Um soldado português regressa de licença e fica desapontado ao saber que em vez de ir para Timor vai ser enviado para a Guiné. Vai a um bar beber e refletir sobre os nomes das coisas e como estes carregam significado. Depois de beber alguns copos, conversa com o empregado de bar sobre linguagem e colónias, antes de ter de voltar ao quartel.
1. 29 de Março de 1967<br />Regressei ao RAC de Oeiras depois de uma licença de 10 dias, benesse do Decreto nº 42937. Obrigadinho. Mas não fiquei nada satisfeito quando lá cheguei e o capitão disse aos alferes que, afinal, não íamos para Timor. Tinham-nos dito que talvez… Afinal, disse-nos, vamos para a Guiné. Foda-se, que merda! reacção geral. <br />Fiquei lixado, peguei no distintivo e mudei-lhe o lema: passou de “Sem Temor” para “Sem Timor”. Que não podia ir com isto assim no desfile que iríamos fazer antes de embarcar, mas todos vimos que o capitão também não estava nada satisfeito. Tá bem, mas agora dá-me para desopilar.<br />Não me apeteceu nada ficar no quartel depois do jantar, não tinha nada a fazer, e decidi ir apanhar o comboio até Lisboa. Os meus camaradas, não vi bem se a sério ou a brincar, perguntaram-me se me ia pirar. Não, disse-lhes a sério, não me vou pirar, não vos ia abandonar, vou só dar aos meus velhotes esta boa notícia… Fiz mal. E daí… não sei, talvez não, tinha de ser, tinha de lhes dizer. O meu pai ficou macambúzio e preocupado, a minha mãe e a minha irmã choraram. <br />Não aguentei e vim para este bar.<br />Dá-me licença que me sente aqui?... Obrigado.<br />Um gin tónico, se faz favor!<br />...Não é a primeira vez que cá venho mas agora não sei o nome do bar, não me vem à cabeça. Situação embaraçosa para quem pretende divagar a partir dele, da sua configuração interna, daquilo que se vê através dos seus frequentadores, do mundo que encerra em si e fora de si. Mas não interessa, os meus pensamentos vão estar longe daqui.<br />Olhe, mais outro gin tónico!<br />…Afinal, acho que sim. É importante o nome das coisas, dos seres, dos lugares... Penso que os nomes atribuídos têm muito a ver com a natureza das coisas, dos seres e do seu ambiente. Quando digo rosa, digo e sinto tudo o que a rosa é: o cheiro, as pétalas coloridas, o redondo belo. Quando se fala no Marquês todos sabem que é a praça onde está o Marquês de Pombal com o leão a tiracolo. Não, está aos pés, é verdade. Mas faz tanto parte dele que é como se o tivesse a tiracolo. E mulher… ah, mulher é amor, seios, pernas, ancas, sexo. Os nomes deixaram de ser unicamente nomes e passaram a ser, a personificar coisas concretas. Quando proferimos um nome temos em nós, automaticamente, um retrato, uma vivência e um conjunto de características que só conseguiríamos descrever por frases mais ou menos extensas, mais ou menos difíceis de explicar. O nome é a síntese em nós de tudo isso.<br />Mais um!<br />…Levantei o copo mas o homem não me viu. Tenho de bater no copo.<br />Mais um gin tónico!<br />…Dar nomes às coisas e às pessoas é bom, para economizar palavras e explicações entre quem se conhece. Tenho uma amiga linda como uma flor… os bidonvilles de Champigny são piores que o Casal Ventoso… diz tudo, sem mais explicações. E, veja lá, e se aquela flor a que chamamos rosa tivesse outro nome… por exemplo esterco ou trampa? E se à trampa chamássemos rosa? Estávamos a introduzir aberrações no nosso código de entendimento, subverteríamos esse código. A discussão generalizar-se-ia onde agora existe entendimento. Chocaríamos os nossos amigos e os contactos do dia-a-dia, passaríamos por loucos perante os nossos concidadãos, como diria Camus.<br />Traga mais um, se faz favor!<br />Sente-se bem? Já vai no quarto… Não quer comer nada?<br />Não. Já jantei. Mas tem razão. Traga-me antes um whisky… Traga lá, homem!<br />…E se a loucura se generalizasse, se cada um decidisse a sua própria subversão, seria a guerra civil. Mas neste caso, ou no caso de se dar uma única subversão de forma colectiva, a tendência será regressar a uma nova normalidade, assente em novos códigos. Mais simplesmente na segunda hipótese, com muita dificuldade na primeira. Mas lá se chegaria. Lembrei-me agora desta: é colónia ou província ultramarina que se deve dizer?... Não se assuste, isto é só conversa. E desculpe lá a linguagem, mas é que saí há pouco tempo da Faculdade de Letras. Bem, tenho de ir andando, tenho de voltar ao quartel. Sim, sou tropa.<br />Não quer que o ajude? Posso levá-lo…<br />…Não, obrigado. Estou como o aço, dentro de dias vou embarcar para a Guiné. Gosto em conhecê-lo, adeus e até ao meu regresso. Não se ria, senão choro. <br />