, passando pelo período das cruzadas, e chegando ao século XVI, período dos descobrimentos, são muitos os relatos de viajantes sobre as “curiosidades” que se referem ao mundo oriental. No caso do mundo lusitano, do qual fazemos parte, devemos lembrar que após a viagem de Vasco da Gama (entre 1497 e 1499) temos o processo de construção do 1 Após a conqusta da Grécia e do imperio Persa, Alexandre Magno se dirige, em 327 a.C. com suas tropas para a Índia, país mítico para os gregos, onde fundou colônias militares e cidades. No entanto, ao chegar ao rio Bias, suas tropas, cansadas de tão dura empreitada, se negaram a continuar. Alexandre decidiu regressar à Pérsia, viagem na qual foi ferido mortalmente e acometido de febres desconhecidas, que nenhum de seus médicos soube curar.
  • 16. 16 chamado Estado Português da Índia.2 Ou seja: há uma relação histórica da cultura lusitana com a Indiana, e há também uma profusão de relatos do século XVI sobre a religiosidade hindu. Quando os portugueses dedicam-se em instituir suas bases no Oriente, os missionários, sobretudo jesuítas, atuam como aliados nestes processos. E produzem, neste contexto, importantes relatos sobre as divindades que encontram pelo caminho. Abre-se, com os missionários uma perspectiva diferente sobre o pluralismo da religiosidade Indiana, uma perspectiva que não sublinha as diferenças culturais entre observador e observado, mas que tenta traduzir os fenômenos religiosos observados à luz do cristianismo. Neste processo, procurou-se estabelecer relações diretas entre a multiplicidade de divindades hindus com a trindade cristã (PEREZ, 1994, p.233). Mas, fora este empreendimento missionário que não busca sublinhar as diferenças, mas sim ignorá-las, temos também textos portugueses que seguem o padrão proposto por Said, de caracterizar o oriente à partir de suas “curiosidades” e diferenças. O texto mais famoso neste sentido talvez seja Décadas da Ásia do famoso cronista português Digo do Couto. Segundo Maria Augusta Lima Cruz (1994) este autor pode ser considerado como um dos primeiros “orientalistas” europeus. Afinal, nos vários volumes por ele produzidos ainda no século XVII, temos uma narrativa inaugural da sociedade e da cultura indiana, onde podemos observar várias descrições do povo e de sua religiosidade sob a ótica de um funcionário do estado português. Justamente em virtude desta sedução que se cria vinculada a sua diferença, o oriente começa a despertar um interesse cada vez maior entre acadêmicos e estudiosos. Este interesse se consolida na Europa principalmente a partir do século XVIII, no campo de estudos que passa a ser denominado “Orientalismo”. No fim deste século, o britânico Willian Jones, fundador da Sociedade Asiática de Calcutá 2 A este respeito, cf. PEREZ, 1994 e CRUZ, 1994.
  • 17. 17 transmite à Europa da época a descoberta do Sânscrito3 , a língua dos Veda, as escrituras sagradas da Índia. O sânscrito (como analisaremos no primeiro capítulo de nossa obra) é uma língua de origem Indo-Européia, e, sendo assim é parente das línguas “nobres” da Europa, como o Grego e o Latim. Esta descoberta abre também a possibilidade um olhar romântico sobre a Índia, inaugurado por autores alemães como Schlegel “que vê no sânscrito uma estrutura lingüística perfeita, manifestação de uma antiguidade recuada – paraíso perdido da língua e da cultura, em longa degenerescência” (PEREZ, 1994, p. 234) Assim, com a descoberta do Sânscrito passa a ser admitida na Europa uma origem elevada da cultura e da religiosidade indiana. Este lugar de origem, no entanto, teria se perdido nas brumas do tempo. Com a chegada do século XIX temos uma geração de importantes estudiosos, como o Indólogo alemão Max Müller que também teria considerado a cultura indiana como exótica e inferior à Greco-romana. No entanto, é ele o autor das primeiras traduções dos textos dos Veda e dos textos dos upaniṣad 4 . Em um artigo recente, Mário Ferreira nos chama atenção para o fato de que o próprio Müller via-se diante da “espinhosa tarefa de estudo de uma civilização desenvolvida sob bases distantes das do cristianismo” (FERREIRA, 2010, p.33). Assim, em sua apresentação do hino do Rig Veda (ou 3 O sânscrito é uma língua de origem indo-européia (escreve-se Samskrta) e seu nome designa “bem feito”, bem acabado, em oposição às línguas bárbaras (prakrta) faladas no período védico, que remete ao segundo milênio antes de cristo. (Cf. GULMINI, 2002). 4 Upaniṣad (cujo significado é “ensinamentos obtidos por aproximação respeitosa”) são conjuntos de textos vinculados ao final da literatura dos Vedas, textos que tomam por base os Veda, mas contêm idéias novas. Idéias provavelmente originárias da civilização do vale do Indo, sufocada durante o período védico, que começam a vir a tona nestes textos, como é o caso do Yoga. Vedanta é o nome da tradição de conhecimento das Upanisads. Seu nome significa literalmente “final dos Vedas“. Sobre estes textos, faremos uma análise detalhada no segundo capítulo desta obra.
  • 18. 18 ṛg-veda, “a sabedoria das estrofes recitadas”), o principal texto dos Veda, Müller escreve a seguinte apresentação: Não desejo [...] suscitar expectativas exageradas quanto ao valor desses antigos hinos do Veda e quanto ao caráter dessa religião que eles mais sugerem do que descrevem [...] Boa parte dos hinos védicos são extremamente infantis: tediosos, vulgares, triviais. Os deuses são invocados constantemente para proteger seus adoradores, para dar-lhes alimento, rebanhos numerosos, famílias numerosas, e uma vida longa, por cujos benefícios são recompensados pelas orações e sacrifícios oferecidos diariamente ou em certas estações do ano. Mas, ocultas sob estas tolices, acham-se também pedras preciosas. (MÜLLER, APUD FERREIRA, 2010, p.33) Max Müller descreve esta seqüência de “tolices infantis” que fazem parte do Veda de uma forma natural; afinal, um texto tão antigo poderia ser considerado no século XIX como pertencente a uma infância da humanidade, tomando por base um conceito de história como progresso contínuo, tão caro aos estudiosos deste período que antecede duas catastróficas guerras. O autor continua sua apresentação do texto falando sobre pedras preciosas que podem ser encontradas ocultas sob estas tolices, e que podem ser encontradas pelo leitor que se despoja do politeísmo “repugnante” aos olhos ocidentais, e que povoa os textos védicos (MÜLLER, APUD FERREIRA, 2010, p.34). Mas afinal, quais seriam as pedras preciosas que poderiam ser encontradas nesses antigos textos indianos? Uma breve análise do hino “X-129: Criação” do Rig Veda pode nos dar pistas sobre estas preciosidades: 1. Não havia não-ser, não havia ser, naquele tempo, não havia éter, nem céu que está além. O que cobria? Onde? De
  • 19. 19 quem era a proteção? Água? O que havia impenetrável, profundo? 2. Não havia morte, nem imortalidade, naquele tempo, não havia indicação de noite e dia. Esta unidade respirou a atmosfera sem vento, por moto próprio; pois nada além disso não havia. 3. Escuridão havia, pela escuridão coberta, no começo; toda a irreconhecível água era isso, que existia fechado pelo vácuo; esta era a unidade poderosamente nascida do calor. 4. Um desejo, então, no começo, se moldou, sêmen que era o primeiro da mente; do ser a conexão do não-ser os poetas descobriram, buscando no coração, pela sabedoria. 5. Transversal, estendida, a linha foi movida; embaixo acaso estava? Em cima acaso estava? Reprodutores existiam, poderes existiam; impulso embaixo; intenção, além. 6. Quem realmente sabe? Quem aqui anunciou como nasceu esta criação, como? Depois os deuses com sua criação; então quem sabe de onde surgiu? 7. Essa criação de onde surgiu, se foi produzida ou não? Quem é seu observador, no supremo céu, este por certo sabe ou não sabe. (RIG VEDA in POSSEBON, 2006) Este hino fala do momento da criação, apresenta-nos uma cosmogonia védica, partindo de um começo quase inconcebível para a nossa mente: um tempo em que não havia o não-ser, pois não havia o próprio ser. Não havia a não-existência, pois esta depende da própria existência para haver. Ou seja, um princípio onde não há dualidade. Há apenas a escuridão da atmosfera sem vento, que respira a si mesma por moto próprio. Tudo começa com uma respiração, que vem do vácuo, do espaço. Esta unidade que respira a si mesma poderá ser interpretada pela tradição védica posterior (o Vedanta) como o próprio Brahman.
