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MALÊS 1835
NEGRA UTOPIA
Fábio Nogueira
Fundação Lauro Campos
e Marielle Franco
2019
19-31573 CDD-981.04
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nogueira, Fábio
Malês 1835 : negra utopia / Fábio Nogueira. --
São Paulo : Fundação Lauro Campos e Marielle Franco,
2019. -- (Coleção rebeliões populares ; 1)
Bibliografia.
ISBN 978-85-61475-05-5
1. Brasil - História - Insurreição dos malês, 1835
2. Insurreições de escravos - Salvador (BA) 3. Negros
muçulmanos - História - Bahia I. Título. II. Série.
Índices para catálogo sistemático:
1. Brasil : Malês : Rebelião : Escravidão : História
981.04
Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427
Coordenação
editorial:
Ilustrações de
capa e miolo:
Capa e projeto
gráfico:
Preparação
de Texto:
Revisão:
Luiz Arnaldo Campos
e Carolina Peters
Manoel Magalhães
Batalha Comunicação
Luiz Arnaldo Campos
Carolina Peters
Apresentação
Nota à 1ª edição
Introdução
O Haiti é aqui
Bahia, uma província rebelde
Africanos, crioulos e libertos
Os malês e a cidade de Salvador
Os filhos de Alá vão à luta
Repressão e guerras subterrâneas
Racismo epistemológico,
práxis e luta de classes
Referências
9
13
17
21
27
35
53
69
85
95
102
Sumário
N E G R A U T O P I A 11
Foram chamados de cabanos, balaios, malês
e outras denominações. Para as classes domi-
nantes, não passavam de infames e malditos.
Tiveram a coragem de se levantar contra seus
exploradores e opressores, e por este motivo
os poderosos se esforçam em apagar a memó-
ria de seus feitos.
Na história do Brasil, ensinada na maioria
das escolas, não recebem muita atenção. Por-
que eram indígenas, negros, mestiços, brancos
pobres, mas sobretudo rebeldes dispostos a
dar vida para mudar o mundo em que viviam.
Para levantar o véu do esquecimento, a
Apresentação
M A L Ê S 1 8 3 5
12
Fundação Lauro Campos e Marielle Fran-
co está lançando a coleção Rebeliões Popu-
lares. Em cada volume, trataremos de relatar
e decifrar uma dessas insurgências. Da Revol-
ta dos Malês à Cabanagem. Da Balaiada ao
Quilombo dos Palmares, passando pela Guer-
ra do Contestado, Canudos e muitas outras.
Para os lutadores e lutadoras de hoje, estes
livros trazem os dramas e desafios enfrentados
pelos nossos antepassados nos combates con-
tra a injustiça e a opressão. São ensinamentos
preciosos. Como se sabe, sem memória, não
existe amanhã.
Boa leitura.
Luiz Arnaldo Campos
Presidente do Conselho de Curadores
Fundação Lauro Campos e Marielle Franco
A Brenna, minha preta tucuju.
N E G R A U T O P I A 15
O que uma revolta de escravizados e liber-
tos islâmicos na cidade de Salvador, em 1835,
nos oferece de lições ao momento político atu-
al? Essa experiência rebelde colocou sobre a
população negra o rótulo de “classe perigosa”
e foi a base da ideologia do “bom escravo” e
“mau cidadão”, professada pelas elites brancas,
que acompanhou o avanço da campanha abo-
licionista e, posteriormente, o fim da escravi-
dão em 1888. A escravidão e o racismo foram
a antessala do capitalismo e do trabalho livre,
que aperfeiçoou os mecanismos de controle da
população negra e trabalhadora. Falar de raça,
Nota à
1ª edição
“Não tive tempo para
temer a morte”
Carlos Marighella
M A L Ê S 1 8 3 5
16
no Brasil, é falar de classe. A tortura praticada
até hoje nas delegacias de polícia, a turba de
linchadores estimulados pelos monopólios da
comunicação, o encarceramento em massa, a
política de genocídio da juventude negra, a cri-
minalização de manifestações artísticas e cultu-
rais, como o funk, o rap e os “paredões”, e o ra-
cismo religioso praticado contra o candomblé,
a umbanda e o tambor de mina explicitam a
estrutura da sociedade de classes em nosso país.
A burguesia brasileira está voltada, sobretudo,
ao controle da população negra e indígena.
Será que não existem causas suficientes hoje
para a rebeldia? Um governo de extrema-direi-
ta e um presidente que compara quilombolas a
arrobas de gado? Um governador que diz que
ao policial para mirar e “atirar na cabecinha”,
em se tratando de comunidades pobres e ne-
gras? Um pacote anticrime que irá encarcerar
os encarceráveis e matar matáveis da socieda-
de brasileira, ou seja, nós, pretos e pretas? São
milhares de jovens negros exterminados todos
os anos nas periferias deste país. Como dor-
mir tranquilo diante de tanto sangue derrama-
do? Esta história, conhecemos há séculos. É a
N E G R A U T O P I A 17
história de como mutilam nossas famílias. De
como confinam os nossos corpos, usam-nos
para trabalhar como bestas para enriquecer os
outros, ou para divertir e entreter olhos e senti-
dos que se alimentam do nosso “exotismo”. De
como tentam nos retirar diuturnamente aquilo
que nos torna humanos e dignos de amor. Só
que não queremos mais sentir dor. Queremos
substituir a dor pelo amor. E isso sempre foi
visto como ato subversivo.
Como afirmam os zapatistas, a luta é como
um círculo. Logo, pode-se começar de qualquer
lugar e o fim será o mesmo. Ditadores e líde-
res autoritários só são derrubados com povo na
rua. É verdade que os malês foram derrotados.
Mas é possível vencer sem ter lutado?
Foi no ato de conspirar e rebelar-se que a
utopia negra malê ganhou forma, tornou-
-se capaz de dar àqueles sujeitos a perspecti-
va completa de sua própria potência. Espero
que, ao concluir a leitura deste livro, a palavra
rebelião não acabe por adormecer no fundo
do seu cérebro. Que ela se inocule através de
seus olhos e sentidos e transforme todo o seu
organismo, para que possa compreender pelo
M A L Ê S 1 8 3 5
18
afeto que você é mais que esse corpo que tra-
balha e paga contas. Você é também um corpo
rebelde que se expande e procura, desta manei-
ra, outros corpos rebeldes para viver desespera-
damente a sua utopia e os seus sonhos.
N E G R A U T O P I A 19
Este pequeno livro fala a respeito de pesso-
as que viveram os riscos e as consequências de
suas escolhas. Somente quando corremos o ris-
co de escolher, sentimos a realidade das corren-
tes que nos prendem. A história da escravidão
nada mais é que a genealogia do racismo, o
nascimento do capitalismo e da modernidade.
Conhecê-la é enxergar a carne sob a pele, o que
exige uma atitude política par excelence.
Para os rebeldes malês, 25 de janeiro de 1835
não era um dia do calendário cristão, mas 25
de Ramadã A.H. 1250, que marcava o término
da principal data do islã. Seguiam uma linha
Introdução
“Brasil, chegou a vez de ouvir as
Marias, Mahins, Marielles, Malês”
Mangueira, Samba-enredo 2019
M A L Ê S 1 8 3 5
20
temporal própria, sem por isso desconhecer a
cronologia, os feriados e festas católicos.
A coexistência de tempos, sentidos e práticas
é característica da resistência negra e indígena,
como processo histórico, nas Américas e no
Caribe. O relógio suíço nada mais é que uma
forma grosseira de contar o tempo. O modo
como os malês furaram o bloqueio de uma
história já previamente cronometrada, por si
só, descortina não apenas as forças sociais da
escravidão, mas, dialeticamente, como se deu
o processo de resistência ao cativeiro.
Se a escravidão tentou pela violência física
e simbólica pacificar os corpos africanos, é na
contramão dessa tendência que poderosas for-
ças nasceram do íntimo de sujeitos rebeldes.
São como as orações malês que saem das pro-
fundezas do espírito e convertem, com altivez,
a dor da exploração em vida e desejo de liber-
dade. Desta constatação, nasceu o desafio de
falar sobre outras línguas e culturas.
São línguas e culturas desconhecidas para al-
guns, inscrições que tentaram apagar de nossa
história, mas que permanecem vivas em nosso
inconsciente coletivo, como pavios à espera de
N E G R A U T O P I A 21
uma fagulha. São outras lógicas, outras formas
de ser e de agir, construídas em nosso passado
e presente de resistência. Como parte de nosso
eu profundo, surgem em momentos decisivos
de dor ou de júbilo, fazendo com que nossos
corpos assumam propriedades mágicas. Por
isso, na história de resistência dos povos negros
e indígenas, se confundem tempos, culturas,
línguas e crenças que confluem a partir da es-
cravidão e contra ela.
A rebeldia é um relógio sem ponteiros.
N E G R A U T O P I A 23
Havia se passado algumas décadas, mas os
rumores da rebelião negra que libertou o Haiti
do domínio francês (1791-1804), derrotan-
do as tropas de Napoleão, ainda repercutiam
fundo no Brasil escravista do século XIX. Ao
longo desse século, os africanos escravizados
e libertos se insurgiram contra as senzalas e
a subordinação do trabalho à autoridade do
branco. Como no Haiti, tomaram como refe-
rência suas culturas africanas, num mosaico de
línguas e tradições, que conferiram ao Brasil,
às Américas e ao Caribe uma característica de
“Torre de Babel”. A luta dos negros contra a
O Haiti é aqui
M A L Ê S 1 8 3 5
24
escravidão ocorreu num contexto multicultu-
ral em que as diferenças étnicas, linguísticas e
religiosas foram colocando sinais profundos na
história da luta de classes em nosso país.
No século XVII, surgiu na Serra da Barriga,
localizada nos atuais estados de Pernambuco e
Alagoas, o Quilombo dos Palmares, aprovei-
tando-se da relativa desorganização do aparato
colonial português ante a ocupação holande-
sa. Quilombo, palavra de origem banto, após
um percurso particular característico a todo e
qualquer movimento de caráter popular em
nosso país, passou ao nosso léxico como sinô-
nimo de rebeldia.
O território nacional, em que o escravismo
grassou, teve por diferentes caminhos e estra-
tégias o quilombo como sociabilidade alter-
nativa ao mundo hegemonizado pelos valores
brancos. Tal denominação de negro rebelde
coube aos nagôs ou, mais especificamente, aos
malês, do século XIX, tornando estas palavras,
assim como baiano, sinônimo de rebeldia e in-
subordinação.
A resistência ao escravismo, como muito
bem apontou Clóvis Moura, não foi algo epi-
N E G R A U T O P I A 25
sódico, mas uma condição permanente. Em
momentos distintos e a partir de diferentes estra-
tégias, a luta negra atribuiu significados próprios
à ideia de liberdade, autonomia e autogoverno.
Nos canaviais da Bahia, vidas humanas eram
entregues ao trabalho forçado, sem remunera-
ção e submetidas a castigos físicos inenarráveis.
A conversão obrigatória ao cristianismo tenta-
va apagar e desumanizar sujeitos com história,
cultura e tradições. Após tentativas frustradas,
ao longo do século XIX, de levantar os enge-
nhos do Recôncavo e tomar a cidade de Sal-
vador, os negros protagonizaram uma revolta
urbana sem precedentes que estalou bem no
coração da Roma Negra. Esta insurreição con-
tou com a presença de escravizados e libertos
malês, ou seja, islâmicos.
O tecido urbano era bem conhecido pelos ne-
gros de ganho, que controlavam posições estra-
tégicas no comércio da cidade, principalmente
na sua relação com o Recôncavo. Foi através da
sua vivência pelo território de Salvador que os
malês avaliaram estar em condições de saírem
vitoriosos. Para isso, contavam não apenas com
contatos no Recôncavo, mas também com nu-
M A L Ê S 1 8 3 5
26
merosos escravizados nos canaviais, perfazendo
uma rede entre escravizados e libertos urbanos
embalados pela fé islâmica.
A Revolta dos Malês é o mais importante le-
vante urbano de negros do país e, portanto,
um dos principais momentos da resistência ne-
gra contra o escravismo. Foi protagonizada por
escravos anônimos numa sociedade excludente
e racista, onde a presença africana era ao mes-
mo tempo desprezada e temida. Eram pessoas
que carregavam em suas mentes e corações as
experiências de viver em um continente rico
e próspero, que começava a ser devastado por
guerras e conflitos para atender aos interesses
das elites locais e coloniais.
Como muito bem caracterizou Walter
Rodney, foram testemunhas do processo de
“subdesenvolvimento africano” funcional ao
avanço do capitalismo e sua consolidação na
Europa. A situação de exploração do trabalho
e a tentativa de colonização de suas mentes en-
controu como resposta, entre os malês, uma
organização religiosa e política que declarou
“guerra aos brancos” e ousou enfrentá-los.
Apresentar a trajetória desta negra utopia
N E G R A U T O P I A 27
nascida do coração da sociedade escravista, ou
seja, de sua contradição básica e fundamental,
levada a cabo por homens e mulheres distantes
milhares de quilômetros de seu continente de
origem, é importante para entender os nexos
que ligam as lutas do passado às do presente.
N E G R A U T O P I A 29
A escravidão era o principal negócio e fonte
de renda da província da Bahia no começo do
século XIX. A capitania que se tornou expor-
tadora de algodão, açúcar, fumo e cacau batia
recordes na importação de escravizados africa-
nos. Entre 1813 e 1816, as exportações baia-
nas cresceram 90,3% e, no mesmo período, a
economia escravista expandiu a importação de
africanos para atender a plantações baseadas
na monocultura, principalmente a de cana,
na região do Recôncavo1
. Era uma sociedade
1 Ver Oliveira Jr (2008, pp. 65-74).
Bahia,
uma província
rebelde
M A L Ê S 1 8 3 5
30
escravista com forte concentração de renda,
na qual os critérios de sua distribuição obede-
ciam a uma hierarquia racial, sendo os negros,
de longe, a classe mais explorada e espoliada.
Porém, ao contrário do que possa parecer,
não podemos naturalizar a condição subal-
ternizada do negro na produção da sociedade
escravista. Em seus estudos sobre o encarce-
ramento em massa nos Estados Unidos, Mi-
chelle Alexander chama a atenção para o fato
de que no início da colonização, no século
XVII, negros e brancos pobres eram subme-
tidos a regimes semelhantes de trabalho com-
pulsório. Inclusive, houve movimentos e co-
alizões inter-raciais, que tinham por objetivo
derrubar o regime da economia de plantation.
Foi como reação às possíveis alianças en-
tre negros e brancos que a instituição pecu-
liar (como a escravidão ficou conhecida nos
EUA) ganhou contornos racializados, e a
segregação e controle dos cativos negros por
parte das autoridades conferiu status superior
à população branca e pobre da colônia. Para
a autora, somente em meados de 1770 é que
“o sistema de trabalho compulsório havia sido
N E G R A U T O P I A 31
completamente transformado em um sistema
de castas raciais baseado na escravidão”2
.
Seja como for, essa estrutura de produção
em que a cor da pele estabelece a posição do
sujeito na hierarquia social e oferece a ele sta-
tus diferenciados já estava bastante consolida-
da na Bahia no começo do século XIX.
Apesar de sua importância, as economias
canavieira e dos engenhos não eram as únicas
que utilizavam força de trabalho escravizada.
Na construção de prédios e fortificações, na
prestação de serviços domésticos e outras ta-
refas imprescindíveis ao desenvolvimento de
uma cidade que crescia com a prosperidade
da economia de exportação, os escravizados
eram indispensáveis; e os arranjos jurídicos e
políticos para sua subordinação como merca-
doria tornavam-se bem mais complexos.
Para tudo a força de trabalho escravizada
era usada. Não houve hesitação da elite em
expandir a economia calcada na escravidão e
fazer importar ainda mais trabalhadores es-
cravizados do continente africano. Vivia-se,
na Bahia da primeira metade do século XIX,
2 ALEXANDER, 2018, p. 65.
M A L Ê S 1 8 3 5
32
o que Clóvis Moura chamou de escravismo
pleno. A escravidão nada mais era, naquela
constelação histórica, que um projeto de de-
senvolvimento concentrador de renda e pro-
dutor de desigualdades raciais.
Evidentemente, se as classes se organizam
em um regime de castas raciais, como acon-
teceu nos Estados Unidos, elas possuem uma
dinâmica e flutuações naturais ao seu desen-
volvimento. Se há um movimento de manu-
tenção da sociedade – manifestado por uma
estrutura jurídico-administrativa e religiosa –,
há também as tendências de mudança que são
definidas pela ação dos indivíduos, grupos e
frações de classe.
A sociedade escravista é marcada por conflitos
e contradições. Ela não é um capítulo à parte na
história do desenvolvimento do capitalismo, mas
a própria história da formação da sociedade capi-
talista. Negar suas contradições como modo de
produção, reduzindo-a a uma estrutura de castas
imutável, é incorrer num erro crasso que só pode
ser explicado quando se quer traduzir em termos
teóricos nada mais do que o senso comum3
.
3 Ver Souza (2018, p. 41).
N E G R A U T O P I A 33
A Bahia, desde o final do século XVIII, com
a Revolta de Búzios (1798) teve entre os ne-
gros – como classe mais espoliada – atentos
leitores da conjuntura política. Os movimen-
tos antilusos, os motins militares e as revoltas
federalistas que marcaram a política da pro-
víncia sempre tiveram a participação ativa de
libertos e escravizados, esposando diferentes
líderes, projetos e ideologias. A emancipação
política do Brasil de Portugal, que na Bahia
foi efetivado em 2 de julho de 1823, com a
expulsão das tropas portuguesas da província,
teve a participação de indígenas e de negros
e negras, o que, pelo menos da perspectiva
desses, conferiu ao movimento um caráter
popular. Em outros casos, como na Sabina-
da, houve uma tentativa tímida de mexer na
escravidão ao projetar “libertar os escravos
crioulos que pegassem em armas pela revo-
lução”4
. Nesses movimentos, principalmente
nos antilusos, era inegável o componente ra-
cial. Na sociedade escravista, o europeu é o
branco, independente da origem, algo que
permanece até os dias de hoje.
4 REIS, 2003, p. 64.
M A L Ê S 1 8 3 5
34
Apesar de importantes, esses movimentos –
com a exceção da Revolta de Búzios (1798)
– não ousaram profanar a “vaca sagrada” da
escravidão, o que já não pode ser dito do ciclo
de revoltas escravas (1807-1835). Embora al-
gumas dessas revoltas não tenham passado da
fase da conspiração, limitadas ou circunscri-
tas a libertar os escravizados de um engenho,
propriedade ou senhor, elas ousaram subver-
ter a essência da exploração econômica basea-
da na formação de uma casta de trabalhadores
negros escravizados. Para João José Reis, “essa
insubmissão permanente criou uma tradição
de audácia que impregnava as relações escra-
vistas da Bahia nesse período”5
.
Assim como a província, os escravizados
baianos também ganharam fama de rebeldes
e insubmissos. Porém, rebeldia à parte, nem
sempre negros e negras se reconheciam como
pertencentes a uma mesma classe. A estrutu-
ra da sociedade escravista não era, por assim
dizer, simples ao ponto de excluir as dife-
renças étnicas, culturais e de status, algumas
delas institucionalizadas e arbitradas por leis.
5 REIS, 2003, pp. 68-69.
N E G R A U T O P I A 35
Essa constatação, contudo, não tornou esses
movimentos imunes às mudanças pelas quais
passou a sociedade ao longo do tempo, nem
significou que não existissem vanguardas da
classe, ou seja, negros desejosos de subverter
a ordem.
N E G R A U T O P I A 37
Uma interpretação possível da sociedade es-
cravista é tomar sua oposição entre senhor e es-
cravos in extremis, excluindo toda sorte de ca-
madas ou grupos sociais que caracterizam a vida
em qualquer sociedade humana. É importante
refletir até que ponto a ideia de que as socieda-
des pré-modernas, como a sociedade medieval
ou a sociedade de castas indiana, são socieda-
des estáticas é uma realidade factual ou imagem
reflexa alimentada pelas burguesias coloniais
modernas. Toda coletividade humana, por mais
simples que seja, possui uma história, práticas
e instituições que são resultado de interações
Africanos,
crioulos e
libertos
M A L Ê S 1 8 3 5
38
que ocorrem no cotidiano e as modificam.
Parafraseando Marx, no Manifesto Comunis-
ta, se a história da humanidade é a história da
luta de classes, a sociedade capitalista moderna
não é a única a ter a dialética como princípio.
Porém, se por um lado é necessário reconhecer
que a estrutura de classes no escravismo é mais
complexa, por outro lado, o fato de estar base-
ada no controle racializado do trabalho e dos
corpos negros estabelece uma contradição his-
tórica (brancos e não brancos) que a atravessa
de forma inelutável e perdura até os nossos dias.
No levantamento feito por João José Reis1
,
os 60% mais pobres da cidade de Salvador, en-
tre 1800 e 1850, dispunham de míseros 6,7%
da renda, enquanto os 10% mais ricos contro-
lavam 66,9% das riquezas. Entre esses extre-
mos, havia uma classe intermediária de 30%
da população, que detinha 26,4% das riquezas.