  • 20. 20 Como vemos no texto acima, já estão presentes nos Veda importantes conceitos que vão muito além de afazeres ritualísticos. Justamente estes conceitos passam a ser muito valorizados por autores que estudam a cultura indiana nas décadas que sucedem as traduções de Max Müller. Um dos principais representantes desta nova geração que vai conceber teorias para análise e interpretação do pensamento indiano é Henrich Zimmer. Sobre o um dos temas centrais da religiosidade indiana – a questão do ātman – Zimmer declara que: A principal finalidade do pensamento indiano é desvendar e integrar na consciência o que as forças da vida recusaram e ocultaram, não é explorar e descrever o mundo visível. A suprema e característica façanha da mentalidade bramânica (e isto foi decisivo, não apenas para o desenvolvimento da filosofia indiana, mas também para a história de sua civilização) foi a descoberta do Eu (ātman) como entidade imperecível e independente, alicerce da personalidade consciente e da estrutura corporal. Tudo o que normalmente conhecemos e expressamos de nós mesmos pertence à esfera da impermanência, à esfera do tempo e espaço, mas este Eu (ātman) é imutável por todo o sempre, além do tempo, além do espaço e da obnubiladora malha da causalidade, além de qualquer medida, além do domínio da visão.’ (ZIMMER, 1986, p. 20) Esta meta onipresente no pensamento indiano, de desvendar, trazer ao plano da consciência o que as forças da vida recusaram e ocultaram, guia uma série de idéias e conceitos cujas origens remontam ao período védico, mas seu desenvolvimento maior ocorre justamente na época das
  • 21. 21 upaniṣad. Assim, a busca do ātman, deste substrato atemporal que está presente em todas as formas de vida passa a ser reconhecida como principal característica da filosofia indiana. Na Índia, o mito e a filosofia não se divorciaram, como na tradição ocidental, convertendo-se em receptáculo com os quais os mestres comunicavam suas renovadas experiências da verdade. Efetua-se, segundo Heinrich Zimmer, uma maravilhosa amizade entre mitologia e filosofia, que está no alicerce de toda a estrutura da civilização indiana, e que a ela confere um profundo significado espiritual. (ZIMMER, 1986, p. 33) No universo hindu, o folclore e a mitologia são formas de levar ensinamentos filosóficos aos grandes contingentes populacionais. Através deste universo simbólico, as idéias não são simplificadas, mas transmitidas de uma forma mais palatável. Mas foi justamente este emaranhado entre a filosofia, a mitologia e a religião indiana que fez com que pensadores ocidentais do século XIX, como o alemão F. Hegel, não reconhecessem o caráter filosófico deste pensamento. E o próprio termo “filosofia Indiana” foi questionado durante muito tempo no ocidente, quando a origem da filosofia era datada especificamente na Grécia – de onde a palavra Filosofia é originária. (ZIMMER, 1986) Deixando de lado este preconceito com relação à filosofia e a religiosidade Oriental que ainda reinava nas universidades ocidentais, um conjunto de importantes intelectuais passa a se reunir em 1933 no grupo conhecido como Círculo de Eranus5 , imbuídos de um desejo de explorar este manancial de idéias que vinham do leste. Não lhes interessava mais um estudo das diferenças, mas sim das conexões entre as “paisagens mentais do Ocidente e Oriente” 5 “O nome Eranus foi dado por Rudolf Otto, autor de 'O Sagrado'. Em grego, Eranos significa 'comida frugal onde cada um leva a sua parte'. Nesta refeição compartilhada, cada convidado deveria mostrar-se digno da hospedagem e do convite, retribuindo com um presente intelectual: um texto, uma canção, um poema... De acordo com sua fundadora (Olga Fröbe-Kapteyn ), tais encontros seriam dedicados a promover a aproximação entre os dois hemisférios da terra, Ocidente e Oriente” ( MIELE, 2009, p. 42)
  • 22. 22 (MIELE, 2009). O tema do primeiro encontro do grupo foi justamente Yoga e Meditação no Oriente e no Ocidente. Seguiu-se o tema da Orientação Espiritual no Oriente e Ocidente. Carl Gustav Jung é considerado o mentor do círculo, estudando a psicologia arquetípica e o inconsciente coletivo que transcende as delimitações do ocidente e o oriente. A filosofia indiana – que desde períodos muito remotos já se preocupava com o estudo da psique – passa a servir de base para elaboração de conceitos da psicologia e da psicanálise modernas, o que pode ser visto principalmente na obra de Carl Gustav Jung.6 Mesmo em textos anteriores ao círculo de Eranus, as fontes e temas indianos já eram recorrentes em seus textos. Quando estudamos alguns textos da tradição Indiana, torna-se perfeitamente compreensível o interesse de Jung, que via em tais textos “prefigurações de suas idéias, ainda que expressas sob forma e com métodos muito diversos dos da ciência moderna” (FERREIRA, 2010, p. 36). Assim, contrariando o paradigma inicial que procurava estabelecer Ocidente e oriente como dois campos culturalmente opostos e marcados pela diferença, Jung passa a utilizar elementos da cultura oriental de forma orgânica em sua obra, sem ressalvas. Na obra de Jung, os textos orientais servem para fundamentar ou explicitar suas teorias, e não são analisados de forma reticente ou distanciada. Exemplo disso temos nas referências ao Taoísmo e ao I-Ching na obra Sincronicidade. As citações do Tao Te King7 servem para fundamentar sua teoria a respeito de um estado em que o eu e o não eu já não se opõem: o Tao. É neste estado que se caracteriza pela totalidade, pela não diferenciação dos entes através dos nomes e dos sentidos, que todas as coisas estão ligadas, e justamente aí nasce a sincronicidade. (Cf. JUNG, 2004 [1950], pp. 55-57) 6 Sobre os estudos de Jung em relação ao mundo oriental, cf. FERREIRA, 2010, p. 35 7 Ou Dao De Jing na grafia mais recente, proposta pelo sistema instituído pela república popular da China em 1949.
  • 23. 23 É importante lembrar que o interesse de Jung pela tradição Indiana é anterior ao círculo de Eranos e à publicação de muitas obras sobre o tema. No entanto, embora seu interesse individual sobre a cultura indiana remontasse às primeiras décadas do século XX, foi principalmente a partir da formação do círculo que o estudo das tradições orientais ganhou maior relevância no âmbito acadêmico ocidental. Além de Jung, faziam parte do grupo o já citado Heinrich Zimmer, Henry Corbin (importante estudioso do Islã), Mircea Eliade (importante historiador das Religiões), Joseph Campbell, que escreve obras consideradas referenciais para o estudo dos mitos de diversas culturas, e mais tarde Gilbert Durand. Este último é criador de uma escola de estudos da antropologia do imaginário que serve de referência para o Curso de Graduação em Ciências das Religiões da UFPB (MIELE, 2009). Além destes, muitos outros intelectuais de peso, também vinculados às chamadas ciências naturais, freqüentaram as reuniões do círculo, fazendo não só as conexões ocidente-oriente, mas também as conexões entre as diversas áreas do saber compartimentalizadas pelas divisões da ciência cartesiana. Assim, já na primeira metade do século XX, o pensamento oriental começa a ser reconhecido não mais como um conjunto de narrativas mitológicas incompreensíveis, mas sim, como uma forma de pensamento que poderia trazer grandes contribuições para temas que tanto interessavam aos intelectuais do ocidente, como a própria natureza do ser. Da velha Índia e da velha China, chegavam conceitos novos aos olhos ocidentais, conceitos que após milênios de dormência, guardados em línguas enigmáticas, apareciam traduzidos para complementar idéias que vinham revolucionando o pensamento ocidental – como a própria idéia de inconsciente8 . O objetivo inicial dos estudiosos reunidos em Eranos era promover estudos de mitologia comparada entre as 8 Termo tão caro a Freud e Jung, o inconsciente pode ser visto nos textos clássicos das doutrinas do sāṁkhya e Yoga, que remetem ao segundo ou terceiro século depois de Cristo. A este respeito, cf. capítulos sobre as doutrinas citadas, presentes neste volume.
  • 24. 24 mitologias do Oriente e Ocidente, aproximando estes dois universos humanos em suas estruturas mitológicas, arquetípicas e simbólicas. Este estudo comparado serviu de fundamentação para importantes trabalhos publicados no período. A partir das reuniões de Eranos surgem importantes obras publicadas pelos seus membros, que servirão como fundamentação teórica para o estudo de religiões orientais que ora apresentamos. Entre estas, podemos destacar a obra do historiador romeno Mircea Eliade: Yoga: imortalidade e liberdade; a obra já citada do Indólogo Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia (compilada por Joseph Campbell após a sua morte); e as obras do mitólogo Joseph Campbell, O Herói de mil faces e O poder do Mito. Consideramos os pressupostos teóricos, desenvolvidos por estes autores nas referidas obras, como chaves conceituais para a compreensão da cultura e religiosidade indiana como um patrimônio da humanidade, que não se restringe a um oriente distante e isolado de nós. Assim, nesta obra de caráter introdutório, não vamos apresentar questões ou perspectivas novas ao leitor, mas apenas fazer um breve esboço de conceitos centrais das religiões da índia, de forma que se percebam suas idéias fundamentais, para além do exotismo e das diferenças.
  • 25. 25 Capítulo 1 Cultura, Sociedade e Religião da Índia antiga nos textos védicos I. A sociedade védica: O nome Veda designa um conjunto de textos sagrados, sobre os quais se fundamentam a sociedade e espiritualidade indianas. A influência deste cânone védico sobre a cultura indiana vai desde o segundo milênio antes de Cristo até a atualidade. Veda é um nome sânscrito que significa “Saber Revelado”. O sânscrito é uma língua de origem indo-européia (escreve-se saṁskṛta) e seu nome designa “bem feito”, bem acabado. Trata-se de uma oposição às línguas populares (prácritos) faladas no período védico, consideradas bárbaras pelos povos arianos (GULMINI, 2002, p.13). Antes de adentrarmos na estrutura literária destas escrituras, e dos ensinamentos que estão contidos nelas, é imprescindível falar um pouco do contexto de sua produção: O momento em que o povo ārya estaria se instalando no subcontinente Indiano. Os próprios Veda também podem ser considerados registros históricos que trazem informações importantes sobre as crenças, desejos, questionamentos e práticas religiosas e sociais destas populações. Os ārya são povos indo-europeus, provenientes da região entre Cáucaso e Carpatos, próximo ao mar negro. São povos que por volta do III milênio antes de Cristo começam a se expandir em direção a Ásia e à Europa, levando consigo esta língua-mãe (o “Indo-Europeu”) de onde deriva o Grego, o Latim, e o Sânscrito. Embora não se conheça o Indo-europeu, trata-se de uma teoria amplamente aceita em virtude das semelhanças etimológicas entre as 3 línguas citadas e outras línguas da antiguidade ( POSSEBON, 2006).
  • 26. 26 Assim, os ārya, cujo nome signifca “Nobres” são descendentes deste povo indo-europeu que, por motivos climáticos/ambientais se vê obrigado a deixar suas terras de origem, e começa sua expansão em direção a Ásia e subcontinente Indiano. Justamente o estudo de vocábulos comuns entre estas línguas antigas permitiu uma reconstrução histórica do modo de vida destes povos. Segundo Mircea Eliade (2010 [1976]) os Indo-europeus praticavam agricultura, mas sua cultura estava centrada no nomadismo e pastoreio. Criavam animais como o touro, o boi, o porco, ovelhas, cavalo e cão. Sua economia era nômade, pastoril e patriarcal, vivendo em aldeias fortificadas com casa de madeira. Pareciam ser bem preparados para a guerra, com carros de combate leves e rápidos, levados por cavalos. Dominavam a tecnologia do Bronze, enquanto outros povos do período9 dominavam a tecnologia do cobre. Não é possível definir exatamente um tipo físico indo-europeu e ária, mas não seriam louros de olhos azuis como quiseram os nazistas. II. Os arianos na índia: Há uma semelhança notável entre o Védico e o Avéstico (a mais antiga língua do iraniano), o que faz supor que uma mesma corrente migratória de indo-europeus teria partido em direção ao Irã e se desmembrado para o sul, chegando ao norte da Índia por volta de 1800 a.C., penetrando pelos desfiladeiros dos Hindus Kushes e Himalaias. Não teria sido uma invasão em massa, mas entrada gradual de pequenos grupos (POSSEBON, 2006) Não se sabe ao certo o que estes arianos encontraram no norte da Índia, no segundo milênio antes de Cristo. Mas algumas descobertas arqueológicas do início do século XX (especificamente do ano de 1921), trouxeram informações importantes: dois sítios arqueológicos, de Harappa e Mohenjo- Daro. São duas cidades datadas em cerca de 2.500 a.C., 9 Tais como os habitantes da civilização Harapiana, ou do vale do Indo, sobre os quais falaremos mais à diante.
  • 27. 27 altamente desenvolvidas do ponto de vista tecnológico e localizadas ao longo do vale do Rio Indo. Mohenjo Daro, em seu ápice, teria contado com uma população de 200.000 pessoas, sendo uma verdadeira metrópole da época. Foram compilados 400 símbolos de sua escrita, mas ainda não foram decifrados. Trata-se de uma civilização que teria estabelecido relações comerciais sobretudo com a Mesopotâmia. A descoberta destes sítios arqueológicos deu origem a seguinte teoria: A civilização Harapiana, originária da Índia e conhecida como Dravídica foi sendo empurrada para o sul com as invasões . Por isso, as línguas dravídicas (Canária, Telugu, Malayam, Tâmil, etc...) encontram-se hoje, sobretudo no sul da Índia. (POSSEBON, 2006). Há ainda uma outra hipótese, aceita por muitos historiadores, segundo a qual por volta de 1.500 antes de cristo, tenha havido uma mudança radical no curso dos rios da região, quando o rio Indo teria sido completamente extinto. Isso teria dado início ao processo de migração. Esta hipótese não é conflitante com a perspectiva de uma invasão ariana, pelo contrário: ambos fatores poderiam ter caminhado juntos para colaborar com a extinção desta sociedade harapiana. Além desta civilização altamente evoluída que habitou o norte da Índia, teria havido ainda outras culturas autóctones, conhecidas como proto-australóides. Tais populações seriam os aborígenes indianos, dos quais ainda restariam exemplos em diversas regiões da Índia. Muitas teriam sido as condições que facilitaram a conquista do território indiano pelos ārya, nesta época Dravídica. Os invasores estariam mais bem equipados para a guerra, com carros puxados por cavalos e armas de Bronze, enquanto os Drávidas teriam carros puxados por bois e armas de cobre. Há também a hipótese de uma crise social desta civilização do Indo, que já estaria previamente enfraquecida no momento da chegada dos árias – hipótese esta que se vincula à questão ambiental, do rio Indo que secou. Esta hipótese da invasão ārya, embora bem estruturada recebe algumas críticas, como por exemplo do historiador britânico G. Feuerstein (2005). Segundo tais criticas, a invasão ārya seria um conceito cristalizador pelos
  • 28. 28 historiadores ingleses. Sem dúvida alguns conceitos sobre a história e a pré-história da Índia podem mudar, acompanhando transformações políticas e culturais dos próprios historiadores, além das descobertas arqueológicas mais recentes (como as de 1984, que descobrem carros de guerra no leito do rio Indo). Mas não seria o caso de substituir antigas “verdades cristalizadas” por novas verdades (como a idéia de que não houve tal invasão). Acreditamos que elementos de ambas as teorias podem ser levados em conta, e seria possível estabelecer diálogos sobre a complexa história da Índia Antiga. De um modo geral, aceita-se a hipótese de que esta civilização harapiana-dravídica (bem como a proto- australóide) teria sido, num primeiro momento, sufocada pela cultura ārya. Mas, com o passar do tempo, seus conceitos e crenças vão se infiltrando na sociedade ária indo-européia. Deste modo, alguns elementos de sua tradição são incorporados nas práticas védicas. Um exemplo disso seria o Yoga, que mal se apresenta nos textos védicos, mas que renasce nos textos produzidos em período posterior. Além desta prática, divindades como śiva, que aparece nos Veda com o papel secundário de Rudra, ganha muita força na religiosidade posterior. Corroborando com esta teoria da origem dravídica de śiva, temos um Selo de Mohenjo-Daro onde os especialistas vêem um Proto-śiva, deus iniciador do Yoga e senhor dos animais selvagens. Assim, através desta simbiose da cultura ārya-drávida (denominada posteriormente hinduísmo) houve em paralelo um desenvolvimento da mitologia hindu.
  • 29. 29 (Fig. 1: selo de Pashupati encontrado nas escavações de Mohenjo-Dharo. Divindade em postura yogue, com elementos da escrita dravídica ao fundo) III. Mundo Védico: Mitos e Ritos. Os Veda são um grande monumento literário, filosófico, religioso e cultural que serve de inspiração para toda a tradição Indiana. Na história da Índia, chamamos de período védico aquele compreendido desde a chegada dos Indo- Europeus (ārya) no subcontinente Indiano, até a produção dos últimos textos dos Veda, por volta de 800 a.C. Neste período de produção dos Veda surge a antiga religião hindu, que está registrada neste conjunto de escrituras. Toda a produção do período insere-se numa visão sacralizada do mundo, com muitos mitos e ritos. Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, há dois modos de ver o mundo: um profano e um religioso. Muitos povos ao longo de sua história percorrem o caminho da dessacralização, e tem uma visão de mundo destituída de deuses. Outros povos, ainda hoje preservam este modo religioso, como algumas comunidades indígenas e africanas. Na antiguidade, a maioria dos povos vivia de acordo com este modo religioso. E, o que caracteriza para Eliade este Homo Religiosus é justamente a
  • 30. 30 vivência plena do sagrado. Ele percebe as manifestações da natureza como superiores à sua experiência quotidiana. Há uma bela imagem de um pastor da antiguidade que ilustra isso: - Deitado na grama, o pastor percebe a imensidão da abóbada celeste...percebe que está vivo graças a esta potência, percebe sua pequeneza, sente-se motivado à reagir, e faz um movimento corporal que dá conta de sua submissão e reconhecimento da grandeza divina do céu. Faz um rito. (ELIADE, APUD POSSEBON, 2006). Esta percepção do divino é chamada de Hierofania, e quando ela ocorre num determinado lugar, este lugar passa a ser sagrado, e o rito pode ser repetido. Desenvolve-se também uma narrativa desta história: um mito. E, segundo o mitólogo Joseph Campbell (1990 [1949]), mito é sempre verdadeiro, pois não há outra explicação para os tempos primordiais. Com o tempo, as narrativas míticas vão se tornando mais elaboradas, e o Homo religiosus que no início foi tocado pelo encantamento do sol como um Deus, agora já o descreve como um jovem de grande beleza, com uma cabeleira radiante, percorrendo o céu...Assim nascem os deuses, mitos e ritos antigos, como aqueles presentes nos Veda. Para o Indólogo alemão Heinrich Zimmer o Panteão Védico representava originalmente todo o universo, onde se projetavam as idéias e experiências dos homens. Nascimento, crescimento e morte eram projetados sobre os eventos cósmicos. As estrelas, as nuvens, o vento, as tempestades, a terra, o sol...todos esses elementos eram associados à divindades específicas que por sua vez refletiam aspectos das experiências humanas. Estes Deuses eram super-homens dotados de poderes cósmicos, mas, ao mesmo tempo, poderiam ser chamados a participar de uma festa por meio de oblações e rituais védicos. Os mitos são narrados em forma de cânticos que têm uma entoação certa para que se obtenha os poderes rituais. Isso é um pressuposto importante para a compreensão dos textos dos vedas: são textos para serem entoados junto dos rituais. Segundo Zimmer, esta etapa da religião védica equivale ao período homérico na Grécia (Teogonia). Na
  • 31. 31 Grécia, este período homérico foi seguido por um crepúsculo dos Deuses e mitos, e esteve relacionado à própria decadência das cidades estados e a invasão de Alexandre o Grande. Na cultura indiana, com o fim do período védico não vai ocorrer este crepúsculo dos deuses, mas sim uma transformação da religiosidade hindu. As deidades védicas não serão depostas, mas incorporadas à uma visão mais ampla e profunda – como senhores que fazem parte do império de um rei mais poderoso – o poder sagrado representado pelo Brahman, cuja presença pode ser experimentada em todos os seres através do ātman. (cf. ZIMMER, 1986 [1951], pp 244-49), Assim, os textos dos Veda descrevem todo um universo mítico-ritual do período ariano. Fazem parte da sabedoria revelada (Śruti). São ensinamentos ouvidos, intuídos, revelados e catalogados pelos sábios nos quatro livros principais do hinduísmo:  Rig-Veda (ou ṛg-veda): O nome deste livro significa “Sabedoria das estrofes recitadas”. São 1028 hinos, divididos em dez livros (Mandalas). Acredita-se que tenham sido compilados entre 1500 e 1000 a.C., mas os ensinamentos orais seriam muito anteriores. No Rig- veda estão reunidos elemento míticos que serviram de matéria prima para lendas e contos épicos da Índia, narrativas da criação do mundo, encantamentos mágicos para a cura ou obtenção de desejos, regras de comportamento social, etc... Por isso, histórica e literariamente o Rig-Veda é considerado o mais importante dos quatro livros. Nele encontramos um retrato do momento inicial de mixagem entre as culturas ārya e Drávida, com predominância da primeira. Neste Veda estão as sementes de várias concepções filosóficas que floresceram em solo indiano. Ele contém as perguntas que os indivíduos deste momento fizeram em relação à criação da vida, à natureza do universo e a sua própria função existencial.  Sāma-Veda: Sabedoria das estrofes cantadas (1549 hinos). O Sāma-Veda compõe-se de melodias cantadas
  • 32. 32 durante as oferendas sacrificiais, pelos sacerdotes da classe udgātṛ. É composto de duas partes: a primeira contém 585 cantos, independentes uns dos outros, e classificados segundo seu ritmo ou os deuses aos quais se referem. A segunda parte é composta de 400 cantos de três estrofes, agrupados segundo a ordem dos principais sacrifícios. Muitas estrofes do Sāma-Veda são semelhantes às do Rig-Veda.  Yajur-Veda: Coletânea que contém as fórmulas a serem murmuradas pelos sacerdotes da classe adhvaryu no decorrer dos ritos sacrificiais. Há duas versões deste Veda: O Yajur-Veda Negro é Versão mais antiga, tem esta denominação por suas fórmulas serem consideradas obscuras. Já o Yajur-Veda Branco contém fórmulas claras e mais sistematicamente ordenadas.  Atharva-Veda: Conhecimento de Atharvan. Coleção que contém os mais diversos temas, mas principalmente ensina magia e medicina popular. Contém cerca de 6.000 fórmulas mágicas, divididas em 730 hinos. Além de hinos de teor medicinal, contém charadas filosóficas e passagens metafísicas que segundo G. Feuerstein (2005) antecipam idéias e práticas da tradição do Yoga, como o controle da respiração. É o Veda dos sacerdotes das classes Atharvan – Os sacerdotes do Fogo. Nestes livros estão as instruções para a realização dos cultos na tradição védica. Conforme ELIADE (2010 [1976]), o culto védico não conhecia santuários; os ritos realizavam-se na casa do sacrificante, ou num terreno limítrofe, atapetado de relva, no qual se instalavam 3 fogos. As oferendas eram leite, manteiga, cereais e bolos, mas havia também o sacrifício de animais como a cabra, a vaca o touro, o carneiro, e o mais importante de todos: o cavalo. O sacrifício do cavalo (asva-medha) estava presente em outras sociedades indo- européias, que teriam sido as primeiras a domesticar o animal.