Como a classe mais explorada, os negros repre-
sentavam 71,8% da população da cidade de
Salvador em 1835. O pertencimento ou não à
raça negra determinava o acesso do indivíduo à
renda, o que, nas condições de penúria de uma
1 Ver Reis (2003, p. 30).
N E G R A U T O P I A 39
economia monocultora e escravista, contribuiu
para que os negros se lançassem contra a ordem
escravista ou, pelo menos, procurassem reduzir
seus efeitos negativos. A escravidão, para o ne-
gro em geral, era sinônimo de pobreza e misé-
ria. Porém, como dissemos, ver-se como negro
era uma condição histórica imposta pelo regi-
me de exploração escravista.
Entre os africanos escravizados e livres há
uma diversidade de grupos étnicos e religio-
sos (mandingas, fulani, huassás, angolas, jejes e
nagôs). A luta contra o cativeiro contou com o
protagonismo desses diferentes grupos. Cada
um, a cada episódio, hegemonizando o movi-
mento insurrecional, mas raramente de forma
isolada e à parte de demais. Os angolas, por
exemplo, séculos antes haviam protagonizado
a formação do Quilombo dos Palmares, graças
ao qual o termo banto, que remete a uma or-
ganização militar africana, se consagrou como
forma de denominar toda e qualquer comu-
nidade de negros fugidos da escravidão2
. Não
obstante a cooperação em terras brasileiras,
parte desses grupos teve entre si, no continen-
2 Ver Gomes (2005).
M A L Ê S 1 8 3 5
40
te africano, um histórico de disputas e confli-
tos abertos, até mesmo bélicos, o que nas con-
dições do escravismo deu espaço a rivalidades
não menos significativas. A adesão maior ou
menor a um movimento insurrecionista de-
pendia do grupo que o liderava.
No caso do levante dos malês, o predomínio
nagô não prescindiu a presença jeje e haussá,
mesmo que pequena. Mas os haussás, que em
1807, lideraram uma conspiração, franquea-
ram menor apoio ao levante de 1835.
A proclamação dos principais líderes malês
de “guerra aos brancos”, por sua vez, tornou
menor a adesão dos demais grupos étnicos
africanos. Mas, certamente, se os planos de
“guerra aos brancos” dos malês dessem certo,
muitas das reservas seriam dissipadas em nome
de uma possível liberdade. Apesar da forte pre-
sença nagô no levante de 1835, apenas uma
pequena parcela dos 6.500 escravizados nagôs
naquele ano tomaram parte na insurreição3
.
Importa destacar aqui o fato de a insurreição
ter sido o método adotado pelos negros baianos
no começo do século XIX. Em termos concre-
3 Ver Reis (2003, p. 349).
N E G R A U T O P I A 41
tos, a ideia era, a partir de um núcleo inicial,
começar um levante que conseguisse mobilizar
o maior contingente possível de pessoas. Le-
vantar os negros de um engenho, por exem-
plo, tinha o significado político de estimular que
outros fizessem o mesmo e, assim, com o movi-
mento ganhando força, conformar uma for-
ça social suficiente para se estabelecer como
alternativa para os cativos. Isso não está em
contradição com o surgimento de quilombos
e comunidades negras tradicionais, devotadas
à religião dos Orixás e aos cultos dos ancestrais
africanos. Como veremos, entre os malês, a
tática insurrecional assumiu particularidades
quanto à sua estratégia de combate, formação
de redes conspirativas e meios de mobilização.
Entre escravizados africanos e crioulos (es-
cravizados nascidos no Brasil) havia diferen-
ças e rivalidades estimuladas pelos senhores
de escravos, que enfatizavam a melhor inte-
gração dos crioulos à sociedade nacional e,
por extensão, uma maior adaptação destes à
exploração do trabalho. Capitães do mato e
guardas permanentes, por exemplo, que per-
seguiam e reprimiam os escravizados fugidos,
M A L Ê S 1 8 3 5
42
eram recrutados entre os crioulos, tidos como
mais confiáveis que os africanos.
Em 1835, os escravizados libertos e livres
nascidos no Brasil (crioulos) eram pouco me-
nos de 40% da população de Salvador e mais
de 50% dos negros e mestiços. Porém, como
aconteceu nos movimentos anteriores, não
franquearam apoio à rebelião malê4
. Os criou-
los estavam distantes da gramática das lutas
malês, seja por se considerarem nacionais (e
não africanos), seja por não estarem tão inse-
ridos na estrutura religiosa malê, o que pode
tê-los feito duvidar das intenções do levante.
Como João José Reis sinaliza, havia um com-
ponente anticrioulo e antipardo entre alguns
rebeldes malês, já expresso em revoltas anterio-
res, que causou a desconfiança de que, uma vez
consumada a “morte aos brancos”, eles seriam
os alvos posteriores.
Apesar de crioulos participarem ativamente
dos movimentos que agitaram a província no
começo do século XIX, não tiveram o mesmo
entusiasmo em relação às insurreições lideradas
pelos africanos. A insurreição não foi a tática
4 Ver Reis (2003, p. 319).
N E G R A U T O P I A 43
adotada pelos crioulos contra a escravidão; op-
tavam antes por negociações e táticas de sabo-
tagem que afrouxassem as rédeas do controle
racial do trabalho escravo5
.
Algo que causou escândalo entre as autorida-
des na época foi a presença de libertos africa-
nos na insurreição malê. Enfatizou-se a unidade
entre libertos e escravizados como africanos, ou
seja, como comunidade segregada em relação
aos nacionais (brancos e crioulos). Havia para
esses libertos, portanto, uma diferença cultu-
ral intransponível com a sociedade nacional,
o que explicaria seu envolvimento no levante.
Além disso, as relações étnicas, culturais e de
parentesco com os cativos também contribuíam
para que se vissem como parte de uma mesma
comunidade. Contudo, a resposta parece estar
na própria precariedade da condição de liberto,
que não os tornava livres da fiscalização e con-
trole pelas autoridades da época. Em alguns ca-
sos, quando o liberto não conseguia comprovar
sua condição, poderia ser reescravizado, ou seja,
voltava à posição de cativo.
Mesmo em se tratando de pessoas nascidas
5 Ver Reis (2003, pp. 319-325).
M A L Ê S 1 8 3 5
44
livres, existiram situações de escravização. Não
eram raras e foram muito bem retratados no
filme 12 anos de escravidão, baseado no livro au-
tobiográfico do escritor abolicionista afro-ame-
ricano Solomon Northup (1808-1863), pu-
blicado originalmente em 18536
. Na trama,
Northup é um violonista que vivia com sua es-
posa e dois filhos em Nova Iorque. Nos Estados
Unidos, pela proibição do tráfico transatlântico,
negros livres do Norte eram atraídos e seques-
trados para trabalhar nas fazendas do Sul escra-
vocrata. O protagonista só consegue retornar à
liberdade depois de uma demanda judicial que
pôs fim a doze anos de humilhações e explora-
ção da sua força de trabalho em uma fazenda na
Louisiana.
No Brasil, o caso mais conhecido talvez seja
o que envolveu um personagem importante da
nossa história: Luiz Gama (1830-1882). Filho
de Luísa Mahin – também uma figura icôni-
ca para o movimento negro brasileiro – e de
um fidalgo português, Luiz nasceu livre. Aos
10 anos de idade, foi vendido pelo próprio pai
para pagar uma dívida de jogo. Remetido a São
6 Ver Northup (2014).
N E G R A U T O P I A 45
Luiz Gama, advogado negro
abolicionista, libertou nos
tribunais inúmeros escravos.
Era filho da malê Luísa Mahin.
M A L Ê S 1 8 3 5
46
Paulo no vapor Saraiva, caminhou do porto de
Santos a Campinas e foi recusado por vários
compradores por se tratar de um baiano, o que
já era sinônimo de escravizado rebelde. Depois
se ser comprado por um senhor da cidade de
Campinas, Luiz Gama conseguiu aprender a ler
e escrever. Com o passar dos anos, estudou as
leis e se tornou rábula (advogado sem diploma),
conseguindo provar nos tribunais que nascera
livre. Dessa maneira, se tornou a mais célebre
figura do abolicionismo brasileiro. Republicano
e abolicionista, empreendeu diversas deman-
das judiciais e conseguiu na justiça a liberdade
para centenas de negros, escravizados como ele
fora um dia7
. Apenas recentemente a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo
concedeu a ele o título post-mortem de advoga-
do. A separação de sua mãe, Luísa Mahin, foi
uma profunda cicatriz na trajetória do poeta,
advogado e abolicionista negro que, apesar de
seus esforços, nunca conseguiu reencontrá-la.
Apesar de ter sido apontada pelo filho como
uma das rebeldes malês, João José Reis8
não
7 Ver Azevedo (1999); Gama (2011); Silva (2009).
8 Ver Reis (2003, pp. 301-303).
N E G R A U T O P I A 47
encontrou documentos que comprovem a
participação de Luísa no levante de 1835. Mas
a afirmação de Gama, seguida por outros his-
toriadores, da participação de Luísa Mahin na
Revolta dos Malês não pode ser vista como
uma mera mistificação histórica. Pode-se falar
de uma menor, mas constante participação fe-
minina nas sublevações negras da Bahia do
século XIX. Do ponto de vista demográfico,
o fluxo de africanos em Salvador contribuiu
com a desigual distribuição entre os sexos na
cidade, sendo a população masculina numeri-
camente superior à feminina. Entre os africa-
nos, implicados na totalidade das rebeliões, a
proporção era ainda maior9
.
Apesar da estrutura patriarcal do islã, seguin-
do uma tradição de resistência que teve como
destaque a negra Zeferina, líder do Quilom-
bo do Urubu, em 1826, as mulheres também
se fizeram presentes na revolta de 1835. Em
seu depoimento sobre o levante, a liberta Gui-
lhermina narrou que em uma casa da rua de
Guadalupe, um grupo de negros se reunia sob
a liderança de Vitório Sule, enquanto “uma
9 Ver Reis (2003, p. 26).
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48
mulher nagô [...] cujo nome na África era
Edum” carregava seu filho nas costas; e que,
pela manhã, a mesma mulher havia comprado
inhames. Segundo o relato, os inhames com-
prados por Edum eram para o mestre Ahuna
– apontado como grande liderança da rebelião
e que nunca foi localizado –, e esta teria afir-
mado que só sairia dali “quando fosse a hora
de tomar a terra”. A postura de Edum impres-
sionou, pois teria revelado que o plano malê
era o de “matar os brancos”, que seriam ataca-
dos por um grupo de negros armados quando
“da hora do toque de alvorada dos soldados”10
.
Edum foi uma das mulheres que tombaram
na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835.
Muitas mulheres negras seriam ainda impli-
cadas no processo de repressão que se seguiu
ao levante, sendo inclusive deportadas para a
África.
Voltando aos libertos, eles podiam manter-se
ligados à comunidade de cativos por relações
familiares ou de parentesco. Não era incomum
que mães negras comprassem sua própria alfor-
ria e depois continuassem a reunir recursos para
10 Verger, 2002, p. 366.
N E G R A U T O P I A 49
comprar a liberdade de seus esposos e filhos.
Existiram, inclusive, instituições formadas por
negros dedicadas a esse trabalho, como a Socie-
dade Protetora dos Desvalidos (SPD), fundada
em 16 de setembro de 1832 na cidade de Salva-
dor por iniciativa de Manoel Victor Serra, um
africano livre e ganhador no canto da Preguiça
(os trabalhadores de ganho eram negros e liber-
tos, prestadores de diversos serviços urbanos).
A decisão de criá-la foi tomada entre ele e
mais alguns amigos, reunidos em 10 de setem-
bro de 1832, três anos antes do levante malê, na
Capela dos Quinze Mistérios. Segundo Pierre
Verger11
, dezenove africanos libertos foram os
fundadores da Sociedade; eles exerciam dife-
rentes atividades (marceneiro, pedreiro, calafa-
te, carregador de água, carroceiro, vendedores
etc.), e alguns atuavam em diferentes cantos
(locais onde se concentravam os negros de ga-
nho) da cidade de Salvador.
Apesar das aparências católicas, “inúmeros
membros daquela confraria [a SPD] eram ao
mesmo tempo cristãos e muçulmanos”. Para o
autor, isso ocorria porque muitos africanos es-
11 Ver Verger (2002, p. 547).
M A L Ê S 1 8 3 5
50
cravizados que eram islâmicos em suas terras
“foram obrigatoriamente batizados na religião
católica” quando chegaram ao Brasil, mas con-
tinuaram “às escondidas a recitar suas preces a
Alá”12
. A SPD, além de levantar fundos para a
compra de alforrias, também prestava auxílio em
caso de doenças e morte, desenvolvendo ações
pioneiras junto à comunidade negra de Salva-
dor, mantendo-se ativa até os dias de hoje.
Porém, é necessário ter em mente que a con-
dição de liberto não significava uma indepen-
dência plena em relação aos antigos senhores e
às autoridades. Por exemplo, a Lei do Ventre
Livre, de 1871, estabelecia a liberdade para os
nascidos a partir daquela data, mas submetida
a uma série de normatizações que, na prática,
mantinham o nascituro subordinado à engre-
nagem das relações escravistas. A lei definia
que a criança deveria ser educada pela mãe e es-
tar subordinada ao seu senhor até os oito anos.
Ao atingir essa idade, eram colocadas duas op-
ções: ou o senhor recebia uma indenização do
Estado, ou teria o direito de usufruir do tra-
balho da criança até os 21 anos. Geralmente,
12 Verger, 2002, p. 548.
N E G R A U T O P I A 51
o senhor optava por ficar com o menor e se
estabelecia assim, por outros meios, uma nova
forma de escravidão13
. Até 1865, as alforrias
eram revogáveis de acordo com a vontade do
senhor, e não era raro que, uma vez concedida
a liberdade ao cativo, fosse estipulado que ain-
da deveria obediência e submissão a seu antigo
senhor. A compra das alforrias pelos escraviza-
dos poderia ser feita a prazo, em um sistema de
pagamento parcelado, no qual permaneciam
cativos até pagar a dívida com seu senhor14
.
A diferença entre crioulos e africanos, por
sua vez, também tinha repercussões na comu-
nidade dos libertos. A Constituição Brasileira
de 1824 reconhecia a condição de cidadão bra-
sileiro por nascimento dos alforriados crioulos.
Já os africanos, uma vez alforriados, só teriam
reconhecida a sua cidadania após um processo
de naturalização, tal como os demais estran-
geiros. Além disso, os direitos dos cidadãos
alforriados, fossem crioulos ou africanos, eram
limitados em relação aos dos demais. O voto
censitário (era necessário comprovar um deter-
13 Ver Mattoso (2003, p. 177).
14 Ver Mattoso (2003, pp. 180-184).
M A L Ê S 1 8 3 5
52
minado rendimento anual para acessar o direi-
to) só era permitido aos alforriados nas eleições
primárias, o que os impedia de se candidata-
rem a cargos eletivos. Quando fossem servir
às forças armadas, só poderiam permanecer na
condição de soldados, sendo vedado subirem
na hierarquia militar, salvo em alguns casos es-
pecíficos15
.
As relações entre africanos, crioulos e liber-
tos eram tensas, e suas alianças tão promissoras
quanto frágeis. Isso não significa que essas rela-
ções deixassem de existir, já que como negros
eram empurrados à condição de subalternos
da estrutura social escravista. Desse ponto de
vista, as oposições entre eles não eram maiores
do que as mantidas com a sociedade branca.
Mas eram relações problemáticas sobretudo no
momento de tornar o desejo de liberdade ação,
ou seja, traduzir em movimento o que já exis-
tia em potência no plano das ideias.
Este é um ponto chave. O entendimento de
que existe um momento certo em que todas as
condições ideais estarão juntas, como quem es-
pera os grãos de açúcar se reunirem no fundo
15 Ver Mattoso (2003, pp. 200-201).
N E G R A U T O P I A 53
da xícara após serem agitados por uma colher,
é por princípio antidialético. Não se para a
trajetória de uma bola para analisar seu movi-
mento. As coisas realmente são quando acon-
tecem. Ao colocarem seus planos em marcha,
os malês deram a essas contradições um sentido
de transformação cujo resultado não poderiam
antecipar.
Assim o fizeram, pois tiveram fé.
N E G R A U T O P I A 55
O termo malê tem pelo menos duas origens:
a primeira, malãm, que na língua haussá sig-
nifica clérigo ou mestre; a segunda, a palavra
imalê, que em iorubá é sinônimo de muçul-
mano1
. O islamismo na Bahia concorria, nas
comunidades africana e afro-baiana, com os
cultos dos Orixás nagôs, dos voduns jejes, dos
iskösiki haussás e dos inquices angolanos, o
que denota a diversidade religiosa dos grupos
étnicos que aportaram em solo soteropolitano
na esteira do tráfico transatlântico. Além disso,
1 Ver Reis (2003, p. 175).
Os malês e
a cidade de
Salvador
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56
os malês traziam de África, além de experiência
no proselitismo religioso, conhecimento mili-
tar em conflitos que opuseram diferentes gru-
pos étnicos e religiosos e redundaram, no iní-
cio do século XIX, na queda da cidade de Oyó,
capital do império iorubá.
O islamismo, como religião universalista,
não estabelece fronteiras étnicas entre seus se-
guidores. É importante lembrar que em África
(e no Brasil) eram os haussás, mandingas e fu-
lani – não os nagôs – os grupos mais identi-
ficados com a fé em Alá e o profeta Maomé.
Porém, na Bahia, foi sobretudo entre os escra-
vizados nagôs, alguns dos quais em África já
eram islâmicos, que o proselitismo malê en-
controu maior número de fiéis. Dessa manei-
ra, os malês não eram um grupo étnico, por
mais que, na Bahia, os nagôs fossem seus prin-
cipais adeptos.
O tráfico transatlântico incrementou a pre-
sença de africanos escravizados e, dentre eles,
dos adeptos do islamismo, que representavam,
em 1835, ano da Revolta dos Malês, entre 15
e 20% dos africanos recém-chegados à Bahia2
.
2 Ver Reis (2003, p. 177)
N E G R A U T O P I A 57
A presença dos malês na cidade se manifes-
tava na popularização das bolsas de mandin-
ga (amuletos com orações escritas em árabe
com pequenas passagens do Alcorão), nas tá-
buas de leitura (utilizadas pelos mestres mais
antigos para o estudo corânico), no uso dos
abadás (túnicas brancas), dos kendés (anéis ma-
lês), tecebás (rosário para orações malê) e nos
encontros e banquetes promovidos pela comu-
nidade.
As bolsas de mandinga ou patuás malês da-
vam proteção contra os inimigos e infortúnios,
e fizeram muito sucesso no mercado religioso
de Salvador, sendo usadas por outros grupos
em busca de proteção espiritual e livramentos.
Existiam os que, com expertise e conhecimen-
to religioso, viviam de escrever em língua ára-
be as orações que eram inseridas nos amuletos,
a exemplo dos breves e escapulários católicos.
Os abadás – termo até hoje usado pelos blocos
do carnaval de Salvador – eram roupas ritu-
ais associadas a práticas religiosas dos malês, às
quais as autoridades se referiam como “roupas
de guerra”3
. Essas túnicas de algodão branco
3 REIS, 2003, p. 206.
M A L Ê S 1 8 3 5
58
denotavam a preocupação com a limpeza e pu-
reza característica dos malês.
Sobre as tábuas de leitura, Manuel Querino
afirma serem “quadros de madeira à imitação
das tábuas de Moisés, servindo-se para isso de
uma tinta azul, mineral, importada da África;
depois lavavam os quadros e davam a beber a
água como indispensável para fechar o corpo”4
.
De todos os ângulos, vão emergindo as prá-
ticas mágico-religiosas dos malês que tiveram
papel determinante no soerguimento de espíri-
tos alquebrados pela dura realidade da explora-
ção escravista. O uso de amuletos, dos abadás
e da água para “fechar o corpo” deu aos insur-
retos propriedades espirituais para enfrentar
uma estrutura social que os queria reduzir a
mercadorias e instrumentos de trabalho. Eram
filhos de Alá e estavam sob a sua proteção. Va-
leria a pena, portanto, correr os riscos de uma
insurreição a continuar no cativeiro.
Na cidade do Salvador, a estrutura do pro-
selitismo malê reproduziu a experiência re-
ligiosa africana das casas de oração e escolas
corânicas, formadas sob a tutela de um mestre
4 QUERINO, 2010, pp. 94-95.
N E G R A U T O P I A 59
ou discípulo mais antigo nas moradias e locais
de trabalho dos africanos5
. Alufás e mestres,
como Pacífico Licutã, Luís Sanin, Dassalu,
Gustard, Nicobé e o comerciante haussá Dan-
dará usavam os cantos e suas moradas, ou as
de seguidores, para propagar lições islâmicas e
realizar celebrações.
Manuel Querino descreve diferentes mo-
mentos de celebração e dos rituais malês: fazer
sala (oração da manhã e da noite), sará (chama-
da por ele de missa malê), amurê (casamento) e
o grande jejum anual por ocasião do Ramadã.
Este se iniciava com a festa do Espírito Santo
e obedecia ao calendário lunar, ou seja, deve-
ria durar o intervalo de tempo entre duas luas
novas6
. Os banquetes, por sua vez, eram parte
de cerimônias religiosas e ligados ao calendá-
rio islâmico. Além da comensalidade caracte-
rística, eram um lugar de sociabilidade entre
homens escravizados e afirmação de compro-
misso com a comunidade malê. A presença dos
mestres e líderes religiosos conferia aos banque-
tes um caráter solene e a certeza, aos inicia-
5 Ver Reis (2003, p. 223).
6 Ver Querino (2010, pp. 94-100).
M A L Ê S 1 8 3 5
60
dos, de pertencerem a uma comunidade onde
seriam respeitados e estimados, apesar de toda
tentativa de subjugação da máquina de moer
gente do escravismo.
Os malês se distinguiam entre o conjunto da
comunidade africana de Salvador. Eram asso-
ciados, já em África, ao deus iorubano Oxalá,
e todos os mulçumanos eram considerados fi-
lhos do Orixá nagô. O uso da túnica branca, o
não consumo de álcool e os hábitos ligados a
pureza e limpeza, entre os malês, fizeram com
que fossem associados ao Orixá fun-fun, o deus
que veste branco e tem como sua festa princi-
pal as Águas de Oxalá, em dezembro. As Águas
de Oxalá são celebradas anualmente nos terrei-
ros de candomblé e fazem referência a um itan
(mito iorubano) da visita do Orixá fun-fun a
seu filho, Xangô, rei da cidade de Oyó:
N E G R A U T O P I A 61
Antes de partir em visita ao filho, Oxalá
se consulta com o adivinho, sendo alertado para
não fazer a viagem. Como insiste em viajar, o
adivinho orienta a divindade a levar três fardos
de roupa branca. Durante o trajeto, ele é por três
vezes enganado por Exu, que suja suas roupas.
Quando finalmente chega a Oyó, é confundido
com um ladrão e preso pelos soldados de Xangô.
Sem dizer nada, Oxalá, de sua cela, decide que
o povo de Oyó merece uma lição por tamanho
desrespeito. Seguiram-se sete anos de seca e fome,
e tanto os campos quanto as mulheres do reino de
Xangô ficaram estéreis. Xangô, desesperado com
os acontecimentos, consulta o adivinho, que lhe
informa haver alguém preso injustamente. Ao
visitar a prisão, o rei reconhece seu pai, Oxalá,
apesar de encontrá-lo sujo e maltrapilho. Ordena
que o lavem e o vistam com roupas brancas
alvíssimas, observando absoluto silêncio, em
respeito ao Orixá. Todos se vestem de branco,
inclusive Xangô, que oferece enfim um banquete
em celebração à visita do pai.7
7 Ver Prandi (2001, pp. 520-521).
M A L Ê S 1 8 3 5
62
Na festa, realizada no mês de dezembro, é
observado o silêncio respeitoso a Oxalá, assim
como a água simboliza a purificação entendida
em termos sagrados e religiosos8
. Existe ainda
outro itan de Oxalá, que estabelece a interdi-
ção do consumo do vinho de palma por parte
de seus descendentes9
. Seus filhos, portanto,
não devem ingerir bebidas alcoólicas, ao modo
como praticam os membros da comunidade
islâmica.
Segundo Manuel Querino, os malês
eram conhecidos por sua “inteligência, mode-
ração, sobriedade e calma na conversação”10
.
O título de malê era honroso e significava “ser
respeitado pelo uso da escrita, pelo acesso a efi-
cazes conhecimentos mágicos ou por pertencer
a um grupo de reconhecido prestígio em Áfri-
ca”, condição que era também vista como arro-
gância ou orgulho, provocando “animosidades
entre malês e os demais africanos”11
. Os malês
8 Ver Rodrigues (2001).
9 Ver Prandi (2001, pp. 503-506).
10 QUERINO, 2010, p. 93.
11 REIS, 2003, p. 249.
N E G R A U T O P I A 63
se destacavam entre os africanos por uma cos-
movisão estruturada pelo estrito respeito aos
rituais e celebrações coletivas, e se distinguiam
pelo uso de vestimentas, da escrita, de símbo-
los que denotavam sua posição na comunidade
negra, além do uso de mecanismos mágico-re-
ligiosos capazes de proteger contra os infortú-
nios e perigos de uma sociedade estratificada
e segregada racialmente. Do ponto de vista
da sociedade branca, os malês eram foras da
lei. Se no protestante Estados Unidos dos anos
1950-60 causou perplexidade e apreensão o
surgimento de grupos de negros islamizados,
como a Nação do Islã, e de líderes muçulma-
nos, como Malcolm X, algo semelhante ocor-
reu no Bahia do século XIX. Basta lembrar
que a Constituição de 1824, outorgada por D.
Pedro I no pós-independência, estabelecia o
catolicismo como religião oficial.
O respeito e status adquirido pelos malês
junto à comunidade africana não os livrou de,
como os demais grupos étnicos, sofrerem o
jugo do escravismo e de suas diferentes formas
de controle do trabalho. O que a rede malê
fez foi fortalecer o sentido de pertencimento
M A L Ê S 1 8 3 5
64
a um grupo de africanos letrados que conse-
guiram, nas condições adversas da cidade de
Salvador, reconstituir a estrutura do proseli-
tismo religioso islâmico aprendido em Áfri-
ca. Desta maneira, a religião foi o catalisador,
principalmente entre os nagôs, da insatisfação
com a exploração do trabalho e a condição de
cativos. Levou conforto espiritual e esperança
a pessoas que haviam sido presas e escravizadas
em território africano e levadas à força para o
outro lado do planeta, para servirem de força
de trabalho e serem vendidas como mercadoria
a senhores brancos.
“Resgata-nos desta cidade, cujo povo é opres-
sor”, estava escrito em um amuleto malê usado
por um dos rebeldes que tombou em luta12
.
Era uma oração a Alá para que resgatasse seus
filhos da infeliz sina de servirem como escravos
nas Américas, numa cidade que se alimentava
de vidas negras e fazia delas a base de sua ri-
queza e opulência. Não se sabe se os assim de-
signados opressores eram apenas os brancos,
ou se também pardos e crioulos estavam inclu-
ídos como seus colaboradores. Mas não resta
12 REIS, 2003, p. 232.
N E G R A U T O P I A 65
dúvida que os malês se viam como oprimidos,
dignos das graças divinas porque “aqueles que
creem amam a deus de modo mais forte”13
.
Amuletos com figuras cabalísticas e livretos
dos rebeldes malês fazem referência à prote-
ção de Alá para que tivessem sucesso na luta.
Eram textos religiosos, mas com forte sentido
libertador para uma comunidade de cativos,
distantes milhares de quilômetros de seu con-
tinente de origem e submetidos a um regime
de exploração onde só havia, por parte da so-
ciedade branca, desprezo por sua cultura e co-
nhecimento.
A pregação malê ganhou espaço e adeptos na
cidade de Salvador, confundindo-se com sua
paisagem e estabelecendo-se nos espaços de
trabalho e moradia, tornando-se um ponto
de apoio e articulação entre africanos libertos
e escravizados, mesmo pertencentes a diferen-
tes grupos étnicos. As condições para a rebe-
lião malê se tornavam maiores à medida que a
religião se expandia. Como vimos, em 1807,
conspiradores haussás lideraram um movimen-
to conclamando, como fizeram os malês em
13 REIS, 2003, p. 187.
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66
1835, a “morte aos brancos”, mas tendo como
alvo os engenhos de cana e não a cidade de Sal-
vador. Entre 1807 e 1828, as tentativas de re-
beliões negra se concentraram em sublevar os
escravizados dos engenhos (principalmente no
Recôncavo) para depois tomar a capital. A pro-
víncia foi agitada, nesse período, pelos ventos
da independência e dos movimentos antilusi-
tanos, contribuindo para que os escravizados
lançassem mão de suas estratégias e encabeças-
sem suas próprias insurreições.
A constante crise econômica e de abasteci-
mento da província foi o estopim para revol-
tas da plebe, que arrastaram consigo um bom
contingente de escravizados. Apesar do cená-
rio de penúria entre os mais pobres, a cidade
de Salvador consolidou-se como centro urba-
no com instituições e comércio que deman-
davam serviços e, por extensão, outras formas
de controle do trabalho escravo. É neste sen-
tido que os negros de ganho (escravizados que
exerciam atividades urbanas e pagavam uma
diária aos seus senhores) passaram a ocupar
ofícios importantes para o cotidiano da cida-
de, como carregadores de cadeira, artesãos,
N E G R A U T O P I A 67
Os negros de ganho,
que prestavam diversos
serviços nas ruas de
Salvador, foram os
principais articuladores
da revolta.
M A L Ê S 1 8 3 5
68
vendedores, barbeiros, alfaiates, saveiristas, en-
tre outras funções. Além de lucrativos aos seus
senhores, os negros de ganho tinham maior mo-
bilidade e circulação se comparados aos escra-
vizados do eito, confinados ao trabalho nos
engenhos. Como destaca Kátia Mattoso, a
possibilidade de comprar a própria alforria era
algo mais próximo da realidade dos negros de
ganho que dos escravos dos engenhos. Mesmos
assim, não eram poucos os anos de economias a
ser reunidas por um escravo de ganho. Além de
pagar a jornada ao seu senhor, ele deveria ar-
car com as despesas de alimentação e moradia,
enfim, de si próprio, antes de economizar para
comprar a própria liberdade14
.
Esta expansão coincide com o aumento
de africanos, na primeira metade do século
XIX, na cidade de Salvador, a partir do trá-
fico transatlântico. A mobilidade dos escravos
de ganho na paisagem urbana não demorou
a ser percebida por estes como um espaço
de conspiração e rebelião. Como chamou a
atenção Pierre Verger, as chances de um ataque
final sobre Salvador, uma vez tomada a região
14 Ver Mattoso (2003, p. 189).
N E G R A U T O P I A 69
do Recôncavo, eram problemáticas, posto que
encontrariam já alertas e em posição de defe-
sa as tropas adversárias15
. Em 10 de abril de
1830, quase cinco anos antes do levante malê,
vinte africanos assaltaram algumas lojas de
ferragens na Ladeira do Taboão. Recolheram
espadas e parnaíbas, e foram dar no mercado
de escravos, onde libertaram africanos que
seriam vendidos. Após atacar uma patrulha
e matar um soldado, foram dispersados pelo
fogo de policiais armados. Além de inúmeros
feridos, contaram-se entre os rebeldes mais de
cinquenta espancados até a morte pela turba
que se lançou contra eles16
. Este fato fez com
que as autoridades reforçassem as medidas de
segurança e controle contra os escravizados na
cidade.
Porém, o endurecimento da vigilância não
fez esmorecer as esperanças de liberdade. Cin-
co anos depois, na mesma cidade de Salvador,
outra rebelião estourou. E esta ainda maior.
Foi a Revolta dos Malês.
15 Ver Verger (2003, p. 365).
16 Ver Reis (2003, p. 115).
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Foi um levante de grandes proporções.
Segundo o presidente da província à época,
participaram da revolta mais de duzentos
indivíduos. De acordo com o historiador
João José Reis1
, isso equivaleria, em termos
proporcionais, tomando a população de Sal-
vador em 2012, a um levante de 9 mil pesso-
as! A cidade de Salvador foi palco da maior
rebelião de negros urbanos escravizados vista
até então. Um episódio com profundas reper-
cussões no cotidiano da cidade, na presen-
1 Ver Reis (2003, p. 151).
Os filhos
de Alá
vão à luta
M A L Ê S 1 8 3 5
72
ça de africanos em terras brasileiras e sobre os
meios de controle do corpo e do trabalho dos
escravizados. Os rebeldes eram pessoas que
exerciam atividades como negros de ganho.
Vendedores de pão e de peixe, saveiristas, car-
regadores de cadeiras e outros serviços. Vesti-
ram seus abadás e amuletos, e sob a inspira-
ção e proteção de Alá tornaram-se guerreiros
que ousaram romper as engrenagens do sistema
a partir do coração da capital da província da
Bahia.
Estavam confiantes de que a organiza-
ção malê seria capaz de levantar os negros e
dar outro desfecho à história. Essa confian-
ça, sem abrir mão de planejamento e cálcu-
lo, como veremos, teve forte conteúdo emo-
cional e religioso. Integravam-se em uma
comunidade onde se viam e tratavam como
seres humanos, onde o senso de dignidade,
alquebrado pela escravidão, se impunha pelas
lições do Corão, vivenciadas nas reuniões e
banquetes que celebravam a vida. O senti-
mento de pertença cultivado entre os malês
parecia suficiente para atrair outros grupos,
uma vez que a insurreição ganhasse força e
N E G R A U T O P I A 73
Com seus abadás,
amuletos e armas, os malês
se lançaram na revolta.
M A L Ê S 1 8 3 5
74
se aproximasse de uma batalha final positi-
va para os rebeldes.
Mas um movimento dessa natureza exigia
hora e local corretos. Não se podia correr
o risco da rebelião ser frustrada por falta de
preparação e planejamento. No dia 25 de ja-
neiro de 1835, a maior parte da população de
Salvador estava no bairro do Bonfim, distan-
te do núcleo urbano, comemorando a festa
de Nossa Senhora da Guia. O centro da ca-
pital ficou relativamente desabitado, desguar-
necido e mais tranquilo que o habitual. Nada
parecia suspeito na cidade que comemorava
no Bonfim, indiferente aos planos malês que
logo colocariam de pernas para o ar aquele
interregno de marasmo e tranquilidade às
margens da Bahia de Todos dos Santos.
O movimento que partia de Salvador – e
tinha como objetivo inicial a tomada da ci-
dade – havia arquitetado planos maiores de ir
ao Recôncavo. As velas brancas dos saveiros
no vai e vem entre o Rio Paraguaçu e o por-
to de Salvador traziam embaixadores negros
do Recôncavo, que junto com os malês so-
teropolitanos decidiram expandir a rebelião
N E G R A U T O P I A 75
além dos domínios da Roma Negra.
As primeiras notícias de uma rebelião che-
garam pelas águas da Bahia de Todos os San-
tos e davam conta de um movimento rebelde,
que unia negros de Salvador e do Recôncavo
sob a liderança de Ahuna (gentílico islâmi-
co), sobre quem nunca mais se soube. Aquele
movimento incomum na Bahia e as infor-
mações sobre a rebelião iminente chegaram
aos ouvidos do casal de libertos Domingos e
Guilhermina, que informaram as autorida-
des. Decerto, a delação do movimento não se
tornou pública ao ponto dos malês mudarem
seus planos. Eles continuariam conforme es-
tabelecido previamente, aproveitando-se do
que supunham ser o elemento surpresa de
uma cidade desguarnecida e desabitada.
Entre cinquenta e setenta negros estavam
reunidos na loja (uma habitação no subsolo
que servia de moradia para negros escravi-
zados) do sobrado de número 2, na Ladeira
da Praça, sob a liderança de Manuel Calafate
e Aprígio. Estavam vestidos com seus abadás,
carregavam em seus peitos os amuletos pro-
tetores com passagens do Corão, portavam
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76
espadas e lanças e comiam e confraterniza-
vam de acordo com a tradição islâmica. Era o
último banquete antes da guerra que devia ir-
romper ao nascer do dia. Mas as autoridades,
informadas de um possível levante, iniciaram
buscas nas casas de africanos suspeitos e, por
volta de uma da manhã, chegaram ao ende-
reço. A ação da patrulha precipitou os pla-
nos, e começou assim a insurreição. Mesmo
surpreendidos, os malês, ao invés de abortar
o movimento, resolveram iniciá-lo, já que a
presença de tantos negros na loja alugada por
Calafate era evidência mais que suficiente de
suas intenções. A cidade estava relativamente
vazia e os planos envolviam não apenas os que
acompanhavam Calafate naquele momento.
Outros negros viriam se juntar ao movimen-
to, de outros pontos da cidade.
Os malês não estavam despreparados, e
pelo movimento dos saveiristas ao longo do
dia, sua rede de articuladores entre Salvador e
Recôncavo devia estar suficientemente cons-
tituída, de forma a crerem no sucesso de sua
empreitada. Os malês saíram da loja de Ca-
lafate aos gritos de “mata soldados”, vestidos
N E G R A U T O P I A 77
com seus abadás, tocando tambores, armados
de espadas e convocando os africanos à re-
volta. Era uma multidão de homens negros
vestidos de branco, armados com espadas.
Atacaram a patrulha que, surpresa, mal con-
seguiu resistir à investida malê. Dali se divi-
diram em grupos que, ao que tudo indica,
tinham diferentes alvos e objetivos.
Haviam planejado uma insurreição. É im-
portante destacar este ponto. Não investiram
contra alvos civis, mas contra posições militares
na cidade, com o objetivo de tomá-las e, com
isso, superar a desvantagem bélica. Os que
morreram pelas mãos malês participavam di-
retamente do confronto, ou seja, não houve
mortes aleatórias de brancos ou outros alvos.
Este fato, nas palavras de João José Reis2
,
abre espaço para se deduzir que respeitassem
algum protocolo militar muçulmano. Atacar
e ocupar posições militares é tática distinta de
invadir casas, incendiá-las, matar senhores...
enfim, espalhar a anarquia e com isso produ-
zir o pânico e a confusão no inimigo.
Após saírem da loja de Calafate e se dividir
2 Ver Reis (2003, p. 149).
M A L Ê S 1 8 3 5
78
em grupos, o maior contingente seguiu em
direção à Praça do Palácio, onde ficava a pri-
são, com o objetivo de libertar o alufã Pacífico
Licutã, um homem de setenta anos de idade,
muito respeitado e reverenciado pelos malês,
que fora preso para honrar uma dívida de jogo
de seu senhor. Por que era tão importante para
os malês libertar o ancião? Era inegável a po-
sição de prestígio que ocupava entre os malês,
e sua prisão deve ter despertado ressentimento
entre eles. É evidente o papel que reservaram
a Licutã no desenvolvimento da revolta. Mas,
ao contrário do que imaginavam os malês, a
cadeia pública (que se localizava onde fica atu-
almente a Câmara de Vereadores de Salvador)
estava relativamente bem guarnecida, e foram
recebidos com disparos de armas de fogo. Vie-
ram balas também do Palácio do Governo, lo-
calizado em frente à Cadeia Municipal. Cerca-
dos dos dois lados e em meio ao fogo cruzado,
os rebeldes recuaram e tiveram que abandonar
o plano de libertar Licutã.
Apesar desse primeiro revés, os malês não
tiveram baixas no confronto e se reagrupa-
ram na Praça do Teatro (onde fica hoje a
N E G R A U T O P I A 79
Praça Castro Alves). Lá, atacaram uma guar-
nição, feriram alguns soldados, se apossaram
de suas armas e foram em direção ao Quar-
tel de Guardas Permanentes (perto do atual
Convento de São Bento). Porém, os soldados
abrigados no Quartel não foram nem um
pouco receptivos. Sob o fogo de suas armas,
os malês tiveram que recuar.
Além deste grupo principal, outros gru-
pos negros seguiram pelas ruas de Salva-
dor, batendo nas janelas, tocando tambores
e convocando em línguas africanas os negros
à insurreição. Era o chamado para a guerra.
Um grupo de negros rebeldes do bairro
da Vitória cruzou o Forte de São Pedro
e se juntou aos combatentes que vieram
das Mercês, ponto de reaglutinação dos
negros após a batalha no São Bento. Já um
outro grupo atacou um quartel de polícia no
antigo Largo da Lapa (imediações do atual
Colégio Central) e conseguiu pôr para correr
a guarnição, que, escondida atrás dos muros,
conseguiu dispersar os rebeldes a tiros.
O destino dos malês era agora a Cidade
Baixa, a Península de Itapagipe, onde tinham
M A L Ê S 1 8 3 5
80
que cruzar, em Água de Meninos, com o
Quartel de Artilharia para, talvez, alcançar o
Recôncavo. Os rebeldes empreenderam uma
batalha aberta, corpo a corpo, mas o quar-
tel se mostrou um obstáculo intransponível.
Foram derrotados pela posição vantajosa e
abrigada dos que atiravam de dentro da guar-
nição. Muitos morreram investindo, sob a
chuva de balas, contra o os seus muros. Ou-
tros não tiveram opção senão fugir. Na ten-
tativa desesperada de fuga, alguns tentaram
escapar pelo mar e morreram afogados. Parte
foi capturada e morta. Mas muitos, apesar
das condições adversas, conseguiram escapar.
Há registro de que, na alvorada do dia 25
de janeiro, pelo menos dois grupos de africa-
nos ocuparam as ruas de Salvador. Um deles
ateou fogo na casa do senhor e ia em direção
a Água de Meninos. Pelo menos um porta-
va um caderno malê. Foram todos mortos3
.
Uma hipótese é que seguiam os planos origi-
nais dos malês, e a tomada do Quartel de Ar-
tilharia seria o último ponto a partir do qual a
sublevação avançaria para tomar posições no
3 Ver Reis (2003, p. 243).
N E G R A U T O P I A 81
Recôncavo. Os malês atacaram posições mi-
litares que eram estratégicas dentro do plano
de sublevação. Não é possível afirmar quan-
tos sabiam dos planos originais, porém, é fato
que seguiram a orientação de seus líderes e
organizaram um movimento planejado e ar-
ticulado.