  • 33. 33 No sacrifício védico, o cavalo era identificado ao cosmos (ou ao deus Prajapati) ou ao próprio homem primordial Puruṣa (mito que será discutido mais à diante). Através do sacrifício do cavalo, os sacerdotes recriavam o início da ordem cósmica, e colaboravam para sua manutenção, podendo realizar vontades. Os sacrifícios podiam ter diferentes finalidades. Sacrifícios simples, de ordem doméstica (como para o nascimento o concepção de uma criança) poderiam ser realizados pelo próprio chefe da família, mas sacrifícios mais elaborados deveriam ser realizados com a presença dos sacerdotes. Um dos sacrifícios mais importantes era o ritual de entrega de um jovem rapaz ao Brâmane que seria seu preceptor. (ELIADE, 2010 [1976], pp.212-15). IV. As estrofes do Rig-Veda: Conforme dissemos anteriormente, o Rig-Veda é considerado o mais importante dentre os hinários védicos. Esta coleção de 1028 hinos trata essencialmente de assuntos religiosos, da ação e origem dos deuses e de todo o universo. Para compreender o uso do Rig-Veda, devemos imaginar a seguinte cena: Um rito está sendo realizado em local sagrado, pelos sacerdotes que podem fazê-lo. Enquanto realiza-se o rito, os versos são recitados, invocando a presença divina e narrando os mitos primordiais. Nas estrofes, o poder mágico das palavras está sempre presente. Há uma maneira correta de pronunciá-las, para que se garanta a eficácia do canto. Esta entoação das palavras mágicas é conhecida como Mantra (POSSEBON, 2006). Dentre os hinos do Rig Veda que tivemos acesso com tradução direta do sânscrito para o português (pelo Prof. Dr. Fabrício Possebon) optamos por selecionar dois hinos que trazem indícios importantes sobre a organização social, os Deuses, a cultura religiosa e os preceitos filosóficos do período védico. Segundo ELIADE (2010 [1976]), quatro tipos de cosmogonias se fazem presentes nos textos védicos: 1) Criação pela fecundação das águas originais, 2) Criação pelo
  • 34. 34 despedaçamento de um gigante, 3) Criação a partir de uma unidade-totalidade (ser e não ser) 4) Criação pela separação do Céu e da terra. Apenas nestes dois hinos que apresentaremos a seguir, veremos todas estas cosmogonias explícitas ou implícitas. - X-90: Homem primordial 1. De mil cabeças é o Homem, de mil olhos, de mil pés; ele, a terra toda cobrindo ultrapassa além dez dedos. 2. O Homem de fato é isso tudo, tanto o ser, quanto o vir-a-ser; assim, mestre da imortalidade, pelo alimento, muito se excede. 3. Assim é sua grandeza, e entre os maiores imenso é o Homem; sua quarta parte são todos os seres; três quartas é sua imortalidade no céu. 4. Com três quartos, para cima, moveu-se o Homem; a quarta parte aqui esteve de novo; logo em todas direções correu, ao que come e ao que não come. 5. Dele Virāj nasceu, de Virāj veio o Homem; este, nascido, excedeu a terra, para trás e então para frente. 6. Quando os deuses realizaram o sacrifício com o Homem, como oferenda, a primavera foi sua manteiga; o verão a lenha; o outono a oblação. 7. Na grama consagraram este sacrifício, o homem logo nascido; por ele, os deuses sacrificaram, e os Sādhyás e os que são sábios. 8. Deste sacrifício tudo é oferecido, reunida a manteiga, estes animais fez, feras que vivem no vento e os que são domesticados. 9. Deste sacrifício tudo é oferecido; as estrofes e os cantos nasceram, os hinos encantatórios nasceram deste, o encantamento surgiu deste. 10. Dele os cavalos nasceram e os que tem dentes em ambas as queixadas, as vacas
  • 35. 35 também nasceram dele, dele as ovelhas e as cabras. 11. Quando dividiram o homem? Em quantas partes arranjaram? Sua boca, ambos os braços, ambas as coxas e pés, a que se chama? 12. O sacerdote foi sua boca, ambos os braços foi o Guerreiro feito; ambas as suas coxas, isto que é o povo; de ambos os pés os Servos nasceram. 13. A lua da mente foi gerada; do olho o sol nasceu; da boca Indra e Ágnis; e do alento Vāyú nasceu. 14. Do umbigo foi a atmosfera; da cabeça o céu foi moldado; de ambos os pés a, terra; os pontos cardeais do ouvido; assim arranjaram os mundos. 15. Sete foram seus ramos, três vezes sete as lenhas preparadas, quando os deuses, fazendo o sacrifício, ataram o Homem, animal sacrificial. 16. Pelo sacrifício, os deuses sacrificaram o sacrifício; estas leis foram as primeiras; logo estes poderes atingiram o céu, lá onde moram os Sādhyás, deuses antigos. (POSSEBON, 2006, p. 41) O Hino do Homem primordial descreve um sacrifício mitológico, no qual o próprio homem é a oferenda. Puruṣa, o homem primordial, nasceu de Virāj, e Virāj nasceu de Purusa. Virāj é um termo que pode ser interpretado como o oposto feminino de Puruṣa – o gigante cuja dimensão excede a terra. Do seu sacrifício todas as coisas seriam criadas. No seu rito sacrificial, todos os elementos estão presentes: a primavera foi sua manteiga; o verão a lenha; o outono a oblação. O sacrifício é feito na grama, pelos Deuses, sábios e pelos Sādhyás (que são os deuses antigos ou semi-deuses), numa estrutura que reproduz a própria arena sacrificial védica. Mas, conforme este hino teria sido a partir do sacrifício do homem que todos os hinários védicos surgiram: 9. Deste sacrifício tudo é oferecido; as estrofes e os cantos nasceram, os hinos
  • 36. 36 encantatórios nasceram deste, o encantamento surgiu deste. (POSSEBON, 2006, p. 41) Nesta passagem, segundo o tradutor do texto, há uma clara alusão aos outros hinários védicos: as estrofes seria o próprio Rig-Veda (sabedoria das estrofes recitadas), os cantos o Sāma-veda (sabedoria das estrofes cantadas) e o Yajur- Veda (sabedoria das fórmulas ritualísticas) estaria representado na menção aos hinos encantatórios. Isso que denota que este hino teria sido escrito num momento em que os três hinos citados já existiam. Não por acaso, o homem primordial está no décimo livro (Mandala) do Rig-Veda, considerado de produção posterior. Um dos elementos mais importantes com relação a este sacrifício de Puruṣa, é que, a partir do desmembramento de seu corpo surgem as castas da Índia: Da boca, surge o sacerdote (Brâmane) – aquele que detém o poder da palavra, das fórmulas sacrificiais, dos mantras secretos e sagrados. Os brâmanes são a classe que ocupa o topo da pirâmide nesta organização social. Segundo ELIADE, aos sacerdotes corresponde a divindade védica Váruna, que é o Samrāj, ou rei universal. É a divindade que ocupa o lugar do par primordial Céu/Terra. Váruna faz o sol caminhar pelo dia, e a lua pela noite, é o regulador das águas e das nuvens. Com mil olhos, ele vê todas as coisas inclusive verdades e mentiras dos homens. É o rei do ṛta a ordem cósmica, litúrgica e moral. Ao mesmo tempo, esta ordem universal está baseada em Váruna. Assim governa tanto o universo quanto os rituais e a vida moral humana. Por isso, Váruna é senhor dos homens, e alguns hinos mencionam os grilhões que nos prenderiam a ele. O próprio Váruna, no entanto, também instrui os homens (especificamente os sacerdotes) sobre como se libertar, através dos rituais sacrificiais. Se Váruna é o governante, o rei universal, por vezes aparece junto do Deus Mitra, o legislador benevolente, uma divindade que muitas vezes intervém a favor dos homens, também associada aos Brâmanes. Dos braços de Puruṣa, ou seja, de sua força, foi feito o guerreiro, que representa a classe dos Xátrias. Os guerreiros estão logo abaixo dos sacerdotes nesta hierarquia social védica, estão relacionados ao deus Indra. Este é o Deus mais
  • 37. 37 citado no Rig-Veda, e, assim como Váruna, dispõe de um hino próprio no livro IV-19: 1. E a ti, ó Indra, animado de raios, aqui todos os deuses invocados, auxiliadores, elegêmo-lo grande, glorificador de ambos os mundos, augusto, único pela morte do Dragão. 2. Como os velhos deuses declinaram, és da terra o supremo rei, ó Indra, portador da verdade; mataste a serpente que cercava as águas; abriste os cursos que saciam as vacas. (POSSEBON, 2006, p. 33) Indra ora é apresentado como filho do Céu (Dyaus) ora como filho de Tvastr (o artífice dos deuses). É irmão de Agnis (o Deus fogo) e Indrani (sua forma feminina). Os ventos (Maruts) compõe seu séquito. É o deus bebedor de Soma e sua arma é o raio. Ao contrário de Váruna, que muitas vezes é representado de forma pacífica, Indra é vigoroso e violento, e é o protagonista do principal mito do Rig-Veda: O combate com o dragão Vrtrá (ou vṛtra), também traduzido como serpente. Ao matar Vrtrá com seu raio, Indra liberta as águas que estavam prisioneiras, separa o céu e a terra, e estabelece uma nova ordem cósmica. É a vitória da vida contra a morte, e as águas correm em direção ao oceano (as águas por vezes são chamadas de vacas no Veda). Este processo de criação pela separação do céu e da terra é um dos quatro tipos de cosmogonia presentes no Rig-Veda, aos quais ELIADE faz referência. E o mito da vitória sobre o dragão tem sido utilizado para interpretar a chegada dos Indo-Europeus à Índia, vencendo as populações autóctones. Nele, Indra é o arquétipo do Guerreiro, o Deus no qual os Xátrias, feitos dos braços de, devem se espelhar. Voltando para a 12ª estrofe do hino, lemos que das coxas do gigante Puruṣa nasceu o povo, ou seja, a classe dos produtores (Vaixiás) que estão na base da pirâmide. A eles correspondem os deuses gêmeos Nasatya (ou açvins). São gêmeos da cor de ouro, que percorrem os campos a cavalo assinalando a aurora (Ushas) e a noite (ratri) os caminhos que devem seguir. Os açvins são deuses humildes de nascimento,
  • 38. 38 estão relacionados ao ato de curar e ajudar os enfermos e carentes. Dos pés do gigante nascem os servos, isto é, os Xudras – os não arianos, escravos, que não têm sua divindade correspondente no panteão védico. Trata-se do modelo social das antigas castas indo-européias que fica explicito e justificado nos Veda. Neste hino, o Veda se converte também em documento histórico, que permite observar esta ordem social vigente há 4.000 mil anos, e que permanece na sociedade indiana atual, embora constitucionalmente proibida desde 1947. Por fim, é importante ressaltar a presença de outras divindades védicas que nascem do sacrifício de Puruṣa: A lua (Cāndrā) nasce da testa. A lua, associada aos ciclos da terra e ao elemento feminino, nasce da testa, região onde estaria localizado o ājñā-cakra10 , um dos principais centros energéticos do corpo sutil, responsável pela intuição. Do olho nasce o sol (Surya), representando a clareza da visão. Da boca, além dos Brâmanes, também surgem Indra (já referido) e Ágnis, a divindade do fogo. Ao fogo está dedicado o primeiro hino do Rig-Veda: Ágnis perde em importância no Rig-Veda apenas para Indra. No Rig-Veda, Ágnis é o primeiro fogo sacrifical. Apresenta-se com os epítetos ligados à claridade e calor. “Cabelo de chamas”, “brilho do céu”, etc...Ágnis é concebido também como o próprio sol, mas desce à terra como um relâmpago, chegando a ser “embrião das águas” ou filho das águas. Ágnis é o arquétipo do sacerdote – no primeiro hino ele faz o papel de sacerdote. Ele é chamado de “mensageiro” pois é o intermediário entre os Deuses e os homens já que o fogo consome as oferendas e as leva aos 10 Desenvolve-se na Índia desde os períodos mais remotos, uma elaborada anatomia do corpo sutil, composta por Cackras – que são rodas ou centros de energia, e nadis, os canais por onde circula esta energia, também denominada prāṇa . Durante a idade média da Índia, quando se desenvolve o tantrismo, este estudo da anatomia sutil com seus diversos elementos será intensificado, principalmente com o surgimento do Hatha-Yoga.