Dois aspectos devem ser destacados. O
primeiro é o conhecimento do território da
cidade. A forma como se deslocaram pelo pe-
rímetro urbano e atacaram seus alvos mos-
tra um conhecimento da geografia urbana, o
que, apesar do alto número de baixas, pode
ter contribuído para reduzir o seu total. De-
vemos levar em conta que se tratou de um
conflito de grandes proporções. Reis estima
em 200 o número de rebeldes em Água de
Meninos4
, número bastante superior aos cin-
quenta ou setenta insurretos que se reuniram
na loja de Calafate e iniciaram o levante. Um
confronto aberto e sem planejamento pode-
ria ter gerado uma carnificina ainda maior,
semelhante ao que ocorreu em 1830.
Os relatos apontam também que a maior
4 Ver Reis (2003, p. 143).
M A L Ê S 1 8 3 5
82
parte dos insurretos conseguiu fugir, o que
corrobora com seu conhecimento da geogra-
fia da cidade, suas ruas, becos, vielas e rotas.
Para um carregador de cadeira, por exemplo,
habituado a levar nos ombros a sociedade
branca e escravista da época, não devia ser
mistério o acidentado terreno de Salvador.
Durante os interrogatórios, os escravos Agrí-
pio (que dividia com Manuel Calafate a loja
de onde partiu o levante malê) e Guilherme,
ambos carregadores de cadeira (palanquim)
de um canto na Mangueira, foram acusados
por uma testemunha de se recusarem, dias
antes do levante, a carregar um bêbado (mes-
mo com a intervenção de um soldado e de
um porteiro do tribunal), e teriam dito5
:
“Aguardem um pouco, e quando pro-
curares negros do canto e não os encon-
trardes serão vós mesmos que levarão os
palanquins nos ombros.”
O segundo aspecto é a expertise militar que
os insurretos malês haviam trazido do con-
5 Ver Verger (2002, pp. 559-560).
N E G R A U T O P I A 83
tinente africano, conflagrado por conflitos
étnicos que foram alimentados pelo tráfi-
co transatlântico. Entre os grupos étnicos es-
cravizados e também entre os nagôs islamiza-
dos no continente africano, havia guerreiros
com experiência em lutas e batalhas. A forma
como conduziram o combate em território
baiano e o protocolo militar que parecem ter
seguido indicam esse elemento. Assim sendo,
a delação que precipitou o levante foi um
duro golpe que pôs a perder todo o plane-
jamento e mobilização anteriores. De qual-
quer forma, mesmo em condições adversas,
os filhos de Alá não hesitaram em iniciar a
batalha.
Encerrado o conflito, era o momento de
contar as baixas. Segundo as autoridades
da época, o número total de mortos, so-
mando os dois lados da contenda, ultrapas-
sou setenta. Foram contabilizados cinquen-
ta africanos, caídos durante ou levante ou
afogados no mar em sua tentativa de fuga6
.
Seus nomes foram registrados nos autos dos
processos pós-1835: Henrique, Nóe, Hipóli-
6 Ver Reis (2003, p. 155).
M A L Ê S 1 8 3 5
84
to, Constantino, Roque, Manoel, Gertrudes,
Baltazar, Cícero, Flamé, Batanho, Combé,
Mama Andeluz (ou Dassalu), Victório Sule,
Nicobé, Gustard... Eram pessoas anônimas
para a elite política e social de Salvador, e
os seus nomes de origem árabe – que faziam
questão de manter ao lado do nome do batis-
mo cristão, ganho no Brasil – causava estra-
nheza e repulsa à sociedade branca e àqueles
que, uma vez vendo a balança pender para o
lado dos senhores de escravizados, não hesi-
tavam em franquear-lhes seu apoio e vocife-
rar contra os bárbaros africanos que tentaram
macular a cidade com seus símbolos e planos
inspirados por Alá.
A repressão ao levante de 1835 foi mui-
to mais abrangente e dramática que aquela
seguida às sublevações de 1830. A aliança
entre libertos e escravizados, o proselitismo
islâmico e o predomínio dos nagôs entre os
insurretos funcionaram como diferentes sig-
nificantes para o que foi apontado como o
mal por trás da utopia negra malê: a presença
do componente africano em terras brasileiras.
Expurgar a África do Brasil foi a chave en-
N E G R A U T O P I A 85
contrada não apenas para punir os líderes do
levante, mas também para estabelecer a sus-
peição generalizada dos africanos. Porém,
diante da repressão aberta a escravizados, a
libertos, de uma maneira geral, e aos africa-
nos, em particular, novas táticas de luta e en-
frentamento surgiram sem que os planos de
pacificação das elites da época chegassem a
atingir plenamente seus objetivos.
N E G R A U T O P I A 87
A insurreição malê foi um ponto dinâmico
para o qual convergiram diferentes contra-
dições da sociedade escravista do seu tempo.
Em primeiro lugar, a revolta colocou como
alvo os brancos, mas deixou dúvidas quanto
ao horizonte reservado para os pardos, mula-
tos e crioulos. Em segundo lugar, as diferenças
étnicas entre os nagôs e os demais grupos de
origem africana estabeleceram limites iniciais
à mobilização. Em terceiro lugar, foram es-
tabelecidas zonas concêntricas de arregimen-
tação para a luta, sendo seu projeto inicial
uma revolta africana, feita por escravizados e
Repressão
e guerras
subterrâneas
M A L Ê S 1 8 3 5
88
libertos, de caráter urbano e dirigida por malês
(islâmicos) de maioria étnica nagô. Mas se foi
propriamente uma vanguarda malê a que teve
o papel de planejar e desencadear a revolta,
seu objetivo era mobilizar todos os africanos
a se levantarem contra a sociedade escravista.
Foi uma revolta urbana – no coração da cidade
de Salvador, centro político e militar da pro-
víncia –, de acordo com a tradição rebelde e
insurrecional dos negros baianos iniciada no
começo do século XIX, mas que também esta-
beleceu uma mudança na estratégia das rebeli-
ões negras na Bahia quando se propôs a chegar
aos engenhos do Recôncavo a partir da capital.
Como era de se esperar, a rebelião cau-
sou pânico na cidade de Salvador. Prevaleceu
a ideia de que ela seria resultado da aliança
entre escravizados e libertos africanos, cain-
do sobre os nagôs, de forma genérica, o peso
de terem orquestrado e efetivado sozinhos os
planos insurrecionais. A repressão devassou a
vida de centenas de africanos cativos e libertos.
Segundo Pierre Verger1
, entre os 286 acusados
(126 libertos e 160 escravizados) havia nagôs
1 Ver Verger (2002, p. 370).
N E G R A U T O P I A 89
(194), haussás (25), tapas (6), minas (7), jejes
(9), mulatos (7) e ainda alguns de origem des-
conhecida (18). Todo e qualquer suspeito de
ligação com os malês foi submetido a inqué-
rito e teve que se explicar à justiça. O simples
fato de professar a fé islâmica, ter contato com
algum revoltoso ou possuir em casa algum ob-
jeto religioso muçulmano já era suficiente para
chamar a atenção das autoridades. Centenas de
suspeitos foram alvo de investigação, e as pe-
nas variaram conforme as condições de defesa
do acusado (pelo qual intervinha, às vezes, o
seu próprio senhor) e a necessidade das autori-
dades de dar uma resposta à altura a tamanha
ousadia rebelde.
O inquérito célere se voltou contra os que se
julgava serem líderes do movimento: Ahuna ou
Aruna, Victório Sule, Luís Sanin, Pacífico Li-
cutã, Elesbão do Carmo Dandara, Belchior da
Silva Cunha, entre outros. Como destaca Ver-
ger2
, às autoridades da época impressionaram
os textos escritos em árabe por escravizados e
livres, considerados intelectualmente inferio-
res. Como a punição estabelecida para cons-
2 Ver Verger (2002, pp. 369-370).
M A L Ê S 1 8 3 5
90
piração era a pena de morte e esta não previa
a indenização dos proprietários, muitas conde-
nações foram comutadas em penas de prisão
perpétua ou prisão com ou sem galés e torturas
públicas por chibatadas. Ao fim, quatro malês
foram condenados à morte e executados no dia
14 de maio de 1835. Aprígio, como muitos,
teve que cumprir pena na prisão.
Vários foram condenados a sessões públicas
de tortura por chibatadas, nas quais as pessoas
eram “despidas, amarradas e açoitadas nas cos-
tas e nas nádegas, um espetáculo intimidador
para os demais africanos, que passavam dias
a fio assistindo aquele sofrimento em diver-
sos locais da cidade: o Campo da Pólvora, o
Campo Grande e Água de Meninos”3
. O alufã
Pacífico Licutã, já com 70 anos à época do le-
vante, escapou da pena de morte por estar pre-
so durante o evento, mas, mesmo assim, foi
condenado a 1000 chibatadas! Luís Sanin, ou-
tro mestre malê já idoso, a 600 chibatadas! As
chibatadas tinham como objetivo disciplinar e
educar pela violência não só o torturado, mas
toda a comunidade negra. Além disso, permi-
3 REIS, 2003, p. 470.
N E G R A U T O P I A 91
No dia 14 de março
de 1835, quatro malês
foram fuzilados por sua
participação na revolta.
M A L Ê S 1 8 3 5
92
tia que a preciosa mercadoria voltasse às mãos
do senhor, ao contrário da pena de morte. As
estratégias dos acusados para se livrar da pena
de morte, do cárcere, das torturas públicas por
chibatadas são um capítulo à parte da história
de resistência desses sujeitos.
Apesar das pressões da opinião pública e das
autoridades da época em dar o revide à ação
dos insurretos, é inegável que por todos os meios,
quando estavam disponíveis, questionaram
suas sentenças e, em alguns casos, tiveram ine-
gáveis vitórias. Mas o espetáculo das chibata-
das, das prisões e execuções não foi suficiente
para acalmar os ânimos da elite branca. Além
do castigo, da prisão e a pena de morte, as au-
toridades implementaram iniciativas que ca-
minhavam em duas direções.
Por um lado, deportações em massa, a princí-
pio dos africanos livres, que se iniciaram como
resultado dos inquéritos e, com a Lei nº 9, de
13 de maio de 1835, se generalizaram para
todo e qualquer africano que vivesse na cidade
de Salvador. Além do retorno forçado a África,
os senhores baianos correram para vender e se
desfazer dos escravizados nagôs ou suspeitos
N E G R A U T O P I A 93
de rebeldia, enviando-os para outras provín-
cias do país4
. A historiadora Kátia Mattoso
afirma que diante dos movimentos de eman-
cipação dos escravizados e libertos a população
livre (branca, crioula, mulata) conformou uma
“frente brasileira” contra o africano, por onde
“multiplicam-se as brechas das quais soube
aproveitar o poder branco”5
. Este fato facilitou
a conversão da repressão aos malês em perse-
guição aos africanos de uma maneira geral. Era
necessário desafricanizar a Bahia, tornando-a
livre de conspirações e insurreições. O africa-
no era pertencente a uma “classe perigosa” que
deveria se disciplinar pelo cárcere, a tortura e
a deportação.
Por outro lado, era necessário controlar os
passos dos cativos e libertos na própria provín-
cia, interditar seus espaços de sociabilidade e
interferir na organização dos negros de ganho.
O edital de 21 de fevereiro de 1835 estabe-
leceu a obrigatoriedade do passe (documento
assinado pelo senhor) para os escravizados cir-
cularem após às oito horas da noite. A pena
4 Ver Reis (2003, pp. 498-502).
5 MATTOSO, 2003, pp. 165-166.
M A L Ê S 1 8 3 5
94
para quem descumprisse a determinação era
de 50 chibatadas. Já para os libertos, definia
que, caso fossem encontrados nas ruas após o
horário, teriam o “destino que se julgar conve-
niente”, o que, segundo João José Reis, tornou
a liberdade dos libertos uma mistificação6
. O
controle se estendia aos espaços de lazer e so-
ciabilidade, ao determinar que qualquer cida-
dão ou policial podia prender quatro negros
ou mais que estivessem reunidos.
Dessa maneira, é importante nos questionar
sobre a validade das diferenças entre africanos
e crioulos. Diante da suspeição generaliza-
da todos eram negros e estavam, por princí-
pio, submetidos ao mesmo arbítrio do poder
branco. Como vimos, naquele período, cida-
dão era sinônimo de branco, colocando a po-
pulação negra sob suspeição permanente. Mas
o controle do lazer não era suficiente se não
se atingisse o núcleo da organização dos tra-
balhadores de ganho. A Lei nº 14 instituiu
as capatazias dos cantos onde eram ofertados
serviços à população da cidade de Salvador, e
tinha como objetivo estabelecer mecanismos
6 Ver Reis (2003, p. 495).
N E G R A U T O P I A 95
de tutela do trabalho, pondo-o sob vigilância
e controle. Porém, as estratégias dos trabalha-
dores de ganho foram mais eficazes, ao ponto
de, em 1875, chegarem a cruzar os braços e
fazer greve7
.
Em resumo, como “classe perigosa”, os ne-
gros tiveram que enfrentar novos mecanismos
de controle de seus corpos, que deveriam ser
disciplinados pelo cárcere e a tortura, mas tam-
bém pela vigilância de seus espaços de lazer, so-
ciabilidade e de trabalho. A paranoia do poder
branco ramificou e aperfeiçoou os mecanismos
de poder que foram enfrentados de forma sub-
terrânea pelos negros, estabelecendo uma nova
gramática de lutas e estratégias de enfrentamen-
to à exploração. O historiador João José Reis
afirma que a rebelião de 1835 encerrou o ciclo
de revoltas escravas na Bahia do século XIX. O
que se seguiu foi a intensificação de outras for-
mas de luta e resistência, como, por exemplo, a
greve dos negros de ganho (escravizados urba-
nos), em 1875 e que é objeto de livro recente
do autor8
. Como em uma estratégia de ataque
7 Ver Reis (2003, pp. 503-508).
8 Ver Reis (2019).
M A L Ê S 1 8 3 5
96
pelos flancos, prevaleceu a resistência cotidia-
na, principalmente em relação ao controle do
trabalho e do lazer. Estas guerras subterrâneas que,
por fim, derrotariam o escravismo em 1888, nos
abrem outras possibilidades de resistência que são
pouco valorizadas, em particular quando asso-
ciadas a cosmovisões não europeias, como as
negras e indígenas.
N E G R A U T O P I A 97
Há os que preferiram ver na revolta dos ma-
lês apenas mais um episódio de desajuste cul-
tural do africano em solo brasileiro. Apenas
na década de 1940, na cidade de Juazeiro da
Bahia, quando Clóvis Moura iniciou a escrita
do clássico das ciências sociais, Rebeliões da
Senzala, publicado em 1959 por uma peque-
na editora paulista de nome Zumbi, a revolta
dos malês ganhou nova interpretação. Com
Moura, deixou de receber o tratamento parti-
cularista e racista, dado por autores como Nina
Rodrigues, para quem a sublevação de 1835
era exemplo da “barbárie de selvagens africa-
Racismo
epistemológico,
práxis e luta
de classes
M A L Ê S 1 8 3 5
98
nos”, cujas “sobrevivências culturais” faziam
contraponto à “civilização” nascida da em-
preitada colonial nos trópicos. A Revolta dos
Malês, assim como os quilombos e guerrilhas
dos escravizados, passava a ser encarada como
parte de um processo mais amplo de superação
histórica do escravismo, o que o autor viria a
chamar, anos mais tarde, de quilombagem.
De sua pequena biblioteca em Juazeiro,
Clóvis Moura contribuiu para uma verdadei-
ra revolução copernicana no cânone historio-
gráfico e no marxismo brasileiro. A presença
do negro em nossa sociedade fora até então
reduzida à sua condição histórica de escravi-
zado, e as categorias de explicação, construídas
fora do terreno histórico da luta de classes do
país, se ajustavam à ideologia dominante da
passividade escrava e de sua condição de não
sujeitos (mercadoria). Agora, a revolta urbana
dos malês na cidade de Salvador deixava de ser
um fato isolado, explicado pela defasagem ou
diferença cultural desses africanos em relação à
sociedade nacional (tese defendida, entre ou-
tros, pro Nina Rodrigues, e que mais reflete
a opinião das elites políticas da época que a
N E G R A U T O P I A 99
realidade objetiva dos fatos). Ao contrário, a
Revolta dos Malês é parte de seu contexto his-
tórico permeado de outros levantes e subleva-
ções escravas, numa Bahia marcada por atribu-
lações e disputas políticas na primeira metade
do século XIX. Desde pelo menos a Revolta de
Búzios, em 1798, liderada por negros libertos
e inspirada nos ideais da Revolução Francesa,
a participação negra nos movimentos políticos
de então era um fato incontestável.
Apesar de sua enorme contribuição, por
que o pensamento de Moura é ainda pouco
conhecido? Grosfoguel1
nos fala sobre o boi-
cote das editoras, pela ausência de traduções
e reedições, e das universidades, que omitem
de seus currículos autores que, como Clóvis
Moura, mas também Kwame Nkruman, Man-
ning Marable, C. R. L. James, W. E. B. Du
Bois, Carla Jones, Carol Boyce Davis, Angela
Davis e muitos outros, pertencem a uma tra-
dição marxista negra. Clássicos como Black
Marxism, de Cedric Robinson, publicado em
1983, ainda hoje não ganharam tradução para
o português ou espanhol. Clóvis Moura não
1 Ver Grosfoguel (2018, p. 11).
M A L Ê S 1 8 3 5
100
pode estar fora desta turma de intelectuais pio-
neiros.
O que torna as suas produções desconhe-
cidas é o racismo epistêmico que “constrói
como inferior o pensamento negro e superior
o pensamento branco”2
. Conceitos atualmen-
te em voga no pensamento crítico, como os
de sistema-mundo, colonialidade do poder e
colonialismo interno, têm suas origens negras
ocultadas, como se para serem aceitas e valo-
rizadas necessitassem ser branqueadas, numa
verdadeira operação de extrativismo epistêmi-
co. É interessante observar que o autor enten-
de o marxismo negro “não como uma cor de
pele, mas como um modo de entender o mun-
do”, ou seja, uma perspectiva teórica que se
constitui ao entender a articulação entre “ex-
ploração capitalista e dominação racial”3
. Em
tese, um branco pode assumir essa perspectiva,
mas o faz em muito menor quantidade que
os negros, pois estes confrontam o problema
com mais urgência ao vivenciar o racismo nas
relações cotidianas. Na produção do conheci-
2 GROSFOGUEL, 2018, p. 13.
3 GROSFOGUEL, 2018, p. 18.
N E G R A U T O P I A 101
mento, erguem-se barreiras diferentes para ne-
gros e brancos: para os primeiros, trata-se de
renunciar à ideologia da modernidade que ho-
mogeneíza corpos, tradições e culturas; aos se-
gundos, é necessário reconhecer o seu lugar de
privilégios e como a ideologia da branquitude,
a ele associada, limita a sua visão do todo.
Para Clóvis Moura, no entanto, a superação
de uma teoria social branqueada e eurocêntrica
não irá ocorrer a partir da reafirmação de um
lugar de fala. É a partir da práxis que temos
uma interpretação histórica do racismo como
um fenômeno estrutural e não como epifenô-
meno.4
Percorrer a trajetória da práxis negra é
fundamento de uma episteme decolonial para
superar o fatalismo determinista que fez tábula
rasa das cosmovisões de homens, mulheres e
povos trazidos à força de África.
Vimos, por exemplo, que a cultura trazida
do continente africano foi fator determinante
na experiência desses sujeitos contra o controle
racial do trabalho e sua redução à condição de
mercadorias, seja na rebelião aberta, seja nas
guerras subterrâneas travadas no dia a dia. Para
4 Ver Oliveira (2019).
M A L Ê S 1 8 3 5
102
entender a luta de classes e fugir dos modelos
eurocêntricos e idealistas, é preciso compreen-
der como os sujeitos que tomaram parte dela
se organizaram concretamente, suas motiva-
ções e horizontes históricos. Não se trata de
tentar enquadrar a ação concreta dos sujeitos
em categorias pré-fabricadas, como num jogo
de lego em que as peças devem reconstituir a
imagem da caixa. Ao contrário, são as ações
dos sujeitos que organizam a interpretação e
decolonizam o pensamento na práxis. Como
afirmava o sociólogo Guerreiro Ramos, é um
exercício de saída do “nevoeiro da brancura”,
apenas possível quando acendemos a “luz da
negrura”5
.
Revisitar a Revolta dos Malês é, antes de
tudo, enxergar toda a negrura de nosso pro-
cesso de luta social, valendo-nos tanto da ma-
terialidade das relações quanto do universo
simbólico6
que se impôs , apesar da tentativa
de desumanização característica do escravismo
e da sociedade colonial.
5 RAMOS, 1995, p. 243.
6 “Ver Fanon (2008).
N E G R A U T O P I A 103
Nos dias de hoje, o genocídio
contra o povo negro continua nas
favelas e bairros populares.
M A L Ê S 1 8 3 5
104
Referências
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racismo e encarceramento em massa. São Pau-
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de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp;
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dão. São Paulo: Penguin Companhia, 2010.
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ORSOLON, G. “Rebeliões da Senzala: diálo-
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M A L Ê S 1 8 3 5
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de 1857. São Paulo: Companhia das Letras,
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libertador de escravos e sua mãe libertária, Lu-
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2009.
SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasi-
leira: ou como o país se deixa manipular pela
elite. São Paulo: Leya, 2015.
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de
escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de To-
dos os Santos dos séculos XVII a XIX. Salvador:
Corrupio, 2002.
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Garamond Pro regular e bold em 11,5/15 e
Montserrat para títulos impresso em papel
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Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
E quando lá no horizonte
Despontar a Liberdade;
Rompendo as férreas algemas
E proclamando a igualdade,
Do chocho bestunto
Cabeça farei;
Mimosas cantigas
Então te direi.
Luiz Gama

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Insurreição Negra na Bahia do Século XIX

  • 1.
  • 2.
  • 3.
  • 4.
  • 5.
  • 6. MALÊS 1835 NEGRA UTOPIA Fábio Nogueira Fundação Lauro Campos e Marielle Franco 2019
  • 7. 19-31573 CDD-981.04 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nogueira, Fábio Malês 1835 : negra utopia / Fábio Nogueira. -- São Paulo : Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, 2019. -- (Coleção rebeliões populares ; 1) Bibliografia. ISBN 978-85-61475-05-5 1. Brasil - História - Insurreição dos malês, 1835 2. Insurreições de escravos - Salvador (BA) 3. Negros muçulmanos - História - Bahia I. Título. II. Série. Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Malês : Rebelião : Escravidão : História 981.04 Cibele Maria Dias - Bibliotecária - CRB-8/9427 Coordenação editorial: Ilustrações de capa e miolo: Capa e projeto gráfico: Preparação de Texto: Revisão: Luiz Arnaldo Campos e Carolina Peters Manoel Magalhães Batalha Comunicação Luiz Arnaldo Campos Carolina Peters
  • 8. Apresentação Nota à 1ª edição Introdução O Haiti é aqui Bahia, uma província rebelde Africanos, crioulos e libertos Os malês e a cidade de Salvador Os filhos de Alá vão à luta Repressão e guerras subterrâneas Racismo epistemológico, práxis e luta de classes Referências 9 13 17 21 27 35 53 69 85 95 102 Sumário
  • 9.
  • 10. N E G R A U T O P I A 11 Foram chamados de cabanos, balaios, malês e outras denominações. Para as classes domi- nantes, não passavam de infames e malditos. Tiveram a coragem de se levantar contra seus exploradores e opressores, e por este motivo os poderosos se esforçam em apagar a memó- ria de seus feitos. Na história do Brasil, ensinada na maioria das escolas, não recebem muita atenção. Por- que eram indígenas, negros, mestiços, brancos pobres, mas sobretudo rebeldes dispostos a dar vida para mudar o mundo em que viviam. Para levantar o véu do esquecimento, a Apresentação
  • 11. M A L Ê S 1 8 3 5 12 Fundação Lauro Campos e Marielle Fran- co está lançando a coleção Rebeliões Popu- lares. Em cada volume, trataremos de relatar e decifrar uma dessas insurgências. Da Revol- ta dos Malês à Cabanagem. Da Balaiada ao Quilombo dos Palmares, passando pela Guer- ra do Contestado, Canudos e muitas outras. Para os lutadores e lutadoras de hoje, estes livros trazem os dramas e desafios enfrentados pelos nossos antepassados nos combates con- tra a injustiça e a opressão. São ensinamentos preciosos. Como se sabe, sem memória, não existe amanhã. Boa leitura. Luiz Arnaldo Campos Presidente do Conselho de Curadores Fundação Lauro Campos e Marielle Franco
  • 12. A Brenna, minha preta tucuju.
  • 13.
  • 14. N E G R A U T O P I A 15 O que uma revolta de escravizados e liber- tos islâmicos na cidade de Salvador, em 1835, nos oferece de lições ao momento político atu- al? Essa experiência rebelde colocou sobre a população negra o rótulo de “classe perigosa” e foi a base da ideologia do “bom escravo” e “mau cidadão”, professada pelas elites brancas, que acompanhou o avanço da campanha abo- licionista e, posteriormente, o fim da escravi- dão em 1888. A escravidão e o racismo foram a antessala do capitalismo e do trabalho livre, que aperfeiçoou os mecanismos de controle da população negra e trabalhadora. Falar de raça, Nota à 1ª edição “Não tive tempo para temer a morte” Carlos Marighella
  • 15. M A L Ê S 1 8 3 5 16 no Brasil, é falar de classe. A tortura praticada até hoje nas delegacias de polícia, a turba de linchadores estimulados pelos monopólios da comunicação, o encarceramento em massa, a política de genocídio da juventude negra, a cri- minalização de manifestações artísticas e cultu- rais, como o funk, o rap e os “paredões”, e o ra- cismo religioso praticado contra o candomblé, a umbanda e o tambor de mina explicitam a estrutura da sociedade de classes em nosso país. A burguesia brasileira está voltada, sobretudo, ao controle da população negra e indígena. Será que não existem causas suficientes hoje para a rebeldia? Um governo de extrema-direi- ta e um presidente que compara quilombolas a arrobas de gado? Um governador que diz que ao policial para mirar e “atirar na cabecinha”, em se tratando de comunidades pobres e ne- gras? Um pacote anticrime que irá encarcerar os encarceráveis e matar matáveis da socieda- de brasileira, ou seja, nós, pretos e pretas? São milhares de jovens negros exterminados todos os anos nas periferias deste país. Como dor- mir tranquilo diante de tanto sangue derrama- do? Esta história, conhecemos há séculos. É a
  • 16. N E G R A U T O P I A 17 história de como mutilam nossas famílias. De como confinam os nossos corpos, usam-nos para trabalhar como bestas para enriquecer os outros, ou para divertir e entreter olhos e senti- dos que se alimentam do nosso “exotismo”. De como tentam nos retirar diuturnamente aquilo que nos torna humanos e dignos de amor. Só que não queremos mais sentir dor. Queremos substituir a dor pelo amor. E isso sempre foi visto como ato subversivo. Como afirmam os zapatistas, a luta é como um círculo. Logo, pode-se começar de qualquer lugar e o fim será o mesmo. Ditadores e líde- res autoritários só são derrubados com povo na rua. É verdade que os malês foram derrotados. Mas é possível vencer sem ter lutado? Foi no ato de conspirar e rebelar-se que a utopia negra malê ganhou forma, tornou- -se capaz de dar àqueles sujeitos a perspecti- va completa de sua própria potência. Espero que, ao concluir a leitura deste livro, a palavra rebelião não acabe por adormecer no fundo do seu cérebro. Que ela se inocule através de seus olhos e sentidos e transforme todo o seu organismo, para que possa compreender pelo
  • 17. M A L Ê S 1 8 3 5 18 afeto que você é mais que esse corpo que tra- balha e paga contas. Você é também um corpo rebelde que se expande e procura, desta manei- ra, outros corpos rebeldes para viver desespera- damente a sua utopia e os seus sonhos.
  • 18. N E G R A U T O P I A 19 Este pequeno livro fala a respeito de pesso- as que viveram os riscos e as consequências de suas escolhas. Somente quando corremos o ris- co de escolher, sentimos a realidade das corren- tes que nos prendem. A história da escravidão nada mais é que a genealogia do racismo, o nascimento do capitalismo e da modernidade. Conhecê-la é enxergar a carne sob a pele, o que exige uma atitude política par excelence. Para os rebeldes malês, 25 de janeiro de 1835 não era um dia do calendário cristão, mas 25 de Ramadã A.H. 1250, que marcava o término da principal data do islã. Seguiam uma linha Introdução “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês” Mangueira, Samba-enredo 2019
  • 19. M A L Ê S 1 8 3 5 20 temporal própria, sem por isso desconhecer a cronologia, os feriados e festas católicos. A coexistência de tempos, sentidos e práticas é característica da resistência negra e indígena, como processo histórico, nas Américas e no Caribe. O relógio suíço nada mais é que uma forma grosseira de contar o tempo. O modo como os malês furaram o bloqueio de uma história já previamente cronometrada, por si só, descortina não apenas as forças sociais da escravidão, mas, dialeticamente, como se deu o processo de resistência ao cativeiro. Se a escravidão tentou pela violência física e simbólica pacificar os corpos africanos, é na contramão dessa tendência que poderosas for- ças nasceram do íntimo de sujeitos rebeldes. São como as orações malês que saem das pro- fundezas do espírito e convertem, com altivez, a dor da exploração em vida e desejo de liber- dade. Desta constatação, nasceu o desafio de falar sobre outras línguas e culturas. São línguas e culturas desconhecidas para al- guns, inscrições que tentaram apagar de nossa história, mas que permanecem vivas em nosso inconsciente coletivo, como pavios à espera de
  • 20. N E G R A U T O P I A 21 uma fagulha. São outras lógicas, outras formas de ser e de agir, construídas em nosso passado e presente de resistência. Como parte de nosso eu profundo, surgem em momentos decisivos de dor ou de júbilo, fazendo com que nossos corpos assumam propriedades mágicas. Por isso, na história de resistência dos povos negros e indígenas, se confundem tempos, culturas, línguas e crenças que confluem a partir da es- cravidão e contra ela. A rebeldia é um relógio sem ponteiros.
  • 21.
  • 22. N E G R A U T O P I A 23 Havia se passado algumas décadas, mas os rumores da rebelião negra que libertou o Haiti do domínio francês (1791-1804), derrotan- do as tropas de Napoleão, ainda repercutiam fundo no Brasil escravista do século XIX. Ao longo desse século, os africanos escravizados e libertos se insurgiram contra as senzalas e a subordinação do trabalho à autoridade do branco. Como no Haiti, tomaram como refe- rência suas culturas africanas, num mosaico de línguas e tradições, que conferiram ao Brasil, às Américas e ao Caribe uma característica de “Torre de Babel”. A luta dos negros contra a O Haiti é aqui
  • 23. M A L Ê S 1 8 3 5 24 escravidão ocorreu num contexto multicultu- ral em que as diferenças étnicas, linguísticas e religiosas foram colocando sinais profundos na história da luta de classes em nosso país. No século XVII, surgiu na Serra da Barriga, localizada nos atuais estados de Pernambuco e Alagoas, o Quilombo dos Palmares, aprovei- tando-se da relativa desorganização do aparato colonial português ante a ocupação holande- sa. Quilombo, palavra de origem banto, após um percurso particular característico a todo e qualquer movimento de caráter popular em nosso país, passou ao nosso léxico como sinô- nimo de rebeldia. O território nacional, em que o escravismo grassou, teve por diferentes caminhos e estra- tégias o quilombo como sociabilidade alter- nativa ao mundo hegemonizado pelos valores brancos. Tal denominação de negro rebelde coube aos nagôs ou, mais especificamente, aos malês, do século XIX, tornando estas palavras, assim como baiano, sinônimo de rebeldia e in- subordinação. A resistência ao escravismo, como muito bem apontou Clóvis Moura, não foi algo epi-
  • 24. N E G R A U T O P I A 25 sódico, mas uma condição permanente. Em momentos distintos e a partir de diferentes estra- tégias, a luta negra atribuiu significados próprios à ideia de liberdade, autonomia e autogoverno. Nos canaviais da Bahia, vidas humanas eram entregues ao trabalho forçado, sem remunera- ção e submetidas a castigos físicos inenarráveis. A conversão obrigatória ao cristianismo tenta- va apagar e desumanizar sujeitos com história, cultura e tradições. Após tentativas frustradas, ao longo do século XIX, de levantar os enge- nhos do Recôncavo e tomar a cidade de Sal- vador, os negros protagonizaram uma revolta urbana sem precedentes que estalou bem no coração da Roma Negra. Esta insurreição con- tou com a presença de escravizados e libertos malês, ou seja, islâmicos. O tecido urbano era bem conhecido pelos ne- gros de ganho, que controlavam posições estra- tégicas no comércio da cidade, principalmente na sua relação com o Recôncavo. Foi através da sua vivência pelo território de Salvador que os malês avaliaram estar em condições de saírem vitoriosos. Para isso, contavam não apenas com contatos no Recôncavo, mas também com nu-
  • 25. M A L Ê S 1 8 3 5 26 merosos escravizados nos canaviais, perfazendo uma rede entre escravizados e libertos urbanos embalados pela fé islâmica. A Revolta dos Malês é o mais importante le- vante urbano de negros do país e, portanto, um dos principais momentos da resistência ne- gra contra o escravismo. Foi protagonizada por escravos anônimos numa sociedade excludente e racista, onde a presença africana era ao mes- mo tempo desprezada e temida. Eram pessoas que carregavam em suas mentes e corações as experiências de viver em um continente rico e próspero, que começava a ser devastado por guerras e conflitos para atender aos interesses das elites locais e coloniais. Como muito bem caracterizou Walter Rodney, foram testemunhas do processo de “subdesenvolvimento africano” funcional ao avanço do capitalismo e sua consolidação na Europa. A situação de exploração do trabalho e a tentativa de colonização de suas mentes en- controu como resposta, entre os malês, uma organização religiosa e política que declarou “guerra aos brancos” e ousou enfrentá-los. Apresentar a trajetória desta negra utopia
  • 26. N E G R A U T O P I A 27 nascida do coração da sociedade escravista, ou seja, de sua contradição básica e fundamental, levada a cabo por homens e mulheres distantes milhares de quilômetros de seu continente de origem, é importante para entender os nexos que ligam as lutas do passado às do presente.
  • 27.
  • 28. N E G R A U T O P I A 29 A escravidão era o principal negócio e fonte de renda da província da Bahia no começo do século XIX. A capitania que se tornou expor- tadora de algodão, açúcar, fumo e cacau batia recordes na importação de escravizados africa- nos. Entre 1813 e 1816, as exportações baia- nas cresceram 90,3% e, no mesmo período, a economia escravista expandiu a importação de africanos para atender a plantações baseadas na monocultura, principalmente a de cana, na região do Recôncavo1 . Era uma sociedade 1 Ver Oliveira Jr (2008, pp. 65-74). Bahia, uma província rebelde
  • 29. M A L Ê S 1 8 3 5 30 escravista com forte concentração de renda, na qual os critérios de sua distribuição obede- ciam a uma hierarquia racial, sendo os negros, de longe, a classe mais explorada e espoliada. Porém, ao contrário do que possa parecer, não podemos naturalizar a condição subal- ternizada do negro na produção da sociedade escravista. Em seus estudos sobre o encarce- ramento em massa nos Estados Unidos, Mi- chelle Alexander chama a atenção para o fato de que no início da colonização, no século XVII, negros e brancos pobres eram subme- tidos a regimes semelhantes de trabalho com- pulsório. Inclusive, houve movimentos e co- alizões inter-raciais, que tinham por objetivo derrubar o regime da economia de plantation. Foi como reação às possíveis alianças en- tre negros e brancos que a instituição pecu- liar (como a escravidão ficou conhecida nos EUA) ganhou contornos racializados, e a segregação e controle dos cativos negros por parte das autoridades conferiu status superior à população branca e pobre da colônia. Para a autora, somente em meados de 1770 é que “o sistema de trabalho compulsório havia sido
  • 30. N E G R A U T O P I A 31 completamente transformado em um sistema de castas raciais baseado na escravidão”2 . Seja como for, essa estrutura de produção em que a cor da pele estabelece a posição do sujeito na hierarquia social e oferece a ele sta- tus diferenciados já estava bastante consolida- da na Bahia no começo do século XIX. Apesar de sua importância, as economias canavieira e dos engenhos não eram as únicas que utilizavam força de trabalho escravizada. Na construção de prédios e fortificações, na prestação de serviços domésticos e outras ta- refas imprescindíveis ao desenvolvimento de uma cidade que crescia com a prosperidade da economia de exportação, os escravizados eram indispensáveis; e os arranjos jurídicos e políticos para sua subordinação como merca- doria tornavam-se bem mais complexos. Para tudo a força de trabalho escravizada era usada. Não houve hesitação da elite em expandir a economia calcada na escravidão e fazer importar ainda mais trabalhadores es- cravizados do continente africano. Vivia-se, na Bahia da primeira metade do século XIX, 2 ALEXANDER, 2018, p. 65.
  • 31. M A L Ê S 1 8 3 5 32 o que Clóvis Moura chamou de escravismo pleno. A escravidão nada mais era, naquela constelação histórica, que um projeto de de- senvolvimento concentrador de renda e pro- dutor de desigualdades raciais. Evidentemente, se as classes se organizam em um regime de castas raciais, como acon- teceu nos Estados Unidos, elas possuem uma dinâmica e flutuações naturais ao seu desen- volvimento. Se há um movimento de manu- tenção da sociedade – manifestado por uma estrutura jurídico-administrativa e religiosa –, há também as tendências de mudança que são definidas pela ação dos indivíduos, grupos e frações de classe. A sociedade escravista é marcada por conflitos e contradições. Ela não é um capítulo à parte na história do desenvolvimento do capitalismo, mas a própria história da formação da sociedade capi- talista. Negar suas contradições como modo de produção, reduzindo-a a uma estrutura de castas imutável, é incorrer num erro crasso que só pode ser explicado quando se quer traduzir em termos teóricos nada mais do que o senso comum3 . 3 Ver Souza (2018, p. 41).
  • 32. N E G R A U T O P I A 33 A Bahia, desde o final do século XVIII, com a Revolta de Búzios (1798) teve entre os ne- gros – como classe mais espoliada – atentos leitores da conjuntura política. Os movimen- tos antilusos, os motins militares e as revoltas federalistas que marcaram a política da pro- víncia sempre tiveram a participação ativa de libertos e escravizados, esposando diferentes líderes, projetos e ideologias. A emancipação política do Brasil de Portugal, que na Bahia foi efetivado em 2 de julho de 1823, com a expulsão das tropas portuguesas da província, teve a participação de indígenas e de negros e negras, o que, pelo menos da perspectiva desses, conferiu ao movimento um caráter popular. Em outros casos, como na Sabina- da, houve uma tentativa tímida de mexer na escravidão ao projetar “libertar os escravos crioulos que pegassem em armas pela revo- lução”4 . Nesses movimentos, principalmente nos antilusos, era inegável o componente ra- cial. Na sociedade escravista, o europeu é o branco, independente da origem, algo que permanece até os dias de hoje. 4 REIS, 2003, p. 64.
  • 33. M A L Ê S 1 8 3 5 34 Apesar de importantes, esses movimentos – com a exceção da Revolta de Búzios (1798) – não ousaram profanar a “vaca sagrada” da escravidão, o que já não pode ser dito do ciclo de revoltas escravas (1807-1835). Embora al- gumas dessas revoltas não tenham passado da fase da conspiração, limitadas ou circunscri- tas a libertar os escravizados de um engenho, propriedade ou senhor, elas ousaram subver- ter a essência da exploração econômica basea- da na formação de uma casta de trabalhadores negros escravizados. Para João José Reis, “essa insubmissão permanente criou uma tradição de audácia que impregnava as relações escra- vistas da Bahia nesse período”5 . Assim como a província, os escravizados baianos também ganharam fama de rebeldes e insubmissos. Porém, rebeldia à parte, nem sempre negros e negras se reconheciam como pertencentes a uma mesma classe. A estrutu- ra da sociedade escravista não era, por assim dizer, simples ao ponto de excluir as dife- renças étnicas, culturais e de status, algumas delas institucionalizadas e arbitradas por leis. 5 REIS, 2003, pp. 68-69.
  • 34. N E G R A U T O P I A 35 Essa constatação, contudo, não tornou esses movimentos imunes às mudanças pelas quais passou a sociedade ao longo do tempo, nem significou que não existissem vanguardas da classe, ou seja, negros desejosos de subverter a ordem.
  • 35.
  • 36. N E G R A U T O P I A 37 Uma interpretação possível da sociedade es- cravista é tomar sua oposição entre senhor e es- cravos in extremis, excluindo toda sorte de ca- madas ou grupos sociais que caracterizam a vida em qualquer sociedade humana. É importante refletir até que ponto a ideia de que as socieda- des pré-modernas, como a sociedade medieval ou a sociedade de castas indiana, são socieda- des estáticas é uma realidade factual ou imagem reflexa alimentada pelas burguesias coloniais modernas. Toda coletividade humana, por mais simples que seja, possui uma história, práticas e instituições que são resultado de interações Africanos, crioulos e libertos
  • 37. M A L Ê S 1 8 3 5 38 que ocorrem no cotidiano e as modificam. Parafraseando Marx, no Manifesto Comunis- ta, se a história da humanidade é a história da luta de classes, a sociedade capitalista moderna não é a única a ter a dialética como princípio. Porém, se por um lado é necessário reconhecer que a estrutura de classes no escravismo é mais complexa, por outro lado, o fato de estar base- ada no controle racializado do trabalho e dos corpos negros estabelece uma contradição his- tórica (brancos e não brancos) que a atravessa de forma inelutável e perdura até os nossos dias. No levantamento feito por João José Reis1 , os 60% mais pobres da cidade de Salvador, en- tre 1800 e 1850, dispunham de míseros 6,7% da renda, enquanto os 10% mais ricos contro- lavam 66,9% das riquezas. Entre esses extre- mos, havia uma classe intermediária de 30% da população, que detinha 26,4% das riquezas. Como a classe mais explorada, os negros repre- sentavam 71,8% da população da cidade de Salvador em 1835. O pertencimento ou não à raça negra determinava o acesso do indivíduo à renda, o que, nas condições de penúria de uma 1 Ver Reis (2003, p. 30).