  • 39. 39 céus na forma de fumaça. Da cabeça e dos pés surgem o par céu e terra, que também possuem vários hinos no Rig-Veda. São as divindades primordiais indo-européias, diretamente associadas aos elementos da natureza. Estes deuses, no entanto, estão se distanciando dos homens, e cedem seu lugar no panteão védico a outros Deuses celestes mais personalizados, como Varuna, Indra, etc...Dos ouvidos do gigante surgem os pontos cardeais – o que denota o conhecimento dos sentido de localização do corpo humano, associado ao labirinto na região dos ouvidos. Assim, são muitas as associações com elementos da cultura védica que podem ser feitas a partir deste hino. A concepção dos Deuses equivale ao processo mítico descrito por Eliade. No Rig-Veda os deuses já estão em grande parte humanizados. Mas ainda ocorrem os deuses diretamente relacionados à natureza, como o Deus que é o próprio Céu – Dyaus. Sûrya é o sol. Também são consideradas divindades a aurora – Usas, a noite – Râtari, os ventos – Maruts, a Terra (Parthivi), as águas (Apa, também conhecidas como vacas por sua fertilidade) O Soma é outro deus importante do Rig-Veda, a ele são dedicados 120 hinos, sendo o terceiro mais citado no panteão védico (perde para Indra e Varuna, dos quais falaremos a seguir). Como se sabe, o Soma era também a bebida sagrada dos rituais, e é muito difícil separar o Deus Soma da própria Bebida: ele era a divindade que está incorporada na bebida. Ao beber o soma, os praticantes do ritual sentiam sua própria imortalidade, tinham revelações de uma existência plena e beatífica, em comunhão com os deuses. Esse referencial da experiência divina com o soma vai nortear o caminho de buscas espirituais posteriores, mesmo para aqueles que não bebiam mais o soma. Há outras divindades que aparecem no Rig-Veda ainda sem grande importância mas que se tornarão extremamente importantes em períodos posteriores. São eles: Rudra e Vishnu. Este aparece como uma divindade benevolente, amigo e aliado de Indra, a quem ajuda em seu combate a Vrtra. Vishnu atravessou o espaço em três passadas, alcançando a morada dos Deuses, e representa a energia benéfica
  • 40. 40 onipresente que escora o mundo. Já Rudra (que mais tarde será conhecido como Śiva ou Xiva) representa o aspecto oposto: não possui amigos entre os deuses, mora no isolamento das montanhas entre os animais selvagens, e tem seres demoníacos como aliados. Mais tarde, será conhecido como Śiva, o destruidor, patrono dos ascetas e daqueles que se mantém afastados da sociedade bramânica. E, por fim, um dos hinos mais profundos do Rig Veda, é o hino X-129: Criação: 8. Não havia não-ser, não havia ser, naquele tempo, não havia éter, nem céu que está além. O que cobria? Onde ? De quem era a proteção? Água? O que havia impenetrável, profundo? 9. Não havia morte, nem imortalidade, naquele tempo, não havia indício de noite e dia. Esta unidade respirou a atmosfera sem vento, por moto próprio; pois nada além disso não havia. 10. Escuridão havia, pela escuridão coberta, no começo; toda a irreconhecível água era isso, que existia fechado pelo vácuo; esta era a unidade poderosamente nascida do calor. 11. Um desejo, então, no começo, se moldou, sêmen que era o primeiro da mente; do ser a conexão do não-ser os poetas descobriram, buscando no coração, pela sabedoria. 12. Transversal, estendida, a linha foi movida; embaixo acaso estava? Em cima acaso estava? Reprodutores existiam, poderes existiam; impulso embaixo; intenção, além. 13. Quem realmente sabe? Quem aqui anunciou como nasceu esta criação, como? Depois os deuses com sua criação; então quem sabe de onde surgiu? 14. Essa criação de onde surgiu, se foi produzida ou não? Quem é seu observador, no supremo céu, este por certo sabe ou não sabe. (POSSEBON, 2006, p. 49)
  • 41. 41 Este hino fala do momento da criação, quando não havia o não ser, pois não havia o próprio ser. Não havia a não existência, pois esta depende da própria existência para haver. Ou seja, no principio não há dualidade. Há apenas a escuridão da atmosfera sem vento, que respira a si mesma por moto próprio. Tudo começa com uma respiração, o próprio respirar da criação. A respiração é também o primeiro e o último ato da vida humana, e o elemento central de várias escolas tântricas, do Yoga (pois através do exercício respiratório, ou prāṇāyāma, ativam-se os estados superiores da meditação). A respiração aqui vem do vácuo, do espaço. Na mitologia hindu posterior, todo o tempo cabe em uma respiração de Brahman. A água também se faz presente neste momento inicial da criação. Ás águas, segundo ELIADE “desintegram, extinguem as formas...seu destino é preceder a criação e re-absorvê-la, não se manifestando em forma” ( cf. ELIADE, 2010 [1976], p. 218) Tudo que é forma se manifesta acima das águas. Assim, neste momento em que não havia nada já havia a água, pois a água é a própria existência de tudo em potencial.
  • 42. 42 (Fig. 2: Representação do Deus Varuna, montado em seu animal aquático.
  • 43. 43 A tradição dos upaniṣad Maria Lucia Abaurre Gnerre Os upaniṣad são um conjunto de textos sagrados desenvolvidos na Índia no período Bramânico, entre 1.000 e 400 a.C. Assim, segundo a periodização tradicional da literatura indiana, são textos produzidos num período posterior ao védico. Temos, neste período bramânico, três tendências distintas. Primeiro, duas tendências de caráter ortodoxo, ou seja, que aceitam os ensinamentos dos Veda: a) Os bhāhmanas: uma grande coleção de textos redigidos em prosa (ao contrário dos Veda, que eram em versos) nos quais são expostos raciocínios explicativos sobre questões védicas. Tais textos apresentam uma continuidade da tradição védica, com exegeses e desenvolvimentos agora escritos em prosa, formando uma grande coleção. Os bhāhmanas seguem valorizando os ritos sacrificiais védicos bem como a função dos próprios sacerdotes. No entanto, uma nova divindade – Prajapati – torna-se mais importante nestes sacrifícios do que as divindades védicas anteriores. b) Um desvio dos Veda, apresentando questionamentos e idéias novas. Estes questionamentos se fazem presentes nas coleções dos āranyaka (textos das florestas, produzidos pelos ascetas que se retiram para a floresta em busca da jornada interior, sem os ritos bramânicos) e a coleção das upaniṣads (cujo significado é “ensinamentos obtidos por aproximação respeitosa”). Ambos os conjuntos de textos tomam por base os Veda, mas contêm idéias que parecem estranhas ao mundo indo-europeu. Idéias advindas provavelmente da civilização dravídica, sufocada pelos invasores árias, começam a vir à tona nestes textos, como é o caso do Yoga.
  • 44. 44 E temos por fim as tendências consideradas heterodoxas, ou seja, que fogem do cânone bramânico dos Veda. São elas: c) Budismo e Jainismo. Uma oposição completa ao Veda, que fica exposta principalmente nas crenças e ensinamentos do Buda aos seus discípulos, que dispensam qualquer conhecimento védico para alcançar o fim do sofrimento. (POSSEBON, 2006). Assim, os upaniṣads são produzidos neste contexto de transição de uma cultura ārya – védica, para uma cultura que incorpora elementos das tradições autóctones aos conceitos védicos. A grande maioria dos upaniṣads foi criada fora dos círculos sacerdotais bramânicos, e por isso teriam dado esta oportunidade de emergência de novas formas de pensamento não advindas da cultura ariana. Por isso, os upaniṣads participam do caminho do conhecimento (jñānamārga), que neste período começa a substituir o caminho da atividade ritualística (karmamārga). Ou seja, a filosofia abstrata dos upaniṣads vai se desvinculando dos rituais mágicos, que passam a ser relegados a segundo plano (ocorre um processo de des- xamanização do bramanismo). Esta mudança tem lugar entre os próprios teólogos védicos, nos círculos dedicados às meditações e iniciações exotéricas – nos quais estes textos, também conhecidos como vedanta11 , eram produzidos (ZIMMER, 1986 [1951]). Segundo Mircea Eliade (2010 [1976]), o surgimento do conceito de Karman é um dos elementos fundamentais para esta desvalorização do ritual sacrificial (como o sacrifício de animais) em favor do sacrifício interior, na forma de ascese (ou tapas). Uma vez reconhecida a lei da causalidade universal no Karman (expressão que toma força a partir dos aranyakas), desfazia-se a certeza fundamentada dos efeitos salutares dos sacrifícios. Torna-se muito mais importante o conjunto das ações em vida do que os rituais para agradar às divindades, e a meta não era mais viver cem anos, como queriam os primeiros povos védicos, mas sim transcender a 11 O nome Vedanta significa justamente “o fim dos Veda”.
  • 45. 45 roda do saṁsāra – dos vários nascimentos e mortes – e atingir Moksha, a libertação. Esta nova meta, que se configura como a própria fusão eterna do eu individual (ātman) com o divino universal (brahman), era muito diferente dos objetivos védicos. Embora tragam muitos conceitos novos e divergentes com relação ao conjunto dos textos védicos, os textos dos upaniṣads são também considerados como ponto alto das especulações sobre os Veda. Segundo H. Zimmer (1986 [1951]), os fecundos filósofos deste período, ao examinarem a questão do ātman, teriam sido os primeiros intelectuais e livre-pensadores de seu tempo. Foram, por isso, muito além da concepção tradicional dos sacerdotes a respeito do cosmos, mas o fizeram sem entrar em choque frontal com estas concepções do período védico – afinal, a esfera que investigavam não era a mesma que os sacerdotes. Estes filósofos teriam virado as costas para o universo externo (domínio dos mitos e controlado pelos rituais sacrificiais) porque encontravam coisas muito mais interessantes no seu interior. “Haviam se deparado com o mundo interior, o universo interno do próprio homem, e inserido neste o mistério do EU”. (ZIMMER, 1986 [1951], p.258). Essa nova postura os distanciava das várias divindades do panteão védico, sem, no entanto, entrar em choque com elas. É um processo diferente daquele que ocorre na Grécia, quando Demócrito, Anaxágoras e outros filósofos-cientistas gregos que levam suas interpretações sobre corpos celestes a conflitar com as interpretações dos sacerdotes. Para os filósofos gregos, o sol não poderia ser ao mesmo tempo um ente divino antropomórfico – Hélios – e uma esfera de matéria incandescente no céu. Esse conflito não ocorreu na Índia, pois o Deus Surya continuava sendo objeto de devoção sacerdotal e popular enquanto os filósofos se preocupavam com o mistério primordial que pairava muito acima dos deuses antropomórficos. A fonte do poder misteriosa e anônima que precede todas as coisas, mesmo os deuses: Essa é a questão central das upaniṣads. Não há uma negação dos deuses védicos, mas nestas escrituras os sábios vão à fonte dos
  • 46. 46 próprios deuses. E vão até os confins das palavras, em busca de definições desta fonte. Mas, mesmo sem buscar um conflito, esta nova orientação de pensamento intelectual provocou uma desvalorização da teologia ritualista dos Veda e do próprio universo material-visível. Afinal, ao invés de dar atenção aos deuses e ao mundo exterior, esta nova geração focalizava o princípio sobrenatural que a tudo transcende e do qual todas as coisas procedem. E estes livres pensadores (sábios anônimos conhecidos como Rishis ou Ṛṣi) conseguiam acessar este princípio a partir de si mesmos. Assim, a energia intelectual que no período Védico havia sido empregada no estudo e desenvolvimento de mecanismos – como sacrifícios e encantamentos – para dominar as forças do cosmos, estava agora sendo dirigida para dentro, para o “eu interior”, onde também podiam entrar em contato com a força vital suprema. Neste contexto, passam a ser mais importantes os caminhos certos através dos quais poder-se-ia canalizar a energia de forma adequada para o interior, não para as vicissitudes do mundo exterior. Para a professora Lilian Gulmini (2002), o conteúdo básico das upaniṣads pode ser resumido da seguinte forma: 1. O homem comum é dotado de uma ignorância “original”; desconhece sua identidade com o Brahman, ou seja, que sua essência (ātman) é feita da mesma natureza de Brahman, o absoluto. Esta ignorância prende o homem à roda de nascimentos e mortes condicionados. Mas a vontade inerente ao ser humano de buscar o saber, leva-o a especular o Brahman, a “realidade última das coisas”. 2. Para alcançar o Brahman, o homem precisa passar por uma evolução cognitiva e vivencial. Precisa libertar-se dos dualismos e relativismos do pensamento comum e vivenciar sua identidade com o Brahman através de práticas introspectivas como o Yoga. (GULMINI, 2002, p. 30-31)
  • 47. 47 Para empreender este processo de interiorização, além da dedicação, era considerada como elemento fundamental a figura de um bom mestre, um ser que já experimentou este ātman interno, e poderia, assim, compartilhar sua experiência e seu caminho. Segundo o Swami Prabhavananda – responsável por uma das traduções dos upaniṣads para o Inglês, feita com o auxilio do Dr. Frederick Manchester – o significado literal da palavra upaniṣads é “sentado perto devotamente”. (PRABHAVANANDA, 1991, p.13) Este significado faz referência à figura do discípulo, sentado próximo do mestre, aprendendo seus ensinamentos. A figura do bom mestre no hinduísmo é importantíssima. Ele naturalmente explica as escrituras para o discípulo, mas acima de tudo ele passa os ensinamentos através de sua própria vida. O simples fato de estar próximo dele, de servi-lo e obedecer-lhe humildemente significa acelerar o espírito e enriquecer a alma. Um destes grandes mestres dos quais muitos discípulos tiveram a graça de aprender ensinamentos profundos teria sido o sábio Shankara, que no século XVII tornou-se um grande comentador das upaniṣads. Segundo ele, o significado profundo deste termo é “o conhecimento de Brahman, o conhecimento que destrói os laços da ignorância e leva à meta suprema da liberdade”. (PRABHAVANANDA, 1991, p.13) Não se sabe ao certo quantos upaniṣads já existiram. Cento e oito foram preservados. Alguns são em prosa, outros são em verso, outros em verso e prosa, e sua extensão é variada, mas não costumam ser textos muito longos. Variam também o estilo e a forma dos upaniṣads: alguns são simples e concretamente narrativos, outros são abstratos e descritivos, assumindo muitas vezes a forma de diálogos. Também não se sabe ao certo quem os escreveu, nem exatamente quando (apenas um período aproximado). Os Ṛṣi, sábios videntes a quem se atribuem os textos, permanecem totalmente nos bastidores das palavras, fiéis ao ensinamento central de seus textos: a dissolução do eu individual em meio ao Eu universal. Dos cento e oito upaniṣads que foram conservados, dezesseis foram reconhecidos por Shankara como autênticos e
  • 48. 48 oficiais. Ele escreveu elaborados comentários sobre dez deles, e estes vieram a ser encarados como os principais textos: Isha, Kena, Kaṭha, Prasna, Muṇḍaka, Māṇḍukya, Taittirīya, Aitareya, Chāndogya e Brihandāranyaka-upaniṣad. Juntos, estes textos constituem provavelmente o principal objeto de atenção dos estudiosos da religião hindu. Uma das características dos upaniṣads é a sua homogeneidade. Cada um destes textos poderá enfatizar determinadas idéias ou conceitos, mas as diferenças são superficiais. Todos os textos tratam do tema do ātman, das suas manifestações, e dos caminhos para a transcendência deste emaranhado de formas múltiplas que se resumem ao Eu essencial. Estes textos resultam do trabalho de sábios e profetas, que estavam preocupados em relatar as suas experiências: trata-se de um conhecimento intuitivo, que chegou até eles através de pensamentos ou visões. Não se preocupam necessariamente em tornar este conhecimento coerente, em formar sistemas de pensamento bem acabados. Assim, também sua forma não costuma ser perfeitamente acabada. Muitas vezes as narrativas e diálogos começam sem uma lógica ou final coerente, e o leitor é introduzido abruptamente numa determinada cena, onde começa um diálogo profundo. Deste universo de 16 upaniṣad principais, selecionamos passagens de dois deles – Muṇḍaka e kaṭha upaniṣad – para uma análise detalhada de como estas questões se apresentam. Vamos começar com a análise do texto do Muṇḍaka upaniṣad12 , um dos textos mais conhecidos e citados desta tradição. Selecionamos para nosso trabalho passagens de uma tradução feita diretamente do sânscrito para o português pelo professor Roberto de A. Martins. Nesta tradução, se encontram preservadas várias expressões 12 Segundo MARTINS (2008) existem diversas explicações sobre o significado do nome deste texto. O nome deriva da raiz sânscrita Muṇḍ, que significa “raspar” ou barbear. Daí tem-se que seu nome pode ser interpretado por sua virtude de “raspar” ou “limpar” o erro, a ignorância. Mas uma segunda interpretação que parece mais plausível para o tradutor é que este seria o upaniṣad dos homens que raspam a cabeça. (cf. MARTINS, 2008, p.12)
  • 49. 49 fundamentais em sânscrito, que procuraremos analisar como parte de um trabalho de compreensão conceitual. Neste texto, o sábio Aṅgiras (que é herdeiro de um conhecimento transmitido numa linhagem direta do Brahman) desenvolve um diálogo com um chefe de família – Śaunaka. Este diálogo tem início quando este último faz a seguinte pergunta: MU I.1.3 Śaunaka, o grande chefe de família, aproximando-se respeitosamente de Aṅgiras, perguntou: “ Venerável senhor, o que é que, ao ser conhecido, faz com que tudo isto seja conhecido ?” MU I.1.4 Ele [Aṅgiras] lhe disse: Devem-se conhecer dois conhecimentos, o superior e o inferior. Isto é o que dizem os conhecedores de Brahman. MU I.1.5 Destes, o inferior é: Ṛg-veda, Yajur-Veda, Sāma-Veda, Atharva-Veda, Śikṣa [fonética], Kalpa [ritualística], Vyākarana [gramática], Nirukta [etimologia], Chanda [métrica], Jyotiṣa [astronomia]; e o superior é aquele que se aprende o Akśaram. (Muṇḍaka Upaniṣad. In:MARTINS, 2008, pp.17- 18) Ou seja, segundo o texto existiriam dois tipos de conhecimento. Um conhecimento inferior, que pode ser visto nos Veda, nos cerimoniais, na gramática, e em tudo que diz respeito às emanações, às manifestações da fonte suprema. É o conhecimento das coisas e das relações entre elas. E existe um conhecimento superior, que é o conhecimento do Akśaram. Este conceito pode ser compreendido como a própria realidade imutável que paira acima de todas as coisas finitas e mutáveis. Na passagem seguinte há um aprofundamento das características de Akśaram: MU I.1.6 Aquilo que não pode ser visto, que não tem família, que não tem casta, sem olhos nem ouvidos, sem mãos nem pés, eterno, onipresente, que penetra tudo, impalpável – este é o imutável que é