  • 38. N E G R A U T O P I A 39 economia monocultora e escravista, contribuiu para que os negros se lançassem contra a ordem escravista ou, pelo menos, procurassem reduzir seus efeitos negativos. A escravidão, para o ne- gro em geral, era sinônimo de pobreza e misé- ria. Porém, como dissemos, ver-se como negro era uma condição histórica imposta pelo regi- me de exploração escravista. Entre os africanos escravizados e livres há uma diversidade de grupos étnicos e religio- sos (mandingas, fulani, huassás, angolas, jejes e nagôs). A luta contra o cativeiro contou com o protagonismo desses diferentes grupos. Cada um, a cada episódio, hegemonizando o movi- mento insurrecional, mas raramente de forma isolada e à parte de demais. Os angolas, por exemplo, séculos antes haviam protagonizado a formação do Quilombo dos Palmares, graças ao qual o termo banto, que remete a uma or- ganização militar africana, se consagrou como forma de denominar toda e qualquer comu- nidade de negros fugidos da escravidão2 . Não obstante a cooperação em terras brasileiras, parte desses grupos teve entre si, no continen- 2 Ver Gomes (2005).
  • 39. M A L Ê S 1 8 3 5 40 te africano, um histórico de disputas e confli- tos abertos, até mesmo bélicos, o que nas con- dições do escravismo deu espaço a rivalidades não menos significativas. A adesão maior ou menor a um movimento insurrecionista de- pendia do grupo que o liderava. No caso do levante dos malês, o predomínio nagô não prescindiu a presença jeje e haussá, mesmo que pequena. Mas os haussás, que em 1807, lideraram uma conspiração, franquea- ram menor apoio ao levante de 1835. A proclamação dos principais líderes malês de “guerra aos brancos”, por sua vez, tornou menor a adesão dos demais grupos étnicos africanos. Mas, certamente, se os planos de “guerra aos brancos” dos malês dessem certo, muitas das reservas seriam dissipadas em nome de uma possível liberdade. Apesar da forte pre- sença nagô no levante de 1835, apenas uma pequena parcela dos 6.500 escravizados nagôs naquele ano tomaram parte na insurreição3 . Importa destacar aqui o fato de a insurreição ter sido o método adotado pelos negros baianos no começo do século XIX. Em termos concre- 3 Ver Reis (2003, p. 349).
  • 40. N E G R A U T O P I A 41 tos, a ideia era, a partir de um núcleo inicial, começar um levante que conseguisse mobilizar o maior contingente possível de pessoas. Le- vantar os negros de um engenho, por exem- plo, tinha o significado político de estimular que outros fizessem o mesmo e, assim, com o movi- mento ganhando força, conformar uma for- ça social suficiente para se estabelecer como alternativa para os cativos. Isso não está em contradição com o surgimento de quilombos e comunidades negras tradicionais, devotadas à religião dos Orixás e aos cultos dos ancestrais africanos. Como veremos, entre os malês, a tática insurrecional assumiu particularidades quanto à sua estratégia de combate, formação de redes conspirativas e meios de mobilização. Entre escravizados africanos e crioulos (es- cravizados nascidos no Brasil) havia diferen- ças e rivalidades estimuladas pelos senhores de escravos, que enfatizavam a melhor inte- gração dos crioulos à sociedade nacional e, por extensão, uma maior adaptação destes à exploração do trabalho. Capitães do mato e guardas permanentes, por exemplo, que per- seguiam e reprimiam os escravizados fugidos,
  • 41. M A L Ê S 1 8 3 5 42 eram recrutados entre os crioulos, tidos como mais confiáveis que os africanos. Em 1835, os escravizados libertos e livres nascidos no Brasil (crioulos) eram pouco me- nos de 40% da população de Salvador e mais de 50% dos negros e mestiços. Porém, como aconteceu nos movimentos anteriores, não franquearam apoio à rebelião malê4 . Os criou- los estavam distantes da gramática das lutas malês, seja por se considerarem nacionais (e não africanos), seja por não estarem tão inse- ridos na estrutura religiosa malê, o que pode tê-los feito duvidar das intenções do levante. Como João José Reis sinaliza, havia um com- ponente anticrioulo e antipardo entre alguns rebeldes malês, já expresso em revoltas anterio- res, que causou a desconfiança de que, uma vez consumada a “morte aos brancos”, eles seriam os alvos posteriores. Apesar de crioulos participarem ativamente dos movimentos que agitaram a província no começo do século XIX, não tiveram o mesmo entusiasmo em relação às insurreições lideradas pelos africanos. A insurreição não foi a tática 4 Ver Reis (2003, p. 319).
  • 42. N E G R A U T O P I A 43 adotada pelos crioulos contra a escravidão; op- tavam antes por negociações e táticas de sabo- tagem que afrouxassem as rédeas do controle racial do trabalho escravo5 . Algo que causou escândalo entre as autorida- des na época foi a presença de libertos africa- nos na insurreição malê. Enfatizou-se a unidade entre libertos e escravizados como africanos, ou seja, como comunidade segregada em relação aos nacionais (brancos e crioulos). Havia para esses libertos, portanto, uma diferença cultu- ral intransponível com a sociedade nacional, o que explicaria seu envolvimento no levante. Além disso, as relações étnicas, culturais e de parentesco com os cativos também contribuíam para que se vissem como parte de uma mesma comunidade. Contudo, a resposta parece estar na própria precariedade da condição de liberto, que não os tornava livres da fiscalização e con- trole pelas autoridades da época. Em alguns ca- sos, quando o liberto não conseguia comprovar sua condição, poderia ser reescravizado, ou seja, voltava à posição de cativo. Mesmo em se tratando de pessoas nascidas 5 Ver Reis (2003, pp. 319-325).
  • 43. M A L Ê S 1 8 3 5 44 livres, existiram situações de escravização. Não eram raras e foram muito bem retratados no filme 12 anos de escravidão, baseado no livro au- tobiográfico do escritor abolicionista afro-ame- ricano Solomon Northup (1808-1863), pu- blicado originalmente em 18536 . Na trama, Northup é um violonista que vivia com sua es- posa e dois filhos em Nova Iorque. Nos Estados Unidos, pela proibição do tráfico transatlântico, negros livres do Norte eram atraídos e seques- trados para trabalhar nas fazendas do Sul escra- vocrata. O protagonista só consegue retornar à liberdade depois de uma demanda judicial que pôs fim a doze anos de humilhações e explora- ção da sua força de trabalho em uma fazenda na Louisiana. No Brasil, o caso mais conhecido talvez seja o que envolveu um personagem importante da nossa história: Luiz Gama (1830-1882). Filho de Luísa Mahin – também uma figura icôni- ca para o movimento negro brasileiro – e de um fidalgo português, Luiz nasceu livre. Aos 10 anos de idade, foi vendido pelo próprio pai para pagar uma dívida de jogo. Remetido a São 6 Ver Northup (2014).
  • 44. N E G R A U T O P I A 45 Luiz Gama, advogado negro abolicionista, libertou nos tribunais inúmeros escravos. Era filho da malê Luísa Mahin.
  • 45. M A L Ê S 1 8 3 5 46 Paulo no vapor Saraiva, caminhou do porto de Santos a Campinas e foi recusado por vários compradores por se tratar de um baiano, o que já era sinônimo de escravizado rebelde. Depois se ser comprado por um senhor da cidade de Campinas, Luiz Gama conseguiu aprender a ler e escrever. Com o passar dos anos, estudou as leis e se tornou rábula (advogado sem diploma), conseguindo provar nos tribunais que nascera livre. Dessa maneira, se tornou a mais célebre figura do abolicionismo brasileiro. Republicano e abolicionista, empreendeu diversas deman- das judiciais e conseguiu na justiça a liberdade para centenas de negros, escravizados como ele fora um dia7 . Apenas recentemente a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo concedeu a ele o título post-mortem de advoga- do. A separação de sua mãe, Luísa Mahin, foi uma profunda cicatriz na trajetória do poeta, advogado e abolicionista negro que, apesar de seus esforços, nunca conseguiu reencontrá-la. Apesar de ter sido apontada pelo filho como uma das rebeldes malês, João José Reis8 não 7 Ver Azevedo (1999); Gama (2011); Silva (2009). 8 Ver Reis (2003, pp. 301-303).
  • 46. N E G R A U T O P I A 47 encontrou documentos que comprovem a participação de Luísa no levante de 1835. Mas a afirmação de Gama, seguida por outros his- toriadores, da participação de Luísa Mahin na Revolta dos Malês não pode ser vista como uma mera mistificação histórica. Pode-se falar de uma menor, mas constante participação fe- minina nas sublevações negras da Bahia do século XIX. Do ponto de vista demográfico, o fluxo de africanos em Salvador contribuiu com a desigual distribuição entre os sexos na cidade, sendo a população masculina numeri- camente superior à feminina. Entre os africa- nos, implicados na totalidade das rebeliões, a proporção era ainda maior9 . Apesar da estrutura patriarcal do islã, seguin- do uma tradição de resistência que teve como destaque a negra Zeferina, líder do Quilom- bo do Urubu, em 1826, as mulheres também se fizeram presentes na revolta de 1835. Em seu depoimento sobre o levante, a liberta Gui- lhermina narrou que em uma casa da rua de Guadalupe, um grupo de negros se reunia sob a liderança de Vitório Sule, enquanto “uma 9 Ver Reis (2003, p. 26).
  • 47. M A L Ê S 1 8 3 5 48 mulher nagô [...] cujo nome na África era Edum” carregava seu filho nas costas; e que, pela manhã, a mesma mulher havia comprado inhames. Segundo o relato, os inhames com- prados por Edum eram para o mestre Ahuna – apontado como grande liderança da rebelião e que nunca foi localizado –, e esta teria afir- mado que só sairia dali “quando fosse a hora de tomar a terra”. A postura de Edum impres- sionou, pois teria revelado que o plano malê era o de “matar os brancos”, que seriam ataca- dos por um grupo de negros armados quando “da hora do toque de alvorada dos soldados”10 . Edum foi uma das mulheres que tombaram na madrugada do dia 25 de janeiro de 1835. Muitas mulheres negras seriam ainda impli- cadas no processo de repressão que se seguiu ao levante, sendo inclusive deportadas para a África. Voltando aos libertos, eles podiam manter-se ligados à comunidade de cativos por relações familiares ou de parentesco. Não era incomum que mães negras comprassem sua própria alfor- ria e depois continuassem a reunir recursos para 10 Verger, 2002, p. 366.
  • 48. N E G R A U T O P I A 49 comprar a liberdade de seus esposos e filhos. Existiram, inclusive, instituições formadas por negros dedicadas a esse trabalho, como a Socie- dade Protetora dos Desvalidos (SPD), fundada em 16 de setembro de 1832 na cidade de Salva- dor por iniciativa de Manoel Victor Serra, um africano livre e ganhador no canto da Preguiça (os trabalhadores de ganho eram negros e liber- tos, prestadores de diversos serviços urbanos). A decisão de criá-la foi tomada entre ele e mais alguns amigos, reunidos em 10 de setem- bro de 1832, três anos antes do levante malê, na Capela dos Quinze Mistérios. Segundo Pierre Verger11 , dezenove africanos libertos foram os fundadores da Sociedade; eles exerciam dife- rentes atividades (marceneiro, pedreiro, calafa- te, carregador de água, carroceiro, vendedores etc.), e alguns atuavam em diferentes cantos (locais onde se concentravam os negros de ga- nho) da cidade de Salvador. Apesar das aparências católicas, “inúmeros membros daquela confraria [a SPD] eram ao mesmo tempo cristãos e muçulmanos”. Para o autor, isso ocorria porque muitos africanos es- 11 Ver Verger (2002, p. 547).
  • 49. M A L Ê S 1 8 3 5 50 cravizados que eram islâmicos em suas terras “foram obrigatoriamente batizados na religião católica” quando chegaram ao Brasil, mas con- tinuaram “às escondidas a recitar suas preces a Alá”12 . A SPD, além de levantar fundos para a compra de alforrias, também prestava auxílio em caso de doenças e morte, desenvolvendo ações pioneiras junto à comunidade negra de Salva- dor, mantendo-se ativa até os dias de hoje. Porém, é necessário ter em mente que a con- dição de liberto não significava uma indepen- dência plena em relação aos antigos senhores e às autoridades. Por exemplo, a Lei do Ventre Livre, de 1871, estabelecia a liberdade para os nascidos a partir daquela data, mas submetida a uma série de normatizações que, na prática, mantinham o nascituro subordinado à engre- nagem das relações escravistas. A lei definia que a criança deveria ser educada pela mãe e es- tar subordinada ao seu senhor até os oito anos. Ao atingir essa idade, eram colocadas duas op- ções: ou o senhor recebia uma indenização do Estado, ou teria o direito de usufruir do tra- balho da criança até os 21 anos. Geralmente, 12 Verger, 2002, p. 548.
  • 50. N E G R A U T O P I A 51 o senhor optava por ficar com o menor e se estabelecia assim, por outros meios, uma nova forma de escravidão13 . Até 1865, as alforrias eram revogáveis de acordo com a vontade do senhor, e não era raro que, uma vez concedida a liberdade ao cativo, fosse estipulado que ain- da deveria obediência e submissão a seu antigo senhor. A compra das alforrias pelos escraviza- dos poderia ser feita a prazo, em um sistema de pagamento parcelado, no qual permaneciam cativos até pagar a dívida com seu senhor14 . A diferença entre crioulos e africanos, por sua vez, também tinha repercussões na comu- nidade dos libertos. A Constituição Brasileira de 1824 reconhecia a condição de cidadão bra- sileiro por nascimento dos alforriados crioulos. Já os africanos, uma vez alforriados, só teriam reconhecida a sua cidadania após um processo de naturalização, tal como os demais estran- geiros. Além disso, os direitos dos cidadãos alforriados, fossem crioulos ou africanos, eram limitados em relação aos dos demais. O voto censitário (era necessário comprovar um deter- 13 Ver Mattoso (2003, p. 177). 14 Ver Mattoso (2003, pp. 180-184).
  • 51. M A L Ê S 1 8 3 5 52 minado rendimento anual para acessar o direi- to) só era permitido aos alforriados nas eleições primárias, o que os impedia de se candidata- rem a cargos eletivos. Quando fossem servir às forças armadas, só poderiam permanecer na condição de soldados, sendo vedado subirem na hierarquia militar, salvo em alguns casos es- pecíficos15 . As relações entre africanos, crioulos e liber- tos eram tensas, e suas alianças tão promissoras quanto frágeis. Isso não significa que essas rela- ções deixassem de existir, já que como negros eram empurrados à condição de subalternos da estrutura social escravista. Desse ponto de vista, as oposições entre eles não eram maiores do que as mantidas com a sociedade branca. Mas eram relações problemáticas sobretudo no momento de tornar o desejo de liberdade ação, ou seja, traduzir em movimento o que já exis- tia em potência no plano das ideias. Este é um ponto chave. O entendimento de que existe um momento certo em que todas as condições ideais estarão juntas, como quem es- pera os grãos de açúcar se reunirem no fundo 15 Ver Mattoso (2003, pp. 200-201).
  • 52. N E G R A U T O P I A 53 da xícara após serem agitados por uma colher, é por princípio antidialético. Não se para a trajetória de uma bola para analisar seu movi- mento. As coisas realmente são quando acon- tecem. Ao colocarem seus planos em marcha, os malês deram a essas contradições um sentido de transformação cujo resultado não poderiam antecipar. Assim o fizeram, pois tiveram fé.
  • 53.
  • 54. N E G R A U T O P I A 55 O termo malê tem pelo menos duas origens: a primeira, malãm, que na língua haussá sig- nifica clérigo ou mestre; a segunda, a palavra imalê, que em iorubá é sinônimo de muçul- mano1 . O islamismo na Bahia concorria, nas comunidades africana e afro-baiana, com os cultos dos Orixás nagôs, dos voduns jejes, dos iskösiki haussás e dos inquices angolanos, o que denota a diversidade religiosa dos grupos étnicos que aportaram em solo soteropolitano na esteira do tráfico transatlântico. Além disso, 1 Ver Reis (2003, p. 175). Os malês e a cidade de Salvador
  • 55. M A L Ê S 1 8 3 5 56 os malês traziam de África, além de experiência no proselitismo religioso, conhecimento mili- tar em conflitos que opuseram diferentes gru- pos étnicos e religiosos e redundaram, no iní- cio do século XIX, na queda da cidade de Oyó, capital do império iorubá. O islamismo, como religião universalista, não estabelece fronteiras étnicas entre seus se- guidores. É importante lembrar que em África (e no Brasil) eram os haussás, mandingas e fu- lani – não os nagôs – os grupos mais identi- ficados com a fé em Alá e o profeta Maomé. Porém, na Bahia, foi sobretudo entre os escra- vizados nagôs, alguns dos quais em África já eram islâmicos, que o proselitismo malê en- controu maior número de fiéis. Dessa manei- ra, os malês não eram um grupo étnico, por mais que, na Bahia, os nagôs fossem seus prin- cipais adeptos. O tráfico transatlântico incrementou a pre- sença de africanos escravizados e, dentre eles, dos adeptos do islamismo, que representavam, em 1835, ano da Revolta dos Malês, entre 15 e 20% dos africanos recém-chegados à Bahia2 . 2 Ver Reis (2003, p. 177)
  • 56. N E G R A U T O P I A 57 A presença dos malês na cidade se manifes- tava na popularização das bolsas de mandin- ga (amuletos com orações escritas em árabe com pequenas passagens do Alcorão), nas tá- buas de leitura (utilizadas pelos mestres mais antigos para o estudo corânico), no uso dos abadás (túnicas brancas), dos kendés (anéis ma- lês), tecebás (rosário para orações malê) e nos encontros e banquetes promovidos pela comu- nidade. As bolsas de mandinga ou patuás malês da- vam proteção contra os inimigos e infortúnios, e fizeram muito sucesso no mercado religioso de Salvador, sendo usadas por outros grupos em busca de proteção espiritual e livramentos. Existiam os que, com expertise e conhecimen- to religioso, viviam de escrever em língua ára- be as orações que eram inseridas nos amuletos, a exemplo dos breves e escapulários católicos. Os abadás – termo até hoje usado pelos blocos do carnaval de Salvador – eram roupas ritu- ais associadas a práticas religiosas dos malês, às quais as autoridades se referiam como “roupas de guerra”3 . Essas túnicas de algodão branco 3 REIS, 2003, p. 206.
  • 57. M A L Ê S 1 8 3 5 58 denotavam a preocupação com a limpeza e pu- reza característica dos malês. Sobre as tábuas de leitura, Manuel Querino afirma serem “quadros de madeira à imitação das tábuas de Moisés, servindo-se para isso de uma tinta azul, mineral, importada da África; depois lavavam os quadros e davam a beber a água como indispensável para fechar o corpo”4 . De todos os ângulos, vão emergindo as prá- ticas mágico-religiosas dos malês que tiveram papel determinante no soerguimento de espíri- tos alquebrados pela dura realidade da explora- ção escravista. O uso de amuletos, dos abadás e da água para “fechar o corpo” deu aos insur- retos propriedades espirituais para enfrentar uma estrutura social que os queria reduzir a mercadorias e instrumentos de trabalho. Eram filhos de Alá e estavam sob a sua proteção. Va- leria a pena, portanto, correr os riscos de uma insurreição a continuar no cativeiro. Na cidade do Salvador, a estrutura do pro- selitismo malê reproduziu a experiência re- ligiosa africana das casas de oração e escolas corânicas, formadas sob a tutela de um mestre 4 QUERINO, 2010, pp. 94-95.
  • 58. N E G R A U T O P I A 59 ou discípulo mais antigo nas moradias e locais de trabalho dos africanos5 . Alufás e mestres, como Pacífico Licutã, Luís Sanin, Dassalu, Gustard, Nicobé e o comerciante haussá Dan- dará usavam os cantos e suas moradas, ou as de seguidores, para propagar lições islâmicas e realizar celebrações. Manuel Querino descreve diferentes mo- mentos de celebração e dos rituais malês: fazer sala (oração da manhã e da noite), sará (chama- da por ele de missa malê), amurê (casamento) e o grande jejum anual por ocasião do Ramadã. Este se iniciava com a festa do Espírito Santo e obedecia ao calendário lunar, ou seja, deve- ria durar o intervalo de tempo entre duas luas novas6 . Os banquetes, por sua vez, eram parte de cerimônias religiosas e ligados ao calendá- rio islâmico. Além da comensalidade caracte- rística, eram um lugar de sociabilidade entre homens escravizados e afirmação de compro- misso com a comunidade malê. A presença dos mestres e líderes religiosos conferia aos banque- tes um caráter solene e a certeza, aos inicia- 5 Ver Reis (2003, p. 223). 6 Ver Querino (2010, pp. 94-100).