  • 50. 50 contemplado pelos sábios como a fonte dos seres (Muṇḍaka Upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 21) Através deste conhecimento da realidade imutável que transcende os sentidos, as formas, os conceitos, e o próprio universo das causas e efeitos, os sábios contemplam a fonte de todos os seres. Tal fonte é o próprio Brahman: MU I. 1.7. Assim como a aranha emite e reabsorve [seu fio], assim como as ervas nascem da terra, e como os pelos crescem na cabeça e no corpo de um homem vivo, do mesmo modo tudo que existe surge deste Akśaram. MU I. 1.8 Brahman cresce pelo Tapas. Daí provém o alimento [Anna]. Do alimento, o alento da vida [Prāṇa], a mente [manas], a verdade [satya], os mundos; e dos atos [karma] a imortalidade [amṛta ] (Muṇḍaka Upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 23-5) O Akśaram é descrito nesta estrofe I.1.7 como se fosse o princípio material do universo. Afinal, como a erva nasce da terra, tudo o que existe nasce dele. Mas como nos lembra MARTIS (2008), Akśaram não é matéria propriamente dita. Ele é a fonte das coisas, mas está além delas, situado num outro plano. No plano do próprio Brahman. Na estrofe I.1.8 vemos o primeiro trecho traduzido como “Brahman cresce pelo Tapas”, mas o próprio tradutor diz que também poderíamos traduzir por “Brahman se manifesta pelo Tapas” (MARTINS, 2008, p. 26). Através desta segunda tradução, poderíamos compreender mais facilmente o sentido de Tapas, uma expressão muito importante na cultura indiana deste período, e que significa ascetismo, ou austeridade. Esta expressão pode estar vinculada a sacrifícios físicos (jejum e privações de todo tipo), mas também pode ter outro significado: Tapas pode ser entendido como disciplina, concentração, ou mesmo meditação. Voltando ao texto, nele está dito que através de
  • 51. 51 Tapas, o Brahman se manifesta. Disso temos duas interpretações: uma primeira seria que um praticante da austeridade, do ascetismo ou da meditação pode, através de sua disciplina, acessar este princípio absoluto. Já uma segunda interpretação possível seria que o próprio Brahman pratica a concentração ou a meditação, e através de sua prática provém o alimento [Anna], o alento da vida [Prāṇa]. É importante notar que o alimento aqui significa o néctar que vivifica todas as formas de vida, não apenas o alimento humano na forma do pão, por exemplo. É o alimento essencial do qual derivam todas as coisas, chegando até aos próprios atos e à imortalidade. Segundo este texto extraído da Muṇḍaka upaniṣad, as demais coisas são derivadas de Manas, a mente primordial, que por sua vez é derivada da energia primordial que deriva diretamente do Brahman. Ou seja, há uma escala de derivações do Brahman, e nos últimos graus desta escala, distanciando-se da fonte bramânica – está o Karman, a cadeia da causa e efeito que deriva das ações realizadas pelos seres nos diversos mundos. Mas, do cumprimento desta cadeia de causalidades que se estende por muitas vidas, também deriva a própria imortalidade. Segundo os conceitos filosóficos deste período, embora a lei do Karman esteja diretamente vinculada a esta ordem divina universal, ela não é diretamente operada pelo Brahman. Ele é a inteligência cósmica suprema, da qual tudo emana, mas Ele mesmo não se enreda nas teias de ações e muito menos no karman que delas deriva. E é esta a inteligência que o sábio deve buscar, não o conhecimento ou os benefícios advindo dos rituais sacrificiais que o próprio texto condena: MU I.2.9 Eles vivem de muitas formas na ignorância, como crianças pensando “Atingimos nosso objetivo”. Como os que realizam os rituais não conhecem o futuro, por causa dos seus desejos, eles recaem e sofrem quando seus mundos se esgotam. MU I.2.10 Iludidos, pensando que os rituais e obras meritórias são o melhor, eles não conhecem um bem mais elevado. Tendo
  • 52. 52 desfrutado do Fruto de suas ações no mais alto lugar do céu, eles entram novamente neste mundo ou em um inferior. (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 45) Aqui está uma referência à religiosidade védica tradicional do período. Para os sábios das upaniṣad, não interessa mais apenas o conhecimento das palavras mágicas, o conhecimento dos hinos a serem recitados nas ocasiões apropriadas. Interessa o conhecimento do Brahman, que transcende as próprias palavras. Não interessam mais ações que levem ao “mais alto lugar do céu”, pois este lugar também é uma manifestação transitória do Brahman, assim como são todas as suas manifestações. Interessa, sim, o conhecimento do absoluto, daquele que não tem forma, e está além do mais alto céu. MU 1.2.13 Àquele que se aproxima respeitosamente, com a mente livre de desejos, tendo atingido a paz, o sábio ensina as bases do conhecimento de Brahman, através do qual se conhece o Puruṣa eterno e autêntico. (Muṇḍaka upaniṣad. In:MARTINS, 2008, p. 51) Aqui temos uma síntese do objetivo supremos das upaniṣad: atingir o Puruṣa “eterno e autêntico”. E temos também uma síntese das qualidades essenciais que devem ser cultivadas: o respeito, a mente livre de desejos, em paz. Mas, além destes elementos, para conhecer o Puruṣa, um outro elemento também é fundamental: “aproximar-se respeitosamente” de um Guru, dedicado a Brahman e que conheça bem as escrituras. Para este discípulo que cultiva as qualidades certas e dispõe de um Guru habilitado (através da experiência), o Brahman, mais cedo ou mais tarde, será apresentado (ou experimentado).
  • 53. 53 E, a partir deste ponto, o texto da Muṇḍaka upaniṣad segue dando uma série de definições sobre o Brahman, o Akśara e sobre sua existência intrínseca à existência de todos os seres: MU II.1.1 Esta é a verdade [Satya]. Assim como de um fogo que queima vivamente brotam milhares de fagulhas semelhantes a ele; da mesma forma, meu amigo, muitos tipos de seres brotam do Akśara e retornam também a ele. MU II.1.3 Dele brotam o Prāṇa, a mente [manas] e todos os órgãos; éter [kham], vento, luz, água e terra – o suporte de tudo (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 56) É importante notar que, nesta genealogia, a mente e os órgãos dos sentidos nascem antes dos elementos da matéria (éter, vento, a luz ou fogo, a água e a terra). Os sentidos precedem a matéria, pois são necessários para a própria existência destes entes, já que, na concepção indiana, o universo é mental. E dos elementos essenciais, deriva tudo mais. E o Brahman, do qual emanam todas as coisas, precede também os Deuses, pois dele emanam os demais Deuses: MU II 1.5 Dele vem Agni, cujo combustível é o sol [Sūrya]; da Lua [Soma] a chuva [ parjanya ], da terra as ervas; o macho derrama na fêmea seu sêmen, e assim as criaturas são produzidas de Puruṣa. MU II 1.9 E dele [provêm] todos os mares e montanhas, dele fluem todos os tipos de rios, todas as ervas, e as paixões que fazem com que o ātman interior se prenda aos seres. MU II 2.2 Este que é luminoso, que é menor que um átomo, em que estão centrados todos os mundos e seus habitantes, este é aquele Brahman imutável, este é Prāṇa, a palavra [vác], a
  • 54. 54 mente, ele é a realidade [satyam], a imortalidade, ele é aquilo que deve ser penetrado. Penetre nele, ó amigo. (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, pp. 58 - 70) O Brahman luminoso é menor do que um átomo, mas nele cabem todos os mundos, todos os seres. É a centelha imutável do universo, e justamente esta centelha deve ser penetrada. Na tradição hindu de estudo da anatomia dos corpos energéticos que se inaugura neste período dos upaniṣad, e que vai se enriquecer muito durante o tantrismo medieval13 , esta centelha pode ser penetrada a partir do lótus do coração. Lótus pode ser entendido na anatomia dos corpos sutis como um Cakra – um centro energético circular, tradicionalmente representado na iconografia da Índia como lótus com diversos números de pétalas. É a partir deste lótus do coração (ou anāhata cakra) que se pode conhecer Brahman, quando se desata o nó da ignorância, ou seja, os sentimentos egóicos que separam o eu individual do Eu universal. Brahman pode ser conhecido no próprio coração – órgão tradicionalmente relacionado aos sentimentos, ao amor – pois ele é a própria bondade suprema. Afinal, seu maior ato de amor é a própria criação. Se não fosse seu grande amor pela existência, tudo poderia não existir. Num determinado ponto do texto, o autor explicita ao seu leitor a necessidade de atingir o Brahman, pois ele é o princípio da vida, e a única meta a ser atingida: MU II 2.3 Tomando como arco a grande arma das upaniṣad, deve-se aí colocar a seta aguçada pela devoção [upāsāna ]. Deve-se esticá-lo com o pensamento [cetas] totalmente consagrado àquilo. O único imutável é o alvo. Penetre nele, ó amigo. MU II 2.4 Praṇava é o arco, a seta é você mesmo, brahman é seu alvo, assim se ensina. É preciso atingi-lo sem desviar-se, 13 A respeito da tradição do tantrismo, consultar o capítulo sobre Yoga presente nesta obra.