  • 59. M A L Ê S 1 8 3 5 60 dos, de pertencerem a uma comunidade onde seriam respeitados e estimados, apesar de toda tentativa de subjugação da máquina de moer gente do escravismo. Os malês se distinguiam entre o conjunto da comunidade africana de Salvador. Eram asso- ciados, já em África, ao deus iorubano Oxalá, e todos os mulçumanos eram considerados fi- lhos do Orixá nagô. O uso da túnica branca, o não consumo de álcool e os hábitos ligados a pureza e limpeza, entre os malês, fizeram com que fossem associados ao Orixá fun-fun, o deus que veste branco e tem como sua festa princi- pal as Águas de Oxalá, em dezembro. As Águas de Oxalá são celebradas anualmente nos terrei- ros de candomblé e fazem referência a um itan (mito iorubano) da visita do Orixá fun-fun a seu filho, Xangô, rei da cidade de Oyó:
  • 60. N E G R A U T O P I A 61 Antes de partir em visita ao filho, Oxalá se consulta com o adivinho, sendo alertado para não fazer a viagem. Como insiste em viajar, o adivinho orienta a divindade a levar três fardos de roupa branca. Durante o trajeto, ele é por três vezes enganado por Exu, que suja suas roupas. Quando finalmente chega a Oyó, é confundido com um ladrão e preso pelos soldados de Xangô. Sem dizer nada, Oxalá, de sua cela, decide que o povo de Oyó merece uma lição por tamanho desrespeito. Seguiram-se sete anos de seca e fome, e tanto os campos quanto as mulheres do reino de Xangô ficaram estéreis. Xangô, desesperado com os acontecimentos, consulta o adivinho, que lhe informa haver alguém preso injustamente. Ao visitar a prisão, o rei reconhece seu pai, Oxalá, apesar de encontrá-lo sujo e maltrapilho. Ordena que o lavem e o vistam com roupas brancas alvíssimas, observando absoluto silêncio, em respeito ao Orixá. Todos se vestem de branco, inclusive Xangô, que oferece enfim um banquete em celebração à visita do pai.7 7 Ver Prandi (2001, pp. 520-521).
  • 61. M A L Ê S 1 8 3 5 62 Na festa, realizada no mês de dezembro, é observado o silêncio respeitoso a Oxalá, assim como a água simboliza a purificação entendida em termos sagrados e religiosos8 . Existe ainda outro itan de Oxalá, que estabelece a interdi- ção do consumo do vinho de palma por parte de seus descendentes9 . Seus filhos, portanto, não devem ingerir bebidas alcoólicas, ao modo como praticam os membros da comunidade islâmica. Segundo Manuel Querino, os malês eram conhecidos por sua “inteligência, mode- ração, sobriedade e calma na conversação”10 . O título de malê era honroso e significava “ser respeitado pelo uso da escrita, pelo acesso a efi- cazes conhecimentos mágicos ou por pertencer a um grupo de reconhecido prestígio em Áfri- ca”, condição que era também vista como arro- gância ou orgulho, provocando “animosidades entre malês e os demais africanos”11 . Os malês 8 Ver Rodrigues (2001). 9 Ver Prandi (2001, pp. 503-506). 10 QUERINO, 2010, p. 93. 11 REIS, 2003, p. 249.
  • 62. N E G R A U T O P I A 63 se destacavam entre os africanos por uma cos- movisão estruturada pelo estrito respeito aos rituais e celebrações coletivas, e se distinguiam pelo uso de vestimentas, da escrita, de símbo- los que denotavam sua posição na comunidade negra, além do uso de mecanismos mágico-re- ligiosos capazes de proteger contra os infortú- nios e perigos de uma sociedade estratificada e segregada racialmente. Do ponto de vista da sociedade branca, os malês eram foras da lei. Se no protestante Estados Unidos dos anos 1950-60 causou perplexidade e apreensão o surgimento de grupos de negros islamizados, como a Nação do Islã, e de líderes muçulma- nos, como Malcolm X, algo semelhante ocor- reu no Bahia do século XIX. Basta lembrar que a Constituição de 1824, outorgada por D. Pedro I no pós-independência, estabelecia o catolicismo como religião oficial. O respeito e status adquirido pelos malês junto à comunidade africana não os livrou de, como os demais grupos étnicos, sofrerem o jugo do escravismo e de suas diferentes formas de controle do trabalho. O que a rede malê fez foi fortalecer o sentido de pertencimento
  • 63. M A L Ê S 1 8 3 5 64 a um grupo de africanos letrados que conse- guiram, nas condições adversas da cidade de Salvador, reconstituir a estrutura do proseli- tismo religioso islâmico aprendido em Áfri- ca. Desta maneira, a religião foi o catalisador, principalmente entre os nagôs, da insatisfação com a exploração do trabalho e a condição de cativos. Levou conforto espiritual e esperança a pessoas que haviam sido presas e escravizadas em território africano e levadas à força para o outro lado do planeta, para servirem de força de trabalho e serem vendidas como mercadoria a senhores brancos. “Resgata-nos desta cidade, cujo povo é opres- sor”, estava escrito em um amuleto malê usado por um dos rebeldes que tombou em luta12 . Era uma oração a Alá para que resgatasse seus filhos da infeliz sina de servirem como escravos nas Américas, numa cidade que se alimentava de vidas negras e fazia delas a base de sua ri- queza e opulência. Não se sabe se os assim de- signados opressores eram apenas os brancos, ou se também pardos e crioulos estavam inclu- ídos como seus colaboradores. Mas não resta 12 REIS, 2003, p. 232.
  • 64. N E G R A U T O P I A 65 dúvida que os malês se viam como oprimidos, dignos das graças divinas porque “aqueles que creem amam a deus de modo mais forte”13 . Amuletos com figuras cabalísticas e livretos dos rebeldes malês fazem referência à prote- ção de Alá para que tivessem sucesso na luta. Eram textos religiosos, mas com forte sentido libertador para uma comunidade de cativos, distantes milhares de quilômetros de seu con- tinente de origem e submetidos a um regime de exploração onde só havia, por parte da so- ciedade branca, desprezo por sua cultura e co- nhecimento. A pregação malê ganhou espaço e adeptos na cidade de Salvador, confundindo-se com sua paisagem e estabelecendo-se nos espaços de trabalho e moradia, tornando-se um ponto de apoio e articulação entre africanos libertos e escravizados, mesmo pertencentes a diferen- tes grupos étnicos. As condições para a rebe- lião malê se tornavam maiores à medida que a religião se expandia. Como vimos, em 1807, conspiradores haussás lideraram um movimen- to conclamando, como fizeram os malês em 13 REIS, 2003, p. 187.
  • 65. M A L Ê S 1 8 3 5 66 1835, a “morte aos brancos”, mas tendo como alvo os engenhos de cana e não a cidade de Sal- vador. Entre 1807 e 1828, as tentativas de re- beliões negra se concentraram em sublevar os escravizados dos engenhos (principalmente no Recôncavo) para depois tomar a capital. A pro- víncia foi agitada, nesse período, pelos ventos da independência e dos movimentos antilusi- tanos, contribuindo para que os escravizados lançassem mão de suas estratégias e encabeças- sem suas próprias insurreições. A constante crise econômica e de abasteci- mento da província foi o estopim para revol- tas da plebe, que arrastaram consigo um bom contingente de escravizados. Apesar do cená- rio de penúria entre os mais pobres, a cidade de Salvador consolidou-se como centro urba- no com instituições e comércio que deman- davam serviços e, por extensão, outras formas de controle do trabalho escravo. É neste sen- tido que os negros de ganho (escravizados que exerciam atividades urbanas e pagavam uma diária aos seus senhores) passaram a ocupar ofícios importantes para o cotidiano da cida- de, como carregadores de cadeira, artesãos,
  • 66. N E G R A U T O P I A 67 Os negros de ganho, que prestavam diversos serviços nas ruas de Salvador, foram os principais articuladores da revolta.
  • 67. M A L Ê S 1 8 3 5 68 vendedores, barbeiros, alfaiates, saveiristas, en- tre outras funções. Além de lucrativos aos seus senhores, os negros de ganho tinham maior mo- bilidade e circulação se comparados aos escra- vizados do eito, confinados ao trabalho nos engenhos. Como destaca Kátia Mattoso, a possibilidade de comprar a própria alforria era algo mais próximo da realidade dos negros de ganho que dos escravos dos engenhos. Mesmos assim, não eram poucos os anos de economias a ser reunidas por um escravo de ganho. Além de pagar a jornada ao seu senhor, ele deveria ar- car com as despesas de alimentação e moradia, enfim, de si próprio, antes de economizar para comprar a própria liberdade14 . Esta expansão coincide com o aumento de africanos, na primeira metade do século XIX, na cidade de Salvador, a partir do trá- fico transatlântico. A mobilidade dos escravos de ganho na paisagem urbana não demorou a ser percebida por estes como um espaço de conspiração e rebelião. Como chamou a atenção Pierre Verger, as chances de um ataque final sobre Salvador, uma vez tomada a região 14 Ver Mattoso (2003, p. 189).
  • 68. N E G R A U T O P I A 69 do Recôncavo, eram problemáticas, posto que encontrariam já alertas e em posição de defe- sa as tropas adversárias15 . Em 10 de abril de 1830, quase cinco anos antes do levante malê, vinte africanos assaltaram algumas lojas de ferragens na Ladeira do Taboão. Recolheram espadas e parnaíbas, e foram dar no mercado de escravos, onde libertaram africanos que seriam vendidos. Após atacar uma patrulha e matar um soldado, foram dispersados pelo fogo de policiais armados. Além de inúmeros feridos, contaram-se entre os rebeldes mais de cinquenta espancados até a morte pela turba que se lançou contra eles16 . Este fato fez com que as autoridades reforçassem as medidas de segurança e controle contra os escravizados na cidade. Porém, o endurecimento da vigilância não fez esmorecer as esperanças de liberdade. Cin- co anos depois, na mesma cidade de Salvador, outra rebelião estourou. E esta ainda maior. Foi a Revolta dos Malês. 15 Ver Verger (2003, p. 365). 16 Ver Reis (2003, p. 115).
  • 69.
  • 70. N E G R A U T O P I A 71 Foi um levante de grandes proporções. Segundo o presidente da província à época, participaram da revolta mais de duzentos indivíduos. De acordo com o historiador João José Reis1 , isso equivaleria, em termos proporcionais, tomando a população de Sal- vador em 2012, a um levante de 9 mil pesso- as! A cidade de Salvador foi palco da maior rebelião de negros urbanos escravizados vista até então. Um episódio com profundas reper- cussões no cotidiano da cidade, na presen- 1 Ver Reis (2003, p. 151). Os filhos de Alá vão à luta
  • 71. M A L Ê S 1 8 3 5 72 ça de africanos em terras brasileiras e sobre os meios de controle do corpo e do trabalho dos escravizados. Os rebeldes eram pessoas que exerciam atividades como negros de ganho. Vendedores de pão e de peixe, saveiristas, car- regadores de cadeiras e outros serviços. Vesti- ram seus abadás e amuletos, e sob a inspira- ção e proteção de Alá tornaram-se guerreiros que ousaram romper as engrenagens do sistema a partir do coração da capital da província da Bahia. Estavam confiantes de que a organiza- ção malê seria capaz de levantar os negros e dar outro desfecho à história. Essa confian- ça, sem abrir mão de planejamento e cálcu- lo, como veremos, teve forte conteúdo emo- cional e religioso. Integravam-se em uma comunidade onde se viam e tratavam como seres humanos, onde o senso de dignidade, alquebrado pela escravidão, se impunha pelas lições do Corão, vivenciadas nas reuniões e banquetes que celebravam a vida. O senti- mento de pertença cultivado entre os malês parecia suficiente para atrair outros grupos, uma vez que a insurreição ganhasse força e
  • 72. N E G R A U T O P I A 73 Com seus abadás, amuletos e armas, os malês se lançaram na revolta.
  • 73. M A L Ê S 1 8 3 5 74 se aproximasse de uma batalha final positi- va para os rebeldes. Mas um movimento dessa natureza exigia hora e local corretos. Não se podia correr o risco da rebelião ser frustrada por falta de preparação e planejamento. No dia 25 de ja- neiro de 1835, a maior parte da população de Salvador estava no bairro do Bonfim, distan- te do núcleo urbano, comemorando a festa de Nossa Senhora da Guia. O centro da ca- pital ficou relativamente desabitado, desguar- necido e mais tranquilo que o habitual. Nada parecia suspeito na cidade que comemorava no Bonfim, indiferente aos planos malês que logo colocariam de pernas para o ar aquele interregno de marasmo e tranquilidade às margens da Bahia de Todos dos Santos. O movimento que partia de Salvador – e tinha como objetivo inicial a tomada da ci- dade – havia arquitetado planos maiores de ir ao Recôncavo. As velas brancas dos saveiros no vai e vem entre o Rio Paraguaçu e o por- to de Salvador traziam embaixadores negros do Recôncavo, que junto com os malês so- teropolitanos decidiram expandir a rebelião
  • 74. N E G R A U T O P I A 75 além dos domínios da Roma Negra. As primeiras notícias de uma rebelião che- garam pelas águas da Bahia de Todos os San- tos e davam conta de um movimento rebelde, que unia negros de Salvador e do Recôncavo sob a liderança de Ahuna (gentílico islâmi- co), sobre quem nunca mais se soube. Aquele movimento incomum na Bahia e as infor- mações sobre a rebelião iminente chegaram aos ouvidos do casal de libertos Domingos e Guilhermina, que informaram as autorida- des. Decerto, a delação do movimento não se tornou pública ao ponto dos malês mudarem seus planos. Eles continuariam conforme es- tabelecido previamente, aproveitando-se do que supunham ser o elemento surpresa de uma cidade desguarnecida e desabitada. Entre cinquenta e setenta negros estavam reunidos na loja (uma habitação no subsolo que servia de moradia para negros escravi- zados) do sobrado de número 2, na Ladeira da Praça, sob a liderança de Manuel Calafate e Aprígio. Estavam vestidos com seus abadás, carregavam em seus peitos os amuletos pro- tetores com passagens do Corão, portavam
  • 75. M A L Ê S 1 8 3 5 76 espadas e lanças e comiam e confraterniza- vam de acordo com a tradição islâmica. Era o último banquete antes da guerra que devia ir- romper ao nascer do dia. Mas as autoridades, informadas de um possível levante, iniciaram buscas nas casas de africanos suspeitos e, por volta de uma da manhã, chegaram ao ende- reço. A ação da patrulha precipitou os pla- nos, e começou assim a insurreição. Mesmo surpreendidos, os malês, ao invés de abortar o movimento, resolveram iniciá-lo, já que a presença de tantos negros na loja alugada por Calafate era evidência mais que suficiente de suas intenções. A cidade estava relativamente vazia e os planos envolviam não apenas os que acompanhavam Calafate naquele momento. Outros negros viriam se juntar ao movimen- to, de outros pontos da cidade. Os malês não estavam despreparados, e pelo movimento dos saveiristas ao longo do dia, sua rede de articuladores entre Salvador e Recôncavo devia estar suficientemente cons- tituída, de forma a crerem no sucesso de sua empreitada. Os malês saíram da loja de Ca- lafate aos gritos de “mata soldados”, vestidos
  • 76. N E G R A U T O P I A 77 com seus abadás, tocando tambores, armados de espadas e convocando os africanos à re- volta. Era uma multidão de homens negros vestidos de branco, armados com espadas. Atacaram a patrulha que, surpresa, mal con- seguiu resistir à investida malê. Dali se divi- diram em grupos que, ao que tudo indica, tinham diferentes alvos e objetivos. Haviam planejado uma insurreição. É im- portante destacar este ponto. Não investiram contra alvos civis, mas contra posições militares na cidade, com o objetivo de tomá-las e, com isso, superar a desvantagem bélica. Os que morreram pelas mãos malês participavam di- retamente do confronto, ou seja, não houve mortes aleatórias de brancos ou outros alvos. Este fato, nas palavras de João José Reis2 , abre espaço para se deduzir que respeitassem algum protocolo militar muçulmano. Atacar e ocupar posições militares é tática distinta de invadir casas, incendiá-las, matar senhores... enfim, espalhar a anarquia e com isso produ- zir o pânico e a confusão no inimigo. Após saírem da loja de Calafate e se dividir 2 Ver Reis (2003, p. 149).
  • 77. M A L Ê S 1 8 3 5 78 em grupos, o maior contingente seguiu em direção à Praça do Palácio, onde ficava a pri- são, com o objetivo de libertar o alufã Pacífico Licutã, um homem de setenta anos de idade, muito respeitado e reverenciado pelos malês, que fora preso para honrar uma dívida de jogo de seu senhor. Por que era tão importante para os malês libertar o ancião? Era inegável a po- sição de prestígio que ocupava entre os malês, e sua prisão deve ter despertado ressentimento entre eles. É evidente o papel que reservaram a Licutã no desenvolvimento da revolta. Mas, ao contrário do que imaginavam os malês, a cadeia pública (que se localizava onde fica atu- almente a Câmara de Vereadores de Salvador) estava relativamente bem guarnecida, e foram recebidos com disparos de armas de fogo. Vie- ram balas também do Palácio do Governo, lo- calizado em frente à Cadeia Municipal. Cerca- dos dos dois lados e em meio ao fogo cruzado, os rebeldes recuaram e tiveram que abandonar o plano de libertar Licutã. Apesar desse primeiro revés, os malês não tiveram baixas no confronto e se reagrupa- ram na Praça do Teatro (onde fica hoje a
  • 78. N E G R A U T O P I A 79 Praça Castro Alves). Lá, atacaram uma guar- nição, feriram alguns soldados, se apossaram de suas armas e foram em direção ao Quar- tel de Guardas Permanentes (perto do atual Convento de São Bento). Porém, os soldados abrigados no Quartel não foram nem um pouco receptivos. Sob o fogo de suas armas, os malês tiveram que recuar. Além deste grupo principal, outros gru- pos negros seguiram pelas ruas de Salva- dor, batendo nas janelas, tocando tambores e convocando em línguas africanas os negros à insurreição. Era o chamado para a guerra. Um grupo de negros rebeldes do bairro da Vitória cruzou o Forte de São Pedro e se juntou aos combatentes que vieram das Mercês, ponto de reaglutinação dos negros após a batalha no São Bento. Já um outro grupo atacou um quartel de polícia no antigo Largo da Lapa (imediações do atual Colégio Central) e conseguiu pôr para correr a guarnição, que, escondida atrás dos muros, conseguiu dispersar os rebeldes a tiros. O destino dos malês era agora a Cidade Baixa, a Península de Itapagipe, onde tinham
  • 79. M A L Ê S 1 8 3 5 80 que cruzar, em Água de Meninos, com o Quartel de Artilharia para, talvez, alcançar o Recôncavo. Os rebeldes empreenderam uma batalha aberta, corpo a corpo, mas o quar- tel se mostrou um obstáculo intransponível. Foram derrotados pela posição vantajosa e abrigada dos que atiravam de dentro da guar- nição. Muitos morreram investindo, sob a chuva de balas, contra o os seus muros. Ou- tros não tiveram opção senão fugir. Na ten- tativa desesperada de fuga, alguns tentaram escapar pelo mar e morreram afogados. Parte foi capturada e morta. Mas muitos, apesar das condições adversas, conseguiram escapar. Há registro de que, na alvorada do dia 25 de janeiro, pelo menos dois grupos de africa- nos ocuparam as ruas de Salvador. Um deles ateou fogo na casa do senhor e ia em direção a Água de Meninos. Pelo menos um porta- va um caderno malê. Foram todos mortos3 . Uma hipótese é que seguiam os planos origi- nais dos malês, e a tomada do Quartel de Ar- tilharia seria o último ponto a partir do qual a sublevação avançaria para tomar posições no 3 Ver Reis (2003, p. 243).
  • 80. N E G R A U T O P I A 81 Recôncavo. Os malês atacaram posições mi- litares que eram estratégicas dentro do plano de sublevação. Não é possível afirmar quan- tos sabiam dos planos originais, porém, é fato que seguiram a orientação de seus líderes e organizaram um movimento planejado e ar- ticulado. Dois aspectos devem ser destacados. O primeiro é o conhecimento do território da cidade. A forma como se deslocaram pelo pe- rímetro urbano e atacaram seus alvos mos- tra um conhecimento da geografia urbana, o que, apesar do alto número de baixas, pode ter contribuído para reduzir o seu total. De- vemos levar em conta que se tratou de um conflito de grandes proporções. Reis estima em 200 o número de rebeldes em Água de Meninos4 , número bastante superior aos cin- quenta ou setenta insurretos que se reuniram na loja de Calafate e iniciaram o levante. Um confronto aberto e sem planejamento pode- ria ter gerado uma carnificina ainda maior, semelhante ao que ocorreu em 1830. Os relatos apontam também que a maior 4 Ver Reis (2003, p. 143).
  • 81. M A L Ê S 1 8 3 5 82 parte dos insurretos conseguiu fugir, o que corrobora com seu conhecimento da geogra- fia da cidade, suas ruas, becos, vielas e rotas. Para um carregador de cadeira, por exemplo, habituado a levar nos ombros a sociedade branca e escravista da época, não devia ser mistério o acidentado terreno de Salvador. Durante os interrogatórios, os escravos Agrí- pio (que dividia com Manuel Calafate a loja de onde partiu o levante malê) e Guilherme, ambos carregadores de cadeira (palanquim) de um canto na Mangueira, foram acusados por uma testemunha de se recusarem, dias antes do levante, a carregar um bêbado (mes- mo com a intervenção de um soldado e de um porteiro do tribunal), e teriam dito5 : “Aguardem um pouco, e quando pro- curares negros do canto e não os encon- trardes serão vós mesmos que levarão os palanquins nos ombros.” O segundo aspecto é a expertise militar que os insurretos malês haviam trazido do con- 5 Ver Verger (2002, pp. 559-560).