  • 55. 55 e unir-se a ele como uma seta [ao alvo]. (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, p. 73) Temos aqui um chamado explícito para que o leitor junte-se aos upaniṣad, e uma linda metáfora sobre esta sabedoria como arco e flecha. Na verdade, alguns elementos específicos do conhecimento dos upaniṣad compõem este conjunto incomparável de arco e flecha. Nesta metáfora, Praṇava é o próprio arco. E, segundo o tradutor do texto, este termo nitidamente derivado de prāṇa, pode ser traduzido como “essência do prāṇa”. Como vimos em fragmentos anteriores da Muṇḍaka upaniṣad, a essência do prāṇa é o próprio Brahman. Por outro lado, o Praṇava também é o nome que se dá à sílaba sagrada OM, a sílaba sagrada por excelência. (MARTINS, 2008, p.74) Assim, podemos interpretar esta passagem da seguinte forma: o mantra OM é a vibração capaz de arremessar o ser individual (a flecha) diretamente no alvo que é o Brahman. Esse arremesso se dá quando a vibração do OM dissolve a consciência individual, os pensamentos, e esta consciência é arremessada na consciência maior, funde-se ao EU universal, o alvo supremo. E, neste momento em que o alvo e a seta tornam-se um só, deixam de existir separadamente, pois o eu individual retira seu véu, sai da ilusão de maia, e deixa de se ver enquanto ente separado. Tudo passa a ser UM SÓ. Para aquele ser que atinge o estado de fusão do seu ātman com o Brahman, todas as amarras do coração são desfeitas, e todas as dúvidas eliminadas: MU II 2.7a Aquele que tudo conhece, que tudo sabe, a quem pertence toda a grandeza da terra; este ātman reside no firmamento, na cidade celeste de brahman. MU II 2.8 As amarras co coração são desfeitas, todas as dúvidas são eliminadas e seu karma é apagado quando se contempla aquele que é o mais elevado e o
  • 56. 56 inferior (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, 2008, pp. 84 - 91) Para explicar este conceito citado no final do trecho anterior, de um “eu” ao mesmo tempo mais elevado e inferior, esta upaniṣad apresenta a famosa metáfora dos pássaros. Para analisar esta metáfora, optamos pela tradução que Heinrich Zimmer faz deste trecho da mesma Muṇḍaka upaniṣad: Dois pássaros, com formosa plumagem, amigos e companheiros íntimos, residiam em estreita camaradagem na mesma árvore. Um deles come o fruto doce da árvore; o outro sem comer observa. (Muṇḍaka upaniṣad In: ZIMMER, 1986 p. 267) Este mesmo pássaro que come o fruto doce também come frutos amargos. A árvore com a dupla de pássaros (a árvore da vida ou da personalidade humana) é um motivo muito conhecido nas tapeçarias orientais. Nos versos seguintes, temos o desfecho da metáfora: A mônada vital individual (Puruṣa), enganada, lamenta-se deprimida por uma sensação de desamparo (anisaya [de não ser um senhor soberano]); mas quando vê o outro na mesma árvore, o senhor que faz regozijar os devotos, e compreende sua grandeza, desaparece seu pesar. (Muṇḍaka upaniṣad In: ZIMMER, 1986 p. 267) Quando a mônada individual, o pássaro que come os frutos doces e amargos da árvore do bem e do mal, vê o senhor fulgurante, o Eu universal, ele se dá conta de sua verdadeira natureza, e transcende as qualidades, os sofrimentos, e toda identidade egóica que o separa do Eu mais elevado, impessoal e imortal. No estado de clareza que advém da meditação é possível perceber o Eu sutil dentro do corpo que vive e
  • 57. 57 respira. O corpo continua respirando e vivendo, mas o Eu torna-se um observador das funções, e mesmo habitando o corpo já não se identifica totalmente com ele. Sabe que o corpo é emanação da mente, que é emanação de Brahman, e este Eu interior já se posicionou junto do próprio Brahman. Continuemos com a análise da Muṇḍaka upaniṣad na tradução de Roberto de A. Martins, num trecho do texto em que podemos observar uma indicação precisa sobre quem são as pessoas que podem atingir este estado, e como podem fazê- lo: MU III 2.4 Este ātman não é atingido sem esforço, sem dedicação, ou por ascetismo sem direção. Mas aquele que se esforça por esses meios, se ele for um sábio, seu ātman penetrará na morada de brahman. (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, p.125) Assim, temos aqui uma informação valiosa: através do esforço, da dedicação e ascese praticada de forma correta, o ātman do sábio pode atingir a morada de Brahman. E esta fusão é a própria chave da libertação (Moksa). Para exemplificar esta união final do eu individual com o Eu universal na hora da morte, a Muṇḍaka upaniṣad nos apresenta uma última e bela metáfora: MU III 2.8 Assim como os rios que correm desaparecem no oceano perdendo nome e aparência, da mesma forma o conhecedor [vidvam] liberto de nome e aparência, atinge o divino Puruṣa, mais alto do que o mais alto (Muṇḍaka upaniṣad. In: MARTINS, p.130) As metáforas das águas são comuns na cultura hindu. O rio que deságua no mar e volta para o oceano, a onda que quebra na praia e volta a se integrar ao mar. Na verdade, todas as águas sempre voltam para o mar, assim como todos
  • 58. 58 os homens sempre voltam para o Eu. Mas os sábios, os bem sucedidos na meditação, poderiam permanecer neste oceano de bem aventurança, sem voltar a ser onda (ou “eu individualizado”). As metáforas são um elemento central das upaniṣad, já que estes textos alcançam esferas da compreensão humana que ultrapassam as próprias palavras. Somente através das metáforas e analogias é possível tocar em certos conceitos. As metáforas se multiplicam, envolvendo como uma grinalda o mistério do Eu. Não por acaso, Joseph Campbell ressalta que o Mito é uma metáfora (CAMPBEL, 1991). Em outra upaniṣad, conhecida como kaṭha, temos uma grande metáfora que também é fundamental para esta cultura hinduísta do controle da mente e dos sentidos como forma de libertação: a metáfora da carruagem. Sabei que o Eu é o cavaleiro, e que o corpo é a carruagem; que o intelecto é o cocheiro, e que a mente são as rédeas. Os sentidos, dizem os sábios, são os cavalos; os objetos dos sentidos seus caminhos. Os sábios consideram o Eu como aquele que se deleita quando está unido ao corpo, aos sentidos e à mente. Quando um homem não possui discernimento e sua mente está desgovernada, seus sentidos são incontroláveis, como os cavalos rebeldes de um cocheiro. Porém, quando um homem possui discernimento e sua mente está controlada, seus sentidos, como os cavalos bem domados de um cocheiro, obedecem alegremente às rédeas. (kaṭha upaniṣad. In: PRABHAVANANDA, 1991, p. 64). Assim, para que a carruagem seja bem conduzida, é preciso existir a harmonia entre o cavaleiro, o cocheiro, suas as rédeas, e os cavalos. Quando isso não ocorre, os cavalos mandam no destino da carruagem, os sentidos governam a mente. Mas quando a mente governa os cavalos dos sentidos,
  • 59. 59 tudo flui em direção ao ātman. Este é o primeiro passo para a libertação.
  • 60. 60 (Fig. 3 Meditador - representação artística)
  • 61. 61 Capítulo 3 O épico hindu: Bhagavadgītā – A Canção do Venerável I. Introdução ao texto O Bhagavadgītā (ou “canção do venerável”14 em português) é um dos textos mais importante do hinduísmo. Segundo o historiador das religiões Mircea Eliade, o gītā “representa não apenas o marco da espiritualidade indiana ecumênica, mas também uma vasta tentativa de síntese”15 dessa mesma espiritualidade. Trata-se de um conjunto de 700 versos que remontam a uma tradição oral do século X a.C., mas que, segundo Carlos Alberto Fonseca (autor de uma tradução direta do sânscrito para o Português), teriam sido transcritos e consolidados na versão que conhecemos hoje por volta do século II d.C. O texto do Bhagavadgītā é um extrato do longo poema épico Mahābhārata (o grande bhārata), épico que narra a fundação da Índia (terra dos bhārata), a partir da guerra entre os clãs Pandavas e Kauravas, e os fatos que conduzem a batalha mítica de Kurukṣetra16 . A obra teria sido escrita pelo sábio Vyasa (também um autor mítico) e tem como um de seus principais personagens o próprio Deus Kṛṣṇa, que auxilia Arjuna, o herói dos Pandavas. Este épico contem 110.000 slokas (estrofes), distribuídas em 100 capítulos. Segundo Heinrich Zimmer, trata-se de uma epopéia oito vezes maior 14 A tradução proposta por Carlos Alberto Fonseca poderia ser compreendida da seguinte forma: Bhagavat – “aquele que possui Bhaga”, isto é, felicidade, generosidade, e por isso é venerável – e gītā que significa canção ou poema sagrado, doutrina religiosa apresentada na forma de versos. (Cf. FONSECA, 2009, p. 21) 15 Cf. ELIADE, 1996, p. 135. 16 O termo significa “campo dos Kuru”. Kuru é sinônimo de Kaurava. Pensa-se que o campo fosse situado entre os rios Yamuna e Sarasvati, na antiga Hastinapura – a cidade do Elegante -, a moderna Delhi.
  • 62. 62 que a Odisséia e Ilíada de Homero juntas (CF. ZIMMER, 1986). O Bhagavadgītā está situado no livro III, sexagésimo terceiro capítulo da obra, em um momento crítico da epopéia – a iminência do conflito entre Pandavas e Kauravas. Neste momento, Kṛṣṇa, um Deus encarnado, se oferece como condutor da carruagem de Arjuna. É importante lembrar que a imagem da carruagem foi citada no texto da kaṭha upaniṣad, e constituía uma importante metáfora: conduzir a carruagem era a alegoria da própria condução dos sentidos (cavalos) do corpo (a carruagem) através da razão (as rédeas). Mas, em última instância, o condutor da carruagem (a mente) deveria sempre estar em sintonia com o proprietário desta (o próprio ātman). Assim, com todo este referencial simbólico associado à carruagem na cultura indiana do período, Kṛṣṇa torna-se o condutor (auriga) de Arjuna. A condução da biga (carruagem) então pode ser entendida como uma alegoria da própria condição de Kṛṣṇa, amigo e mestre de Arjuna, que se revela o condutor do espírito humano, simbolizado pelo próprio Arjuna. Mas, mesmo tendo o auxílio desta divindade, no momento em que deveria começar a batalha, Arjuna recusa- se a lutar, paralisado pelo dilema de enfrentar amigos, mestres e parentes do outro lado do campo Kuru. Trata-se de um confronto fratricida. Por isso, o herói não toca o búzio e o confronto encontra-se paralisado no momento em que se inicia a narrativa do Bhagavadgītā. Para a resolução do dilema de Arjuna, Kṛṣṇa resolve ensinar-lhe a doutrina suprema (chamada Dharma), que dissipa a ignorância e a ilusão. Esta doutrina é desvelada em diversas disciplinas (Yoga) que Arjuna deve aprender a praticar, para sair do estado de paralisia. E, neste percurso de aprendizagem, Kṛṣṇa se revela para Arjuna na forma de uma teofania da ordem cósmica: numa visão sublime, mostra-se como síntese de várias manifestações divinas, heróicas e humanas. Nesta revelação, Kṛṣṇa mostra a Arjuna que a destruição é parte da essência divina, da ordem cósmica universal. E, após seu percurso de aprendizado, Arjuna supera a paralisia e toma a ação necessária, dando início ao conflito.