  • 82. N E G R A U T O P I A 83 tinente africano, conflagrado por conflitos étnicos que foram alimentados pelo tráfi- co transatlântico. Entre os grupos étnicos es- cravizados e também entre os nagôs islamiza- dos no continente africano, havia guerreiros com experiência em lutas e batalhas. A forma como conduziram o combate em território baiano e o protocolo militar que parecem ter seguido indicam esse elemento. Assim sendo, a delação que precipitou o levante foi um duro golpe que pôs a perder todo o plane- jamento e mobilização anteriores. De qual- quer forma, mesmo em condições adversas, os filhos de Alá não hesitaram em iniciar a batalha. Encerrado o conflito, era o momento de contar as baixas. Segundo as autoridades da época, o número total de mortos, so- mando os dois lados da contenda, ultrapas- sou setenta. Foram contabilizados cinquen- ta africanos, caídos durante ou levante ou afogados no mar em sua tentativa de fuga6 . Seus nomes foram registrados nos autos dos processos pós-1835: Henrique, Nóe, Hipóli- 6 Ver Reis (2003, p. 155).
  • 83. M A L Ê S 1 8 3 5 84 to, Constantino, Roque, Manoel, Gertrudes, Baltazar, Cícero, Flamé, Batanho, Combé, Mama Andeluz (ou Dassalu), Victório Sule, Nicobé, Gustard... Eram pessoas anônimas para a elite política e social de Salvador, e os seus nomes de origem árabe – que faziam questão de manter ao lado do nome do batis- mo cristão, ganho no Brasil – causava estra- nheza e repulsa à sociedade branca e àqueles que, uma vez vendo a balança pender para o lado dos senhores de escravizados, não hesi- tavam em franquear-lhes seu apoio e vocife- rar contra os bárbaros africanos que tentaram macular a cidade com seus símbolos e planos inspirados por Alá. A repressão ao levante de 1835 foi mui- to mais abrangente e dramática que aquela seguida às sublevações de 1830. A aliança entre libertos e escravizados, o proselitismo islâmico e o predomínio dos nagôs entre os insurretos funcionaram como diferentes sig- nificantes para o que foi apontado como o mal por trás da utopia negra malê: a presença do componente africano em terras brasileiras. Expurgar a África do Brasil foi a chave en-
  • 84. N E G R A U T O P I A 85 contrada não apenas para punir os líderes do levante, mas também para estabelecer a sus- peição generalizada dos africanos. Porém, diante da repressão aberta a escravizados, a libertos, de uma maneira geral, e aos africa- nos, em particular, novas táticas de luta e en- frentamento surgiram sem que os planos de pacificação das elites da época chegassem a atingir plenamente seus objetivos.
  • 85.
  • 86. N E G R A U T O P I A 87 A insurreição malê foi um ponto dinâmico para o qual convergiram diferentes contra- dições da sociedade escravista do seu tempo. Em primeiro lugar, a revolta colocou como alvo os brancos, mas deixou dúvidas quanto ao horizonte reservado para os pardos, mula- tos e crioulos. Em segundo lugar, as diferenças étnicas entre os nagôs e os demais grupos de origem africana estabeleceram limites iniciais à mobilização. Em terceiro lugar, foram es- tabelecidas zonas concêntricas de arregimen- tação para a luta, sendo seu projeto inicial uma revolta africana, feita por escravizados e Repressão e guerras subterrâneas
  • 87. M A L Ê S 1 8 3 5 88 libertos, de caráter urbano e dirigida por malês (islâmicos) de maioria étnica nagô. Mas se foi propriamente uma vanguarda malê a que teve o papel de planejar e desencadear a revolta, seu objetivo era mobilizar todos os africanos a se levantarem contra a sociedade escravista. Foi uma revolta urbana – no coração da cidade de Salvador, centro político e militar da pro- víncia –, de acordo com a tradição rebelde e insurrecional dos negros baianos iniciada no começo do século XIX, mas que também esta- beleceu uma mudança na estratégia das rebeli- ões negras na Bahia quando se propôs a chegar aos engenhos do Recôncavo a partir da capital. Como era de se esperar, a rebelião cau- sou pânico na cidade de Salvador. Prevaleceu a ideia de que ela seria resultado da aliança entre escravizados e libertos africanos, cain- do sobre os nagôs, de forma genérica, o peso de terem orquestrado e efetivado sozinhos os planos insurrecionais. A repressão devassou a vida de centenas de africanos cativos e libertos. Segundo Pierre Verger1 , entre os 286 acusados (126 libertos e 160 escravizados) havia nagôs 1 Ver Verger (2002, p. 370).
  • 88. N E G R A U T O P I A 89 (194), haussás (25), tapas (6), minas (7), jejes (9), mulatos (7) e ainda alguns de origem des- conhecida (18). Todo e qualquer suspeito de ligação com os malês foi submetido a inqué- rito e teve que se explicar à justiça. O simples fato de professar a fé islâmica, ter contato com algum revoltoso ou possuir em casa algum ob- jeto religioso muçulmano já era suficiente para chamar a atenção das autoridades. Centenas de suspeitos foram alvo de investigação, e as pe- nas variaram conforme as condições de defesa do acusado (pelo qual intervinha, às vezes, o seu próprio senhor) e a necessidade das autori- dades de dar uma resposta à altura a tamanha ousadia rebelde. O inquérito célere se voltou contra os que se julgava serem líderes do movimento: Ahuna ou Aruna, Victório Sule, Luís Sanin, Pacífico Li- cutã, Elesbão do Carmo Dandara, Belchior da Silva Cunha, entre outros. Como destaca Ver- ger2 , às autoridades da época impressionaram os textos escritos em árabe por escravizados e livres, considerados intelectualmente inferio- res. Como a punição estabelecida para cons- 2 Ver Verger (2002, pp. 369-370).
  • 89. M A L Ê S 1 8 3 5 90 piração era a pena de morte e esta não previa a indenização dos proprietários, muitas conde- nações foram comutadas em penas de prisão perpétua ou prisão com ou sem galés e torturas públicas por chibatadas. Ao fim, quatro malês foram condenados à morte e executados no dia 14 de maio de 1835. Aprígio, como muitos, teve que cumprir pena na prisão. Vários foram condenados a sessões públicas de tortura por chibatadas, nas quais as pessoas eram “despidas, amarradas e açoitadas nas cos- tas e nas nádegas, um espetáculo intimidador para os demais africanos, que passavam dias a fio assistindo aquele sofrimento em diver- sos locais da cidade: o Campo da Pólvora, o Campo Grande e Água de Meninos”3 . O alufã Pacífico Licutã, já com 70 anos à época do le- vante, escapou da pena de morte por estar pre- so durante o evento, mas, mesmo assim, foi condenado a 1000 chibatadas! Luís Sanin, ou- tro mestre malê já idoso, a 600 chibatadas! As chibatadas tinham como objetivo disciplinar e educar pela violência não só o torturado, mas toda a comunidade negra. Além disso, permi- 3 REIS, 2003, p. 470.
  • 90. N E G R A U T O P I A 91 No dia 14 de março de 1835, quatro malês foram fuzilados por sua participação na revolta.
  • 91. M A L Ê S 1 8 3 5 92 tia que a preciosa mercadoria voltasse às mãos do senhor, ao contrário da pena de morte. As estratégias dos acusados para se livrar da pena de morte, do cárcere, das torturas públicas por chibatadas são um capítulo à parte da história de resistência desses sujeitos. Apesar das pressões da opinião pública e das autoridades da época em dar o revide à ação dos insurretos, é inegável que por todos os meios, quando estavam disponíveis, questionaram suas sentenças e, em alguns casos, tiveram ine- gáveis vitórias. Mas o espetáculo das chibata- das, das prisões e execuções não foi suficiente para acalmar os ânimos da elite branca. Além do castigo, da prisão e a pena de morte, as au- toridades implementaram iniciativas que ca- minhavam em duas direções. Por um lado, deportações em massa, a princí- pio dos africanos livres, que se iniciaram como resultado dos inquéritos e, com a Lei nº 9, de 13 de maio de 1835, se generalizaram para todo e qualquer africano que vivesse na cidade de Salvador. Além do retorno forçado a África, os senhores baianos correram para vender e se desfazer dos escravizados nagôs ou suspeitos
  • 92. N E G R A U T O P I A 93 de rebeldia, enviando-os para outras provín- cias do país4 . A historiadora Kátia Mattoso afirma que diante dos movimentos de eman- cipação dos escravizados e libertos a população livre (branca, crioula, mulata) conformou uma “frente brasileira” contra o africano, por onde “multiplicam-se as brechas das quais soube aproveitar o poder branco”5 . Este fato facilitou a conversão da repressão aos malês em perse- guição aos africanos de uma maneira geral. Era necessário desafricanizar a Bahia, tornando-a livre de conspirações e insurreições. O africa- no era pertencente a uma “classe perigosa” que deveria se disciplinar pelo cárcere, a tortura e a deportação. Por outro lado, era necessário controlar os passos dos cativos e libertos na própria provín- cia, interditar seus espaços de sociabilidade e interferir na organização dos negros de ganho. O edital de 21 de fevereiro de 1835 estabe- leceu a obrigatoriedade do passe (documento assinado pelo senhor) para os escravizados cir- cularem após às oito horas da noite. A pena 4 Ver Reis (2003, pp. 498-502). 5 MATTOSO, 2003, pp. 165-166.
  • 93. M A L Ê S 1 8 3 5 94 para quem descumprisse a determinação era de 50 chibatadas. Já para os libertos, definia que, caso fossem encontrados nas ruas após o horário, teriam o “destino que se julgar conve- niente”, o que, segundo João José Reis, tornou a liberdade dos libertos uma mistificação6 . O controle se estendia aos espaços de lazer e so- ciabilidade, ao determinar que qualquer cida- dão ou policial podia prender quatro negros ou mais que estivessem reunidos. Dessa maneira, é importante nos questionar sobre a validade das diferenças entre africanos e crioulos. Diante da suspeição generaliza- da todos eram negros e estavam, por princí- pio, submetidos ao mesmo arbítrio do poder branco. Como vimos, naquele período, cida- dão era sinônimo de branco, colocando a po- pulação negra sob suspeição permanente. Mas o controle do lazer não era suficiente se não se atingisse o núcleo da organização dos tra- balhadores de ganho. A Lei nº 14 instituiu as capatazias dos cantos onde eram ofertados serviços à população da cidade de Salvador, e tinha como objetivo estabelecer mecanismos 6 Ver Reis (2003, p. 495).
  • 94. N E G R A U T O P I A 95 de tutela do trabalho, pondo-o sob vigilância e controle. Porém, as estratégias dos trabalha- dores de ganho foram mais eficazes, ao ponto de, em 1875, chegarem a cruzar os braços e fazer greve7 . Em resumo, como “classe perigosa”, os ne- gros tiveram que enfrentar novos mecanismos de controle de seus corpos, que deveriam ser disciplinados pelo cárcere e a tortura, mas tam- bém pela vigilância de seus espaços de lazer, so- ciabilidade e de trabalho. A paranoia do poder branco ramificou e aperfeiçoou os mecanismos de poder que foram enfrentados de forma sub- terrânea pelos negros, estabelecendo uma nova gramática de lutas e estratégias de enfrentamen- to à exploração. O historiador João José Reis afirma que a rebelião de 1835 encerrou o ciclo de revoltas escravas na Bahia do século XIX. O que se seguiu foi a intensificação de outras for- mas de luta e resistência, como, por exemplo, a greve dos negros de ganho (escravizados urba- nos), em 1875 e que é objeto de livro recente do autor8 . Como em uma estratégia de ataque 7 Ver Reis (2003, pp. 503-508). 8 Ver Reis (2019).
  • 95. M A L Ê S 1 8 3 5 96 pelos flancos, prevaleceu a resistência cotidia- na, principalmente em relação ao controle do trabalho e do lazer. Estas guerras subterrâneas que, por fim, derrotariam o escravismo em 1888, nos abrem outras possibilidades de resistência que são pouco valorizadas, em particular quando asso- ciadas a cosmovisões não europeias, como as negras e indígenas.
  • 96. N E G R A U T O P I A 97 Há os que preferiram ver na revolta dos ma- lês apenas mais um episódio de desajuste cul- tural do africano em solo brasileiro. Apenas na década de 1940, na cidade de Juazeiro da Bahia, quando Clóvis Moura iniciou a escrita do clássico das ciências sociais, Rebeliões da Senzala, publicado em 1959 por uma peque- na editora paulista de nome Zumbi, a revolta dos malês ganhou nova interpretação. Com Moura, deixou de receber o tratamento parti- cularista e racista, dado por autores como Nina Rodrigues, para quem a sublevação de 1835 era exemplo da “barbárie de selvagens africa- Racismo epistemológico, práxis e luta de classes
  • 97. M A L Ê S 1 8 3 5 98 nos”, cujas “sobrevivências culturais” faziam contraponto à “civilização” nascida da em- preitada colonial nos trópicos. A Revolta dos Malês, assim como os quilombos e guerrilhas dos escravizados, passava a ser encarada como parte de um processo mais amplo de superação histórica do escravismo, o que o autor viria a chamar, anos mais tarde, de quilombagem. De sua pequena biblioteca em Juazeiro, Clóvis Moura contribuiu para uma verdadei- ra revolução copernicana no cânone historio- gráfico e no marxismo brasileiro. A presença do negro em nossa sociedade fora até então reduzida à sua condição histórica de escravi- zado, e as categorias de explicação, construídas fora do terreno histórico da luta de classes do país, se ajustavam à ideologia dominante da passividade escrava e de sua condição de não sujeitos (mercadoria). Agora, a revolta urbana dos malês na cidade de Salvador deixava de ser um fato isolado, explicado pela defasagem ou diferença cultural desses africanos em relação à sociedade nacional (tese defendida, entre ou- tros, pro Nina Rodrigues, e que mais reflete a opinião das elites políticas da época que a
  • 98. N E G R A U T O P I A 99 realidade objetiva dos fatos). Ao contrário, a Revolta dos Malês é parte de seu contexto his- tórico permeado de outros levantes e subleva- ções escravas, numa Bahia marcada por atribu- lações e disputas políticas na primeira metade do século XIX. Desde pelo menos a Revolta de Búzios, em 1798, liderada por negros libertos e inspirada nos ideais da Revolução Francesa, a participação negra nos movimentos políticos de então era um fato incontestável. Apesar de sua enorme contribuição, por que o pensamento de Moura é ainda pouco conhecido? Grosfoguel1 nos fala sobre o boi- cote das editoras, pela ausência de traduções e reedições, e das universidades, que omitem de seus currículos autores que, como Clóvis Moura, mas também Kwame Nkruman, Man- ning Marable, C. R. L. James, W. E. B. Du Bois, Carla Jones, Carol Boyce Davis, Angela Davis e muitos outros, pertencem a uma tra- dição marxista negra. Clássicos como Black Marxism, de Cedric Robinson, publicado em 1983, ainda hoje não ganharam tradução para o português ou espanhol. Clóvis Moura não 1 Ver Grosfoguel (2018, p. 11).
  • 99. M A L Ê S 1 8 3 5 100 pode estar fora desta turma de intelectuais pio- neiros. O que torna as suas produções desconhe- cidas é o racismo epistêmico que “constrói como inferior o pensamento negro e superior o pensamento branco”2 . Conceitos atualmen- te em voga no pensamento crítico, como os de sistema-mundo, colonialidade do poder e colonialismo interno, têm suas origens negras ocultadas, como se para serem aceitas e valo- rizadas necessitassem ser branqueadas, numa verdadeira operação de extrativismo epistêmi- co. É interessante observar que o autor enten- de o marxismo negro “não como uma cor de pele, mas como um modo de entender o mun- do”, ou seja, uma perspectiva teórica que se constitui ao entender a articulação entre “ex- ploração capitalista e dominação racial”3 . Em tese, um branco pode assumir essa perspectiva, mas o faz em muito menor quantidade que os negros, pois estes confrontam o problema com mais urgência ao vivenciar o racismo nas relações cotidianas. Na produção do conheci- 2 GROSFOGUEL, 2018, p. 13. 3 GROSFOGUEL, 2018, p. 18.
  • 100. N E G R A U T O P I A 101 mento, erguem-se barreiras diferentes para ne- gros e brancos: para os primeiros, trata-se de renunciar à ideologia da modernidade que ho- mogeneíza corpos, tradições e culturas; aos se- gundos, é necessário reconhecer o seu lugar de privilégios e como a ideologia da branquitude, a ele associada, limita a sua visão do todo. Para Clóvis Moura, no entanto, a superação de uma teoria social branqueada e eurocêntrica não irá ocorrer a partir da reafirmação de um lugar de fala. É a partir da práxis que temos uma interpretação histórica do racismo como um fenômeno estrutural e não como epifenô- meno.4 Percorrer a trajetória da práxis negra é fundamento de uma episteme decolonial para superar o fatalismo determinista que fez tábula rasa das cosmovisões de homens, mulheres e povos trazidos à força de África. Vimos, por exemplo, que a cultura trazida do continente africano foi fator determinante na experiência desses sujeitos contra o controle racial do trabalho e sua redução à condição de mercadorias, seja na rebelião aberta, seja nas guerras subterrâneas travadas no dia a dia. Para 4 Ver Oliveira (2019).
  • 101. M A L Ê S 1 8 3 5 102 entender a luta de classes e fugir dos modelos eurocêntricos e idealistas, é preciso compreen- der como os sujeitos que tomaram parte dela se organizaram concretamente, suas motiva- ções e horizontes históricos. Não se trata de tentar enquadrar a ação concreta dos sujeitos em categorias pré-fabricadas, como num jogo de lego em que as peças devem reconstituir a imagem da caixa. Ao contrário, são as ações dos sujeitos que organizam a interpretação e decolonizam o pensamento na práxis. Como afirmava o sociólogo Guerreiro Ramos, é um exercício de saída do “nevoeiro da brancura”, apenas possível quando acendemos a “luz da negrura”5 . Revisitar a Revolta dos Malês é, antes de tudo, enxergar toda a negrura de nosso pro- cesso de luta social, valendo-nos tanto da ma- terialidade das relações quanto do universo simbólico6 que se impôs , apesar da tentativa de desumanização característica do escravismo e da sociedade colonial. 5 RAMOS, 1995, p. 243. 6 “Ver Fanon (2008).
  • 102. N E G R A U T O P I A 103 Nos dias de hoje, o genocídio contra o povo negro continua nas favelas e bairros populares.
  • 103. M A L Ê S 1 8 3 5 104 Referências ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Pau- lo: Boitempo, 2019. AZEVEDO, Elciene. Orfeu da Carapinha: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo. Campinas: Editora da Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social, 1999. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras bran- cas. Salvador: Ed. UFBA, 2008. GAMA, Luiz. Com a palavra, Luiz Gama. Lígia Fonseca Ferreira (org.). São Paulo: Im- prensa Oficial, 2011. GOMES, Flávio. Palmares: escravidão e li-
  • 104. N E G R A U T O P I A 105 berdade no Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Con- texto, 2005. GROSFOGEL, Ramon. ¿Negros marxistas o marxismos negros? Una mirada decolonial. Tabula rasa. Bogotá. Colômbia, n.28, pp. 11- 22, enero-junio 2018. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2003. MOURA, Clóvis. Rebeliões da Senzala. São Paulo: Editora Zumbi, 1959. ______. O negro: de bom escravo a mal cida- dão. São Paulo: Conquista, 1977. NORTHUP, Solomon. 12 anos de escravi- dão. São Paulo: Penguin Companhia, 2010. OLIVEIRA JR, Franklin. Canal Conde dos Arcos: Uma obra visionária no Período Joanista. Salvador, Ed. do Autor, 2008. OLIVEIRA, Dennis. Racismo estrutural ou estruturalismo racial? Mídia 4P. Disponível em: http://midia4p.com/racismo-estrutural-ou-es- truturalismo-racial/. Acesso em: 26 de agosto de 2019. ORSOLON, G. “Rebeliões da Senzala: diálo- gos, memória e legado de um intelectual bra- sileiro.” Dissertação de Mestrado em História,
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  • 106. N E G R A U T O P I A 107 SILVA, Mouzar Benedito da. Luiz Gama: o libertador de escravos e sua mãe libertária, Lu- íza Mahin. São Paulo: Expressão Popular, 2009. SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasi- leira: ou como o país se deixa manipular pela elite. São Paulo: Leya, 2015. VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de To- dos os Santos dos séculos XVII a XIX. Salvador: Corrupio, 2002.
  • 107. Este livro foi composto em fonte Adobe Garamond Pro regular e bold em 11,5/15 e Montserrat para títulos impresso em papel Offset 65g pela gráfica Forma Certa, para Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.
  • 108. E quando lá no horizonte Despontar a Liberdade; Rompendo as férreas algemas E proclamando a igualdade, Do chocho bestunto Cabeça farei; Mimosas cantigas Então te direi. Luiz Gama